SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 28 de novembro de 2011

CUSCUZ DA TERRA COM OVOS DE CAPOEIRA (Crônica)

CUSCUZ DA TERRA COM OVOS DE CAPOEIRA

                                      Rangel Alves da Costa*


Ao meu estilo, tenho um amigo que é um inveterado e persistente pesquisador das coisas sertanejas, fatos e causos do homem do campo, bem como tudo que for relacionado a cangaço, coiteiro, volante, jagunço e coronel. Basta ouvir falar sobre qualquer desses assuntos e lá estará o homem anotando, fotografando, filmando, gravando.
Segundo me segredava, gostava mesmo de investigar os fatos o mais próximo possível do ocorrido, no próprio local, da boca de quem testemunhou ou vivenciou. Por isso mesmo vivia viajando pelo sertão, visitando velhos agrestinos, caçando fundamentos para a sua infindável colcha de retalhos da história sertaneja. Igual aos enciclopedistas, pretendia escrever um Tratado Geral e Extensivo Sobre Todos os Acontecimentos, de Vida e de Morte, Ocorridos no Sertão, Desde os Primórdios aos Dias Atuais.
Contudo, um dia insisti para que mostrasse o material já coletado e transposto para o papel e tive a maior decepção. Verdade é que o homem não havia escrito uma linha sequer, não tinha nem dois minutos gravados de conversação com sertanejos, não havia filmagem, fotografia, absolutamente nada. Mas o mais instigante descobri depois: a sua intenção nas viagens era bem outra.
Quando viajava sertão adentro, todo paramentado como pesquisador e agindo como tal, até pagando de vez em quando para obter dados importantes, objetivava exclusivamente encontrar pelas fazendas, moradias empobrecidas, casarões ainda existentes, nas casas de pessoas comuns, o farnel festivo que o fazia sorrir pelos olhos e gargalhar pela boca.
Eis que buscava mesmo, e exclusivamente, a buchada, o sarapatel, o milho assado ou cozido, o bolo de leite ou macaxeira, o autêntico doce de leite, a rapadura, a galinha de capoeira, o café torrado na hora, a carne de bode quentinha, a caça, o leite fresquinho ao amanhecer no curral, a coalhada, a perna de preá assada. Mas principalmente o cuscuz de milho ralado ao amanhecer ou entardecer e os ovos de galinha de capoeira.
E na sobremesa e a toda hora a manga olorosa, docinha e cheirosa, a melancia de vermelhidão infinita, o mamão feito de mel e cor, a jabuticaba inconfundível, a pinha de brancura de nuvem e gostosura de paraíso, o umbu madurinho e doce de se derramar pelo canto da boca, a goiaba roubada do bico do passarinho, a mão cheia de araçá dos deuses, numa gulodice de não acabar mais.
Apaixonado pela comida da terra, pelo autêntico sabor sertanejo, o meu amigo se tornava num verdadeiro mentiroso apenas para alimentar sua gula. Mas, diga-se de passagem, com toda razão, com pleno fundamento pela busca incessante do bem e do melhor, tudo saído da brasa, do fogão de lenha, da chama queimando ao lado e o vapor subindo aquele aroma inconfundível, gostoso demais, que só de cheirar já experimentava. E o safado nunca me convidou para acompanhá-lo nas pesquisas.
Um dia, sem que ele logicamente soubesse, resolvi também fazer esse estudo de campo e entrei sertão adentro com uma fome de saber jamais vista em qualquer outro pesquisador. Mas saber apenas onde ele buscava o seu rico material, colhia tanta fonte para o seu desenfreado paladar e trazia ao corpo e espírito, mais nitidamente ao corpo mais avolumado, tanto prazer pelas coisas da terra.
Acabei constatando a veracidade daqueles argumentos e descobri muito mais. E o que acabei descobrindo fez com que eu mudasse minha pesquisa de sociológica de garfo, colher e faca, para psicológica, de cunho comportamental e de mudanças repentinas nas atitudes dos indivíduos.
E tive que fazer isso porque descobri que é impossível alguém, ao entardecer, sentir pelo ar o cheiro do café torrando e depois borbulhando na chaleira, para não sair correndo, entrar na casa sem pedir licença e implorar por um gole daquela preciosidade negra. E se, uma vez dentro da casa, encontrar na cozinha, sob o fogão de lenha, o cuscuzeiro repleto de cuscuz feito com milho ralado ali mesmo, não pedi em lágrimas ao menos um taquinho, então o indivíduo é capaz de endoidar.
E endoida mesmo. Até hoje o meu amigo está meio perturbado do juízo porque certa feita, já de barriga cheia demais de tudo do bom e do melhor, chegou numa casa e encontrou sobre a mesa o cuscuz mais cheiroso e apetitoso do mundo, tendo ao lado uma estaladeira repleta de ovos fresquinhos de galinha de capoeira, ali mesmo do quintal, amarelados e imensos feitos um sol sobressaindo nas nuvens brancas.
Foi convidado a sentar à mesa e começou a chorar. Não cabia mais nada no seu bucho e ficou traumatizado. Até hoje não pode ouvir falar em cuscuz da terra com ovos de capoeira que fica em tempo de correr. Mas correr atrás, sempre atrás da gostosura.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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