*Rangel Alves da Costa
O Sertão é um verdadeiro livro da Sabedoria.
Na sua matutez, na sua caboclice, na sua sertanejice, na sua humildade, na sua
feição ensolarada e no seu passo de couro cru, em tudo um livro aberto de profundos
conhecimentos. No homem simples, na pessoa parecendo vivente de outro mundo, no
velho vaqueiro ou no ancião na calçada, basta que seja aberta a primeira página
para logo se ter um mundo de inesgotável sabedoria.
Acertadamente se diz que o saber, diferente
da formação através do estudo, prescinde de escolaridade ou mesmo de ter
habilidade na leitura e na escrita. Tal saber, aquele aprendido e apreendido no
mundo do fazer, da convivência e do aprendizado no dia a dia, é tão verdadeiro
quanto a importância de suas lições. Quando alguém de muito mais idade diz que
sente aí que vou contar uma coisa, certamente que o seu diálogo surgirá
carregado de aprendizados que se amoldam perfeitamente à nova situação e que
servirá parâmetro para a resolução daquele ou de outros problemas.
Verdade que muita gente, às vezes se sentindo
ciente demais do mundo e das realidades da vida, não dá nenhum valor à palavra
do mais experimentado perante todos os tipos de situações. Deixando de ouvir,
deixa de aprender. E não aprender somente aquele possa ter relação consigo
mesmo, mas perante a contextualização daquilo tudo que o rodeia. E assim por
que a sabedoria construída na vivência não é específica nem recortada perante
determinadas situações, mas sempre ampla e alcançando uma vastidão de
conhecimentos.
O sertão é carregado dessas experiências,
lições e conhecimentos primordiais. Nos mais velhos principalmente, sempre há
muito a aprender em cada encontro e cada diálogo. Nunca são palavras
comparativas entre passado e presente, como se apenas dizendo que antigamente
era melhor porque assim e hoje é pior porque de outro modo, e sim exemplos que
permitem compreensões do todo pelas próprias experiências relatadas. O que um
vaqueiro possa contar sobre sua vida com o bicho de cria, certamente servirá
para o entendimento de outros contextos. E assim com o velho artesão, com a
antiga fateira, com a rezadeira, com o caçador e o mateiro.
Em cada sertanejo, em cada vivente das terras
matutas, certamente um livro aberto. Muitas vezes, sequer se imagina como um
ser vivente nas brenhas do mundo, nas distâncias de tudo, tenha guardado
consigo tanta riqueza de conhecimento. Contudo, nada difícil de saber o motivo.
É na lide com o bicho, no trabalho da terra, no enfrentamento das secas grandes
e das chuvas poucas, no avistamento da família crescendo e da panela com cada
vez menos comida, na carência e na precisão, na alegria pouca e na esperança
sempre muita, que o seu livro vai sendo escrito. E por isso mesmo tanta riqueza
em cada página.
O velho caçador relata os mistérios da mata,
os perigos das caçadas, os inesperados encontros, as situações mais comoventes
e entristecedoras. Fala sobre as assombrações que aparecem nas caçadas
noturnas, os animais que fazem suas próprias armadilhas, as surras dadas pela
caipora aos que se esqueceram de levar um tiquinho de fumo. Mas principalmente
fala da caça como necessidade e não pelo senso de malvadeza, da caça como
alimento e não por que acha bom e bonito dar cabo à vida de um mocó, de um
preá, de um nambu. E também diz sobre o respeito à caatinga, aos seres da
natureza, a sabedoria na convivência com o estranho.
Ouvir Dona Zefa da Guia, por exemplo, é
folhear um livro de suma importância. A famosa rezadeira nascida e fincada aos
pés da serra quilombola, certamente que é uma das vozes mais experientes e
abalizadas de todo o sertão. Os seus ofícios na vida já dizem o quanto conhece.
Parteira, rezadeira, conselheira, líder comunitária, profundamente religiosa,
conhecedora do mundo humano e espiritual, convivente com o sincretismo, pessoa
de múltiplos saberes, e todos essenciais. Quem a avista, no seu jeito simples e
pacato de ser, sequer imagina o tamanho da sabedoria que carrega. Uma doutora
de grau maior naquilo que aprendeu a fazer e faz com perfeição e honestidade.
Quando quero saber mais sobre os vaqueiros
antigos e acerca da vida na vaqueirama, logo procuro Elias, um mestre na
pega-de-boi e na dura vida correndo em alazão em meio aos espinhos e
catingueiras. Então ele me conta tudo, diz sobre os mais famosos vaqueiros da
região, os mais destemidos e os que mais se destacaram como rastejadores.
Através dele adentro na mata e passo a sentir o pulsar ávido no encalço de um
boi valente. Também através dele eu passo a ter a certeza do quanto a vaquejada
de hoje se distanciou dos antigos ofícios do gado. Hoje é apenas festa, quando
naqueles tempos era verdadeira abnegação.
Um pescador vai me contando sobre a pujança
do Velho Chico antigo, suas embarcações, seus portos de chegada e partida, seus
apitos e carrancas. Mas também da tristeza de agora, com o rio magro, sem
peixes e quase sem vida. Outro me diz sobre os remédios de quintal, sobre os
boldos e os matruzes, e muito mais. E assim vou aprendendo nas páginas do livro
chamado sertão.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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