SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 5 de novembro de 2011

FAZENDEIRO DE PONTA DE VACA (Crônica)

FAZENDEIRO DE PONTA DE VACA

                                    Rangel Alves da Costa*


Quem avista menino brincar se espanta com o que ele é capaz de criar para a alegria do instante. Ter carro de plástico ou madeira, bola de plástico ou de couro, brinquedos fabricados e outros instrumentos fáceis de encontrar, é tudo usual demais para se comparar ao prazer que outros brinquedos inusitados podem causar.
Lá, do mundo outro de onde vim, num mundo outro onde nasci, brincar mesmo só valia a pena se fosse tomando banho nu quando a chuvarada mais forte caía; fazer de pedaço de pau um cavalo, inventando uma crina e saindo correndo pela mataria, pelos quintais, pelas esquinas.
Brincadeira de verdade era arremessar bola de gude na caçapa aberta no chão; jogar com bola de meia por cima de pedra e espinho; sair à toa colocando arapuca e armadilha pra pegar passarinho e preá; atirar de baleadeira ou peteca na goiabeira do vizinho mais metido a brabo. Banho de riacho nem se fala, que era o verdadeiro bálsamo da meninada sertaneja.
Contudo, há de ser dito com a ligeireza de pé de vento, que uma das brincadeiras mais surpreendentes que já vi até hoje menino sertanejo brincar foi de fazendeiro de ponta de vaca. Que coisa mais encantadora, mais significativa, mais fascinante. O menino sonhando ser gente e já pensando no que queria ser: rico, fazendeiro, proprietário de terra e rebanho.
Dependendo da coragem e da vontade de ser fazendeiro, até que era fácil ser logo visto como pessoa de muitas posses. Tudo dependia de sua disposição para encontrar uma fazenda e dizer que era sua e depois colocar lá pelos pastos quantas cabeças de gado quisesse.
Primeiro o menino procurava, num canto do quintal da própria casa ou num local próximo, um lugar para limpar o mato com as mãos ou com enxada, depois demarcar aquele terreno com pedacinhos ou pequenas toras de pau e pronto, ali já era a fazenda, já era a propriedade. E já tendo a fazenda cercada, só faltava colocar ali dentro quantos animais quisesse e coubesse naquele espaço.
Mas se não cabia tudo ali não havia problema, pois já vi menino fazendeiro que tinha mais animais sendo criados soltos do que mesmo dentro da fazenda. Alguns abriam outras propriedades noutros lugares, noutros cantos do quintal, onde houvesse disponibilidade e os seus pais não arreliassem.
Já tendo fazenda, o passo seguinte era encontrar animal para colocar dentro. Ora, quantos mais animais numa fazenda mais o fazendeiro era reconhecido como senhor de riqueza e fama, respeitado nos arredores e perante os demais criadores. Mas que criação era essa, que animais eram esses que de uma hora pra outra fazia o menino pobre se tornar um rico fazendeiro?
Ora, ponta de vaca. Tudo chifre de vaca. Cada ponta equivalia a um animal, porém quanto maior era a ponta, mais bonita, mais cuidada, mais asseada e brilhosa, mais seu valor aumentava. Já vi menino trocar uma só ponta por mais de vinte chifres parecidos, e só porque ele a havia limpado todinha com canivete, deixando-a lisinha e sedosa, e ainda por cima lixando e passando verniz. Seria o puro sangue do animal, a pureza que dava valor ao chifre.
Contudo, nem só de troca viviam aqueles fazendeiros de ponta de vaca, pois entre eles também existia moeda própria para comprar e vender, para o farto comércio. E o dinheiro, logicamente com valores diferenciados, não passava de papel de carteira de cigarro. Se alguém jogava uma carteira vazia de cigarro na rua, lá ia correndo o menino transformá-la na hora em dinheiro. E quanto mais caro ou mais difícil de se encontrar fosse a marca do cigarro, mais valor possuía a nota.
Com o dinheiro em mãos, o menino saía de fazenda em fazenda escolhendo as pontas mais bonitas, mais vistosas. Colocava tudo em cima de um caminhãozinho de madeira e seguia em direção à sua propriedade. E lá se sentava no chão e ia espalhando tudo arredor e certamente dizendo “Meu Deus, como estou rico!”.
E estava mesmo, e era mesmo rico, milionário. Dono desse poder e dessa riqueza incomparável e maravilhosamente bela na vida que se chama infância.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com      

Um comentário:

Toninho disse...

Sensacional amigo,uma bela viagem no tempo nas lembranças de um tempo feliz de idade.Perfeito como sempre.
Eu já fui fazendeiro, mas lá nas Minas era o porco que a gene fazia com bananas,rsrs.
Um abraço da minha admiração.