Rangel Alves da Costa*
Não tinha medo. E coisa estranha aconteceu, pois resolveu dormir ali mesmo pertinho do tempo aberto, na silenciosa escuridão. Armou a rede debaixo de um pé de pau, fez as orações ali mesmo deitada e depois adormeceu profundamente.
Sonhou com uma chuva começando fraquinha, coisa de enganar a sede da terra, mas que depois caiu como um verdadeiro dilúvio. E era tanta água que sua casa havia se transformado num imenso barco e navegava sem destino.
Começou a acordar quando já avistava uma ilha bonita, cheia de coqueiros e casinhas rústicas de pescadores. Queria tanto ter aportado ali, descido ali, mas o vento do alvorecer não deixava. Não sabia por que, mas fazia muito frio ali fora naquela hora do nascimento de um novo dia.
Estava só com uma coberta, pano até fino, mas resolveu dormir mais um pouco e tentar reencontrar o sonho para descer na ilha. Até que adormeceu novamente. Agora um sono leve e entrecortado pelos barulhos da natureza. Esforçava-se para aprofundar o descanso, porém não teve jeito.
Ouviu o latido de um cachorro e abriu os olhos para tentar enxergar de onde vinha. E avistou o menino caçador de passarinho já por ali em pleno alvorecer do dia. Acompanhado de seu cachorro, o pequeno caçador foi se aproximando devagar e antes de chegar mais perto perguntou quem estava ali na rede.
Quando ela disse o nome ele apertou o passo. Num instante já estava diante da amiga de vez em quando para perguntar se ela não estava ficando doida em dormir ali fora sozinha. Indagando ainda se não tinha medo da escuridão, da noite fechada e dos seus habitantes.
E disse ainda que já havia ouvido falar que por ali tinha lobisomem e um bicho que no lugar da cabeça possuía uma bola de fogo. Era um cavalo encantado que vagava pela escuridão atrás de moça bela e donzela para acabar com o feitiço, a maldição da bola de fogo no rosto mais que bonito.
Crisosta sorriu e brincou (coisa que nem lembrava mais de fazer) dizendo que ele tinha aparecido por ali, mas saiu correndo quando ela disse que já ia chover e a sua cabeça ia virar tição apagado, um horroroso carvão. O menino também gostou da brincadeira, porém em seguida ficou com semblante entristecido e disse:
“Tô sorrindo só porque gosto da moça, mas não era nem pra tá assim. E quando a senhora falou em chuva é que me alembrei de uma coisa que nem gosto. Por causa dessa danada que não vem é que meus pais resolveram ir embora daqui. Dizem que já não suportam mais tanto sofrimento...”.
A mocinha também ficou aflita com as palavras do amiguinho que aparecia ali de vez por outra. Disse que ia ficar muito triste se ele fosse mesmo embora, principalmente porque era a única pessoa que avistava e passava por ali pra conversar com ela. E também não tinha esquecido o quanto ele já tinha ajudado em momentos dos mais difíceis.
Mas ele continuou: “Até já venderam o restinho de tudo. Só tinha mesmo o pedaço de terra seco com a casinha que a gente mora. Duas vaquinha, um jegue e três cabritos também a gente tinha, mas já foi tudo vendido. Minha mãe já tá até botando as coisas num saco, arrumando mala e o que der. Acho que amanhã mesmo a gente já não dorme mais aqui nesse lugar...”.
Num abalo terrível, verdadeiramente tomada de uma tristeza diferente, ela pulou da rede e foi abraçá-lo. Tanto abraçava como chorava, passava a mão pelos cabelos e dizia que um dia ele voltaria e ela estaria ali para continuarem a amizade, que seria muito maior.
Com a cabeça baixa para que ela não visse seus olhos marejados, disse com voz embargada, quase não saindo:
“Eu também vim perguntar se a senhora pode ficar com meu cachorro. Esse aí. Meu pai queria vender, mas deixei não. Disse a ele que já tinha prometido à senhora. A moça pode cuidar dele pra mim?”.
“Oh, meu filho, que bom que você também pudesse ficar para me fazer companhia nesse mundo de silêncio e solidão”. Respondeu, abraçando-o novamente.
Continua...
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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