Rangel Alves da Costa*
A Velha Totonha até que tentou impedir aquele gesto tresloucado da mocinha, contudo não pôde fazer nada. Sentiu-se como que paralisada dos pés à cabeça, olhos estupefatos, boca horrivelmente aberta.
E quando a bacia foi jogada por cima das plantas e água escurecida e putrefata ao mesmo tempo queimou totalmente as ervas e espalhou pelo ar um cheiro terrível acompanhado de grunhidos, a filha de escravos enfim conseguiu soltar seu grito e depois cair morta, seca e esturricada como o resto de folhagens adiante.
Espantada com aquilo tudo, Engracina rapidamente afastou-se, sem acreditar no que estava vendo. A velha amiga morta, as plantas esturricadas, uma podridão terrível ainda dançando pelo ar, uma nuvem medonha encobrindo tudo. E não sabia como, mas ouvia gritos terríveis de seu pai, alaridos de dor, desespero e sofrimento.
Meu pai vai morrer, pensou. Assim, como a escrava Totonha, meu pai vai morrer, repetiu em pensamento. Mas não poderia ser diferente, também pensou. A seguir correu para dentro do quartinho, abriu bem a porta, encheu baldes e panelas de água e ia jogando ali dentro, como se pretendesse lavar de vez aquele resto de pesadelo. Então, resolveu fazer algo mais eficiente.
Saiu de lá em disparada em direção à igrejinha. Ali procuraria um pouco de água benta para derramar por cima daquele chão que ainda guardava resquícios amaldiçoados. Ao se aproximar um pouco mais avistou os jagunços já cercando tudo, com armas nas mãos, prontos para o ataque.
Desesperada, sem saber o que estava ocorrendo ali para aqueles homens estarem assim armados, começou a gritar para que parassem com aquilo naquele mesmo instante. Não sabia do que se tratava, mas continuou gritando. Os outros jagunços não a conheciam, somente Celestino. E foi este que correu ao seu encontro para impedir que se aproximasse mais e contar o porquê daquela cena.
Ao ouvir rapidamente a história, pediu que afastasse os homens dali que ela mesma iria resolver o problema. E após um sinal, cada um se afastou para um lado para dar passagem à destemida mulher. Quando empurrou a porta e sua silhueta surgiu, foi logo reconhecida por sua mãe, a gorducha Graciosa, que gritou para que saísse dali porque seus irmãos estavam completamente loucos e poderiam fazer alguma besteira contra ela.
Mas ela deu mais dois passos e começou a falar na maior altura que sua força permitia:
“Já sei de tudo e também já acabei com tudo de uma vez por todas. Esse ouro que é guardado aqui, toda essa riqueza que essas paredes escondem não vai mais ser usada para lavar bacia amaldiçoada e cheia dos pecados familiares. A Velha Totonha, minha boa amiga escrava, me contou tudo do começo ao fim. Infelizmente ela já não está mais viva, pois acabou de morrer. Mas por outro lado, a maldita bacia também não existe mais, também morreu e com ela a imundície secularmente aprisionada, o espelho nojento refletindo todo o mal que minha família, desde os antepassados, fizeram aos escravos, aos pobres, inocentes e desvalidos de toda sorte. E se a continuidade da vida dependesse desse ouro que ia acalmar sua fúria, de agora em diante esse ouro maldito também não poderá mais escravizar a ninguém. Mas infelizmente tenho de dizer que se a vida de meu pai dependesse daquela bacia jamais esvaziar, agora ele não mais pertence a esse mundo, pois toda água foi derramada, jogada fora, quebrada bacia e tudo, tudo acabou de vez...”.
“Por que não pensou em seu pai, minha filha? A vida dele infelizmente dependia daquela bacia...”. Gritava Graciosa, chorando de se acabar. Mas Engracina continuou:
“Minha mãe, entendo sua dor, porém tenho de dizer uma coisa. Existem coisas na vida que a gente não pode aceitar apenas porque o Sinhô Badaró decidiu que era melhor ter feito daquele jeito. Não podemos esquecer que ele judiou muito das pessoas, escravizou pobres de um tudo, foi arrogante e violento demais, violou a honra de mocinhas inocentes e também de suas famílias. Daí tantos pecados e tanto sofrimento. Não aqui na terra mas em outro lugar, certamente vai ser julgado pelo que cometeu. Ou a senhora acha melhor que ele continue vivo cheio de sofrimentos e remorsos?”.
“E o ouro, o que vamos fazer com o ouro? Já que Engracina derramou a bacia do pecado então o ouro vai ter outra utilidade. O que vamos fazer com o ouro?”. Indagou o padre, já conseguindo se manter em pé. Mas Licurgo respondeu: “O ouro é meu e de Permínio, e vamos levar daqui até o pozinho que for encontrado”.
Ao dizer isso se virou para a fenda na parede e de lá puxou alguma coisa. Em seguida disse: “Tá vendo isso aqui, esse ouro, vocês não vão ter direito a nada”. “Mas que ouro, se na sua mão não vejo nada mais do que um pedaço de carvão?”.
O ouro amarelado, reluzente, agora não passava de pedra preta, esfarelada, mero carvão.
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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