DIÁLOGO DAS AMIGAS PERFEITAS
Rangel Alves da Costa*
Porque eram perfeitas, donas de casa respeitadas, sem jamais as pessoas da cidade encontrarem motivos para falar um tantinho assim, é que se achavam um poço de seriedade e dignidade comportamental.
Porque eram assim tão perfeitas, sem nenhuma boca maldosa podendo pronunciar qualquer coisa que lhes atacasse a honra, é que se juntavam em confraria, todas as tardes, sentadas na porta de uma ou de outra para colocar a conversar em dia, mas tudo sem fofoca ou atinando para o que os outros fizeram ou deixaram de fazer. Tudo isso porque eram perfeitas...
Porque todos sabiam que ninguém era perfeito assim, logo desandaram a falar que entre as três amigas não havia uma só que prestasse, que cada uma era mais fofoqueira do que a outra e o que se conversava ali era tão cabeludo que pecado pequeno saía como inocente.
E tinham razão os que pensavam assim, pois a seriedade e honradez mostrada por cada uma perante as demais serviam muito mais como arma de defesa do que como algo realmente existente. Se uma se dizia séria demais, então a outra era mais séria ainda, e assim ali se completava o círculo das incorruptíveis.
De qualquer modo, quando sentavam ao entardecer na calçada, uma fazendo crochê, outra bordando uma colcha e ainda outra eternamente pintando as unhas, o diálogo das mulheres sérias corria solto, e tudo porque eram amigas perfeitas.
“Minha filha com aquela idade, já moça feita, nem pensa em namorar. Se saiu à mãe não há de namorar tão cedo. Quando namorei, sem ter essas coisas de beijo nem esfregamento, já foi quase na porta do altar. Com o primeiro homem que namorei casei. Não fiz como umas e outras que vão experimentando até arrumar o mais besta. Se saiu à mãe, então minha filha tá em bom caminho...”.
“A minha fala até em não casar. E tá certa ela. Os homens de hoje em dia só pensam naquilo e moça que se dá o respeito casa é virgem. Eu também nasci para o convento, para a vida religiosa, todo mundo dizia isso. Até diziam que eu parecia uma santinha. Mas o destino quis que eu encontrasse um esposo, então me casei. Mas casei virgem e fiquei nessa condição ainda três meses depois do casamento, e tudo por causa de uma promessa que fiz...”.
“Mas que promessa foi essa comadre?”
“Nem te conto comadre. Prometi a mim mesma que só ia me entregar ao meu esposo muito depois de casada, quando percebesse que ele não agüentava mais ficar sem fazer aquilo. Se eu percebesse que ele não ficava aflito, então era porque tava deitando com outra zinha da rua. Mas como eu percebi que o bichinho não agüentava mais, aí tudo aconteceu, mas com todo respeito...”.
“Respeito foi na minha lua-de-mel comadre. Pra que ele não me visse nua mandei apagar todas as luzes, mas mesmo assim ainda fiquei vestida de roupão o tempo todo. Não deixei que ele ficasse também nu não. Até hoje minha seriedade não permite que ele fique totalmente nu na minha frente...”.
“E como foi que vocês fizeram comadre, como foi que chegaram às vias de fato?”
“Como eu disse, no quarto totalmente escuro e nós dois ainda vestidos. Eu de roupa e ele de cueca, e se tirou depois nem percebi. Mas eu disse a ele que fizesse de conta que eu estava dormindo. E não me mexi de jeito nenhum, deixei tudo por conta dele. No momento não tava pensando noutra coisa senão em orações, até rezei duas ave-marias e três pai-nosso”.
“Eu nem falo nessas coisas. Meu marido também é muito sério com relação a isso, por isso me sinto ainda praticamente virgem e inocente, ao menos de pensamento. Deus me livre de ser como essas mulheres de hoje, que andam por aí parecendo umas depravadas. E o pior é que querem ser tão sérias e vivem até traindo os maridos. Você soube comadre?...”.
“Comadre sabe que odeio fofoca, mas conte logo...”.
“O crente da outra rua diz que não dorme de noite com a safada da casa ao lado uivando feito loba, e o pior que diz que tem outro bicho uivando com ela a noite todinha. Já a filha do vereador diz que emprenhou não sei de quem. Se saiu à mãe é que não vai saber mesmo. Dizem que nenhum dos seis filhos é filho do marido, e tudo com pai diferente. Deus me livre só em pensar numa coisa dessas...”.
“Vocês não sabem é de nada. E aquele do correio que dizem que deixou a mulher pra aviadar. Mais sorte teve a outra que foi pega fazendo não sei o que embaixo da batina do padre. Mas o padre é tão bonito, tão jovem, um tipão... Mas tudo com maior respeito, claro”.
“Por isso que acordo, vivo e durmo tranqüila, sem nada pra que os outros possam falar ao menos um tiquinho assim. Não gosto de fofoca e nem de safadeza...”
“Eu também comadre, eu também...”.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...
A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
Aos poucos (Poesia)
Aos poucos
Todos os dias
às sete horas da noite
arranco minha língua
e fico feliz
todos os dias
às oito horas da noite
costuro minha boca
e fico contente
todos os dias
às nove horas da noite
arranco do peito o coração
e fico confortado
todos os dias
às dez horas da noite
retiro os meus dois olhos
e fico embevecido
todos os dias
às onze horas da noite
dispenso as duas pernas
e fico inebriado
todos os dias
às doze horas da noite
desfaço dos dois braços
e fico realizado
mais tarde
às doze e meia
durmo e sonho com ela
e fico sem a cabeça.
Rangel Alves da Costa
Todos os dias
às sete horas da noite
arranco minha língua
e fico feliz
todos os dias
às oito horas da noite
costuro minha boca
e fico contente
todos os dias
às nove horas da noite
arranco do peito o coração
e fico confortado
todos os dias
às dez horas da noite
retiro os meus dois olhos
e fico embevecido
todos os dias
às onze horas da noite
dispenso as duas pernas
e fico inebriado
todos os dias
às doze horas da noite
desfaço dos dois braços
e fico realizado
mais tarde
às doze e meia
durmo e sonho com ela
e fico sem a cabeça.
Rangel Alves da Costa
DESCONHECIDOS - 38 (Conto)
DESCONHECIDOS – 38
Rangel Alves da Costa*
O veículo se dirigiu à praça principal de Mormaço, passou em frente à mansão iluminada do Coronel Demundo Apogeu e sua velha amada, a ex-madame e agora somente Sofie, e tomou o rumo da Pousada Acauã’s, a única que comportaria aquele número de viajantes, e olhe lá.
Mas que bela residência esta aqui, parecendo mais uma construção colonial, daqueles tempos em que os barões se esmeravam na arquitetura de suas moradias, importando da pedra portuguesa ao ladrilho mais distante, observou a viúva Doranice ao passar defronte ao casarão do velho e afamado coronel.
Por muita sorte conseguiram quartos para todos, ainda que alguns dos viajantes tivessem que se imprensar para se instalar num quarto só. Logicamente, se ali tivesse uma suíte presidencial esta seria da viúva, que ficou contentíssima por poder contar com um quartinho com exclusividade. Outro quarto foi destinado a Carlinhos e Yula, mais um para as mulheres, e mais dois para ser dividido entre o restante dos homens.
Como se sabe, além dos dois rapazinhos, a viúva estava acompanhada de duas secretárias particulares, um cozinheiro, dois ajudantes-de-ordens e um responsável por toda a logística da viagem. Assim, antes mesmo do banho, ela ordenou ao responsável pelo bem-estar do grupo que providenciasse um lauto jantar para todos. Não queria que o cozinheiro interferisse ainda, pois sabia que nada de especial poderia ser feito naquele momento.
A gerente da pensão se apresentou diante da velha senhora e pediu desculpas por, àquela hora, não poder apresentar um cardápio com um jantar mais variado, contudo poderia providenciar alguns alimentos que dispunham em quantidade suficiente.
E apresentou uma lista contendo galinha caipira cozida e assada, carne do sol com pirão de leite, ovos de galinha caipira, bolos de puba, de macaxeira, de ovos e de leite, manteiga da terra, pães fresquinhos feitos ali mesmo, cuscuz de milho ralado, batata doce, macaxeira, inhame, carne de churrasco de boi e de porco, além de carneiro cozido.
A viúva Doranice ficou verdadeiramente maravilhada com a diversidade e a qualidade da comida, ficando de água na boca e sentindo na imaginação cada prato e cada sabor, ainda que um tanto entristecida porque sabia que muito pouco daquilo poderia apreciar. Chamou o cozinheiro particular para que opinasse e o homem quase dá um faniquito.
Disse que seria impossível dispor de tanta comida assim de uma hora pra outra e queria porque queria invadir a cozinha da pousada para investigar a procedência dos alimentos e experimentar cada um daqueles produtos oferecidos. A gerente disse então que seria o maior prazer que ele a acompanhasse até a cozinha.
Verdade é que o homem entrou cozinha adentro e de olhos estupefatos foi fazendo a festa. Perguntou se tinha alguma aguardente por perto e foi ficando por ali silenciosamente guloso. Durante o jantar ninguém mais o viu e nem foi perguntado por onde andava.
Dona Doranice se contentou com uma coalhada maravilhosa que lhe foi oferecida. Há quanto tempo não experimentava aquele prato delicioso e verdadeiramente sertanejo. Pensou em se servir de mais um prato, porém achou melhor comer apenas um pedaço de bolo de macaxeira com café-com-leite. E a cada beliscada, a cada mordida recordava de muitos anos atrás, por ali mesmo, nessa mesma região que agora abraçava de alma e coração.
Como não gostava de deitar muito cedo, perguntou se Carlinhos e Yula tinham interesse em dar uma voltinha pela praça com ela. Se pelo dia a região inteira era puro calor e mormaço, e tal aspecto influenciando no nome daquela cidade, a partir do entardecer geralmente o clima mudava muito e um ar mais refrescante começava a soprar pelas campinas e invadia as ruas, calçadas e casas.
A praça mesmo estava com um clima ideal para um passeio. Como toda praça principal de cidade interiorana, ali ao lado estava a imponente matriz, centenária e majestosa, com delicada arquitetura de tempos muito mais prósperos. O coreto também muito antigo, porém bem conservado, ao centro, árvores espalhadas pelos quatro cantos, passarelas de lajotas para os caminhantes e banquinhos próprios para o conversar amigueiro, o proseado amoroso, para o descansar olhando a vida ao redor.
Doranice e seus amigos gostaram muito do local, tanto foi assim que não se preocuparam em sentar em nenhum daqueles bancos, mas sim caminhar por toda sua extensão e chegando até aos começos de outras ruas. E de repente Carlinhos perguntou se não era bom que entrassem um pouquinho na igreja para ver como ela era por dentro.
