Rangel Alves da Costa*
Para evitar a desagradável aproximação e no intuito de não trazer maior preocupação ao pai naquele momento, a filha retirou-se do quarto levando consigo a Velha Totonha. Amiga desde a infância, tinha a filha de escravo como verdadeira mãe. Há algum tempo atrás brincava no seu colo, comia barro das paredes do seu casebre, recebia papinha na boca pelo dedo da velha.
De Engracina a amiga preferia chamar Gracinha. Esta gostava de ouvi-la chamando assim, pela simplicidade e meiguice na pronúncia. Ali fora, já saindo das redondezas do casarão e arredores, caminhavam em busca dos arvoredos existentes em grande quantidade. Contudo, a intenção da mocinha era outra, pois seguiria até a moradia da velha amiga, ainda que soubesse que esta faria tudo para isso não acontecer.
Debaixo de um imenso craibeiro florido, Gracinha, como a outra chamava, perguntou o que ela achava sobre a doença que o seu pai havia sido acometido. A velha, fazendo forças para se abaixar e colher umas folhas de mato que conhecia, levantou a cabeça, mirou bem os olhos da amiga, se aproximou um pouco mais e disse:
“Seu pai, mia fia, num tem doença de médico não. A doença dele já vem da raiz da famia, desna o primeiro parente dele que aqui botou os pés. A doença dele, minha fia, tem munto a ver com essas terra toda e tomem cum a riqueza que foram juntano. Doença se cura, mai a doença dele só cura de um jeito munto diferente...”.
A filha do Sinhô Badaró imediatamente foi tomada de espanto pelo que ouvia. Não podia duvidar da razão no que a velha dizia, mas também não conseguia compreender essa história de doença diferente, vinda da terra e da riqueza, herança familiar. E em seguida pediu para que contasse isso tudo direito. Então a velha se pôs a falar:
“Num tá veno o nome disso aqui, minha fia, poi é, Terra Dourada é cuma se chama. Mai vosmicê sabe o pruquê desse nome? esse nome veio do munto ouro que tinha aqui antigamente. E era ouro de num acabar mai. Munto desse ouro foi vindido e transformado em terra e mais terra, mai bicho, mai escravo e mai trabaiador. Mai vou dizê uma coisa que nunca dixe a ninguém e só quem sabe sou eu, seu pai e sua mãe: ainda restou munto ouro e continua aqui. Aqui e bem escondido, só que num tem mai seuventia pra se gastar. A única seuventia que tem é pá manter seu pai aina vivo...”.
“Mãe Totonha, pelo amor de Deus, aonde a senhora quer chegar?”. Quase grita Engracina, num nervosismo que a deixava sem cor. E a velha continuou:
“Tá veno aquela igrejinha ali? Munto bem. Essa igrejinha nunca abre durante o dia pra estranho pruquê o ouro ta todo ali dentro, escondido nas paredes. E só tem missa de noite pruquê tem de ser assim, poi cada missa que o pade vem dizê aqui, e mermo que ele num saiba, é a único jeito do ouro se sentir abençoado e premití que seu pai continue vivo. Possa aquerditá, minha fia, mai a vida de seu pai num depende de médico, mai sim do ouro que tá ali escondido. Mai tomem num só pelo ouro...”.
“Mas como surgiu esse poder que o tal ouro tem sobre a vida de meu pai?”. Indagou a cada vez mais assustada mocinha. E ouviu como resposta:
“Todo ouro que deu aqui foi trabaio dos escravo. E num sei nem quanto preto morreu ou teve o sangue derramo pru tudo isso. Mai um dia um preto véio que pru essa terra vivia rogou uma praga cronta a exploração de seu povo. E disse que ia chegar o tempo que todo o marfeito, toda brutalidade e tudo de ruim já feito pelos dono desse lugar ia depender do ouro que os escravo tiraro dos ribeirão. Entonce o ouro manchado de sangue tinha que viver pá sempre iscondido na igreja. Cada missa rezada seuve pá aliviá a dor dos escravo existente ali. E pru causo disso o ouro tem de continuar ali, num pode ser vindido e tem de receber missa. E tem mai uma coisa...”
“O que, Mãe Totonha? Diga logo pelo amor de Deus!”.
“Todo dia, e às veiz vária veiz ao dia, sua mãe ou seu pai tem de ir na igrejinha, pegá um pedaço de ouro e ir lavar na bacia dos pecados. E sabe adonde fica e pruquê existe a bacia dos pecado?”.
Continua...
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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