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quarta-feira, 11 de abril de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: FAZENDA TERRA DOURADA (3)

                                        
                                                     Rangel Alves da Costa*


O coronel Badaró avançou a madrugada tendo calafrios, com espasmos de dores pelo corpo, com o corpo tão febril que deixava a pele totalmente abrasada. Dona Graciosa, a gorducha esposa, implorou por tudo na vida e até chegou a chorar para que o esposo aceitasse ser levado até um hospital na capital.
Do mesmo modo tentou chamar o médico da família, um velho senhor que exercia as artes de Hipócrates ali mesmo na região, mas não teve jeito. O coronel a impediu raivosamente de falar em capital e em chamar médico até ali. Mas por outro lado, por inexplicável circunstância, pediu para que a Velha Totonha fosse chamada para exercer como pudesse sua sabedoria medicinal.
Com o sangue escravo nas veias, com a parentada toda tendo sofrido as mais cruéis agruras no tronco, inesquecíveis e ferozes chibatas dos coronéis e sua corja de algozes, não escondia de ninguém as marcas dos lanhos nas costas e no rosto de um negro retinto. Continuava escrava com muito orgulho, dizia.
E continuava vivendo ali numa taperinha, já sem forças para pegar no pesado, para as lides impostas aos que jamais são totalmente libertados do jugo escravocrata. Mas agora, inexplicavelmente, sob a proteção de Horácio Badaró. Era uma aproximação forte, amigueira mesmo, porém muito contraditória aos olhos de muitos.
Ora, se o coronel gostava e respeitava tanto a mulher, a velha filha de escravos e escrava ainda, então não se imaginava o porquê de não proporcionar-lhe um conforto maior, principalmente no que se relacionava às condições de sobrevivência. Era viúve, sem filhos, morava sozinha numa tapera ali mesmo nas terras do eterno patrão, pois de linhagem subordinada a bisavô, avô, pai e agora o mais recente Badaró, sem falar nos filhos deste.
A tapera onde a velha senhora vivia mal se sustentava em pé. De barro batido, tendo massapé como piso, lá dentro apenas o necessário à sobrevivência. Assim, eram avistados cama da varas, potes, moringas, cacarecos, um velho mobiliário em madeira, alguns banquinhos também de madeira, um velho baú pelos, apenas isto. E tudo. Tudo porque a Velha Totonha tinha aquilo ali como verdadeiro palácio encantado, lugar de receber seus antepassados, os espíritos dos seus para as festas misteriosas entoadas num canto triste.
Mas o que a velha mais gostava na sua taperinha não estava dentro das quatro paredes, mas do lado de fora, ali depois da porta dos fundos, no quintal. Ali estavam suas ervas medicinais, suas plantas com mais poder curativo do que remédio de farmácia. E ali também, dentro de um quartinho pequenino, coisa de não mais do que dois metros quadrados, misteriosas figuras em madeira, amuletos, patuás, simbologias religiosas que ela nutria a maior devoção. Nisto era uma velha iniciada.
Não só a gorducha e sempre simpática Graciosa, como também seu esposo conheciam de perto a casinha da Velha Totonha. Muitas vezes eram vistos entrando ali para pedir conselhos, para encomendar um chá potente para qualquer prenúncio de enfermidade. Sinhô Badaró encomendava frascos mais frascos de lambedor, de remédio para fortalecer o vigor físico, para quase tudo que se pensasse. Era só dizer o que queria e a velha senhora providenciava no outro dia.
Certo dia, sem que a velha percebesse que o patrão estava por ali, este se aproveitou de sua ausência e quis matar a curiosidade em saber o que havia de tão especial naquele quartinho nos fundos do casebre. Já ia forçando a porta para entrar quando ela se aproximou o mais depressa que pôde e disse que não impediria que ele entrasse, mas que tivesse muito cuidado com o que poderia encontrar.
O homem, com sua teimosia de sempre, apenas sorriu e entrou. Meia hora depois saiu de lá todo suado, arrepiado, parecendo que tinha visto coisa do outro mundo. E o pior é que não sabia mais qual caminho seguir para voltar pra casa. Foi preciso que ela aprontasse um chá com ervas de desencantamento pra ele ir voltando aos poucos a si. Contudo, após esse dia jamais o coronel conseguiu esquecer o que havia encontrado ali. Por isso mesmo tão apegado à velha escrava.
E era ela que estava limpando o suor frio no rosto do patrão, espalhando folhas de ervas sobre sua cabeça, quando o jagunço Celestino entrou nos aposentos para anunciar que os seus filhos já estavam chegando.



Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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