NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 90
Rangel Alves da Costa*
Na sua comunidade, bem no cerne do Cafundó do Judas, logo foi reconhecido por um molecote que corria pelas esquinas do lugar. Somente o olho apurado do menino para ter a certeza que aquele desfigurado era o resto do que sobrara em Jozué. Então o olhar apurado não duvidou e correu virando um beco e outro, passando duma rua a outra, dando a notícia da chegada do rapaz por ali.
Mas o pior é que não avisava que o rapaz havia chegado ao seu recanto de tantas amizades, mas anunciando a presença daquele que havia sido solto e agora perambulava nas redondezas. Segundo saía noticiando a um e a outro, após ouvir espantados, amedrontados, todos enfeavam o semblante, balançando negativamente a cabeça, fazendo gestos de reprovação.
Aquele não era mais o filho da comunidade, o menino de Dona Leontina, o vizinho, o amigo, o cordial e respeitador morador do lugar. Agora seria visto e tido apenas como um visitante muito perigoso, um bandido que estivesse prestes a atacar, molestar inocentes, tirar da pobreza o que nada mais lhe restava. Teve gente de se benzer e correr para dentro de casa, fechando portas e janelas.
Caminhando tranquilamente, na esperança de ser bem recebido, até mesmo porque não sabia que a notícia ruidosa de sua chegada já estava de boca em boca e ouvido a ouvido, assim que reconhecia alguém se dirigia na direção tentando reavivar a recordação no amigo, no conhecido. Contudo, assim que se dirigia ao local a pessoa já ia se retirando, saindo rapidamente, como se estivesse realmente em fuga.
Achou tudo isso muito estranho, porém pensou de não estar sendo devidamente reconhecido por causa da barba por fazer e da sua lastimosa vestimenta. Nem atinou para o semblante esquisito, a magreza visível, o cabelo crescido e desgrenhado. Mas será que se estivesse prontinho, todo arrumado e até cheio de brilhantina e perfume pelo corpo seria diferente, teria a melhor e merecida acolhida? Logicamente que não, pois ainda que vestido de ouro e cintilando diamantes, ainda assim seria um ex-presidiário. E ex-presidiário pobre, por isso mesmo muito mais rejeitado, discriminado, enojado.
E Jozué, além de ex-presidiário, pobre, maltrapilho, amorenado, sem tostão e sem esperança, sem endereço qualquer, sem nome e sobrenome, sem tio ou tia, parente ou aderente, sem amigo de fé ou irmão camarada, como seria recebido? Recebido como estava sendo, ou seja, completamente ignorado, causando temor e aversão nas pessoas, implicando em cada um o olhar de desconhecimento e de desprezo.
As palavras bíblicas são sábias com relação a isso, contudo. "Amar o próximo como a si mesmo: fazer pelos outros o que queremos que os outros nos façam". E Jozué não era somente próximo daquele povo porque morador da comunidade, mas principalmente porque pessoa, gente que merecia respeito, apoio, compreensão e afeto. Desprezando o irmão, enxotando-o como um cão sem dono, estavam renegando o princípio divino da caridade. Mas as pessoas, que de antemão já condenam, renegam e expulsam o outro dos seus corações, teriam condenações de abrir suas portas logo para um ex-presidiário?
Sem compreender muito bem porque as pessoas evitavam a sua aproximação e a sua presença, se aproximou da calçada e falou: “Mas João, sou eu Jozué, filho de Dona Leontina, lembra? Aquele mesmo seu amigo de tantas partidas de futebol, agora lembra?”. E gritava: “Seu Leotério, como vai Dona Purcina? Diga a Totonho que mais tarde passo aí pra gente ter um proseado”. E dizia: “Carlinhos, cadê aquela danada da bonitona de sua irmã, a Juliana, não vá me dizer que ela já casou, já?”.
E falava por falar, porque ninguém ouvia; e gritava por querer, porque ninguém dava a mínima atenção. Entrou na mercearia do Velho Joaquim, senhor amigo demais de sua mãe quando viva, olhou faminto para um pacote de biscoito, quis pedir o alimento, porém se resumiu a perguntar como ele ia e pedir para beber um copo de água do filtro que estava ao lado do balcão. E ouviu:
“Você não tava preso, e o que veio fazer aqui? Acho que nem devia ter aparecido mais por aqui. Sua mãe já morreu, a casa já tem morador diferente, você não tem mais nada a fazer aqui. Nem amigo você tem mais por aqui. E vai me desculpar mais vou fazer uma coisa que nunca fiz com ninguém, pois vou negar esse copo de água. Se tiver com sede vai pedir noutra freguesia, aqui não. Esse filtro com água e esse copo que fica ali debaixo da torneira é pra uso dos meus clientes, exclusivamente deles. Você não é meu cliente, não tem tostão pra me comprar nada e certeza tá com doença ruim de preso. E não sou maluco deixar que você bote a boca num copo que o povo sadio vai usar. E se eles souberem que você bebeu desse copo nenhum vem mais aqui e não posso perder freguês por causa de um ex-presidiário. E acho melhor você ir logo despistando e saindo daqui antes que apareça alguém querendo comprar. Anda...”.
Após ouvir tão duras e desrespeitosas palavras, apenas baixou a cabeça e saiu daquele ambiente. Teve vontade de chorar, de fazer alguma coisa para extravasar sua dor espiritual, mas se comediu e seguiu adiante. A umas três casas antes da que morava bateu à porta e viu surgir numa brechinha da janela sua velha amiga Sinésia. Antes mesmo que a mulher abrisse a janela já foi dizendo que graças a Deus alguém lhe daria atenção e traria um copo de água.
Mas de repente viu a janela se fechar e se instalar o completo silêncio lá dentro. Deu mais uns três toques à porta e teve a certeza que não abririam mesmo. Olhou ao redor e estranhamente percebeu que todas as portas e janelas estavam fechadas, sem nenhum conhecido por perto. Uma única porta estava aberta, e exatamente a da casinha onde havia morado com sua mãe. E para lá se dirigiu, já sedento demais.
E antes mesmo que batesse palmas chamando alguém, olhou casa adentro e a primeira coisa que viu na parede da salinha de entrada foi um retrato que lhe pareceu muito familiar. Fixou bem o olhar e se reconheceu. O seu retrato continuava na parede.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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