*Rangel Alves da Costa
Sou todo sertão. Nasci nas entranhas da
terra, sou de barro, sou do visgo do chão. Tenho no sangue a seiva do caroá, da
macambira, do mandacaru, do xiquexique, do pé de manjericão. Tenho na pele o
abrasado do sol, tenho na face o brilho grande da lua, tenha um destino
estrelado e uma estrada de pé no chão.
Sou sertão, sou todo sertão. Sou do mesmo visgo
do barro do pote de Dona Benvinda. Sou do mesmo couro curtido por Brasilino e
do ferro batido e dobrado por Galego do Alto. Sou do tecido grosso, e tão bonito
e tão nobre, à moda cangaceira e bordado por Zé de Bela. Sou de entranha
trançada na renda de bilros de Carmosina, Clotilde, Arací e Conceição de Laura.
Sou molhado da água do cantil de caçador de Seu Ermerindo, de Odon e João de
Terto. Sou da mesma obstinação desbravadora dos Lucas, dos Cardoso e dos Sousa.
Sou da mesma terra da incansável valentia de Zé de Julião. Sou o grito do gado
e o canto de aboio das vaqueiramas da história, por isso sou da raça vaqueira
de Abdias, de João Capoeira, de Mané Cante. Sou de espírito tão doce como a
cocada de Dona Quininha, de Cecília de Duié e de Naní. Sou do mesmo tacho do
arroz-doce de Baíta e da tábua de pirulitos de Luisinha. Sou daquelas delícias
preparadas por Maria de Miguel e dos cozidos de Maninho e de Dona Mirian. Sou
do sangue cangaceiro do meu tio Zabelê e da amizade cangaceira do meu avô
China. Sou tão sertanejo como todo sertanejo que um dia foi e ainda é. Sou
Rangel. De Dona Peta e de Alcino. Sou do Sertão e todo Sertão.
Sou todo sertão. Carrego nos meus braços e no
meu corpo as mesmas folhagens e os mesmos troncos da catingueira, da
quixabeira, da umburana, da craibreira, do umbuzeiro. Tenho no sangue aquele sol
mais ardente como aquele mesmo que ardia na pele e corpo da minha gente do
cangaço, filhos de minha terra: Sila, Adília, Cajazeira, Zabelê, Canário,
Enedina e tantos outros. Sou sertanejo, por isso também sou coiteiro, sou homem
de confiança do Capitão, assim como um dia foi Mané Félix, Adauto Félix e
Messias Caduda. Sou da roça e do mato, sou da cerca e do cercado, sou de
quintal e de cumeeira. Sou casebre antigo e sou sobrado esquecido no tempo.
Candeeiro de parede também sou. Sou tudo sertão desde a ribeira do rio à margem
do riacho, mas também sou do tanque e do barreiro, sou a pedra da velha lavadeira
e seu cantar bonito e plangente. Sou aquela andorinha que ainda voa pelos seus
sertões, sou a tem-tem, a fogo-pagô, até o pardal de pé de cumeeira também sou.
Sou do mato o mateiro, sou o pescador e sou o dono de todo mistério das noites
tão sertanejas. E como sou aquela viola de pinho e a canção dolente de
apaixonar. Sou o forró e o forrozeiro, a zabumba e o zabumbeiro, sou o xaxado e
o chiado da chinela em noite de leilão caipira. Sou ainda de um tempo de
esteira estendida na calçada e rede estendida na varanda. Tempo de compadre
chegando para um proseado e Dona Zefinha debulhando o feijão de corda para
comer com carne de bode. Sou desse sertão.
Sou todo sertão. Sou a comida mais simples,
sou o prato do dia, sou o tiquinho que se tem. Sou a farinha com rapadura, sou
a perna de preá tostado na brasa, sou a raspa do tacho, sou o resto de qualquer
coisa. Mas também sou a coalhada, sou o pirão de mulher parida, sou o mocotó,
sou o pedaço de toucinho abrasado, sou a tripa, sou o bucho. Quem bom ser assim,
ser todo e tão sertão. E do sertão a linhagem antiga, herança primeira desde o
pai do pai do pai de tudo que é pai. Sou um filho assim, um sertanejo que canta
mulher rendeira e ainda segui na história os passos do Capitão Lampião. Sou o
sertão catingueiro, da pedra grande, do tufo de mato, do preá escondido e do
cágado que só é avistado quando vai cair trovoada. Sou desse sertão de caminhos
e trilhas, de vereadas e curvas, de sombreados e árvores nuas. Um sertão
passarinheiro e um sertão tão triste sem passarinho. Sou desse voo sobre a
terra e sobre o alto, desse espantado voo pela devastação avistada por todo
lugar. O sertão da seca e da secura, da fome e da desvalia. Mas sem igual de se
nascer e se viver. Sou de um sertão assim. Sou todo sertão em mim.
Sou do sertão como um poema de sol e de
chuva, como uma canção verdejante e como gemido esturricado. Sertanejo eu sou
no mesmo eco de um aboio, de uma toada, de um repente. Que cheiro de feira, que
cheiro de mato, que coisa de café torrado, de cuscuz ralado, de tripa na banha
de porco. Coisa boa é ser sertanejo. E melhor ainda quando o sertão está dentro
da gente. Então tudo se chama alma e coração.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Vida genuína.
Postar um comentário