A viúva ficou encantada com a ideia e até reclamou de sim mesma porque não havia pensado nisso antes. Entraram pela porta enorme e logo avistaram um templo majestosamente simples, com traços de muitas riquezas em tempos mais antigos, porém agora se impondo pela simplicidade. Que encantamento conseguia passar ao espírito de todo aquele de bom coração que ali chegava!
“Que igreja maravilhosa, com a simplicidade estrutural, mas com uma infinita riqueza que meus olhos não conseguem enxergar. Que coisa admiravelmente bela e encantadora, nessa imensidão faltando de tudo e parece-me que até bancos para os fiéis sentarem, mas que contém uma coisa que não consigo identificar no momento. Parece-me que é essa magia da fé, do fervor religioso, das coisas divinas que emanam aqui. E sinto anjos, sinto a luz divina, sinto a benção recaindo sobre todos nós”. Disse Dona Doranice aos meninos, completamente comovida.
Em seguida Yula falou: “Mas parece que o povo está um pouco distante de sua igreja, pois vejam Dona Doranice e Carlinhos, apenas uma pessoa ali sentada na frente, talvez orando silenciosamente”. “É verdade meu filho, mas ainda bem que a igreja não está sem ninguém. Aquela pessoa tão contrita saberá muito bem os motivos de estar ali em profunda oração. Parece que já fez suas preces e vai retornar ao seu lar, também já é noite, e muitas pessoas preferem televisão à igreja, infelizmente. Lá vem ela...”.
Assim que levantou e começou a andar por entre a fileira de bancos, ao se aproximar do pequeno grupo a mulher parou e ficou mirando nos olhos de Doranice. Quanto mais olhava mais os olhos brilhavam, o rosto avermelhava, a surpresa tomava conta de todo o corpo. Do mesmo modo se sentiu a viúva e disse a si mesma, nervosa: “Meu Deus, mas não pode ser!”.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
O veículo se dirigiu à praça principal de Mormaço, passou em frente à mansão iluminada do Coronel Demundo Apogeu e sua velha amada, a ex-madame e agora somente Sofie, e tomou o rumo da Pousada Acauã’s, a única que comportaria aquele número de viajantes, e olhe lá.
Mas que bela residência esta aqui, parecendo mais uma construção colonial, daqueles tempos em que os barões se esmeravam na arquitetura de suas moradias, importando da pedra portuguesa ao ladrilho mais distante, observou a viúva Doranice ao passar defronte ao casarão do velho e afamado coronel.
Por muita sorte conseguiram quartos para todos, ainda que alguns dos viajantes tivessem que se imprensar para se instalar num quarto só. Logicamente, se ali tivesse uma suíte presidencial esta seria da viúva, que ficou contentíssima por poder contar com um quartinho com exclusividade. Outro quarto foi destinado a Carlinhos e Yula, mais um para as mulheres, e mais dois para ser dividido entre o restante dos homens.
Como se sabe, além dos dois rapazinhos, a viúva estava acompanhada de duas secretárias particulares, um cozinheiro, dois ajudantes-de-ordens e um responsável por toda a logística da viagem. Assim, antes mesmo do banho, ela ordenou ao responsável pelo bem-estar do grupo que providenciasse um lauto jantar para todos. Não queria que o cozinheiro interferisse ainda, pois sabia que nada de especial poderia ser feito naquele momento.
A gerente da pensão se apresentou diante da velha senhora e pediu desculpas por, àquela hora, não poder apresentar um cardápio com um jantar mais variado, contudo poderia providenciar alguns alimentos que dispunham em quantidade suficiente.
E apresentou uma lista contendo galinha caipira cozida e assada, carne do sol com pirão de leite, ovos de galinha caipira, bolos de puba, de macaxeira, de ovos e de leite, manteiga da terra, pães fresquinhos feitos ali mesmo, cuscuz de milho ralado, batata doce, macaxeira, inhame, carne de churrasco de boi e de porco, além de carneiro cozido.
A viúva Doranice ficou verdadeiramente maravilhada com a diversidade e a qualidade da comida, ficando de água na boca e sentindo na imaginação cada prato e cada sabor, ainda que um tanto entristecida porque sabia que muito pouco daquilo poderia apreciar. Chamou o cozinheiro particular para que opinasse e o homem quase dá um faniquito.
Disse que seria impossível dispor de tanta comida assim de uma hora pra outra e queria porque queria invadir a cozinha da pousada para investigar a procedência dos alimentos e experimentar cada um daqueles produtos oferecidos. A gerente disse então que seria o maior prazer que ele a acompanhasse até a cozinha.
Verdade é que o homem entrou cozinha adentro e de olhos estupefatos foi fazendo a festa. Perguntou se tinha alguma aguardente por perto e foi ficando por ali silenciosamente guloso. Durante o jantar ninguém mais o viu e nem foi perguntado por onde andava.
Dona Doranice se contentou com uma coalhada maravilhosa que lhe foi oferecida. Há quanto tempo não experimentava aquele prato delicioso e verdadeiramente sertanejo. Pensou em se servir de mais um prato, porém achou melhor comer apenas um pedaço de bolo de macaxeira com café-com-leite. E a cada beliscada, a cada mordida recordava de muitos anos atrás, por ali mesmo, nessa mesma região que agora abraçava de alma e coração.
Como não gostava de deitar muito cedo, perguntou se Carlinhos e Yula tinham interesse em dar uma voltinha pela praça com ela. Se pelo dia a região inteira era puro calor e mormaço, e tal aspecto influenciando no nome daquela cidade, a partir do entardecer geralmente o clima mudava muito e um ar mais refrescante começava a soprar pelas campinas e invadia as ruas, calçadas e casas.
A praça mesmo estava com um clima ideal para um passeio. Como toda praça principal de cidade interiorana, ali ao lado estava a imponente matriz, centenária e majestosa, com delicada arquitetura de tempos muito mais prósperos. O coreto também muito antigo, porém bem conservado, ao centro, árvores espalhadas pelos quatro cantos, passarelas de lajotas para os caminhantes e banquinhos próprios para o conversar amigueiro, o proseado amoroso, para o descansar olhando a vida ao redor.
Doranice e seus amigos gostaram muito do local, tanto foi assim que não se preocuparam em sentar em nenhum daqueles bancos, mas sim caminhar por toda sua extensão e chegando até aos começos de outras ruas. E de repente Carlinhos perguntou se não era bom que entrassem um pouquinho na igreja para ver como ela era por dentro.
A viúva ficou encantada com a ideia e até reclamou de sim mesma porque não havia pensado nisso antes. Entraram pela porta enorme e logo avistaram um templo majestosamente simples, com traços de muitas riquezas em tempos mais antigos, porém agora se impondo pela simplicidade. Que encantamento conseguia passar ao espírito de todo aquele de bom coração que ali chegava!
“Que igreja maravilhosa, com a simplicidade estrutural, mas com uma infinita riqueza que meus olhos não conseguem enxergar. Que coisa admiravelmente bela e encantadora, nessa imensidão faltando de tudo e parece-me que até bancos para os fiéis sentarem, mas que contém uma coisa que não consigo identificar no momento. Parece-me que é essa magia da fé, do fervor religioso, das coisas divinas que emanam aqui. E sinto anjos, sinto a luz divina, sinto a benção recaindo sobre todos nós”. Disse Dona Doranice aos meninos, completamente comovida.
Em seguida Yula falou: “Mas parece que o povo está um pouco distante de sua igreja, pois vejam Dona Doranice e Carlinhos, apenas uma pessoa ali sentada na frente, talvez orando silenciosamente”. “É verdade meu filho, mas ainda bem que a igreja não está sem ninguém. Aquela pessoa tão contrita saberá muito bem os motivos de estar ali em profunda oração. Parece que já fez suas preces e vai retornar ao seu lar, também já é noite, e muitas pessoas preferem televisão à igreja, infelizmente. Lá vem ela...”.
Assim que levantou e começou a andar por entre a fileira de bancos, ao se aproximar do pequeno grupo a mulher parou e ficou mirando nos olhos de Doranice. Quanto mais olhava mais os olhos brilhavam, o rosto avermelhava, a surpresa tomava conta de todo o corpo. Do mesmo modo se sentiu a viúva e disse a si mesma, nervosa: “Meu Deus, mas não pode ser!”.
continua...
Poeta e cronista
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domingo, 27 de fevereiro de 2011
DIÁRIO DA DESPEDIDA (Crônica)
DIÁRIO DA DESPEDIDA
Rangel Alves da Costa*
Ao adormecer sonhou um sonho tão bonito como jamais havia sonhado em seu longo percurso de vida.
Sonhou que era uma bela rainha, morando num palácio lindo, cujo jardim de tão extraordinariamente belo se confundia com a mais bela imaginação.
Vivia no luxo e no fausto, passeando pelos canteiros floridos e pisando em gramas verdejantes e macias feito algodão doce.
Ouviu alguém gritar no castelo e era um chamado aflito, e dizia ainda que arrumasse logo as malas que iam partir com urgência e nunca mais voltar ali.
Dizia que na vida não havia mais lugar para princesas, castelos nem fantasias e que dali em diante teriam que viver num mundo de verdade.
E disse ainda que se despedisse de vez da ilusão, pois o seu passo seguinte seria enfrentar a vida como pessoa normal, portanto na desilusão, na desesperança e no sofrimento.
Na vida de tantas lutas, de tanto fazer sem ter nenhum reconhecimento, o seu consolo seria se cansar exaustivamente da labuta do dia para adormecer um sono só e, ao invés de qualquer sonho, lhe tomar os pesadelos e os suores da noite.
E assim acordou sobressaltada na madrugada. Nem o galo havia cantado e saiu tateando pela escuridão do quarto em busca de qualquer luz. Lembrou de abrir a janela. Que bom que havia uma janela...
Olhou adiante e lá fora somente o silêncio do tempo e o barulho dos bichos. Ouvia bem o piar do anum, o farfalhar da árvore, o ruflar de asas já tão apressadas, o berregar do cabrito, o latir do cachorro e o crocitar do carcará. Lembrou quando era bem jovem e remedava cada passarinho e cada bicho.
Deixou a janela aberta e se dirigiu até a cozinha. Abriu a porta, espantou a galinha que estranhamente ainda dormia ao lado. Saiu mais pra fora, levantou a vista para o alto e viu o mundão que já tomava jeito de amanhecer.
No jeito daquela barra não tinha como chover por aqueles dias. Se demorasse mais alguns meses sem pingar água nenhum bicho ia agüentar mais. A mataria já estava toda cinzenta; água em tanque e em barreiro não existia mais. Até o pote tava com sede, moringa estava bebendo do barro.
Fazer o que, se não tinha mais forças pra nada, se não agüentava nem andar mais duas léguas pra ir a qualquer lugar? Se o mundo dissesse que ia acabar começando por ali, tinha que esperar que tudo acontecesse sem poder sair do lugar.
