SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A CASA E A VIDA DO MONSTRO - 7 (Conto)

A CASA E A VIDA DO MONSTRO - 7

Rangel Alves da Costa*


Apenas pensou que sua mãe havia desmaiado. Porém pensou errado, pois a velha colocou o pé em cima do bilhete e, toda derreada e de olhos fechados, pronunciou: "Nem pense em pegá nesse papé. Aí tá uma oração fortíssima que me entregaro que é pra rezar pra você arrumá muié. Nem pense em pegá nele, senão perde o encanto, as força, o encantamento. Nem pense e se afaste logo daí que eu já tô ficando boa. E essa chinela só tô calçano pruque me deu vontade e pronto. Você num tem nada a ver com minhas sandália que eu use ou deixe de usar. É minha, uso quano quiser e pronto. E sai daí, chispa, chispa...".
Mehiel estava com uma vontade danada de dar uma risada, dessas bem espalhafatosas. Preferiu não fazer assim para não piorar a situação, mas disse:
"Vai ter que trocar essa roupa, pois ela tá molhada de chá. E já que tá de chinela nova, por que não veste também uma roupa nova, colorida, mais animada, e tira esse pretume todo?".
"Promessa, promessa. Desne que seu pai morreu que prumeti nunca mai tirá luto. Nunca mai vou vestir outra cor, qui é pra alma dele num arrevirar", falava Dona Mundinha num respirar saudoso que chegava a dar dó. Mas o filho, só de brincadeira, atiçou ainda mais a mãe:
"Ainda bem que os pés não botam luto. E tão até enfeitados demais pro meu gosto, parece chinelo de passeio, de quem deu umas voltinhas por aí...". E antes que terminasse de falar a velha disse:
"É que nesse bilhete que deixaro aqui pra eu aprender a rezar, a reza da promessa vem dizeno tamem que é preciso tá carçado com uma chinela dessa cor. E num vou arresponder mai não, e chispa daqui...". Dona Mundinha estava nervosa, suando, quase gritando.
Mehiel resolveu que era melhor sair, deixar sua mãe fazendo e pensando o que ela quisesse. Mas antes de sair perguntou: "E desde quando a senhora sabe ler?".
Quase faltou de vez o ar na mulher. Arregalou os olhos raivosa, sem saber o que responder, quis forçar a pronúncia de alguma palavra mas não saía nada com nada, apenas grunhidos incompreensíveis. E por fim, depois de se ajeitar na cadeira, disse baixinho:
"Num sou eu que leio não. É o seu pai que sopra as palavra no meu ouvido...". Falou sem olhar para o filho. Porém este perguntou mais vez, para atiçar ainda mais: "Coisa boa mamãe, pois onde ele tá agora deve ter uma boa escola com um excelente professor, pois quando ele morreu, lembro bem, não fazia um "o" com copo. Ainda bem que a morte serve para alguma coisa".
Mehiel não ficou sabendo da reação de sua mãe porque não ficou na sala. Disse isso já saindo, já em direção aos fundos da casa onde estavam seus instrumentos de trabalho: seu barro, seu forno, seus moldes, sua pequena olaria.
Potes, torrões, moringas, panelas, tampas, alguidares, canecos e outros utensílios de barros estavam armazenados em dois pequenos depósitos distintos: os que já estavam prontos para comercialização e os que ainda estavam moldados num barro puro, esperando somente ir para o calor do forno.
Contudo, na sala Dona Mundinha revirava o mundo em pensamentos. Desconfiada, cheia de interrogações e temerosa demais, agora achava reais motivos para se entregar às orações, preces, rogos e tudo o mais que a livrasse daquela enrascada. Maldito bilhete, maldito chinelo, maldito esquecimento, dizia consigo mesma.
Depois de rezar três terços, cinco ave-marias e mais cinco pai-nossos, levantou devagarzinho, pé ante pé, foi até a fresta da porta que dava para o quintal e olhou se o forno da olaria estava aceso. Estando crepitando por dentro, era sinal de que Mehiel estava ocupado. Desse modo não viria naquele instante para dentro de casa, e assim podia levantar, andar, fazer o que quisesse sem ser percebida.
Assim, foi trocar a roupa e vestiu outra igualzinha, numa pretidão maior ainda, escondeu as sandálias que estava e calçou a que usava sempre. Colocou o bilhete em cima da cama para depois guardar, esconder bem escondidinho, só que esqueceu o papel ao sair. Foi sentar e planejar a vida e as próximas ações e nem imaginava que o bilhete havia ficado tão vulnerável a qualquer mão e qualquer olhar.
Sentada na cadeira de balança, se preparou para amolecer o corpo, para revestir-se de doenças, cansaços e fraquezas, depois colocou um olhar bem cansado e triste nos olhos e gritou bem alto: "Meié, Meié, tô quase morreno de sede...".


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: