*Rangel Alves da Costa
A pedido,
o presente texto foi acrescido para uma nova publicação e deleite da história
desse impressionante e hoje inacessível casarão. Pois bem. No alto do monte,
como num pedestal ribeirinho, às margens do Velho Chico, levanta-se e se impõe
o velho casarão. Construído no século XIX, por volta do ano de 1887, o Casarão de
Bonsucesso, povoação são-franciscana no município sertanejo de Poço Redondo, guarda
em si não só a grandiosidade arquitetônica como uma pujante, e até dolorosa,
história.
Mesmo ao
longe, os olhos logo se espantam de admiração. Uma beleza inigualável que vai
ficando ainda portentosa perante a aproximação. Eleva-se no monte como uma
relíquia sagrada. Defronte ao rio, com sua grande e esplendorosa arquitetura,
iguala-se a um templo guardião de todas as vidas e todas as histórias. Contudo,
desde o seu surgimento, num percurso muito menos dignificante que o seu
esplendor.
Erguido
pelas mãos negras, escravas de senzala e açoite, diz-se que o seu sangue está
espargido pelas paredes, na mistura da pedra e do barro, no ligamento do tijolo
e da massa. E dizem também que os ecos das agonias ainda ecoam nos sopros
molhados que vão sumindo nas curvas do rio. Vozes negras, gritos negros, ecos
escravos em gemidos roucos e lancinantes gritos. Mas apenas histórias que vão
surgindo e povoando o casarão e arredores.
Que engenharia
foi levada a efeito, com exigências verdadeiramente extravagantes! O senhor não
desejava apenas a fortaleza para morar, mas também nos cercados e muralhas
circundando a residência. Então ordenou também a construção de cercas (ou
muros) de pedras. E pedra sobre pedra, numa junção arquitetônica ao modo da
exatidão no encaixe das antigas civilizações. E não trabalho para durar meses
ou anos, mas séculos, como depois se confirmaria.
Assim, não
só nas paredes do casarão (de cerca de um metro de largura) como nas antigas
cercas de pedras que corriam aos fundos e nas laterais, tudo erguido pela mão
negra, pela mão escrava, tendo como a ordem o açoite e a obediência pelo lanho
de sangue jorrando pelos lombos e pelas mãos. E há de se imaginar aquelas mãos
em tão árduo ofício e de repente ainda tendo de suportar chibatadas em busca da
perfeição.
Daí se
dizer que as paredes e as cercas do Casarão, ainda que na pedra talhada, foram
todas cimentadas pelo sangue negro. E por isso também a eterna presença escrava
nesta indescritível riqueza histórica: o Casarão de Bonsucesso. Hoje ainda tão
belo e suntuoso, mas ainda hoje também de tão triste memória pela sua dolorosa
história. E uma história para também ser sentida na alma de hoje.
Sentida na
alma de hoje e também compartilhada pelos ribeirinhos e todos aqueles que
achegam ao local. Mas não é assim que vem acontecendo desde que seu atual
proprietário deu ordens expressas ao cuidador para que não deixasse ninguém
adentrar nas suas portas. Quer dizer, a não ser por conveniência do dono,
ninguém pode ir até lá em busca de conhecimento de sua própria história.
Sim,
logicamente que o Casarão de Bonsucesso está em propriedade particular, possui
dono e, como consequência, o seu proprietário pode fazer o uso que quiser e como
quiser. Sem o seu consentimento, nenhuma visita poderá sequer ser feita. Pode
acrescer, destruir, fechar suas portas, relegá-lo ao abandono.
Contudo,
não se trata de uma construção comum, de um bem qualquer onde o seu
proprietário simplesmente negue acesso aos próprios moradores de Bonsucesso,
interessados, visitantes ocasionais e turistas. Até mesmo porque o domínio do
particular sobre bens é apenas relativo. Quer dizer, a qualquer instante - por
iniciativa do Estado - ele pode perder sua posse.
No caso do
Casarão de Bonsucesso, o seu tombamento já deveria ter se concretizado há anos.
O tombamento, que é uma das formas de intervenção do Estado no domínio da
propriedade privada para o fim de preservá-la segundo o seu interesse
histórico, artístico, paisagístico, cultural e estético. O tombamento,
portanto, é uma medida de preservação do patrimônio.
Entretanto,
fator negativo diz respeito à manutenção do proprietário na posse do bem
tombado, o que poderia gerar os mesmos problemas que estão ocorrendo, inclusive
dificultando o acesso de pessoas. O que fazer, então? Resta a desapropriação
por utilidade pública. De competência do poder público municipal, seria o meio
mais viável de retirar o bem do particular, a partir do pagamento de um preço
justo, e colocá-lo à disposição da municipalidade. E, após isso, proporcionar
mecanismos não só de preservação como de acesso aos interessados.
Não
duvidemos, contudo, que nada melhor que a sensibilidade de seu proprietário. Bastaria
que o mesmo reconhecesse o valor histórico daquela edificação, bem como sua
importância para a vida ribeirinha e todo o sertão, e assim permitisse o acesso
- ainda que guiado ou monitorado - às suas dependências. O mundo do
conhecimento ficaria mais que agradecido.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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