Destino é destino, minha gente; destino é destino; mas sorte não é não é pra todo mundo não. Se tem gente que nasce rochedo, depois vira pedra de estrada, pra mais tarde virar pó e poeira é porque deu sorte, mas tem gente que não é assim não. Nasce na pobreza, a vida nunca melhora em nada e tem certeza que vai morrer na miséria maior ainda.
Essa era vida dela. Nasceu sem ter nada e até hoje nada tinha, ainda que as mãos fossem totalmente calejadas, a pele marcada pelos combates no campo, as pernas estropiadas de não suportar mais em pé, mostrassem que trabalhou na maior dureza por toda a vida.
Trabalhou sim, na maior dureza por toda a vida. Só não foi quenga, mas o resto pode dizer de sua luta. E o que restou agora, sozinha, doente, com essa idade, sem ter mais esperança de nada. E é isso que a pessoa merece?
Juntou gravetos, jogou um pouquinho de querosene, acendeu o fósforo e esperou a chama subir e depois arrefecer. Gostava de café torrado no pilão, e assim aquele aroma delicioso de café saiu da cozinha e se espalhou pelo arredor.
Pegou a caneca e foi se assentar com sacrifício num banquinho debaixo dum pé de pau, logo em frente da casinha. Quase não chega; as pernas não davam mais. Não demorou muito e as lágrimas foram se ajuntando aonde havia café.
E tudo tão triste, solitário, angustiante. E veio novamente o sono, sono de dormir ali mesmo. Foi deitar mais um pouquinho na cama e quis sonhar com a morte para ver se era melhor que a vida.
E conseguiu. Só que não acordou mais...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Ao adormecer sonhou um sonho tão bonito como jamais havia sonhado em seu longo percurso de vida.
Sonhou que era uma bela rainha, morando num palácio lindo, cujo jardim de tão extraordinariamente belo se confundia com a mais bela imaginação.
Vivia no luxo e no fausto, passeando pelos canteiros floridos e pisando em gramas verdejantes e macias feito algodão doce.
Ouviu alguém gritar no castelo e era um chamado aflito, e dizia ainda que arrumasse logo as malas que iam partir com urgência e nunca mais voltar ali.
Dizia que na vida não havia mais lugar para princesas, castelos nem fantasias e que dali em diante teriam que viver num mundo de verdade.
E disse ainda que se despedisse de vez da ilusão, pois o seu passo seguinte seria enfrentar a vida como pessoa normal, portanto na desilusão, na desesperança e no sofrimento.
Na vida de tantas lutas, de tanto fazer sem ter nenhum reconhecimento, o seu consolo seria se cansar exaustivamente da labuta do dia para adormecer um sono só e, ao invés de qualquer sonho, lhe tomar os pesadelos e os suores da noite.
E assim acordou sobressaltada na madrugada. Nem o galo havia cantado e saiu tateando pela escuridão do quarto em busca de qualquer luz. Lembrou de abrir a janela. Que bom que havia uma janela...
Olhou adiante e lá fora somente o silêncio do tempo e o barulho dos bichos. Ouvia bem o piar do anum, o farfalhar da árvore, o ruflar de asas já tão apressadas, o berregar do cabrito, o latir do cachorro e o crocitar do carcará. Lembrou quando era bem jovem e remedava cada passarinho e cada bicho.
Deixou a janela aberta e se dirigiu até a cozinha. Abriu a porta, espantou a galinha que estranhamente ainda dormia ao lado. Saiu mais pra fora, levantou a vista para o alto e viu o mundão que já tomava jeito de amanhecer.
No jeito daquela barra não tinha como chover por aqueles dias. Se demorasse mais alguns meses sem pingar água nenhum bicho ia agüentar mais. A mataria já estava toda cinzenta; água em tanque e em barreiro não existia mais. Até o pote tava com sede, moringa estava bebendo do barro.
Fazer o que, se não tinha mais forças pra nada, se não agüentava nem andar mais duas léguas pra ir a qualquer lugar? Se o mundo dissesse que ia acabar começando por ali, tinha que esperar que tudo acontecesse sem poder sair do lugar.
Destino é destino, minha gente; destino é destino; mas sorte não é não é pra todo mundo não. Se tem gente que nasce rochedo, depois vira pedra de estrada, pra mais tarde virar pó e poeira é porque deu sorte, mas tem gente que não é assim não. Nasce na pobreza, a vida nunca melhora em nada e tem certeza que vai morrer na miséria maior ainda.
Essa era vida dela. Nasceu sem ter nada e até hoje nada tinha, ainda que as mãos fossem totalmente calejadas, a pele marcada pelos combates no campo, as pernas estropiadas de não suportar mais em pé, mostrassem que trabalhou na maior dureza por toda a vida.
Trabalhou sim, na maior dureza por toda a vida. Só não foi quenga, mas o resto pode dizer de sua luta. E o que restou agora, sozinha, doente, com essa idade, sem ter mais esperança de nada. E é isso que a pessoa merece?
Juntou gravetos, jogou um pouquinho de querosene, acendeu o fósforo e esperou a chama subir e depois arrefecer. Gostava de café torrado no pilão, e assim aquele aroma delicioso de café saiu da cozinha e se espalhou pelo arredor.
Pegou a caneca e foi se assentar com sacrifício num banquinho debaixo dum pé de pau, logo em frente da casinha. Quase não chega; as pernas não davam mais. Não demorou muito e as lágrimas foram se ajuntando aonde havia café.
E tudo tão triste, solitário, angustiante. E veio novamente o sono, sono de dormir ali mesmo. Foi deitar mais um pouquinho na cama e quis sonhar com a morte para ver se era melhor que a vida.
E conseguiu. Só que não acordou mais...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Flores e tristezas (Poesia)
Flores e tristezas
As flores estão tristes
num jardim alegre
numa manhã alegre
num mundo alegre
mas tanta alegria
não afasta a agonia
das flores que vi
e as flores estão tristes
porque no dia seguinte
o rapazinho apaixonado
não iria aparecer
o tristonho poeta
não iria aparecer
o motivo do amor
iria desaparecer
o jardim
talvez nem existisse
porque ela
ela juntou a cortina
ela fechou a janela
e foi embora
foi embora a flor
entristecendo as flores.
Rangel Alves da Costa
As flores estão tristes
num jardim alegre
numa manhã alegre
num mundo alegre
mas tanta alegria
não afasta a agonia
das flores que vi
e as flores estão tristes
porque no dia seguinte
o rapazinho apaixonado
não iria aparecer
o tristonho poeta
não iria aparecer
o motivo do amor
iria desaparecer
o jardim
talvez nem existisse
porque ela
ela juntou a cortina
ela fechou a janela
e foi embora
foi embora a flor
entristecendo as flores.
Rangel Alves da Costa
DESCONHECIDOS - 37 (Conto)
DESCONHECIDOS – 37
Rangel Alves da Costa*
Por ordem da principal passageira, o veículo era conduzido sem pressa pelas estradas agrestes. Dona Doranice não gostava de nada feito apressadamente, principalmente uma viagem por rodovias desconhecidas.
Pedia sempre que ficassem com os olhos atentos para as paisagens, para os cenários lá fora. E dizia que quanto mais prosseguissem mais as realidades e as aparências iam se modificando, passando de uma situação mais vivaz e colorida a um estágio mais densamente sombrio.
Assim, pela rodovia asfaltada passavam por grandes construções, fazendas imensas, rebanhos e mais rebanhos pastando por terras verdejantes, mas também, de certa altura em diante, surgindo pelos lados e adiante um mundo acinzentando, mais quente, mais sufocante, com muito mais aspecto de natureza entristecida.
Apenas uma ou outra propriedade mais imponente, com construções vistosas, currais feitos com madeira de lei, cancelas bonitas nas entradas, mostrando que ali a riqueza foi prevalecente em algum momento. São muitas histórias assim, de grandes latifúndios e seus coronéis em meio a criatórios de pé e cobra.
No restante, a tela descolorida esquecida pelo pintor. Pequenas fazendas, roças, terrenos, casas comuns, casebres, taperas. Animais agora raquíticos, em menor número, quase inexistentes, um boi, uma vaquinha, um cachorro, um papagaio pelado, um chiqueiro de porco abandono, uma galinha ciscando pela malhada. E a ventania quente soprando, levando pra bem longe as folhagens ressequidas.
As cidades, os lugares, os povoados, tudo também ia se modificando à medida que iam entrando no verdadeiro sertão. Da janela do veículo podiam avistar crianças quase sem roupa correndo de um lado para o outro pelas cercanias das propriedaes. Um homem montava um cavalo, outro um jumento, mais adiante um seguia carregando uma enxada no ombro. Uma mulher levava uma lata na cabeça, outra segurava pela mão algumas espigas secas de milho, enquanto outra colocava roupas para enxugar num varal de beira de estrada.
Crianças eram avistadas por todos os lugares, chegando a parecer que por ali existiam muito mais meninos e meninas do que adultos. Elas vendiam quinquilharias em pequenas barracas, tapavam buracos de estrada em troca de qualquer coisa, trabalhavam na terra feito gente grande, se enfumaçavam toxicamente no calor das olarias que eram muitas, apenas erguendo as mãos para os veículos que passavam, pedindo sempre uma esmolinha pelo amor de Deus.
Mas eram poucas, muito poucas, aquelas que eram avistadas mais nutridas, mais rechonchudinhas, correndo felizes, brincando de bola ou de boneca, vivendo suas criancices. Mas também, meu Deus, muitas daquelas criaturinhas praticamente saíam do berço e dos braços da mãe para se tornarem já adultos, velhos, sofridos, infinitamente entristecidos.
Doranice na esquecia de quando era criança, vivendo todas as cruéis circunstancias daquela região. Em época de chuva e colheita, de pequena lavoura, mas de abóbora e melancia, quiabo e maxixe, mandioca e batata, criança ainda tinha o que comer. Ora, os pratos trincavam, o fogareiro era aceso, pelo ar ia subindo aquele cheiro gostoso de qualquer coisa.
Se o pai plantava milho, mais tarde ainda tinha o cuscuz e a canjica. Mas quando nada disso era possível, então a vida era um deus-dará. E o sofrimento se alargava com tudo isso, pois os pais sofriam por não poder alimentar os pequeninos que muitas vezes choravam famintos, e estes sofriam pela idade que pedia alimento e sem ninguém que os satisfizesse.
Ah, tempos, ah, tempos, ficava pensando a viúva, com o olhar marejado se estendendo pelas distâncias sertanejas. Mas o bom é que estava ali novamente, dizia consigo mesma e reconfortando-se. Estava ali novamente, num retorno muito diferente do que alguém poderia imaginar, para pisar outra vez no seu chão, sentir a poeira de sua terra e o cheiro de sua gente. O cheiro de gente era seu aroma preferido, ainda que acostumada com perfumes franceses.
