SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

CAFÉ COM SAUDADE



*Rangel Alves da Costa


Todo santo dia, que esteja chovendo ou não, que esteja em frieza ou não, antes das quatro da manhã eu já tenho pulado da rede. Um pulo automático, como se diz, sem necessidade de relógio ou despertador. É apenas a propensão biológica do acordar sempre no mesmo horário, e ainda enquanto o galo dorme e os fantasmas passeiam.
O negrume final da madrugada sempre me desperta para o encontro com o silêncio, com a nudez das ruas, com a paz ainda presente neste momento. Gosto que seja assim. Gosto de ouvir somente os meus passos, de sentir somente o meu pulsar, de escutar os quase-silêncios das emanações próprias da madrugada. Creio que alua tem voz. As estrelas, estas eu tenho certeza que sim.
Quando está chovendo ou mesmo serenando, é como o instante se transformasse em algo tão cativante que me torno mais pensativo e até melancólico. A chuva emoldura o instante de forma exuberante. Há um mistério tão envolvente na chuva, que o seu sentir tem o dom de transformar todo o espírito e toda alma. E me entrego a esse instante de espiritualidade voz. Também de reminiscências e reencontros.
De qualquer forma, o passo seguinte é correr ao chuveiro para o verdadeiro despertar. Um banho assim afasta a sonolência do corpo, as inércias da noite e o acúmulo de sonhos entrecortados pelo impossível. E já deixo a água no fogo para o primeiro café do dia. O primeiro de tantos e tantos, pois sou verdadeiramente um adorador de café.
Sempre dizem que o café desperta, que anima, que provoca disposição e criatividade. Talvez eu já tenha sentido tudo isso, mas depois de anos de beiços na xícara, agora tenha certeza que é mesmo um caso passional. É como se a borda fosse uma boca gulosa, o sabor fosse a mulher amada e o sorver fosse o mais prazeroso dos gozos.
Despejo a água fervente por cima do café solúvel e forte, sem açúcar, e depois me afasto um pouco de mim, me distancio do corpo ainda um tanto molhado. Passo a ser somente o café, sorvido aos pouquinhos, e pensamentos e reflexões. Deixo que meus olhos vagueiem pelos espaços ainda escurecidos, que encontrem restos de estrelas e réstias de luar. Deixo que meus olhos viajem pelas distâncias e imaginem ter avistado outras realidades.
Então chegam as saudades, as nostalgias, as recordações. Um terno entristecimento na madrugada. Gosto e não gosto que seja assim. Mas não há como fugir disso. Se está chovendo, então tudo se redobra no sentimento. Como dita, na chuva a transformação é total. Saio de mim para ser a própria chuva. Pingo e respingo saudades, visões, retratos. E valseio cada plangência desta magia molhada.
O silêncio do mundo, a canção da chuva, a valsa molhada lá fora, em meio ao chão molhado e aos amarelos das luzes, então tudo parece querer forçar uma lágrima. Talvez eu lacrimeje mesmo, não sei, vez que os pingos caindo também perante a minha face banhada de passado e presente, como se os belos e os angustiantes retratos surgissem todos diante de mim.
E depois, bem depois, já depois de tantos e tantos cafés, apenas o gostar do beber. Mas nada igual aos primeiros goles da madrugada. Na boca, o café negro se derramando como se fosse um noturno sem lua. Mas logo a doçura do sabor e a lua inteira.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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