*Rangel Alves da Costa
Toda vez
que bota cheia, que vem escorrendo de riba com água de lado a outro, o Riacho
Jacaré, lá no sertão sergipano de Poço Redondo, transforma-se numa maravilha de
encantar.
Contudo,
mistérios e mais mistérios chegam juntos nas águas. Desde o barulhar das
correntezas ainda ao longe, tudo já se mostra como mistério. Tem gente que acha
que aquele murmurejar é produzido pela força da correnteza irrompendo tudo, mas
dizem que não é bem assim.
Os mais
velhos sabiam decifrar aquele murmurejar e logo começavam a orar assim que os
seus ecos surgiam ao longe. Rezavam pelas almas arrastadas pela correnteza e
que eram levadas para mais além, para as desconhecidas distâncias.
Que não se
imagine, contudo, que eram almas humanas, mas almas mortas dos sertões morridos
pelas ações do homem em carne e osso e dos segredos indecifráveis da natureza. Alma
do gado morto, do bicho morto, da planta morta, da pedra morta, do leito morto.
Alma da nascente ossuda e magra, da beirada devastada, da feiura tomando conta
de todo o riacho, do abandono e destruição.
Tudo isso
se iniciava quando a cheia começava a avolumar e a escorrer. Num gemido
lamentoso, num sussurrar lastimoso, num canto represado e fúnebre, assim os
ecos surgiam ao longe: a morte ou as mortes pedindo passagem. Zuuummmmm, vrrruuuuummm...
Hoje em
dia, o som das águas parece até melodia. E é melodia sim. Mas uma melodia
chorosa e enlutada que vem trazendo as vidas mortas quando depois de anos e
anos de seca e da impiedosa ação humana.
Depois do
anoitecer, tem gente que chega às suas margens molhadas e jura por tudo na vida
ter ouvido fortes baticuns como se pessoas, animais ou objetos, saltassem das
pedras e sumissem nas águas.
Tem gente
que diz da existência de Nego D’água. Mas uma criatura assim de repente surgida
num leito de cheia recente? Nego D’água não, mas o véu pesaroso e pesado da
Mulher de Branco.
Sim, toda
vez que o riachinho enche ela aparece. Poucos conseguem avistá-la, mas ela
sempre fica bem ao alto da pedra mais alta no meio das águas. Pedra misteriosa,
inexistente ali, mas surgida como altar à lamentosa mulher: a Mulher de Branco.
Bem
naquele local, em priscas eras, numa época de cheia grande, uma moça bonita se
lançou às águas, toda pronta para o casório, após o seu noivo abandoná-la no
altar e fugir com a viúva Donana dos Queijos.
Então, em
toda cheia ela surge no alto da pedra e lá, sempre lacrimejando, vai jogando
sua grinalda e seu véu. De tecido branco, leve, de seda, mas faz um barulho tão
grande que mais parece um baticum.
Ali o
carregamento das dores, o peso do abandono amoroso. Tem gente que diz tê-la
avistado toda nua, de corpo tão lindo que mais parece feito de lua, mas que de
repente vai tomando forma de lágrima e se derrama toda, toda inteira pelas
águas.
Mistérios
assim acontecem muito. Causos e mais causos dão conta dos inexplicáveis
acontecidos no riachinho em época de cheia. Tem também a história da pedra
choradeira, da carcaça de gado que sobe das águas e voa gemendo, ruminando,
berrando, em direção aos escondidos da lua.
Também do
menino com gaiola à mão e que num instante é avistado num lugar e no mesmo
momento já está em outro. E fica acenando, chamando, chamando, até caminhar
para o meio das águas e desaparecer.
Eu mesmo
já ouvi contar da cobra tão grande que de uma vez só engoliu mais de dez porcos
que eram criados dentro do leito seco do riacho. Quando o riacho botou cheia e
pegou os porcos desprevenidos, a cobra se posicionou de boca aberta por onde as
águas iam passar. Não tinha nem o trabalho de mastigar. Era só engolir.
Sem falar
na chinela que aparece sozinha e atrás de bunda de menino pra bater. Mas essa é
uma história muito triste. A pobre da mãe foi atrás do filho no riacho pra dar
chinelada, escorregou numa pedra e... Ao menos assim me contaram. Só não sei se
é verdade. Se for mentira, não é minha não, viu?!
Escritor
blograngel-sertão.blogspot.com
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