Tudo por ali era sua vida, somente agora sentia isso mais fortemente por dentro. Desde o Coité, onde havia nascido, passando pela Ribança, entrando na Quatro Tempos e saindo pelas beiradas de Mormaço, tudo ali era sua casa. E a filha sentia o maior prazer do mundo em estar retornando. Já muito velha, sim, porém disposta a renascer no que fosse possível.
O Coité, onde ela havia nascido, fazia parte de uma confluência de municípios que formavam o chamado Polígono de São Pedrito, justamente porque essas povoações, de uma forma ou de outra, ficavam às margens ou próximas ao Rio São Pedrito, tendo Mormaço como principal cidade e município.
Preocupados com o bem-estar da patroa, os assessores logo procuraram saber do motorista do micro-ônibus qual o melhor lugar para pernoitarem. Depois daquela longa viagem todos estavam cansados e exaustos, principalmente Dona Doranice, pela idade avançada e pelas tantas emoções vividas nas recordações. Não havia cidade mais apropriada senão Mormaço, informou o motorista. E para lá se dirigiram.
Já próximo à cidade, mas andando por uma estradinha de chão mais adiante, avistaram uma pessoa que mais parecia um desses errantes que sai pelo mundo em busca de si mesmo. Cabelo comprido e desgrenhado, barba longa, maltrapilho, descalço, sem uma cor na pele que pudesse ser distinguida, carregando apenas um pequeno saco nas costas.
Era o profeta Aristeu, procurando caminho para chegar até as barrancas do São Pedrito. Seria ali que tudo deveria acontecer. Tinha certeza disso.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Por ordem da principal passageira, o veículo era conduzido sem pressa pelas estradas agrestes. Dona Doranice não gostava de nada feito apressadamente, principalmente uma viagem por rodovias desconhecidas.
Pedia sempre que ficassem com os olhos atentos para as paisagens, para os cenários lá fora. E dizia que quanto mais prosseguissem mais as realidades e as aparências iam se modificando, passando de uma situação mais vivaz e colorida a um estágio mais densamente sombrio.
Assim, pela rodovia asfaltada passavam por grandes construções, fazendas imensas, rebanhos e mais rebanhos pastando por terras verdejantes, mas também, de certa altura em diante, surgindo pelos lados e adiante um mundo acinzentando, mais quente, mais sufocante, com muito mais aspecto de natureza entristecida.
Apenas uma ou outra propriedade mais imponente, com construções vistosas, currais feitos com madeira de lei, cancelas bonitas nas entradas, mostrando que ali a riqueza foi prevalecente em algum momento. São muitas histórias assim, de grandes latifúndios e seus coronéis em meio a criatórios de pé e cobra.
No restante, a tela descolorida esquecida pelo pintor. Pequenas fazendas, roças, terrenos, casas comuns, casebres, taperas. Animais agora raquíticos, em menor número, quase inexistentes, um boi, uma vaquinha, um cachorro, um papagaio pelado, um chiqueiro de porco abandono, uma galinha ciscando pela malhada. E a ventania quente soprando, levando pra bem longe as folhagens ressequidas.
As cidades, os lugares, os povoados, tudo também ia se modificando à medida que iam entrando no verdadeiro sertão. Da janela do veículo podiam avistar crianças quase sem roupa correndo de um lado para o outro pelas cercanias das propriedaes. Um homem montava um cavalo, outro um jumento, mais adiante um seguia carregando uma enxada no ombro. Uma mulher levava uma lata na cabeça, outra segurava pela mão algumas espigas secas de milho, enquanto outra colocava roupas para enxugar num varal de beira de estrada.
Crianças eram avistadas por todos os lugares, chegando a parecer que por ali existiam muito mais meninos e meninas do que adultos. Elas vendiam quinquilharias em pequenas barracas, tapavam buracos de estrada em troca de qualquer coisa, trabalhavam na terra feito gente grande, se enfumaçavam toxicamente no calor das olarias que eram muitas, apenas erguendo as mãos para os veículos que passavam, pedindo sempre uma esmolinha pelo amor de Deus.
Mas eram poucas, muito poucas, aquelas que eram avistadas mais nutridas, mais rechonchudinhas, correndo felizes, brincando de bola ou de boneca, vivendo suas criancices. Mas também, meu Deus, muitas daquelas criaturinhas praticamente saíam do berço e dos braços da mãe para se tornarem já adultos, velhos, sofridos, infinitamente entristecidos.
Doranice na esquecia de quando era criança, vivendo todas as cruéis circunstancias daquela região. Em época de chuva e colheita, de pequena lavoura, mas de abóbora e melancia, quiabo e maxixe, mandioca e batata, criança ainda tinha o que comer. Ora, os pratos trincavam, o fogareiro era aceso, pelo ar ia subindo aquele cheiro gostoso de qualquer coisa.
Se o pai plantava milho, mais tarde ainda tinha o cuscuz e a canjica. Mas quando nada disso era possível, então a vida era um deus-dará. E o sofrimento se alargava com tudo isso, pois os pais sofriam por não poder alimentar os pequeninos que muitas vezes choravam famintos, e estes sofriam pela idade que pedia alimento e sem ninguém que os satisfizesse.
Ah, tempos, ah, tempos, ficava pensando a viúva, com o olhar marejado se estendendo pelas distâncias sertanejas. Mas o bom é que estava ali novamente, dizia consigo mesma e reconfortando-se. Estava ali novamente, num retorno muito diferente do que alguém poderia imaginar, para pisar outra vez no seu chão, sentir a poeira de sua terra e o cheiro de sua gente. O cheiro de gente era seu aroma preferido, ainda que acostumada com perfumes franceses.
Tudo por ali era sua vida, somente agora sentia isso mais fortemente por dentro. Desde o Coité, onde havia nascido, passando pela Ribança, entrando na Quatro Tempos e saindo pelas beiradas de Mormaço, tudo ali era sua casa. E a filha sentia o maior prazer do mundo em estar retornando. Já muito velha, sim, porém disposta a renascer no que fosse possível.
O Coité, onde ela havia nascido, fazia parte de uma confluência de municípios que formavam o chamado Polígono de São Pedrito, justamente porque essas povoações, de uma forma ou de outra, ficavam às margens ou próximas ao Rio São Pedrito, tendo Mormaço como principal cidade e município.
Preocupados com o bem-estar da patroa, os assessores logo procuraram saber do motorista do micro-ônibus qual o melhor lugar para pernoitarem. Depois daquela longa viagem todos estavam cansados e exaustos, principalmente Dona Doranice, pela idade avançada e pelas tantas emoções vividas nas recordações. Não havia cidade mais apropriada senão Mormaço, informou o motorista. E para lá se dirigiram.
Já próximo à cidade, mas andando por uma estradinha de chão mais adiante, avistaram uma pessoa que mais parecia um desses errantes que sai pelo mundo em busca de si mesmo. Cabelo comprido e desgrenhado, barba longa, maltrapilho, descalço, sem uma cor na pele que pudesse ser distinguida, carregando apenas um pequeno saco nas costas.
Era o profeta Aristeu, procurando caminho para chegar até as barrancas do São Pedrito. Seria ali que tudo deveria acontecer. Tinha certeza disso.
continua...
Poeta e cronista
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sábado, 26 de fevereiro de 2011
A CORRESPONDÊNCIA DE BEN STRIK (Crônica)
A CORRESPONDÊNCIA DE BEN STRIK
Rangel Alves da Costa*
Ao entardecer deste último dia 23, fevereiro de 2011, estava eu tecendo meus escritos com pedra e cinzel quando me chega uma correspondência de longe, bem longe, e enviada por alguém que jamais imaginaria fosse lembrar-se de minha existência nesses tristes trópicos.
Com efeito, a missiva partiu da Holanda como cartucheira e munição para as minhas guerras de sempre. Insurgente como sempre sou, vez que para mim todo estabelecido com o tempo é corrompido, as palavras que me chegaram animaram o combalido combatente a reerguer as trincheiras na guerra chamada verdade. Depois conto por que.
Em outras vertentes do mundo, lá pelas bandas do continente europeu, nos chamados países baixos, atualmente reside essa pessoa que passo a citar agora. Trata-se de Pater Bernard Strik, ou simplesmente Ben Strik, um senhor de 88 anos, ex-partisano da guerra de 40-45, padre casado, que dedicou boa parte de sua vida sacerdotal à difusão de uma igreja verdadeiramente mais presente junto às populações pobres e carentes, principalmente nas regiões mais distantes e esquecidas do Brasil.
Sacerdote, escritor, cantor, palestrante e senhor de todas as lutas, nasceu em 1923 e lutou contra os nazistas alemães na Segunda Guerra Mundial. Sua luta contra o nazismo custou dois anos num campo de concentração na Alemanha. Depois se tornou sacerdote salesiano e em 1950 partiu para o Brasil onde trabalhou até 1972 entre indígenas, jovens e camponeses.
Voltando à Holanda, casa-se (Patty, sua esposa) e cria, já completados 75 anos, três fundações de ajuda ao Brasil: Brasil op Weg, Frei Tito de Alencar Lima e Brasilhoeve. Adepto e defensor da Teologia da Libertação, a partir daí recomeça sua peregrinação missionária pelo país, agora para sentir os resultados das sementes que havia plantado. Sempre inspirado na visão de uma igreja materialmente construtiva, se lançou ainda a outros projetos, catando recursos aqui e ali, para levar adiante seu sonho de transformação social.
Como afirmado, Ben Strik é um missionário inconformado, consciente de sua importância na criação e difusão de inúmeras obras religiosas e sociais. E fazia isto porque conhecia os problemas de perto, não se permitindo ficar somente dentro da igreja sem compartilhar dos problemas dos fiéis ao redor e muito mais distantes.
Ao chegar ao Brasil para cumprir sua missão, aqui estudou e trabalhou 22 anos como padre Salesiano de Dom Bosco. O reconhecimento pela sua dedicação às causas missionárias pode ser visto na profunda amizade que adquiriu junto a Dom Paulo Evaristo Arns, que com festejou naquele país baixo o segundo lustro de uma de suas fundações. Do mesmo modo mantinha estreitos laços de amizade com Dom José Brandão de Castro, falecido arcebispo da Diocese de Própria, em Sergipe, e um dos religiosos mais influentes do Nordeste.
Na sua peregrinação na aridez sertaneja, formou com os grupos de base da igreja católica uma verdadeira cruzada para ajudar os fiéis a conquistaram meios de sobrevivência digna, através do trabalho e da produção. Neste sentido, em 1986 esteve presente na primeira ocupação que os trabalhadores empobrecidos fizeram na improdutiva fazenda Barra da Onça, município de Poço Redondo, em Sergipe. Até hoje o MST reconhece o seu apoio para que as outras grandes conquistas se tornassem possíveis.
