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sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A CASA E A VIDA DO MONSTRO - 2 (Conto)

A CASA E A VIDA DO MONSTRO - 2

Rangel Alves da Costa*


"Vem cá, Meié (era assim que a velha mãe chamava Mehiel), deixe essas coisas pra fazer depois e vá na cidade comprar vela. Compre umas de sete dias e outras das comum mermo. Tô veno a hora de meus santo ficar na escuridão e Deus me livre que eles deixe de ouvir minhas prece pruque num tão seno alumiado. Vá lá, chispa daqui que tenho que fechar os oio pra rezar pra vige imaculada".
Ordenou Dona Mundinha, se ajeitando dentro de sua vestimenta preta. Só vestia preto, não tinha jeito. E não era vestido normal não, era um tipo de camisão negro com mangas quase tocando no pulso e uma saia rodada bem comprida que chegava ao calcanhar. Tudo retinto, preto preto. Quem não conhecesse diria que a mulher só tinha aquela roupa.
Ao ouvir a ordem da mãe, o filho falou: "Mas mãe, a senhora não tá vendo que dentro dessa gavetinha aí tem vela que dá pra mais de cinco dias. E que invenção é essa de comprar mais velas agora? E logo agora que eu ia colocar no forno da olaria umas moringas e umas panelas, que é pra o barro não desandar...".
"Chega de conversê e vá logo. Adispois você apronta suas coisa – E falando mais pausadamente, baixando os olhos - E quando tiver na cidade olhe pra arguma muié, uma bem bunita, que é pra ver se você se casa e eu passo a ter quem fique aqui comigo o dia todo rezano e pedino proteção a Deus. Agora vá...".
"O dia todo rezando, pedindo proteção... Só faltava essa. Qual é a mulher que vai querer ser escrava de santo mamãe? Não tem nenhuma maluca que queira ficar o dia todinho como a senhora fica não, mamãe. Eu acho mais fácil arrumar uma santa dessas que a senhora conhece tanto do que arrumar uma mulher de verdade. Desse jeito não, desse jeito não...". E foi saindo porta afora.
Mehiel pegou a estradinha que ia levar à estrada maior já quase dentro da cidade. Não havia mais mata nem mato porque as construções urbanas avançavam com a sede do progresso. Somente aqui e ali se avistava um ou outro pé de pau nu, completamente desfolhado e seco. Pequenas moitas surgiam porque macambira é planta que só falta aparecer em cima de pedra e asfalto. O resto era tudo descampado, numa natureza azul, grandiosa, e ao mesmo tempo triste pelo sol escaldante que anunciava estiagens. Coisa ruim vem aí, pensou enquanto caminhava.
Já quase alcançando a estrada maior, depois de uma pequena curva viu que três pessoas caminhavam pela estrada vindo em sua direção. Ao longe conheceu a viúva Expedita e os seus dois filhos menores. Moravam ali próximo, logo depois da cacimbinha.
Mehiel achou estranho foi quando, de repente, as três pessoas sumiram. Já estavam tão próximas e num segundo desapareceram. Devem ter entrado em qualquer vereda num instante que eu não estava olhando, ficou imaginando. Seguiu caminhando e mais adiante, quando ia passando perto de um muro caído numa construção abandonada, ouviu uma voz falando baixinho, quase num sussurro:
"É o monstro que tá passando. Fique quietinho que é pra ele num ver nóis...".
Era a voz da viúva Expedita, tinha certeza. Mas não teve nem tempo de pensar naquela situação, pois ouviu que alguém vinha por trás montado num cavalo, em passo moderado, que só aumentou o galope quando passou por ele e falou:
"Bom dia seu mons..., seu Meié. Inté mais ver seu Meié...". Claramente que Joaquim ia falar monstro e só não falou porque aquele não era o tipo de pessoa que gostasse de futrica nem de conversinha. Isso Mehiel reconhecia.
Mas de qualquer forma a palavra monstro havia sido pronunciada contra ele duas vezes em menos de três minutos. De novo isso acontecendo? Começou a se perguntar enquanto caminhava meio encafifado, incomodado.
Deixaria pra pensar sobre essa história de monstro depois, essa moda sem graça nenhuma de as pessoas insistirem em lhe chamar de monstro. Pensaria melhor sobre isso depois porque já estava na cidade, bem próximo onde deveria comprar a encomenda de sua mãe.
Andando despreocupado pela rua, sentiu que as pessoas fugiam ao seu encontro. Quem vinha em sua direção desviava, ia para outro lado, para outra calçada. Algumas nitidamente procuravam se esconder, entrando pelos becos, portas ou procurando abrigo em qualquer lugar. Uma mãe correu arrastando seu filho que chorava pela rua. Mulheres se benziam, grupinhos se formavam para cochichar. Não tinha jeito, era a tal história do monstro, asseverou Mehiel consigo mesmo.
De repente, contudo, ouviu uma doce voz falando por trás, quase ao seu ouvido:
"Mehiel, Mehiel, preciso lhe falar um instantinho só...".


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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