SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 26 de abril de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: FAZENDA TERRA DOURADA (Final)


                                                   Rangel Alves da Costa*


Fugindo da presença do pai, Licurgo e Permínio aproveitaram a ocasião e se meteram no meio do mundo, numa correria desenfreada. Dois capangas quiseram segui-los, porém Celestino balançou a cabeça afirmando que não.
Caminhando um pouco mais para o centro da igrejinha, pálido, disforme, fraquejante, o velho Horácio Badaró ficou cerca de um minuto mirando silenciosamente o corpo estendido da querida esposa e depois passou o olhar sobre a filha, o padre e o jagunço de confiança. Olhava em cada um e movia um pouco a boca como se quisesse dar um sorriso. Dos olhos não saíam um brilho sequer.
Depois entristeceu ainda mais o semblante e disse umas poucas palavras:
“Estou aqui apenas para me despedir de vocês, mas já arrumei a mala e já estou de partida. Viagem longa e nem sei por quais caminhos tenho de seguir e quais labirintos terei de enfrentar. Não foi somente a minha Graciosa que morreu, pois eu também morri. Esse que está aqui como eu já não sou eu. Morri, a verdade é que já morri. A Velha Totonha estava ali ao meu lado quando dei o último suspiro. E já depois de morto encontrei a velha escrava novamente, que veio para o meu lado dizer uma coisa importante. E disse que graças à minha filha, minha doce Engracina, a bacia da maldição havia sido derramada, e com ela os meus pecados também. Mas existe um porém nisso tudo. A bacia dos pecados foi derramada mas meus erros, os meus pecados, não foram apagados. Pelo contrário, continuam em toda sua força negativa, mas não tendo mais o poder de me condenar ao fogo dos pecadores logo após a minha morte. Morri mas não vou diretamente queimar no fogo eterno dos impuros, pois terei a chance de ser julgado justamente pela mão do Senhor. Após o julgamento terei o que merecer, fato que aceito como cristão que sempre quis ser e não consegui. Obrigado minha filha, muito obrigado. Aqui na terra ficará sob a maior proteção e nada lhe faltará. Deixem que o destino tome conta dos seus irmãos, mas não haverá muito que se preocupar com eles. Antes de partir peço à minha filha que não desampare nem o da igreja nem o da pistola. São tão diferentes e tão iguais. Agora que já estou aqui ao lado de minha gorduchinha, minha querida Graciosa, segurando na sua mão e tendo o seu olhar de amor, chegou o momento da partida. Até”.
E sumiu antes mesmo de chegar à porta dos fundos. A figura do homem foi se desfazendo como uma névoa, como um rastro empoeirado que vai se dissipando. Em seguida, cheia de sofrimento mas não tendo saída senão enfrentar a dolorosa situação, mandou que Celestino abrisse todas as portas da igreja, e bem abertas para que o sol entrasse depois de muitos e muitos anos.
Deixaram Dona Graciosa ali mesmo deitada num banco e sendo velada pelos jagunços e em seguida foram em direção à casa grande, rumo ao quarto do coronel. Estava estendido, morto. Levaram o corpo até a igrejinha e o colocaram bem ao lado da esposa. E entre choros e palavras tristes, o padre conseguiu celebrar missa de corpo presente.
No momento da celebração dois animais entraram na igrejinha e ficaram se agitando de lado a outro, se remoendo, desgraçadamente aflitos. Quando Celestino se levantou para expulsá-los dali, o padre gritou que não. Pediu apenas que tentassem agarrá-los cuidadosamente e os trouxesse até ali.
Diante do altar jogou água benta por cima deles, um porco espinho e uma raposa. Quando o divino líquido alcançou a pele uma fumaça escurecida subiu pelo ar. Então o padre pediu que os soltasse em seguida. E disse voltando-se para Engracina:
“Dificilmente seus irmãos serão aceitos em meio aos animais da mata. A diferença é que os outros são animais, enquanto eles preferiram ser bichos”.

FIM


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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