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sexta-feira, 11 de novembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 88 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 88

                                          Rangel Alves da Costa*


A liberdade não havia significado nada para Jozué. Sem ter para onde ir, perambulou pelas ruas, procurou encontrar caminhos conhecidos, porém nada de reencontrar as fronteiras da vida. A cada passo nenhum reencontro, a cada desencontro o encontro apenas consigo mesmo: só, sozinho, solidão. E nesse vagar vazio, teve fome e teve sede, pediu, implorou, mas ninguém lhe deu nem de comer nem de beber.
Estava, na verdade, refletindo as palavras do Evangelho de Mateus, 25, onde, dos justos e injustos, podia dizer-se a mesma coisa: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos peregrino e te acolhemos, nu e te vestimos? Quando foi que te vimos enfermo ou na prisão e te fomos visitar?”; “Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; “era peregrino e não me acolhestes; nu e não me vestistes; enfermo e na prisão e não me visitastes”.
E sabia que a vida devia ser muito diferente, pois nos momentos mais difíceis é que os irmãos devem acolher os irmãos, os amigos devem abraçar os amigos, os desconhecidos não devem fechar a porta àquele que vem chegando. E lá estava também em Mateus: “... porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim”.    
Ora, as pessoas chegavam a se assustar com aquele rapaz, um jovem ainda, mas andando incerto pelas ruas, como que desnorteado e procurando a razão da existência. Maltrapilho, semblante assustado e também assustador, olhos entristecidos, gestos lentos e indo e voltando para o mesmo lugar, geralmente parando em locais solitários, de pouca ou nenhuma movimentação. Talvez com medo do mundo; talvez todos com medo dele.
Numa praça, depois de ter adormecido quase debaixo do sol por trás de um banco, vez que certamente não o deixariam dormir em paz ali em cima do assento, acordou mais cansado ainda de tantos pesadelos e sonhos pela metade. Já havia ouvido falar de pessoas incineradas vivas apenas porque repousavam ao desalento. E quisessem ou não, ele ainda era pessoa. Ou quase. Procurou lavar o rosto numa pequena fonte que havia nas proximidades e assim tentar enxergar direito se o que avistava mais adiante era realmente uma igreja.
E era realmente um templo de fé, de fortalecimento do espírito e de reencontro com Deus. Seguiu apressado até lá. Contudo, assim que colocou o primeiro pé já depois da porta foi chamado à atenção e barrado por um sacerdote que estava ao redor. Segundo o religioso, que o rapaz voltasse e ficasse adiante da igreja, pois lugar de esmoler, de pedinte, era na frente ou ao lado do templo e não dentro dele, para não assustar ou incomodar as boas pessoas de família que estivessem ali em oração.
E disse ainda que não aceitaria naquela casa do Senhor pessoa parecendo um maluco, vagabundo, maltrapilho, de cabelo e barba por fazer, sem ter nada decente que pudesse dizer ser uma pessoa digna, honesta, capaz de estar ali para orar, assistir missa, confessar. Ora, igreja era lugar de acolhida de pessoas limpinhas, arrumadinhas, cheirosas, inatacáveis no corpo e nas vestimentas. O templo era lugar de pessoas justas, castas de espírito, decentes, e não de estrapilhos, malroupidos, que certamente não saberiam sequer um Pai Nosso ou uma Ave Maria. E foi apontando o lado de fora, a calçada e mais adiante. E foi dizendo:
“Vai, vai, seu impuro, seu enlouquecido, vai orar pelo Deus da sua descrença em outro lugar. E sei até que o Deus que prego e semeio abomina pessoas assim que mais parecem bestialidades horrorosas sem norte na vida. Vai pedir sua esmola ou amedrontar os maus espíritos em outro lugar. Vai, sai daqui agora mesmo que preciso me preparar para celebrar missa. Os justos, os bons, todos aqueles cheios de fé e pureza me esperam. Vai, ande, some daqui agora mesmo...”.
Espiritualmente enfraquecido, sem força argumentativa para contestar cada palavra arrogante e inconsequente dita pelo da batina, não quis criar maiores problemas e deu alguns passos para trás. Porém rodeou e se pôs, ainda do lado de fora, num canto de porta, sem que pudesse ser percebido pelo homem que se paramentava próximo ao altar.
Nesse lugar, silenciosamente quietinho, mirou as imagens sacras espalhadas por todos os cantos, mas fixou o olhar principalmente na Cruz do Senhor, pregada no alto da parede, com o Cristo de braços estendidos pelas dores do mundo. E repentinamente se viu abraçado, reconfortado pelas mãos daquele que havia passado também por momentos tão dolorosos. E dizem que tanta dor e sofrimento em nome do homem, confiando que o seu martírio seria exemplo para os da vida. E o que homem aprendeu com sua dor, meu Senhor?
E lembrou-se de uma passagem bíblica, o Salmo 40, que sua mãe sempre lhe pedia para ler no grande livro. E era como se a estivesse vendo-a, pequenina, humilde, num entristecimento sorridente, com a máxima admiração em cada palavra que o filho buscava nas linhas tortas, as linhas da vida e da sabedoria:
“Feliz quem se lembra do necessitado e do pobre, porque no dia da desgraça o Senhor o salvará.  
O Senhor há de guardá-lo e o conservará vivo, há de torná-lo feliz na terra e não o abandonará à mercê de seus inimigos.  
O Senhor o assistirá no leito de dores, e na sua doença o reconfortará.  
Quanto a mim, eu vos digo: Piedade para mim, Senhor; sarai-me, porque pequei contra vós.  
Meus inimigos falam de mim maldizendo: Quando há de morrer e se extinguir o seu nome?  
Se alguém me vem visitar, fala hipocritamente. Seu coração recolhe calúnias e, saindo fora, se apressa em divulgá-las.  
Todos os que me odeiam murmuram contra mim, e só procuram fazer-me mal.  
Um mal mortal, dizem eles, o atingiu; ei-lo deitado, para não mais se levantar.  
Até o próprio amigo em que eu confiava, que partilhava do meu pão, levantou contra mim o calcanhar.  
Ao menos vós, Senhor, tende piedade de mim; erguei-me, para eu lhes dar a paga que merecem.  
Nisto verei que me sois favorável, se meu inimigo não triunfar de mim.  
Vós, porém, me conservareis incólume, e na vossa presença me poreis para sempre.  
Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, de eternidade em eternidade! Assim seja! Assim seja!”.
Viu quando o padre o avistou, mirou-o pelo canto do olho. E mesmo que viesse até ali repreendê-lo já estava satisfeito por ter lembrado o salmo e o repetido diante daquela Cruz do Senhor, palavra por palavra. E no momento seguinte já estava caminhando novamente pelas calçadas, parando e olhando as pessoas que passavam de seus trabalhos e se dirigiam para suas residências. Já estava escurecendo e sentiu fome.
E pela primeira vez pediu pelo amor de Deus que lhe dessem um pão. Apenas um pão.

                                                    continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com   

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