SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 15 de maio de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (19)


                                                           Rangel Alves da Costa*


O menino se despediu chorando da amiga e do cachorro e saiu correndo numa disparada de ventania. Também chorosa, Crisosta dava acenos de despedida, se perguntando intimamente se algum dia veria aquela pessoinha tão especial novamente.
Que mundo, meu Deus, que vida! Essa desgraçada dessa seca que se instala impiedosamente no lugar e começa a fazer da vida de todo mundo um redemoinho. Ninguém tem sossego, esperança, encorajamento pra mais nada. E o pior é que tem de sofrer na pele, na boca, no estômago, nos sentimentos.
Que mundo, meu Deus, que vida! Repetia a si mesma a mocinha enquanto olhava o menino sumindo ao longe, numa curvinha de estradinha. Se tivesse condições de manter ali mais uma boca ia correndo falar com os dois retirantes para deixar o filho com ela. Cuidaria muito bem e como se fosse um filho.
Mas do jeito que a coisa andava, com ela mesma já ficando sem o de comer e o de beber, não seria fácil trazer para si mais esse compromisso. Naquele dia mesmo ia tentar vender alguma coisa pra comprar comida e um carregamento de água. Mas vender a quem, se praticamente todo mundo estava de bolso vazio?
Não bastasse a falta de tudo, a pobreza magricela e feia, os meninos chorando de barriga vazia, os bichos gemendo porque não podem falar, a falta de tudo, ainda por cima o homem tendo de abandonar tudo que tem para ir morrer noutro lugar. Entra dia e sai dia, vem a noite e uma nova manhã, e nenhuma notícia boa trazida pela boca da nuvem.
É o sertão em lastimoso sofrimento vivendo seu Eclesiastes: O sol se levanta, o sol se põe; apressa-se a voltar a seu lugar; em seguida, se levanta de novo. O vento vai em direção ao sul, vai em direção ao norte, volteia e gira nos mesmos circuitos. Todas as coisas se afadigam, mais do que se pode dizer. A vista não se farta de ver, o ouvido nunca se sacia de ouvir. O que foi é o que será: o que acontece é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol.
Sertão que era mundo agora parece fornalha, parece coivara pronta pra arrebentar. Mandacaru, palma, xiquexique, que é tudo planta que não se curva diante da seca, já começa a mostrar os reflexos da sequidão. A pele agora está acinzentada, dura, com espinho caindo.
A maior prova dessa miséria infinda pode ser vista na tristeza da pedra. Ninguém percebe, mas a pedra tem mais sentimento que muita gente. Coração duro que nada, silenciosa e acabrunhada que nada, pois em cada uma mora uma solidez mais frágil que folha ao vento.
Por isso que velho agrestino gosta de pedir licença pra sentar em cima da pedra e ali ficar matutando até chegar o anoitecer. O homem não fala sozinho não, não diz besteira não, e sim dialoga de igual pra igual com quem lhe entende. O homem diz à pedra que tudo vai melhorar, e ela responde que só acredita quando começar a gripar da chuvarada.
Tanto o homem é amigo da pedra como o bicho. Preá é amigo da pedra, cobra não vive sem uma loca de pedra, calango ali faz moradia. Por tanto gostar é que continua ali intocada durante centenas de anos, no mesmo lugar, com a vida passando e ela continuando na mesma moradia de sempre.
Mas até a pedra já estava amedrontada com a situação do lugar. Perguntava ao passarinho se havia nuvem se formando lá embaixo e depois ficava num entristecimento de dá dó. E chorava, chorava muito. Crisosta sabia disso. Crisosta era amiga da pedra. E tanto era assim que somente esta tinha ouvido e guardado um segredo dos mais importantes da mocinha.
Enquanto dobrava a rede e chamava o cachorro a seguir pra mais perto da porta de casa, a mocinha não se cansava de olhar ao redor e repetir sua desilusão da vida, sua dor e sofrimento diante da realidade que se mostrava tão nua, ossuda, fantasmagórica.
Chegou em casa, guardou a rede e lembrou que antes de ir juntar o gadinho pra tentar vender, havia uma coisa muito importante a fazer. Havia jurado a si mesma que faria isso. Depois de tomar café iria matar a cobra que havia mordido seu pai. Havia jurado e ia cumprir o juramento.
Continua...


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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