Rangel Alves da Costa*
Poucas pessoas sabem o que é um lince. Ouvia muito falar em seu nome, porém o desconhecia totalmente, até o dia que o encontrei ali na minha varanda.
Não sei se tenho andado bem. Sinto-me angustiado, com insônia, solitário demais. Desde que abri a porta da gaiola e mandei o passarinho ir embora que não tenho mais ninguém para conversar.
Mais de cem anos assim, talvez. E lembro bem que a última vez que abri a boca para um rápido diálogo foi com um último pingo de chuva que caía. Quando ele ia responder simplesmente evaporou.
Por isso talvez tenha sido muito bom que o lince chegasse logo ao amanhecer para me visitar. Digo esse lince e não um lince porque de certa forma eu já o estava esperando. Qualquer coisa mais cedo ou mais tarde chegaria ali na minha varanda.
Juro que esperava a visita de um centauro, de um pégaso, de um cavalo marinho, de um ser mitológico. Outro dia li que os seres mitológicos gostam de povoar a vida de quem um dia se achou semideus. E já fui mais que isso, pois um dia pensei ser o verdadeiro Deus.
Talvez por ter pensado assim, tão desastradamente pensado assim, é que agora tenho de me contentar com a solidão dos impotentes e com qualquer visita. E ainda bem que o lince chegou sem alarde, sem bater à porta, sem tocar campainha, apenas entrou e sentou bem diante de minha rede na varanda.
Mas que belo animal é esse gato de uma espécie mais rara, um tanto maior, mais forte e misterioso dos que os felídeos normais. É de cor cinza-amarelada, com pintas marrons que vão se espalhando pelo seu corpo ágil e peludo. Para o tamanho, sua cauda é curta e possui orelhas pontiagudas.
Contudo, o mais belo, instigante e misterioso no lince da minha varanda é o seu olhar penetrante. Nunca vi nada igual. Olhos grandes, negros, puxados, de brilho surpreendentemente vivo, como se a retina fosse espelhada ou um lago cristalino ali fizesse moradia.
Naquele momento não, mas depois compreendi que falta à maioria dos seres humanos, principalmente em mim, algumas das características essenciais possuídas pelo lince. No momento não, pois estava apenas contente demais com a visita, mas agora tudo daria para ser como aquele que dizem ser felídeo.
Juro que é pessoa, que é ser humano, que sabe tudo, entende tudo, é inegavelmente mais inteligente, arguto e perspicaz que o simples mortal. E não bastasse isso, aquele olhar do lince que consegue enxergar muito além do que tudo que está à sua frente.
Só agora sei, e só infelizmente agora sei, o porquê ele é tido como aquele – pois juro que é ser humano – que enxerga através das paredes, que vê muito além da realidade presente, que tem conhecimento imediato da frágil folha que o vento do outono levou.
Só agora sei por que os povos antigos prediziam o futuro através dos olhos do lince. E não somente isto, pois ficavam diante do seu portal cristalino e assim podiam alcançar os lugares mais distantes e até outros mundos. O lince só não deixava que fossem até o paraíso. E isso hoje eu seu por que.
Por incrível que possa parecer, o nosso sábio e cordial diálogo cordial ocorreu no mais puro silêncio. Ali sentado na varanda, apenas me olhava, apertava mais os olhos, fazia-os mais brilhantes ou mais escurecidos, sorria com o olhar, falou-me tudo, tudo sobre a vida e a morte através daquele inesquecível olhar.
E me fez lembrar coisas importantes que as pessoas insistem em premeditadamente esquecer. E disse-me que os nossos olhos não brilham pelo que veem, mas sim pelo que o coração enxerga; os nossos olhos são os espelhos que queremos ter na moldura que queremos ser; os nossos olhos possuem palavras que acabamos não querendo ouvir. E por isso mesmo tanto enxergar, tanto ver, tanto sentir e nada aprender.
E o mais importante: Somos todos cegos. E assim continuaremos até que a luz nos nossos espíritos alcance o nosso olhar. E este reflita o que somos pelo modo como vemos a vida, o mundo, a nós mesmos.
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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