Natural da Holanda, neste e em outros países europeus empreendeu uma verdadeira via-crucis para adquirir recursos e investimentos para serem repassados às obras sociais que criou por todo o país. Neste sentido, criou ONG’s, Associações e Fundações que continuam dando excelentes frutos em estados como Rondônia.
A descoberta de semelhanças marcantes entre a sua vida e a de Frei Tito de Alencar Lima, deu a Ben Strik a idéia de fazer ouvir as razões que o levaram a dar sua vida por seus compatriotas oprimidos e abandonados. Daí esse seu inconformismo e luta para mudar a realidade social opressora.
Foi essa semelhança com o Frei Tito que o levou a escrever a biografia desse religioso dominicano vitimado pelas perseguições e atrocidades da ditadura militar. Originalmente escrito em holandês e depois traduzido para o português, “Morrer para Viver” foi prefaciado por Frei Betto e lançado no Brasil em 2009.
Frei Tito contava 28 anos quando morreu na pequena Évreux, nos arredores de Lyon, na França. O Brasil estava longe, mas o frei dominicano carregava na bagagem a memória dos sofrimentos que passara no País. Corria no ano de 1974, e com ele se chegava à triste marca de uma década do regime militar brasileiro. O sofrimento ao qual Frei Tito havia sido submetido - variados tipos de tortura física e psicológica - ainda era imposto a muitos dos opositores do regime. Ainda atormentado pelas dores da tortura nas mãos dos militares, Frei Tito deu fim a sua própria vida em 10 de fevereiro daquele ano. Registrou num bilhete: "só posso viver se morrer".
Em síntese, “Morrer para Viver” descreve a biografia de Frei Tito de Alencar Lima desde seu nascimento em 1945 até sua morte na França em 1974. Sua maneira de pensar, seus ideais. Sua luta contra a ditadura e seu exílio. Seu sofrimento depois das torturas físicas e mentais e sua morte. Para compreender seus motivos o livro esboça a negativa histórica do Brasil desde 1500 até hoje como a causa de seu idealismo fabuloso, como bem acentua a apresentação do livro.
Contudo, a correspondência que Bem Strik me dirigiu não foi para falar de sua obra nem dos seus planos, embora tenha me revelado que está concluindo um novo livro. Contou-me ter lido um artigo meu que citava sobre o prefeito municipal de Poço Redondo, Frei Enoque Salvador de Melo. Daí sentir interesse em fazer algumas observações sobre o caráter desse político-religioso e o fez com precisão.
Tais aspectos depois contarei, mas adianto que a indignação maior de Bem Strik com relação ao Frei Enoque diz respeito principalmente aos abusos e absurdos cometidos por este quando do planejamento e construção do centro de Formação Agrícola Dom José Brandão de Castro, localizado em Poço Redondo, no sertão sergipano.
Como não estava sendo permitido que movimentasse o dinheiro que era arrecadado, através de ONG’s e outros mecanismos do exterior, para a construção do Centro de Formação Agrícola, Frei Enoque boicotou até quando pôde a referida obra, numa verdadeira trama de arrepiar.
Mas tais aspectos, como já afirmei, serão contados detalhadamente depois.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Ao entardecer deste último dia 23, fevereiro de 2011, estava eu tecendo meus escritos com pedra e cinzel quando me chega uma correspondência de longe, bem longe, e enviada por alguém que jamais imaginaria fosse lembrar-se de minha existência nesses tristes trópicos.
Com efeito, a missiva partiu da Holanda como cartucheira e munição para as minhas guerras de sempre. Insurgente como sempre sou, vez que para mim todo estabelecido com o tempo é corrompido, as palavras que me chegaram animaram o combalido combatente a reerguer as trincheiras na guerra chamada verdade. Depois conto por que.
Em outras vertentes do mundo, lá pelas bandas do continente europeu, nos chamados países baixos, atualmente reside essa pessoa que passo a citar agora. Trata-se de Pater Bernard Strik, ou simplesmente Ben Strik, um senhor de 88 anos, ex-partisano da guerra de 40-45, padre casado, que dedicou boa parte de sua vida sacerdotal à difusão de uma igreja verdadeiramente mais presente junto às populações pobres e carentes, principalmente nas regiões mais distantes e esquecidas do Brasil.
Sacerdote, escritor, cantor, palestrante e senhor de todas as lutas, nasceu em 1923 e lutou contra os nazistas alemães na Segunda Guerra Mundial. Sua luta contra o nazismo custou dois anos num campo de concentração na Alemanha. Depois se tornou sacerdote salesiano e em 1950 partiu para o Brasil onde trabalhou até 1972 entre indígenas, jovens e camponeses.
Voltando à Holanda, casa-se (Patty, sua esposa) e cria, já completados 75 anos, três fundações de ajuda ao Brasil: Brasil op Weg, Frei Tito de Alencar Lima e Brasilhoeve. Adepto e defensor da Teologia da Libertação, a partir daí recomeça sua peregrinação missionária pelo país, agora para sentir os resultados das sementes que havia plantado. Sempre inspirado na visão de uma igreja materialmente construtiva, se lançou ainda a outros projetos, catando recursos aqui e ali, para levar adiante seu sonho de transformação social.
Como afirmado, Ben Strik é um missionário inconformado, consciente de sua importância na criação e difusão de inúmeras obras religiosas e sociais. E fazia isto porque conhecia os problemas de perto, não se permitindo ficar somente dentro da igreja sem compartilhar dos problemas dos fiéis ao redor e muito mais distantes.
Ao chegar ao Brasil para cumprir sua missão, aqui estudou e trabalhou 22 anos como padre Salesiano de Dom Bosco. O reconhecimento pela sua dedicação às causas missionárias pode ser visto na profunda amizade que adquiriu junto a Dom Paulo Evaristo Arns, que com festejou naquele país baixo o segundo lustro de uma de suas fundações. Do mesmo modo mantinha estreitos laços de amizade com Dom José Brandão de Castro, falecido arcebispo da Diocese de Própria, em Sergipe, e um dos religiosos mais influentes do Nordeste.
Na sua peregrinação na aridez sertaneja, formou com os grupos de base da igreja católica uma verdadeira cruzada para ajudar os fiéis a conquistaram meios de sobrevivência digna, através do trabalho e da produção. Neste sentido, em 1986 esteve presente na primeira ocupação que os trabalhadores empobrecidos fizeram na improdutiva fazenda Barra da Onça, município de Poço Redondo, em Sergipe. Até hoje o MST reconhece o seu apoio para que as outras grandes conquistas se tornassem possíveis.
Natural da Holanda, neste e em outros países europeus empreendeu uma verdadeira via-crucis para adquirir recursos e investimentos para serem repassados às obras sociais que criou por todo o país. Neste sentido, criou ONG’s, Associações e Fundações que continuam dando excelentes frutos em estados como Rondônia.
A descoberta de semelhanças marcantes entre a sua vida e a de Frei Tito de Alencar Lima, deu a Ben Strik a idéia de fazer ouvir as razões que o levaram a dar sua vida por seus compatriotas oprimidos e abandonados. Daí esse seu inconformismo e luta para mudar a realidade social opressora.
Foi essa semelhança com o Frei Tito que o levou a escrever a biografia desse religioso dominicano vitimado pelas perseguições e atrocidades da ditadura militar. Originalmente escrito em holandês e depois traduzido para o português, “Morrer para Viver” foi prefaciado por Frei Betto e lançado no Brasil em 2009.
Frei Tito contava 28 anos quando morreu na pequena Évreux, nos arredores de Lyon, na França. O Brasil estava longe, mas o frei dominicano carregava na bagagem a memória dos sofrimentos que passara no País. Corria no ano de 1974, e com ele se chegava à triste marca de uma década do regime militar brasileiro. O sofrimento ao qual Frei Tito havia sido submetido - variados tipos de tortura física e psicológica - ainda era imposto a muitos dos opositores do regime. Ainda atormentado pelas dores da tortura nas mãos dos militares, Frei Tito deu fim a sua própria vida em 10 de fevereiro daquele ano. Registrou num bilhete: "só posso viver se morrer".
Em síntese, “Morrer para Viver” descreve a biografia de Frei Tito de Alencar Lima desde seu nascimento em 1945 até sua morte na França em 1974. Sua maneira de pensar, seus ideais. Sua luta contra a ditadura e seu exílio. Seu sofrimento depois das torturas físicas e mentais e sua morte. Para compreender seus motivos o livro esboça a negativa histórica do Brasil desde 1500 até hoje como a causa de seu idealismo fabuloso, como bem acentua a apresentação do livro.
Contudo, a correspondência que Bem Strik me dirigiu não foi para falar de sua obra nem dos seus planos, embora tenha me revelado que está concluindo um novo livro. Contou-me ter lido um artigo meu que citava sobre o prefeito municipal de Poço Redondo, Frei Enoque Salvador de Melo. Daí sentir interesse em fazer algumas observações sobre o caráter desse político-religioso e o fez com precisão.
Tais aspectos depois contarei, mas adianto que a indignação maior de Bem Strik com relação ao Frei Enoque diz respeito principalmente aos abusos e absurdos cometidos por este quando do planejamento e construção do centro de Formação Agrícola Dom José Brandão de Castro, localizado em Poço Redondo, no sertão sergipano.
Como não estava sendo permitido que movimentasse o dinheiro que era arrecadado, através de ONG’s e outros mecanismos do exterior, para a construção do Centro de Formação Agrícola, Frei Enoque boicotou até quando pôde a referida obra, numa verdadeira trama de arrepiar.
Mas tais aspectos, como já afirmei, serão contados detalhadamente depois.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Agora e depois (Poesia)
Agora e depois
Vá menina
e venha ligeiro
vá que te espero
nesse desespero
vá ser flor
vá ser orvalho
vá ser brisa
vá ser passarinho
vá cantar
tua voz de manhã
vá viver
teu brilho de sol
pois depois já é tempo
de guardar a boneca
arrumar os brinquedos
e procurar o espelho
para ver a mulher
e quando vier
me traga um sorriso
me traga uma palavra
me traga a esperança
de fazer feliz
meu coração tão criança.
Rangel Alves da Costa
Vá menina
e venha ligeiro
vá que te espero
nesse desespero
vá ser flor
vá ser orvalho
vá ser brisa
vá ser passarinho
vá cantar
tua voz de manhã
vá viver
teu brilho de sol
pois depois já é tempo
de guardar a boneca
arrumar os brinquedos
e procurar o espelho
para ver a mulher
e quando vier
me traga um sorriso
me traga uma palavra
me traga a esperança
de fazer feliz
meu coração tão criança.
