*Rangel Alves da Costa
A vida é
passarinheira. Os fatos comprovam. Quem hoje aqui está, amanhã já poderá ter
voado para as distâncias celestiais, e pra nunca mais voltar. E quando se fala
em velhice ou em idade muita, a proximidade da partida se torna em algo
incontestável.
Mas por
muito tempo, sempre acreditando na generosidade da vida e sua manutenção de
seus filhos sobre a terra, eu sempre deixei pra depois o recolhimento dos
testemunhos tão imprescindíveis ao conhecimento de nossa história.
Deixei de
colher informações dos antigos vaqueiros, calejados políticos, pessoas de vulto
na vivência sertaneja, homens e mulheres que na luta foram moldando o
mundo-sertão, e sempre imaginando que poderia dialogar depois ou num tempo
qualquer.
Mas eis
que o tempo passarinheiro chamou muita gente e antes que eu com eles tivesse
sentando em proseado, fazendo perguntas, tirando dúvidas, cortando e recortando
os causos e as histórias.
Meu pai
Alcino fazia assim, ia buscar na fonte o seu alimento de sabedoria. Mas eu,
acreditando que amanhã novamente os encontraria, fui deixando pra lá,
postergando, sem qualquer pressa em também me alimentar da sabedoria antiga.
E hoje me
pergunto: Quantos vaqueiros eu já encontrei na Rua de Baixo (Rua dos Vaqueiros,
Avenida 31 de Março, Avenida Poço Redondo, Avenida Alcino Alves Costa, por fim)
e sem colocar no embornal as suas histórias e memórias?
Ora,
Abdias sabia demais, sabia tudo sobre seu amigo Zé de Julião. Quanto Mané
Cante, Neguinho, João Paulo, Ireno, Pai Né, Humberto, Chico de Celina, e tantos
outros, poderiam me contar?
Zé Dória
era uma enciclopédia viva sobre a vida política e os emaranhados sertanejos.
Tião de Sinhá, afamado vaqueiro daqueles donos do mundo da Serra Negra,
político e com o livro do sertão dentro da memória, bem que poderia ter me dado
um tiquinho de informações.
Mas culpa
minha que não o procurei. Durval Rodrigues Rosa falava pouco sobre os fatos
ocorridos em Angico em 38, mas dava pra ter puxado um pouquinho. E não o fiz.
Júlio Joaquim, Zé de Iaiá, Zezé Pingo D’Água, e outros e outros, simplesmente
se foram levando seus livros de tantas histórias e talvez segredos jamais
revelados.
Conheci
Mané Félix, o mais afamado dos coiteiros de Lampião, um amigo velho e velho
amigo, de boa prosa e amizade, mas eu nunca recolhi um só depoimento. Também
conheci Adauto Félix, Messias Caduda e outros igualmente coiteiros, mas sem
jamais perguntar nadica de nada sobre seus tempos de caminhos cangaceiros.
Por isso
mesmo, no intuito de não continuar incorrendo no mesmo erro, de vez em quando
eu bato à porta antiga de Poço Redonda e arredor. Até ser proibido por parenta
eu já fui, mas sempre insistindo no diálogo, no proseado.
Eu sempre
visitava Seu João Capoeira, dele tentando colher alguma palavra e registrar os
passos de vida desse grande sertanejo, irmão da cangaceira Enedina e cunhado de
Zé de Julião, o Cajazeira. Deixei de fazê-lo exatamente pelo descabimento de uma
neta.
Outras
portas eu bato e sou bem recebido, e sempre retorno para o enlaçamento da
amizade e para dissipar quaisquer dúvidas. De Adília, a cangaceira companheira
de Canário, eu ainda trago boas memórias, mas não que possam ser registradas
como feitos seus dos tempos do cangaço.
Eu era
meninote ainda quando ela, muito amiga de meus pais Dona Peta e Alcino,
levava-me pela mão até sua casinha no Alto de João Paulo. Lá eu traquinava que
só. E fazia uma coisa que jamais poderei esquecer.
Numa perna
sua, e logo abaixo do joelho, havia uma pequena fundura, uma marca de um
ferimento de bala nos tempos do cangaço. Então eu enchia aquela barroquinha de
água e ela, com a perna estendida, deixava que eu brincasse com aquele marco de
um passado de violência e dor.
Eu,
meninote, sequer sabia da motivação da existência daquilo. Apenas brincava com
a perna estendida da bondosa Adília.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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