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quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O JAGUNÇO E O PADRE

O JAGUNÇO E O PADRE

                                        Rangel Alves da Costa*


Já perto de morrer de morte natural, pela velhice e enfraquecimento normal das forças do corpo, vez que diziam que ele era homem de sete vidas, o encanecido jagunço recebeu no seu casebre a inesperada visita do também provecto sacerdote. Acredite se quiser, mas eram amigos de muito tempo, o homem da hóstia e o da escopeta.
Mesmo naquela idade, andando quando muito de bengala pelos arredores do casebre de barro batido na ripa, de olhar profundo, entristecido, porém numa vivacidade que parecia estar sempre procurando o inimigo ou aquele que ia derrubar em seguida, de tocaia, da qual era especialista.
Ainda era temido, fazia muita gente mudar de rota pra não passar na sua malhada, na sua cancela. Mas não que o pudesse encontrar nas moitas de arma pronta e dedo no gatilho pronto pra disparar, mas pela história que contavam a seu respeito. E eram tantas e tão assustadoras que davam até pra arrepiar.
Ora, falar em jagunço era lembrar de outros tempos, um tempo de mando, de sangue, de covardia, de muitas mortes encomendadas, tanto de inocente com de cabra da mesma laia do chefe do pistoleiro. Mesmo não tendo nem mais resquícios do que haviam sido, o coronelismo e a jagunçada foram elementos inseparáveis na história colonizadora do nordeste.
E ali ainda morava um velho jagunço, um pistoleiro de não se sabe nem quantas mortes pelas costas. Aos olhos das pessoas comuns, falar em jagunço era se ter em mente apenas um assassino a sangue, um sanguinário matador, alguém que fazia o serviço de tocaiar vidas por dois contos de réis.
Mas não. É quase isso, mas não somente isso. Jagunço é a denominação que se dava, em tempos idos, ao sertanejo que prestava proteção ao líder politico ou coronel e, através do uso de armas e de estratégias matutas, elimanava os desafetos do seu chefe. No mesmo sentido, era aquele que servia de guarda-costas a fazendeiros ou poderosos e, sob suas ordens, fazia o trabalho sujo de matar inimigos.
Muitos eram homens de bem, pais de família, trabalhadores, muito conhecidos na região, mas por qualquer circunstância da vida cometiam crimes. Pobres, sabendo que sem a proteção do coronel seriam presos, então corriam pra propriedade do homem. De certo que não pegavam pena nenhuma, mas também tinham que fazer, dali por diante, o que o coronel mandasse. E o que ele mandava todo mundo já sabe, que era resolver na bala aquilo que a palavra não dava jeito.
Êta vida, meu Deus, tanto fazer, tanto matar por nada. Mas o que seria do jagunço se não fosse o desafeto do coronel, do capitão, do senhor de posse e cargo, pra matar de tocaia, deixar o bicho espumando estrebuchado no chão, cravejado de bala e sangrando até pelo canto do olho? Aquele derrubado não era ninguém, era apenas mais um, mesmo que mais tarde ficasse dilacerado por ter matado um conhecido.
E lá pelas tantas, depois de ter oferecido a terceira dose de pinga ao sacerdote, e logicamente derramado goela adentro outras três, o velho profissional da pistolagem sertaneja dizia calmamente:
Ser jagunço era ruim, coisa ruim demai, mai tomem era bom, bom de não ter medo de nada, nem da puliça nem das autoridade, e tudo pruquê ficava portegido pelo mandante. Na casa grande do coroné pé de pessoa num entrava se num fosse chamado. E se forsse pa fazê pregunta a seus home corria o risco de nem vortá pra dizer que num pôde.
Certa feita coroné Torquato me encomendou a morte do coroné Totonho. Quano soube da estóra, coisa que segradaro por lá, o coroné Totonho me mandou chamá e me ofereceu o dobro pra matá o coroné Torquato. Acabei num recebeno dinhero nem de um nem de outo, poi matei na hora o coroné Totonho só pruquê pensou que eu era home de me vendê. Adespoi o coroné Torquato num quis me portegê e tive de desabar no mundo. Todo mundo sabia que foi ansim, mai num foi não. Fiquei dois dia tocaiando o coroné, nos escondido das moita, até que passou num alazão e dei cabo dele. Ficou lá estirado, com o charuto ainda aceso no canto da boca...
E o velho sacerdote perguntou do que ele mais se arrependia. E o quase centenário jagunço nem vacilou na resposta, e disse:
Inté hoje só me arrepeno de uma coisa, que foi de num ter matado vosmicê, seu pade safado. À moda daquele pade lá do Juazeiro, me encomendou tantas morte e nunca me pagou uma sequer. Ganhano dinhero do coroné Salú, viveno do licor dele, mandava matá em nome do home e adespoi dizia que ia me pagá. Inté hoje, e tarvez ainda fosse tempo de lhe tocaiar e matá um pade veiaco safado...
E o sacerdote, um tanto quanto assustado, levantou um pouco e disse que era também pra isso, pra lhe pagar, que tinha ido até ali. E puxou do bolso dois crucifixos de ouro, colocando-os nas mãos do homem. E disse que o outro era apenas pra ele guardar e entregar somente quando se encontrassem depois da morte, pois tinha certeza que iam para o mesmo lugar.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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