Rangel Alves da Costa
DESCONHECIDOS - 36 (Crônica)
DESCONHECIDOS – 36
Rangel Alves da Costa*
No dia seguinte a esse encontro revelador, a comitiva embarcou na aeronave rumo à região nordestina. O grupo de viajantes era formado pela viúva Doranice, o menino Carlinhos, o neto da Condessa, que é o rapazinho Yula e mais os ajudantes. Estes já eram empregados da viúva e por isso mesmo já conheciam perfeitamente as suas exigências. Não sabiam, contudo, que para onde iam tudo era muito diferente e difícil.
Mesmo morando na metrópole nova-paulina há muitos anos, a viúva conhecia muito bem a região de onde partira um dia com uma mala carregada de sofrimentos e sonhos. Retornar agora à região não seria, pois, um ato impensado, sem claras motivações e com destino certo. Não seria uma estranho no ninho, como se dizia.
Ademais, mesmo que essa viagem objetivasse visitar a maior área possível, tudo teria que ter início nas proximidades do seu berço de nascimento, junto à localidade que os olhos passeavam embaixo do sol na infância e mocidade. A terra haveria de reconhecer a filha que voltava para agradecer através de benfeitorias.
Da capital, sem qualquer demora, rumaria sertão adentro, cortando estradas e sem pressa de chegar. Sem pressa porque não adiantava querer apressar o tempo passando por lugares onde o tempo parecia ter parado, onde a vida se fazia hoje como havia sido ontem, anteontem e num passado mais distante. Quem passasse por uma cancela aberta não era difícil de encontrá-la do mesmo modo nos dias seguintes.
Naquela região era assim, ainda lembrava, com pessoas lutando com todas as forças para viver o seu dia, para ter o de comer, beber e alegrar um pouco o semblante marcado pelas durezas do tempo. E como o tempo era difícil para muitos, e em todos os sentidos. O tempo da plantação que nunca vinha por falta de chuvas, o tempo de não colher, o tempo de ter esperança e desesperançar. O verdadeiro tempo do Eclesiastes.
Por isso que ela até hoje tinha o livro bíblico do Eclesiastes como sua leitura de cabeceira. E as passagens que mais gostava, por trazer tantas recordações, diziam:
“Vaidade das vaidades, diz o Eclesiastes, vaidade das vaidades! Tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Uma geração passa, outra vem; mas a terra sempre subsiste. O sol se levanta, o sol se põe; apressa-se a voltar a seu lugar; em seguida, se levanta de novo. O vento vai em direção ao sul, vai em direção ao norte, volteia e gira nos mesmos circuitos. Todos os rios se dirigem para o mar, e o mar não transborda. Em direção ao mar, para onde correm os rios, eles continuam a correr. Todas as coisas se afadigam, mais do que se pode dizer. A vista não se farta de ver, o ouvido nunca se sacia de ouvir. O que foi é o que será: o que acontece é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol. Se é encontrada alguma coisa da qual se diz: Veja: isto é novo, ela já existia nos tempos passados. Não há memória do que é antigo, e nossos descendentes não deixarão memória junto daqueles que virão depois deles”.
E também:
“Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus: tempo para nascer, e tempo para morrer; tempo para plantar, e tempo para arrancar o que foi plantado; tempo para matar, e tempo para sarar; tempo para demolir, e tempo para construir; tempo para chorar, e tempo para rir; tempo para gemer, e tempo para dançar; tempo para atirar pedras, e tempo para ajuntá-las; tempo para dar abraços, e tempo para apartar-se. Tempo para procurar, e tempo para perder; tempo para guardar, e tempo para jogar fora; tempo para rasgar, e tempo para costurar; tempo para calar, e tempo para falar; tempo para amar, e tempo para odiar; tempo para a guerra, e tempo para a paz. Que proveito tira o trabalhador de sua obra? Eu vi o trabalho que Deus impôs aos homens: todas as coisas que Deus fez são boas, a seu tempo. Ele pôs, além disso, no seu coração a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo a outro. Assim eu concluí que nada é melhor para o homem do que alegrar-se e procurar o bem-estar durante sua vida; e que comer, beber e gozar do fruto de seu trabalho é um dom de Deus. Reconheci que tudo o que Deus fez subsistirá sempre, sem que se possa ajuntar nada, nem nada suprimir. Deus procede desta maneira para ser temido. Aquilo que é, já existia, e aquilo que há de ser, já existiu; Deus chama de novo o que passou. Debaixo do sol, observei ainda o seguinte: a injustiça ocupa o lugar do direito, e a iniqüidade ocupa o lugar da justiça. Então eu disse comigo mesmo: Deus julgará o justo e o ímpio, porque há tempo para todas as coisas e tempo para toda a obra. Eu disse comigo mesmo a respeito dos homens: Deus quer prová-los e mostrar-lhes que, quanto a eles, são semelhantes aos brutos. Porque o destino dos filhos dos homens e o destino dos brutos é o mesmo: um mesmo fim os espera. A morte de um é a morte do outro. A ambos foi dado o mesmo sopro, e a vantagem do homem sobre o bruto é nula, porque tudo é vaidade. Todos caminham para um mesmo lugar, todos saem do pó e para o pó voltam. Quem sabe se o sopro de vida dos filhos dos homens se eleva para o alto, e o sopro de vida dos brutos desce para a terra? E verifiquei que nada há de melhor para o homem do que alegrar-se com o fruto de seus trabalhos. Esta é a parte que lhe toca. Pois, quem lhe dará a conhecer o que acontecerá com o volver dos anos?”.
Para Doranice, esse tempo de vaidades era curto demais para muita gente daquela região, pois passava pela vida quase sem tempo para viver. E agora estava retornando primeiro para o espanto, talvez, e depois para a satisfação. Se dependesse dela sofrimentos seriam minimizados e esperanças renascidas. Ao menos era isso que esperava.
Assim, após a chegada na capital, a comitiva embarcou num micro-ônibus fretado. Os viajantes olhavam pela janela as paisagens de um mundo totalmente novo que se descortinava.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
No dia seguinte a esse encontro revelador, a comitiva embarcou na aeronave rumo à região nordestina. O grupo de viajantes era formado pela viúva Doranice, o menino Carlinhos, o neto da Condessa, que é o rapazinho Yula e mais os ajudantes. Estes já eram empregados da viúva e por isso mesmo já conheciam perfeitamente as suas exigências. Não sabiam, contudo, que para onde iam tudo era muito diferente e difícil.
Mesmo morando na metrópole nova-paulina há muitos anos, a viúva conhecia muito bem a região de onde partira um dia com uma mala carregada de sofrimentos e sonhos. Retornar agora à região não seria, pois, um ato impensado, sem claras motivações e com destino certo. Não seria uma estranho no ninho, como se dizia.
Ademais, mesmo que essa viagem objetivasse visitar a maior área possível, tudo teria que ter início nas proximidades do seu berço de nascimento, junto à localidade que os olhos passeavam embaixo do sol na infância e mocidade. A terra haveria de reconhecer a filha que voltava para agradecer através de benfeitorias.
Da capital, sem qualquer demora, rumaria sertão adentro, cortando estradas e sem pressa de chegar. Sem pressa porque não adiantava querer apressar o tempo passando por lugares onde o tempo parecia ter parado, onde a vida se fazia hoje como havia sido ontem, anteontem e num passado mais distante. Quem passasse por uma cancela aberta não era difícil de encontrá-la do mesmo modo nos dias seguintes.
Naquela região era assim, ainda lembrava, com pessoas lutando com todas as forças para viver o seu dia, para ter o de comer, beber e alegrar um pouco o semblante marcado pelas durezas do tempo. E como o tempo era difícil para muitos, e em todos os sentidos. O tempo da plantação que nunca vinha por falta de chuvas, o tempo de não colher, o tempo de ter esperança e desesperançar. O verdadeiro tempo do Eclesiastes.
Por isso que ela até hoje tinha o livro bíblico do Eclesiastes como sua leitura de cabeceira. E as passagens que mais gostava, por trazer tantas recordações, diziam:
“Vaidade das vaidades, diz o Eclesiastes, vaidade das vaidades! Tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Uma geração passa, outra vem; mas a terra sempre subsiste. O sol se levanta, o sol se põe; apressa-se a voltar a seu lugar; em seguida, se levanta de novo. O vento vai em direção ao sul, vai em direção ao norte, volteia e gira nos mesmos circuitos. Todos os rios se dirigem para o mar, e o mar não transborda. Em direção ao mar, para onde correm os rios, eles continuam a correr. Todas as coisas se afadigam, mais do que se pode dizer. A vista não se farta de ver, o ouvido nunca se sacia de ouvir. O que foi é o que será: o que acontece é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol. Se é encontrada alguma coisa da qual se diz: Veja: isto é novo, ela já existia nos tempos passados. Não há memória do que é antigo, e nossos descendentes não deixarão memória junto daqueles que virão depois deles”.
E também:
“Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus: tempo para nascer, e tempo para morrer; tempo para plantar, e tempo para arrancar o que foi plantado; tempo para matar, e tempo para sarar; tempo para demolir, e tempo para construir; tempo para chorar, e tempo para rir; tempo para gemer, e tempo para dançar; tempo para atirar pedras, e tempo para ajuntá-las; tempo para dar abraços, e tempo para apartar-se. Tempo para procurar, e tempo para perder; tempo para guardar, e tempo para jogar fora; tempo para rasgar, e tempo para costurar; tempo para calar, e tempo para falar; tempo para amar, e tempo para odiar; tempo para a guerra, e tempo para a paz. Que proveito tira o trabalhador de sua obra? Eu vi o trabalho que Deus impôs aos homens: todas as coisas que Deus fez são boas, a seu tempo. Ele pôs, além disso, no seu coração a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo a outro. Assim eu concluí que nada é melhor para o homem do que alegrar-se e procurar o bem-estar durante sua vida; e que comer, beber e gozar do fruto de seu trabalho é um dom de Deus. Reconheci que tudo o que Deus fez subsistirá sempre, sem que se possa ajuntar nada, nem nada suprimir. Deus procede desta maneira para ser temido. Aquilo que é, já existia, e aquilo que há de ser, já existiu; Deus chama de novo o que passou. Debaixo do sol, observei ainda o seguinte: a injustiça ocupa o lugar do direito, e a iniqüidade ocupa o lugar da justiça. Então eu disse comigo mesmo: Deus julgará o justo e o ímpio, porque há tempo para todas as coisas e tempo para toda a obra. Eu disse comigo mesmo a respeito dos homens: Deus quer prová-los e mostrar-lhes que, quanto a eles, são semelhantes aos brutos. Porque o destino dos filhos dos homens e o destino dos brutos é o mesmo: um mesmo fim os espera. A morte de um é a morte do outro. A ambos foi dado o mesmo sopro, e a vantagem do homem sobre o bruto é nula, porque tudo é vaidade. Todos caminham para um mesmo lugar, todos saem do pó e para o pó voltam. Quem sabe se o sopro de vida dos filhos dos homens se eleva para o alto, e o sopro de vida dos brutos desce para a terra? E verifiquei que nada há de melhor para o homem do que alegrar-se com o fruto de seus trabalhos. Esta é a parte que lhe toca. Pois, quem lhe dará a conhecer o que acontecerá com o volver dos anos?”.
