MATUTO NA MODERNAGEM
Rangel Alves da Costa*
Seria até constrangedor o cabra da capital ou entendido da leitura chegar pro verdadeiro matuto, o autêntico caipira das distâncias sertanejas e perguntar-lhe alguma coisa sobre novas tecnologias, progresso científico, informática, métodos progressivos de otimização do trabalho e da produção.
Muitas vezes constrangedor para os dois lados, pois o que se acha sabido e pergunta apenas no intuito de ofender, fala somente por ter ouvido falar, por ouvir dizer, sem realmente saber qualquer conceito que o valha. Mas no seu silêncio envergonhado, muitas vezes de cabeça baixa, o matuto convive diariamente com muito mais tecnologia do que se imagina.
Ora, desde que o mundo é mundo, como gostam de dizer, as tecnologias são utilizadas no dia a dia. Mesmo sem uma formulação acabada sobre as técnicas utilizadas, verdade é que o simples gesto de friccionar madeira para fazer surgir o fogo, os instrumentos de pedra utilizados para fazer armas de caça, as armadilhas que criavam para caça animais, os arcos, as flechas, enfim, todo aquele aparato tão útil para a sobrevivência era pura tecnologia.
As garruchas e espingardas utilizadas antigamente na caça e proteção aos poucos foram se tornando em rifles e outras armas modernas; a machadinha de pedra dos tempos idos deram lugar à lâminas cortantes e afiadas; os cumbucos e cuias foram perdendo uso quando do surgimento das vasilhas, panelas e canecas; o velho fogão a lenha, de trempe e com pedras e gravetos por baixo, foi cedendo lugar para a comodidade do fogão a gás.
Assim, no mundo sertanejo e por todos os lugares, dos mais atrasados aos mais desenvolvidos, tudo que se tem hoje como tecnologia é apenas um aperfeiçoamento daquilo que ao longo do tempo foi sendo construído. Basta lembrar que o poder de cura através das ervas medicinais não foi descoberto primeiro em laboratório, mas sim nos quintais das casas sertanejas e nas matarias ao redor.
Nem em todos os lugares se usa mais, pois até nos grotões mais inacessíveis o progresso já está presente em muitos aspectos, mas não é difícil de se avistar ainda um amplo leque de tecnologias ditas atrasadas sendo ainda eficientemente utilizadas. Daí a persistência do carro-de-boi, da utilização do arado puxado por animais ou conduzidos por mãos humanas no preparo da terra para o plantio, as coivaras para queimar a mataria e deixar os campos limpos – e devastados e empobrecidos – para a plantação.
Daí também ser possível avistar o próprio sertanejo mexendo na sua fornalha para forjar o ferro e transformar em pás, enxadas e enxadecos; mexendo o barro da beira do riacho para transformá-lo em telhas e tijolos na olaria; as mãos geralmente femininas e calejadas revirando e amassando o barro marrom e pegajoso para daí em diante ganhar forma o pote, a panela, o prato, a cuia, a moringa, e muitos outros instrumentos ainda existentes nas cozinhas sertanejas.
O café gostoso e cheiroso foi batido no velho pilão herdado de um parente escravo; a moringa continua sendo a melhor geladeira em muitos lugares aonde ainda não chegou energia; as carnes salgadas que se estendem nos varais não perderão nem o sabor nem a qualidade ainda que fiquem semanas inteiras estendidas nos varais pelos quintais; a farmácia sortida de tudo está bem ali no quintal, com mastruz, erva cidreira e manjericão e muito mais.
Contudo, com a chegada dos benefícios da energia elétrica tudo deu um salto que, em muitos lugares, leva até ao empobrecimento das relações. As famílias praticamente não sentam mais diante da casa em noites de luas bonitas para conversar. Há sempre uma televisão, em ferro de engomar novo, um rádio a energia. Em muitos lugares as antenas enfeiam as paisagens, os animais foram relegados e as motonetas se tornaram moda. Os motores são ouvidos a todo instante, um carro sai de onde se guardava os sacos de milho e feijão.
E de repente o telefone celular toca e logo se ouve: “Alô cumpade, inté tomei um susto com esse bicho e quase num acerto a boca dele falar...”.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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