*Rangel Alves da Costa
Todo santo
dia, que esteja chovendo ou não, que esteja em frieza ou não, antes das quatro
da manhã eu já tenho pulado da rede. Um pulo automático, como se diz, sem
necessidade de relógio ou despertador. É apenas a propensão biológica do
acordar sempre no mesmo horário, e ainda enquanto o galo dorme e os fantasmas
passeiam.
O negrume
final da madrugada sempre me desperta para o encontro com o silêncio, com a
nudez das ruas, com a paz ainda presente neste momento. Gosto que seja assim.
Gosto de ouvir somente os meus passos, de sentir somente o meu pulsar, de
escutar os quase-silêncios das emanações próprias da madrugada. Creio que alua
tem voz. As estrelas, estas eu tenho certeza que sim.
Quando
está chovendo ou mesmo serenando, é como o instante se transformasse em algo
tão cativante que me torno mais pensativo e até melancólico. A chuva emoldura o
instante de forma exuberante. Há um mistério tão envolvente na chuva, que o seu
sentir tem o dom de transformar todo o espírito e toda alma. E me entrego a
esse instante de espiritualidade voz. Também de reminiscências e reencontros.
De
qualquer forma, o passo seguinte é correr ao chuveiro para o verdadeiro
despertar. Um banho assim afasta a sonolência do corpo, as inércias da noite e o
acúmulo de sonhos entrecortados pelo impossível. E já deixo a água no fogo para
o primeiro café do dia. O primeiro de tantos e tantos, pois sou verdadeiramente
um adorador de café.
Sempre
dizem que o café desperta, que anima, que provoca disposição e criatividade.
Talvez eu já tenha sentido tudo isso, mas depois de anos de beiços na xícara,
agora tenha certeza que é mesmo um caso passional. É como se a borda fosse uma
boca gulosa, o sabor fosse a mulher amada e o sorver fosse o mais prazeroso dos
gozos.
Despejo a
água fervente por cima do café solúvel e forte, sem açúcar, e depois me afasto
um pouco de mim, me distancio do corpo ainda um tanto molhado. Passo a ser
somente o café, sorvido aos pouquinhos, e pensamentos e reflexões. Deixo que
meus olhos vagueiem pelos espaços ainda escurecidos, que encontrem restos de
estrelas e réstias de luar. Deixo que meus olhos viajem pelas distâncias e
imaginem ter avistado outras realidades.
Então
chegam as saudades, as nostalgias, as recordações. Um terno entristecimento na
madrugada. Gosto e não gosto que seja assim. Mas não há como fugir disso. Se
está chovendo, então tudo se redobra no sentimento. Como dita, na chuva a
transformação é total. Saio de mim para ser a própria chuva. Pingo e respingo
saudades, visões, retratos. E valseio cada plangência desta magia molhada.
O silêncio
do mundo, a canção da chuva, a valsa molhada lá fora, em meio ao chão molhado e
aos amarelos das luzes, então tudo parece querer forçar uma lágrima. Talvez eu
lacrimeje mesmo, não sei, vez que os pingos caindo também perante a minha face
banhada de passado e presente, como se os belos e os angustiantes retratos
surgissem todos diante de mim.
E depois,
bem depois, já depois de tantos e tantos cafés, apenas o gostar do beber. Mas
nada igual aos primeiros goles da madrugada. Na boca, o café negro se
derramando como se fosse um noturno sem lua. Mas logo a doçura do sabor e a lua
inteira.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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