Para Doranice, esse tempo de vaidades era curto demais para muita gente daquela região, pois passava pela vida quase sem tempo para viver. E agora estava retornando primeiro para o espanto, talvez, e depois para a satisfação. Se dependesse dela sofrimentos seriam minimizados e esperanças renascidas. Ao menos era isso que esperava.
Assim, após a chegada na capital, a comitiva embarcou num micro-ônibus fretado. Os viajantes olhavam pela janela as paisagens de um mundo totalmente novo que se descortinava.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011
O LIVRO DAS HORAS (Crônica)
O LIVRO DAS HORAS
Rangel Alves da Costa*
Serei breve. Não posso escrever muito, não posso escrever quase nada. Olho o relógio, o tempo passa, o tempo tem asas, o tempo é vento, é ventania.
Talvez umas poucas palavras. Frases desconexas, construídas desconstruindo, pois sem tempo pra pensar, pra conciliar o pensamento com o nexo, o lógico, o estético.
Quase nada do que imaginava escrever, que era muito, era tudo, era a vida, o passado, o presente e até o futuro, caberá no relógio da parede, no meu braço que olho nervoso, no som do tempo que passa, e marca, compassa, destrói, ameaça e desgraça no último instante, no último minuto, no segundo que jaz, sem qualquer tempo mais, pois cinzas, cinzas das horas.
Queria lembrar alguma coisa, alguma coisa importante, de ontem, de anteontem, de outro tempo, para escrever agora como testamento de tudo que fiz durante esse percurso, mas não tenho mais tempo, no tempo que falta, pois já vejo o ponteiro dobrando a esquina, entrando na sala, tomando o meu lugar, num tempo de morte que quer me matar.
Jurei que não ia um segundo além, nem uma fumaça, um pó, um grão, da hora marcada. Pensei que o relógio estava atrasado um segundo e quando fui escrever a última palavra tudo parou, tudo acabou, tudo sumiu num tempo que nada restou.
Puxei o relógio, joguei na parede, esbagacei com tudo, destruí os ponteiros, fiz sumir as horas, espantei os minutos, soprei os segundos, matei o tempo também. Mas o sol agora repousa no mesmo lugar da janela, se estendendo sala adentro, dizendo que já é hora, fazendo o tempo surgir novamente.
Tranco a janela, fecho a porta, impeço que o raio do sol do meio dia entre por qualquer lugar para me lembrar do tempo, que já é tempo, que ainda há tempo, mas não tem jeito. E vem um tal de relógio biológico lembrando para fazer isso ou aquilo, pois é hora, está na hora de tudo.
Tudo, menos isso. È insuportável que qualquer coisa queira lembrar de tudo. E começo a ouvir o relógio da igreja, o apito do trem, o despertador que logo deixará de existir, a vizinha, o outro que grita: tá na hora, se apresse, é meio dia, só faltam alguns instantes!
Gostaria de quem tivesse inventando a hora e o relógio tivesse perdido seu tempo. Se eu estivesse naquele instante diria que já basta o princípio e o fim, o nascimento e a morte, a partida e a chegada. Assim, não tinha nenhuma necessidade de separar períodos para que outras coisas aconteçam em determinado tempo, em certas horas, em minutos ou segundos. É um martírio que se alastra, que só quem vive o momento fatal percebe o quanto é dolorido.
A fome, o sono, o cansaço do dia, a escrita cotidiana, a leitura imprescindível, o lanche, a dose, a pinga, o cigarro, o olhar a esquina, o abrir e fechar a porta, o tirar a roupa no varal porque vai chover, o acender a luz para fugir da escuridão, o carteiro que chega, a campainha que toca, o jogo que começa, tudo que começa, tudo, porque tudo vai acontecer. E acontece sempre no seu tempo, em determinada hora, daqui dez minutos.
E por que tudo marcado, tudo determinado, tudo lembrado a partir de um ano, de um mês, de um dia, em determinada hora. E antes dessa hora quanta dor, quanto grito, quanto susto, quanto espanto, quanta irritação, quanta indignação, quanta esperança, quanta alegria, quanta desesperança, quanta tristeza, quanto um monte de coisas se junta para tudo acontecer num determinado instante.
Morreu ontem e o enterro vai ser amanhã tantas horas. Nasceu um dia e até hoje parece que não viveu. Ainda com tão pouca idade e já parece que encontrou o seu tempo na vida. Já idoso e vive como criança que nasceu ontem.
Porque ela vai chegar amanhã de manhã, no ônibus que chega às dez, mas só deve entrar por aquela porta ao meio dia. Vai descansar até a tarde e rever a família até o anoitecer. Depois disso, quando a lua sair, lá pelas seis horas, vai fazer sua prece e pedir que tenha muitos anos de vida. Às sete horas vai colocar a cadeira da calçada para sonhar com o luar, chorar de saudade e morrer no instante seguinte.
Ora, mas tudo acontece assim. Tenhamos tempo ou não para perceber isso.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Serei breve. Não posso escrever muito, não posso escrever quase nada. Olho o relógio, o tempo passa, o tempo tem asas, o tempo é vento, é ventania.
Talvez umas poucas palavras. Frases desconexas, construídas desconstruindo, pois sem tempo pra pensar, pra conciliar o pensamento com o nexo, o lógico, o estético.
Quase nada do que imaginava escrever, que era muito, era tudo, era a vida, o passado, o presente e até o futuro, caberá no relógio da parede, no meu braço que olho nervoso, no som do tempo que passa, e marca, compassa, destrói, ameaça e desgraça no último instante, no último minuto, no segundo que jaz, sem qualquer tempo mais, pois cinzas, cinzas das horas.
Queria lembrar alguma coisa, alguma coisa importante, de ontem, de anteontem, de outro tempo, para escrever agora como testamento de tudo que fiz durante esse percurso, mas não tenho mais tempo, no tempo que falta, pois já vejo o ponteiro dobrando a esquina, entrando na sala, tomando o meu lugar, num tempo de morte que quer me matar.
Jurei que não ia um segundo além, nem uma fumaça, um pó, um grão, da hora marcada. Pensei que o relógio estava atrasado um segundo e quando fui escrever a última palavra tudo parou, tudo acabou, tudo sumiu num tempo que nada restou.
Puxei o relógio, joguei na parede, esbagacei com tudo, destruí os ponteiros, fiz sumir as horas, espantei os minutos, soprei os segundos, matei o tempo também. Mas o sol agora repousa no mesmo lugar da janela, se estendendo sala adentro, dizendo que já é hora, fazendo o tempo surgir novamente.
Tranco a janela, fecho a porta, impeço que o raio do sol do meio dia entre por qualquer lugar para me lembrar do tempo, que já é tempo, que ainda há tempo, mas não tem jeito. E vem um tal de relógio biológico lembrando para fazer isso ou aquilo, pois é hora, está na hora de tudo.
Tudo, menos isso. È insuportável que qualquer coisa queira lembrar de tudo. E começo a ouvir o relógio da igreja, o apito do trem, o despertador que logo deixará de existir, a vizinha, o outro que grita: tá na hora, se apresse, é meio dia, só faltam alguns instantes!
Gostaria de quem tivesse inventando a hora e o relógio tivesse perdido seu tempo. Se eu estivesse naquele instante diria que já basta o princípio e o fim, o nascimento e a morte, a partida e a chegada. Assim, não tinha nenhuma necessidade de separar períodos para que outras coisas aconteçam em determinado tempo, em certas horas, em minutos ou segundos. É um martírio que se alastra, que só quem vive o momento fatal percebe o quanto é dolorido.
A fome, o sono, o cansaço do dia, a escrita cotidiana, a leitura imprescindível, o lanche, a dose, a pinga, o cigarro, o olhar a esquina, o abrir e fechar a porta, o tirar a roupa no varal porque vai chover, o acender a luz para fugir da escuridão, o carteiro que chega, a campainha que toca, o jogo que começa, tudo que começa, tudo, porque tudo vai acontecer. E acontece sempre no seu tempo, em determinada hora, daqui dez minutos.
E por que tudo marcado, tudo determinado, tudo lembrado a partir de um ano, de um mês, de um dia, em determinada hora. E antes dessa hora quanta dor, quanto grito, quanto susto, quanto espanto, quanta irritação, quanta indignação, quanta esperança, quanta alegria, quanta desesperança, quanta tristeza, quanto um monte de coisas se junta para tudo acontecer num determinado instante.
Morreu ontem e o enterro vai ser amanhã tantas horas. Nasceu um dia e até hoje parece que não viveu. Ainda com tão pouca idade e já parece que encontrou o seu tempo na vida. Já idoso e vive como criança que nasceu ontem.
Porque ela vai chegar amanhã de manhã, no ônibus que chega às dez, mas só deve entrar por aquela porta ao meio dia. Vai descansar até a tarde e rever a família até o anoitecer. Depois disso, quando a lua sair, lá pelas seis horas, vai fazer sua prece e pedir que tenha muitos anos de vida. Às sete horas vai colocar a cadeira da calçada para sonhar com o luar, chorar de saudade e morrer no instante seguinte.
Ora, mas tudo acontece assim. Tenhamos tempo ou não para perceber isso.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Amante (Poesia)
Amante
Ser
do prazer o instante
metade do outro
o outro ofegante
amante
ser
no meu ser
quase nada
vácuo tão delirante
amante
ser
apenas escravizante
algemas no corpo
prazer cortante
amante
ser
o grito sufocante
do gemido suado
gesto arfante
amante
ser
o que fui
e serei nesse instante
sempre e adiante
nada mais que amante.
Rangel Alves da Costa
Ser
do prazer o instante
metade do outro
o outro ofegante
amante
ser
no meu ser
quase nada
vácuo tão delirante
amante
ser
apenas escravizante
algemas no corpo
prazer cortante
amante
ser
o grito sufocante
do gemido suado
gesto arfante
amante
ser
o que fui
e serei nesse instante
sempre e adiante
nada mais que amante.
Rangel Alves da Costa
DESCONHECIDOS - 35 (Conto)
DESCONHECIDOS – 35
Rangel Alves da Costa*
Carlinhos até ficou assustado com o inesperado gesto da viúva, em prantos e tomada de nervosismo, num misto de euforia e temor. Rapidamente retomou suas explicações para ver se ela se acalmava:
“Calma Dona Condessa, calma. Tenha paciência que o que vou dizer não é coisa do outro mundo não. Quando eu disse que ele ficaria curado a não ser que ocorresse um problema, quis apenas dizer que o meio que acolhe é o mesmo meio que rejeita. Se ele chegar naquela terra, que é o verdadeiro lugar de sua raiz, e não agradecer a graça divina da sua origem, então as forças da terra se revoltarão contra ele e aí tudo será pior...”
