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quinta-feira, 17 de maio de 2012

MEMÓRIA DAS ÁGUAS (Crônica)

                                        
                                                      Rangel Alves da Costa*

O riachinho tem um nome, uma história, uma vida. Uns chamam de rio Jacaré, outros de riacho Jacaré, mas prefiro o apelido de riachinho, pois foi assim que cresci nas suas margens, nas suas vizinhanças, acostumado a viver o seu percurso em épocas de cheias e também sofrer com a visão do seu leito vazio e feio. Menino sapeca, traquina, ali me fiz criança sertaneja encantada com as águas e vivi os melhores anos de minha infância.
Se o Tejo é rio mais belo porque é o rio que passa pela aldeia de Fernando Pessoa, o Jacaré é também o mais belo porque é o riachinho que passa pela minha aldeia de Nossa Senhora de Poço Redondo, onde nasci lá nas lonjuras áridas e secas do mais ensolarado sertão sergipano. Um município de sequidão infindável, sofrido demais, ainda que às margens do Velho Chico.
Mesmo sendo afluente do São Francisco, o riachinho que passa pela minha aldeia é quase sempre encontrado seco, fenômeno que pode permanecer durante anos seguidos. Como consequência, por muito tempo pode ser visto sem um filete sequer de água correndo, pois cheia em riacho sertanejo só mesmo quando chove lá pelas cabeceiras. E por estar numa região marcadamente seca, com estiagens que sempre avançam os dois anos, fica até difícil imaginar quando ocorrerá uma enchente.
Ensolarado como é, num esturricamento até dizer chega, com tanque e barreiro enlameados, maior sequidão ainda no seu leito, que só vê água quando chove muito mais adiante, na sua nascente. Aí sim, chegam as enchentes, enxurradas fruto das trovoadas, mas que infelizmente não dura muito para tudo ir empoçando novamente, secando, sumindo toda água acumulada.
Mas quando as águas vão chegando é uma festa, uma barulhada diferente de cortar coração, um cenário de vida vencendo a morte, acontecimento difícil de ser descrito. Primeiro as águas surgem mansinhas, sonsas, como quem não quer nada, para ir, aos poucos, ganhando força e largueza, já trazendo por cima tudo que é encontrado, arrastando pedaços de paus, galhagens, cercados, ossadas de animais mortos, objetos desconhecidos.
E se torna feito serpente arisca, apressada, cortando caminho nas curvas sertanejas. A cobra grande, sinuosa, bonita, misteriosa nas águas barrentas, deixando sobressair as pedras grandes e os galhos mais altos das árvores fortes e troncudas. Ao anoitecer se ouve o murmurejo encantado, as vozes dos animais que insistem em não adormecer, as pedras falando entre si, os negos-d’água fazendo festim.
Dias após, contudo, aos poucos vai se transformando em serpente ressequida, fininha, desfalecida, até se contentar em ser um veio inexpressivo, quase parado, quase sem vida. E no passo, na manhã do dia seguinte, já uma pequena acumulação de água aqui e ali, útil somente para o banho dos bichos e o passeio dos seres noturnos. E o que era festança aos olhos, conforto ao coração sertanejo, vai retomado seu lugar de entristecimento e desolação.
Mas há explicações para a passagem e sumiço tão rápido das águas do riachinho. No leito seco, sujo, sem a quantidade de pedras de antes, sem as areias grossas que chupavam as águas e permitiam a formação de poços mais tarde, se acumulam ainda restos de árvores mortas e lixo jogado pelos próprios moradores das proximidades.
Como não bastasse tal imundície, muitos se acham no direito de utilizar o local para fazer chiqueiros de porcos e encher ainda mais o leito de porcaria. Fazem isso sabendo que quando as águas chegam velozes não gritam antes pedindo para que saiam da frente. Mesmo que o leito não tenha sido diminuído pelo acúmulo de lixo, as margens praticamente não existem mais. As árvores que formavam fronteira entre as águas e arredores não existem mais, estando tudo transformado em barranco liso e sem proteção alguma.
Depois de três anos ou mais sem água suficiente para correr por ali, o riachinho vive num estado dramático, feio, entristecido, emporcalhado, nem de longe parecendo com a festa das águas velozes correndo. E mesmo que as trovoadas caíam fortes nas cabeceiras, as enchentes não são mais como antes. São mais velozes e perigosas, mais destruidoras porque correm como se fossem num largo esgoto.
E toda essa visão é triste demais ao coração de quem cresceu ali sonhando em chegar o dia - dois dias depois das águas passarem limpando tudo – do subir na pedra e se jogar de braços abertos no leito caudaloso do riachinho que passa pela minha aldeia.   



Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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