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terça-feira, 8 de maio de 2012

LAMPIÃO NO ORATÓRIO (E SANTIFICADO) (Crônica)


                                                                Rangel Alves da Costa*


Quando Padre Gerômio chegou ao batente da Velha Titoca carregando Bíblia, um frasco de água benta, uma cruz de madeira e vários outros apetrechos de exorcização, ouviu da dona da casa que se desse um passo adiante ela tacaria o cabo de vassoura nas fuças.
O sacerdote recuou indignado, escandalizado com a reação da mulher diante de um representante divino na terra. E ele que estava em missão das mais importantes, pois havia chegado aos seus ouvidos, em segredo na sacristia, que a velha senhora mantinha no oratório, ao lado de figuras sacras, uma imagem feita de barro de Lampião.
Esse mesmo, Lampião, batizado Virgulino Ferreira da Silva, mas também conhecido por Lampião, Capitão, Rei do Cangaço e muitas outras portentosas alcunhas. Mas um bandido, um verme sanguinário, um bandoleiro cruel, na concepção do Padre Gerômio. Por isso mesmo que estava ali para expulsar esse cangaceiro da companhia dos outros santos. E quem já viu Lampíão ser devotado, santificado, adorado, mantido fervorosamente num oratório?
Do lado de fora, sob a ameaça da vassoura da velha, tentou argumentar a todo custo, afirmando ser uma heresia, um pecado descomunal o que ela havia feito ao colocar um bandido ao lado de santos, até da imagem do Nosso Senhor Jesus Cristo. Se benzendo a todo instante, ainda disse que ou ela o deixava limpar o oratório daquela coisa ruim ou seria impiedosamente excomungada.
E disse mais que até aceitava, por força da religiosidade e misticismo do povo sertanejo, que houvesse devoção ao Padre Cícero Romão Batista e ao Frei Damião, forçadamente reconhecidos como santos por aquele povo, porém era contra todos os princípios da igreja pretender santificar um cangaceiro, um homem que tanta tristeza havia trazido para toda a região nordestina.
Sinhá Titoca baixou a vassoura, mas não sem antes cuspir no chão logo embaixo, afirmando que se passasse dali, se desse ao menos um passo adiante, poderia ser considerado um padre descadeirado, sem poder rezar missa mais nunca. O padre tentou levantar a cruz, porém ela mandou baixar na hora, tirando de dentro do bolso uma pequena Bíblia e dizendo que ali estava escrito o porquê de Lampião ter todo o direito de estar e permanecer dentro do seu oratório.
Mas antes de entrar nas explicações bíblicas, disse que não cabia a nenhum padre ou pastor dizer quem ela deveria devotar ou não. A sua fé e a sua religião competiam somente a ela, que tinha como santo e acreditava somente em quem ela queria. E foi logo dizendo que a história de Lampião não era muito diferente de um monte de homens que foram pecadores, guerreiros, ladrões, tiranos, mas que com o tempo a igreja foi reconhecendo alguns dos seus méritos e santificando-os como verdadeiros mártires.
Em seguida perguntou se Lampião só havia praticado crueldade na vida, se era essa monstruosidade toda que os ignorantes diziam, se era um homem sem fé, sem religião e entregue somente ao mundo do pecado. Pelo que sabia, era um homem normal, como todos os santos da igreja, que um dia foi batizado, era apegado demais às coisas divinas, devoto de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Virgem Maria, temente a Deus acima de tudo, e que sempre rezava fervorosamente ao anoitecer e amanhecer.
E levantando a Bíblia disse que o padre deveria ler melhor suas entrelinhas, os verdadeiros fundamentos de suas palavras. E isto porque estava escrito em Eclesiástico 13,4: “O rico comete uma injustiça e em seguida se põe a gritar; o pobre, ofendido, guarda silêncio”. E Deus queria que Lampião deixasse toda aquela opressão sem resposta, sem esbravejar, sem lutar?
Por isso mesmo que foi perdoado por Deus pelos erros cometidos em nome de uma nobreza maior, que é lutar contra as injustiças. Ademais, está escrito em Hebreus 9.22: “conforme a lei, o sangue é utilizado, para quase todas as purificações, e sem efusão de sangue não há perdão”. Daí, padre, que se Lampião cometeu crime de sangue foi procurando purificar a região da crueldade dos verdadeiros bandidos. E há muito que foi perdoado. Argumentou a velha senhora.
E continuou dizendo que como a igreja havia reconhecido seus mártires e os tornado santos, bem assim ela reconhecia Lampião como um grande mártir do sertão. Lampião sofreu perseguições e tormentos até a morte; se sacrificou em nome daquilo que acreditava, que era ver sua terra sem tantas injustiças sociais; e não se desumanizou, pois morreu com Deus no coração.
E por último disse que como sua casa era sua igreja, daquele momento em diante já não era nem mais igreja, mas sim o Vaticano. E ela a sucessora de Pedro, e nesta condição acabava de promover aquela imagem de barro em santidade, em São Lampião. E se o padre estivesse achando ruim que botasse o pé adiante da porta.
Temeroso, o sacerdote deu a volta e saiu apavorado e sem direção. O pior não foi nem seu insucesso exorcizatório, mas sim o temor de que aquela conversa se alastrasse e parte do povo sertanejo chegasse ali em procissão buscando auxílio aos pés do santo bandoleiro.



Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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