SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 23 de dezembro de 2018

TIQUINHO E TANTA FELICIDADE



*Rangel Alves da Costa


“Você já foi buscar sua cartinha lá no Bairro São José? Se ainda não foi, então cuide de ir, pois crianças carentes da comunidade precisam que você adote uma cartinha e, através de um presentinho, de uma lembrancinha natalina, possa tornar seus momentos mais felizes!”. Foi assim que li na primeira vez. Estava – e ainda está – num grupo de rede social voltado para o repasse de informações sobre Poço Redondo e região sertaneja. Conheça Poço Redondo é o nome do grupo no Whatsapp.
Conheço muito bem a comunidade do Bairro São José, maior núcleo habitacional de Poço Redondo, quase um sertão dentro de uma cidade. O tamanho do núcleo é quase igualado à sua pobreza. Em muitas moradias, ainda o mais sofrido e fiel retrato da carência absoluta. Por trás das paredes e portas, em casas geralmente de muitos filhos, a penúria alarmante num mundo alardeado como já despojado da miséria absoluta.
Se há miséria, se há pobreza de causar espanto e dor no coração, ali poderá ser encontrada sem muitas dificuldades. Imagine-se – ou espante-se - que numa comunidade de maioria empobrecida, parte dessa maioria ainda indica as ruas e vielas de situação mais alarmante. Significa dizer que necessitados informam sobre a existência de mais necessitados ainda. Em poucas palavras: não há como negar a pobreza!
É nesse meio de desvalidos que vão surgindo pelas portas e janelas os olhares infantis entristecidos, melancólicos, desesperançados. É nesse meio de difícil vida e viver que os becos e ruas de repente são tomados por crianças de todas as idades. Algumas vestidas, outras só de cueca ou bermuda, mas geralmente de pés ao chão. Talvez até por gosto de criança mesmo, pois pé no chão é coisa de criança mesmo. Mas nem sempre assim. Muitas vezes são forçadas a estar assim. Não há chinelo, a pouca roupa está suja, então o menino vai viver seu mundo de qualquer jeito.
O quadro, contudo, que não está alastrado pela comunidade inteira, felizmente. Moradias luxuosas para os padrões interioranos ladeiam barracos, casas miúdas, casebres. Garagens com carros possantes fazem vizinhança com a criança que sequer possui um carrinho de brinquedo para iludir sua idade. O normal, porém, é que nenhum luxo ou além da necessidade faça parte da vida da maioria de seus habitantes. E é esta maioria que realmente caracteriza aquela comunidade. E é esta maioria que possui mais filhos e estes sempre renegados pela sorte grande de serem simplesmente felizes.
Mas foi dentro da comunidade que surgiu a ideia da cartinha, do envelope apenas com o nome da criança e do brinquedo desejado e tão sonhado. Que ideia maravilhosa das pessoas que fazem parte da associação comunitária. Como havia o desejo de proporcionar alguma alegria àquelas crianças e não havia recursos suficientes para atender sequer a mínima parcela, então pensaram no melhor a ser feito e lançaram a ideia nas redes sociais. De início, apenas umas poucas pessoas se predispondo a ajudar, mas logo, com a postagem de fotos com crianças felizes e sorridentes recebendo seus brinquedos, um grande número de adotantes de cartinhas começou a surgir.
Que coisa boa que tenha sido assim. Que bom que muitas cartinhas foram adotadas e muitos presentes já foram pessoalmente levados ou chegados às crianças daquela comunidade do Bairro São José. Contudo, uma situação que continua sendo difícil de ser resolvida. Certamente não haverá presentes para todos, e muitos, já ansiosos desde que deram os seus nomes na esperança de um presentinho, sentem-se ansiosos e amargurados por saberem que muitos já receberam seus brinquedos e eles ainda não. Sei que muitos já choraram, já perguntaram aos pais por que ninguém lia sua cartinha, já procuraram a associação para saber se algum Papai Noel teria aparecido. E o que fazer, então?
Dado o grande número de crianças, dificilmente a maioria receberá seu presentinho. Muitos já foram agraciados, já sorriram, já pularam, já festejaram seu instante tão esperado. Mas muitos ainda não. E quanto mais o tempo passa mais a aflição toma conta não só das crianças como do pessoal da associação e da comunidade inteira. O que dizer e como dizer a uma criança que sua cartinha foi recebida e o seu Papai Noel não veio? E o mais difícil ainda: que a sua cartinha sequer foi escolhida por alguém.
Em situações assim, há que se reconhecer que o sol das crianças também não nasce para todos. Mesmo a dor que restar nos corações afligidos, importante mesmo é reconhecer o valor de ideias assim, da cartinha e seu adotante. Mesmo que o presente não tenha custado mais que uns poucos vinténs, mesmo que a demora para ser entregue tenha sido grande, ainda assim nada mais belo e confortante que a imagem de uma criança toda feliz e radiante ao ter às suas mãos sua lembrancinha. E muitos sorrisos assim já foram espalhados.
Na cartinha que adotei estava escrito: “Um carrinho com controle remoto”. Impossível descrever a reação da criança ao receber seu presente. Também impossível descrever minha reação interior por ter dado apenas um tiquinho e provocado tamanha felicidade.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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