*Rangel Alves da Costa
Mundo,
vasto mundo, como já disse o poeta. E também desconhecido mundo, ao menos
naquilo que é tão necessário de conhecer. Muitas vezes, pela indiferença a
tudo, não conhecemos sequer o que há além da cozinha, no cercado do quintal,
nem além, nas entranhas da mataria.
O inóspito
e o hostil só foram conhecidos e transformados depois que a coragem desbravou
seu misterioso mundo. O desconhecido só veio a luz depois que houve a
necessidade de ira adiante e de desejar conhecer suas entranhas. Daí os
desbravamentos, as entradas, os encontros e o nascimento das povoações.
Mesmo
hoje, com quase tudo já conhecido, mesmo assim muito há que ainda e mantém
ocultado ou simplesmente ignorado. Como dito, até mesmo pelos arredores há
muito que se conhecer. Pessoas não conhecem a si mesmas, e quanto mais o que
demande busca e caminhada.
Mas eu sou
um descontente. Sempre faço de conta que nada sei, que nada conheço e quero
conhecer muito mais. Sou curioso, sou questionador, sou um duvidoso de muita
existência. E não descanso enquanto não for atrás daquilo que alimente o meu
desejo do novo, ainda que novidade somente a mim.
Não
encurto distância nem escolho local, vez que tudo sempre se mostra de
interesse. Casebres nas distâncias sertanejas, locais históricos, povoações com
suas lendas e histórias, povos com seus modos de ser diferenciados, um simples
local ou uma pujante riqueza. Tudo me interessa.
Contudo,
interessa-me mesmo o contato com a moldura e paisagem do mundo-sertão, com o
enredo e trama do mundo sertanejo, com os ignorados que guardam em si
descobertas infindas. Mesmo que os olhos não avistem logo algo especial,
certamente muito será encontrado nas palavras, nas paredes, nos arredores.
Por isso
que o meu embornal vive cheio e sempre querendo mais sobre causos desse mundo
mágico. E também das histórias de lutas, das tramas que fizeram gestar
comunidades e povoações. Nada mais cativante que conversar com um velho num
tronco de malhada e dele fazer surgir um primoroso livro.
Sim, o meu
passo vai, minha caminhada segue, minha necessidade de conhecer me guia. Não há
tempo de chuva ou sol, nublado ou de indecisão, pois sei que tenho de andar por
aí para escrever na memória cada letra avistada na vida, do antigo ao agora.
Chego na
beirada do pote e o barro antigo, lanhada de tempo e sede, sempre me ensina
alguma coisa. Chego perante a cancela do velho casebre e os restos toscos e
encardidos daquele mundo, ecoam a me chamar para conhecer suas entranhas. E
vou...
Aió e
embornal pelos cantos, candeeiro de parede e oratório de fé, tudo me ensina. Enxada
e enxadecos, foice e gadanho, retalhos de chão e história, de luta pela
sobrevivência e retratos do mundo-sertão. Sou moço do mato, sou da cidade não.
Nem quero ser.
O batente ainda
manchado do sangue da luta, o tronco alquebrado mais adiante, o esquecido baú
com suas saudades guardadas, tudo isso me ensina. E também me ensina a palavra
matuta, a mão calejada, a face marcada de tempo. Olhares fundos e profundos,
testemunhos de tudo aquilo que tanto eu quero ouvir, saber e conhecer.
Não
prossigo sem antes seguir aos pés da cruzinha abandonada, já pendendo ao chão,
sem mais dizer quem ali tombou pela emboscada. Que tocaia maldosa. Sim, sei que
houve um tempo de armas famintas e gemidos soltos, de estampidos saídos dos
canos vorazes e de corpos estendidos ao chão. Histórias de carnicentos, de
urubus, de gaviões e carcarás.
E vou
lendo nas paisagens as letras pelos anos já apagadas. Ninguém quer falar sobre
aquilo. Dói demais, dizem. Eu sei que dói. Conheço as artimanhas e os
labirintos desses sertões. Um sertão tão belo como a florada do mandacaru, como
a suntuosidade da flor da jurubeba, mas também tão feio e medonho quanto a
fome, a sede e as vinditas de sangue.
Os
clavinotes ainda estão apontados entre os tufos de mato. Cangaceiros, jagunços,
volantes, bandoleiros de paga, tudo ainda assombra e amedronta. As folhagens
farfalham gemidos estranhos. A avoação da tem-tem anuncia uma presença
escondida. Quem será? Meu Deus, meu Deus...
Os
cemitérios estão debaixo dos umbuzeiros e suas fitas e suas cruzes choram as
saudades tantas. Rosários e terços perante o meu olhar. As mãos velhas passeiam
ao paraíso enquanto as bocas sussurram as sagradas confissões. Eita coisa
bonita nesse povo: sempre o céu na lua, sempre o céu no sol, sempre o céu no
prato cheio ou na panela vazia.
Mas também
ainda ouço as sentinelas, as ladainhas, os ofícios de um povo ajoelhado aos pés
do altar. As igrejinhas silenciam mistérios. Os santos e anjos saíram para visitar
os empobrecidos destes sertões. Por isso que sempre encontro um fogão de lenha
aceso. Abro a porta da velha igreja e ajoelho-me.
Mas não
sei rezar, confesso. Só sei pedir a Deus que sempre proteja esse sertão e o seu
povo. E não se esquecendo de que também sou sertanejo.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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