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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 1 de julho de 2019

AMANHÃ PODERÁ SER MUITO TARDE



*Rangel Alves da Costa


A vida é passarinheira. Os fatos comprovam. Quem hoje aqui está, amanhã já poderá ter voado para as distâncias celestiais, e pra nunca mais voltar. E quando se fala em velhice ou em idade muita, a proximidade da partida se torna em algo incontestável.
Mas por muito tempo, sempre acreditando na generosidade da vida e sua manutenção de seus filhos sobre a terra, eu sempre deixei pra depois o recolhimento dos testemunhos tão imprescindíveis ao conhecimento de nossa história.
Deixei de colher informações dos antigos vaqueiros, calejados políticos, pessoas de vulto na vivência sertaneja, homens e mulheres que na luta foram moldando o mundo-sertão, e sempre imaginando que poderia dialogar depois ou num tempo qualquer.
Mas eis que o tempo passarinheiro chamou muita gente e antes que eu com eles tivesse sentando em proseado, fazendo perguntas, tirando dúvidas, cortando e recortando os causos e as histórias.
Meu pai Alcino fazia assim, ia buscar na fonte o seu alimento de sabedoria. Mas eu, acreditando que amanhã novamente os encontraria, fui deixando pra lá, postergando, sem qualquer pressa em também me alimentar da sabedoria antiga.
E hoje me pergunto: Quantos vaqueiros eu já encontrei na Rua de Baixo (Rua dos Vaqueiros, Avenida 31 de Março, Avenida Poço Redondo, Avenida Alcino Alves Costa, por fim) e sem colocar no embornal as suas histórias e memórias?
Ora, Abdias sabia demais, sabia tudo sobre seu amigo Zé de Julião. Quanto Mané Cante, Neguinho, João Paulo, Ireno, Pai Né, Humberto, Chico de Celina, e tantos outros, poderiam me contar?
Zé Dória era uma enciclopédia viva sobre a vida política e os emaranhados sertanejos. Tião de Sinhá, afamado vaqueiro daqueles donos do mundo da Serra Negra, político e com o livro do sertão dentro da memória, bem que poderia ter me dado um tiquinho de informações.
Mas culpa minha que não o procurei. Durval Rodrigues Rosa falava pouco sobre os fatos ocorridos em Angico em 38, mas dava pra ter puxado um pouquinho. E não o fiz. Júlio Joaquim, Zé de Iaiá, Zezé Pingo D’Água, e outros e outros, simplesmente se foram levando seus livros de tantas histórias e talvez segredos jamais revelados.
Conheci Mané Félix, o mais afamado dos coiteiros de Lampião, um amigo velho e velho amigo, de boa prosa e amizade, mas eu nunca recolhi um só depoimento. Também conheci Adauto Félix, Messias Caduda e outros igualmente coiteiros, mas sem jamais perguntar nadica de nada sobre seus tempos de caminhos cangaceiros.
Por isso mesmo, no intuito de não continuar incorrendo no mesmo erro, de vez em quando eu bato à porta antiga de Poço Redonda e arredor. Até ser proibido por parenta eu já fui, mas sempre insistindo no diálogo, no proseado.
Eu sempre visitava Seu João Capoeira, dele tentando colher alguma palavra e registrar os passos de vida desse grande sertanejo, irmão da cangaceira Enedina e cunhado de Zé de Julião, o Cajazeira. Deixei de fazê-lo exatamente pelo descabimento de uma neta.
Outras portas eu bato e sou bem recebido, e sempre retorno para o enlaçamento da amizade e para dissipar quaisquer dúvidas. De Adília, a cangaceira companheira de Canário, eu ainda trago boas memórias, mas não que possam ser registradas como feitos seus dos tempos do cangaço.
Eu era meninote ainda quando ela, muito amiga de meus pais Dona Peta e Alcino, levava-me pela mão até sua casinha no Alto de João Paulo. Lá eu traquinava que só. E fazia uma coisa que jamais poderei esquecer.
Numa perna sua, e logo abaixo do joelho, havia uma pequena fundura, uma marca de um ferimento de bala nos tempos do cangaço. Então eu enchia aquela barroquinha de água e ela, com a perna estendida, deixava que eu brincasse com aquele marco de um passado de violência e dor.
Eu, meninote, sequer sabia da motivação da existência daquilo. Apenas brincava com a perna estendida da bondosa Adília.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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