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sábado, 5 de novembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 82 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 82

                                          Rangel Alves da Costa*



Se o abismo que era aquela penitenciária tivesse espelho e ele refletisse as almas penadas que se juntavam ao redor, afundando aos poucos, incidiria sua sombreada réstia sobre Jozué. Espantado, amedrontado, refém de todos os temores possíveis. Ora, havia saído de um inferno e transferido para o inominável, o indescritível.
Na selva, os bichos famintos, em fúria, amedrontados por causa de incêndios, fugindo das enchentes e avalanches, desnorteados pelos explosivos estourados nas proximidades, desconhecendo tudo ao redor para fugir do caçador, para fugir da arma e da armadilha, tornam a natureza numa profusão de desespero, dor e agonia. Era ali também essa selva, só que tendo bichos/homens quase andando, quase rastejantes, quase irreconhecíveis.  
Essa selva imaginária e seus bichos famintos e furiosos reflete muito bem o sistema penitenciário e o se espelho. Na alegoria do inconcebível, o que o homem se tem por direito levar adiante produz aqueles frutos podres avistados por Jozué. Mas por que sempre tem de ser assim, se a lei não determina que seja assim? Ora, nada mais é do que a vitimização do indivíduo pelo próprio Estado.
A inoperância do sistema, fato que é medido pelo alto índice de reincidência criminal, pela superlotação e pelo tratamento desumano dispensado à pessoa presa, não são suficientes para afastar o reconhecimento de que também há uma falência na aplicação das leis referentes à execução penal e, principalmente, da garantia de uma reinserção social que não seja tão traumática e desumana.
As prisões, atualmente, não recuperam ninguém. Mortificam, maltratam, desumanizam. Sua situação é tão degradante que são costumeiramente rotuladas como “universidade do crime”, “inferno em vida”, “depósito de seres humanos”. Ademais, o encarceramento puro e simples não apresenta condições para a harmônica integração social do condenado, como preconizada pela lei de execução. Isto porque encarcerar e vigiar, maltratando, desumanizando, não basta.
Mesmo a pessoa mais iletrada tem noção de que é necessário que se conceda à pessoa de quem o Estado e a sociedade retiraram o direito à liberdade o acesso a meios e formas de sobrevivência que lhe proporcionem as condições de que precisa para reabilitar-se moral e socialmente. Encarcerar o indivíduo e esquecê-lo, abandoná-lo, é também deixar de observar preceitos da lei quanto aos aspectos da ressocialização para a futura reinserção social.
É que a lei prevê o desenvolvimento de condições para que, separado da família, dos amigos e de outras relações socialmente significativas, o preso possa refletir sobre o ato criminoso e corrigir o desvio de sua conduta. Contudo, contrariando todas as perspectivas positivas da lei, o que se vê é que na prisão o indivíduo logo começa a pagar um preço muito mais alto do que a pena que efetivamente lhe foi aplicada.
Verdade é que o indivíduo ao ser jogado numa penitenciária passa a ser, por via das consequencias e circunstâncias, totalmente irreconhecível, diferente do que era antes de ser apenado, pois lhe é imposto uma nova situação de vida e um novo jeito de viver, ou morrer, que doravante será sua cultura, seu saber, seu aprender. É a criminosa cultura carcerária.
Basta ver, por exemplo, os rituais e cerimônias de degradação que esperam o apenado assim que é jogado numa penitenciária. Em primeiro lugar, é despojado de si mesmo, ganha um dado estatístico, um número, quase sempre um apelido, tem que passar a usar os vestuários concedidos e se manter num regramento acerca de tudo que pretenda fazer. Ora, numa situação dessas, de repressão, imposição e uniformização de condutas, como o presidiário poderá encontrar-se a si mesmo para, com o erro e a pena, reeducar-se para o mundo lá fora, se um dia for isto possível?
Sem se reconhecer mais como indivíduo, impossível que o apenado se fortaleça pensando no futuro, sonhando em dia deixar aquele sofrimento. Como poderá, mais tarde, se reintegrar à sociedade se em liberdade terá que lutar e vencer todas as barreiras para se humanizar novamente, pois bicho será e assim será visto? Para que o indivíduo efetivamente se reintegre à sociedade após cumprir sua pena, não basta que o sistema penitenciário não o tenha transforma num marginal ainda mais perigoso, mas que o condicione não só para a reinserção como para saber lidar com o meio social que certamente lhe negará muitos dos seus direitos de cidadão. Mas quando isto acontecerá?
Jamais acontecerá porque a lei de execução é permeada de boas intenções, porém sem aplicabilidade alguma em muitos sentidos. Daí que a lei não atinge seus objetivos nem durante o período em que o indivíduo estiver encarcerado nem quando conseguir a tão sonhada liberdade. Lá fora se verá novamente encarcerado, jogado dentro de outros muros, que são as tantas e inúmeras dificuldades encontradas para ser reconhecido como gente, como ser humano, e depois tentar reintegrar-se socialmente. Fato é que as pessoas ficam indiferentes diante dos ex-detentos, outras são repulsivas e algumas possam até a temê-los e odiá-los.
É preciso atentar para os contrastes. O encarceramento imposto pelo Estado ao condenado tem como objetivo fazê-lo refletir sobre sua conduta ilícita, tentando recuperá-lo para uma futura reinserção social. Contudo, a imagem que é criada do presidiário, ou mesmo do egresso, é tão forte e tão nefasta que no mundo externo sentirá o afastamento até da própria família, de amigos, de conhecidos e, por consequencia, todas as portas se fecharão, seja para o trabalho ou até para esmolar.
Verdade é que uma vez na prisão, o sentenciado passa a sofrer muito mais que o castigo definido pela justiça para pagar pelo delito que cometeu. Parece achar pouco que o confinamento, a segregação social, é a maior punição que o indivíduo possa ter, e passam a impor condições degradantes de cumprimento da pena, tratando-o como verdadeiro verme que deve ser mutilado para pagar na pele pelo erro de um dia.
O problema maior é que as autoridades competentes, que tanto discutem teoricamente, não sabem lidar com essa população cada vez mais crescente de encarcerados. Não só lidar, como respeitar, desde o primeiro instante que entram pelos portões das penitenciárias, os direitos previstos nas normas constitucionais e na legislação de execução penal. Ora, quase sempre jogam o indivíduo ali, recheado por rótulos e tipificações penais, e esquecem que ao invés de ratos que rastejam pelos esgotos para sobreviver, ele é pessoa humana e que, ainda com a dignidade reduzida, merece ser acolhido como manda a lei.
E a lei é clara ao confirmar que todo preso deve ter sua integridade física e moral preservadas, não deve pagar além da pena prevista pelo crime que cometeu, não deve ser deixado à míngua, à sorte dos injustiçados, à mercê somente da proteção divina. Ademais, a própria lei prevê que ele seja respeitado, cuidado, tenha educação e ocupação, tenha assistência médica e social, seja preparado para o reingresso à sociedade e ao mercado de trabalho.
Contudo, por mais que a lei enfatize tais aspectos, as autoridades sempre arranjam desculpas para dar continuidade ao caos existente no sistema prisional. E tudo agora refletido no coitado do Jozué.

                                                      continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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