“E que forças da terra são essas, meu filho?”, perguntou a ainda aflita Condessa.
“Ora, Dona Condessa, antes de falar sobre as forças da terra será preciso primeiro que saibam o que a terra espera de um filho seu...”. “Talvez isso seja interessante, continue”, interrompia a senhora, compreensivelmente. E prosseguiu o menino:
“O que sopra no meu ouvido me diz que a terra não cobra de ninguém além daquilo que todo filho deve fazer em relação aos seus pais, à sua família, às suas raízes. Penso que todo filho que se preze deve defender aquele chão que lhe deu origem para a vida e para o mundo; toda terra e todo berço, por mais secos e feios que sejam, sentem prazer e orgulho quando a sua raiz, que é seu filho, procura preservar contra as maldades e destruições; terra que é terra gosta que o seu filho encontre belezas nas coisas humildes e simples, numa flor do campo, num pé de melancia, no sol do meio-dia. E como deve ser bonita a natureza de lá. É isso que gosta que seu filho sinta e se orgulhe. Qual a terra que não goste que a sua semente vá espalhar pelo mundo a sua grandeza, ainda que lá exista somente pobreza e sofrimento? Toda terra, Dona Condessa, amigo Yula e Dona Doranice, deseja que todos os seus filhos, sejam ricos ou pobres, pretos ou brancos, formem uma corrente como uma raça só, como se de uma única família e sem qualquer tipo de diferença. Daí que quando o filho nasce lá, vive lá, ou nasce em outro lugar e qualquer dia bate novamente à sua porta, tem que observar essas coisas, tem que reconhecer e valorizar o seu chão. Tendo o devido respeito e cuidando do seu berço de nascimento, não há dúvida de que a terra reconhecerá tudo na medida certa, dando a cada um a felicidade que merecer. E isso tem muito a ver com você Yula...”.
Ouvindo Carlinhos falar com tamanha desenvoltura e sobre um assunto que nem todos os adultos eram capazes de expor com tanta certeza, a sua nova protetora, a viúva Doranice, sentia o coração encher-se de alegria e os olhos marejarem de orgulho e os outros sentimentos que nem podia compreender.
“Belas palavras meu filho, maravilhosas palavras. Prossiga que sinto que agora vem a parte mais conflitante do nosso dilema, pois até antevejo no que vai dizer toda sorte do meu rapazinho”. Entre soluços, foi o que conseguiu dizer a velha Condessa.
“Na verdade, eu acho que já tá mais que esclarecido. As coisas até parecem que juntaram para ajudar o nosso amigo Yula. Se ele precisa de tratamento, ao invés de ter que precisar de hospital vai procurar sua cura dentro de sua própria casa, onde ele não se lembra bem, mas que jamais se esqueceu dele. Aquela região toda é como se fosse uma casa pra ele, onde vai ser acolhido, amado e cuidado. E certamente curado, dependendo dele. Isto porque, como eu já expliquei, cabe a ele reconhecer tudo isso e demonstrar que sente orgulho e satisfação em estar retornando e, acima de tudo, praticar ações perante aquele povo e o seu meio que dignifiquem sua condição de conterrâneo e benfeitor. E como você certamente verá por lá, não faltarão oportunidades para que mostre o seu jeito bom, a pessoa humana que você é, o quanto tem vontade de ajudar no que for possível. Como vocês bem sabem, pois a televisão não se cansa de mostrar, se existir uma casa pobre essa estará lá, se existir um povo que necessita tanto de ajuda, também estará lá. Certo que existe também muita gente rica, mas isso é apenas para mostrar que em todo lugar existe contradição. No fundo do fundo, o que os seus olhos mais encontrarão serão seus irmãos humildes, trabalhadores demais, mas sobrevivendo apenas com a medida certa para alimentar os meninos. Nem tudo é assim, mas é quase sempre assim...”.
“Mas meu filho, de onde tiraste tantas lições e tantos ensinamentos, tantas palavras sábias e tantas verdades? Uma pessoa na sua idade não é capaz de ter tamanha inteligência e de fazer uma reflexão tão profunda. Conte-nos meu filho, foi nas ruas que aprendeste tantas coisas?”. Indagou a contente e comovida Doranice.
E na ponta da língua Carlinhos respondeu: “Nas ruas também Dona Doranice, e como as ruas ensinam a gente. Aprendi tanta lição na rua que dava pra ser doutor de qualquer coisa, mas isso que eu disse nada tem a ver com marquises, esquinas ou pão amassado do lixo não. Nem me perguntem que não sei explicar, mas uma força superior e diferente me dá sabedoria e palavras para dizer o que disse. Mas o melhor é que não apenas falei, como ficou dentro de mim cada palavra que eu disse”.
Mais calmo e encorajado, o rapazinho Yula falou em tom de brincadeira: “Eis aí nosso profeta. Vamos viajar com um profeta ao nosso lado e assim não seremos surpreendidos por nada”.
“Você que pensa Yula. Profeta das coisas da terra é o povo que vive lá, mas certamente um profeta de outras profecias você irá encontrar. E quando esse dia chegar sua história será revelada”. Disse Carlinhos.
continua...
Poeta e cronista
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Carlinhos até ficou assustado com o inesperado gesto da viúva, em prantos e tomada de nervosismo, num misto de euforia e temor. Rapidamente retomou suas explicações para ver se ela se acalmava:
“Calma Dona Condessa, calma. Tenha paciência que o que vou dizer não é coisa do outro mundo não. Quando eu disse que ele ficaria curado a não ser que ocorresse um problema, quis apenas dizer que o meio que acolhe é o mesmo meio que rejeita. Se ele chegar naquela terra, que é o verdadeiro lugar de sua raiz, e não agradecer a graça divina da sua origem, então as forças da terra se revoltarão contra ele e aí tudo será pior...”
“E que forças da terra são essas, meu filho?”, perguntou a ainda aflita Condessa.
“Ora, Dona Condessa, antes de falar sobre as forças da terra será preciso primeiro que saibam o que a terra espera de um filho seu...”. “Talvez isso seja interessante, continue”, interrompia a senhora, compreensivelmente. E prosseguiu o menino:
“O que sopra no meu ouvido me diz que a terra não cobra de ninguém além daquilo que todo filho deve fazer em relação aos seus pais, à sua família, às suas raízes. Penso que todo filho que se preze deve defender aquele chão que lhe deu origem para a vida e para o mundo; toda terra e todo berço, por mais secos e feios que sejam, sentem prazer e orgulho quando a sua raiz, que é seu filho, procura preservar contra as maldades e destruições; terra que é terra gosta que o seu filho encontre belezas nas coisas humildes e simples, numa flor do campo, num pé de melancia, no sol do meio-dia. E como deve ser bonita a natureza de lá. É isso que gosta que seu filho sinta e se orgulhe. Qual a terra que não goste que a sua semente vá espalhar pelo mundo a sua grandeza, ainda que lá exista somente pobreza e sofrimento? Toda terra, Dona Condessa, amigo Yula e Dona Doranice, deseja que todos os seus filhos, sejam ricos ou pobres, pretos ou brancos, formem uma corrente como uma raça só, como se de uma única família e sem qualquer tipo de diferença. Daí que quando o filho nasce lá, vive lá, ou nasce em outro lugar e qualquer dia bate novamente à sua porta, tem que observar essas coisas, tem que reconhecer e valorizar o seu chão. Tendo o devido respeito e cuidando do seu berço de nascimento, não há dúvida de que a terra reconhecerá tudo na medida certa, dando a cada um a felicidade que merecer. E isso tem muito a ver com você Yula...”.
Ouvindo Carlinhos falar com tamanha desenvoltura e sobre um assunto que nem todos os adultos eram capazes de expor com tanta certeza, a sua nova protetora, a viúva Doranice, sentia o coração encher-se de alegria e os olhos marejarem de orgulho e os outros sentimentos que nem podia compreender.
“Belas palavras meu filho, maravilhosas palavras. Prossiga que sinto que agora vem a parte mais conflitante do nosso dilema, pois até antevejo no que vai dizer toda sorte do meu rapazinho”. Entre soluços, foi o que conseguiu dizer a velha Condessa.
“Na verdade, eu acho que já tá mais que esclarecido. As coisas até parecem que juntaram para ajudar o nosso amigo Yula. Se ele precisa de tratamento, ao invés de ter que precisar de hospital vai procurar sua cura dentro de sua própria casa, onde ele não se lembra bem, mas que jamais se esqueceu dele. Aquela região toda é como se fosse uma casa pra ele, onde vai ser acolhido, amado e cuidado. E certamente curado, dependendo dele. Isto porque, como eu já expliquei, cabe a ele reconhecer tudo isso e demonstrar que sente orgulho e satisfação em estar retornando e, acima de tudo, praticar ações perante aquele povo e o seu meio que dignifiquem sua condição de conterrâneo e benfeitor. E como você certamente verá por lá, não faltarão oportunidades para que mostre o seu jeito bom, a pessoa humana que você é, o quanto tem vontade de ajudar no que for possível. Como vocês bem sabem, pois a televisão não se cansa de mostrar, se existir uma casa pobre essa estará lá, se existir um povo que necessita tanto de ajuda, também estará lá. Certo que existe também muita gente rica, mas isso é apenas para mostrar que em todo lugar existe contradição. No fundo do fundo, o que os seus olhos mais encontrarão serão seus irmãos humildes, trabalhadores demais, mas sobrevivendo apenas com a medida certa para alimentar os meninos. Nem tudo é assim, mas é quase sempre assim...”.
“Mas meu filho, de onde tiraste tantas lições e tantos ensinamentos, tantas palavras sábias e tantas verdades? Uma pessoa na sua idade não é capaz de ter tamanha inteligência e de fazer uma reflexão tão profunda. Conte-nos meu filho, foi nas ruas que aprendeste tantas coisas?”. Indagou a contente e comovida Doranice.
E na ponta da língua Carlinhos respondeu: “Nas ruas também Dona Doranice, e como as ruas ensinam a gente. Aprendi tanta lição na rua que dava pra ser doutor de qualquer coisa, mas isso que eu disse nada tem a ver com marquises, esquinas ou pão amassado do lixo não. Nem me perguntem que não sei explicar, mas uma força superior e diferente me dá sabedoria e palavras para dizer o que disse. Mas o melhor é que não apenas falei, como ficou dentro de mim cada palavra que eu disse”.
Mais calmo e encorajado, o rapazinho Yula falou em tom de brincadeira: “Eis aí nosso profeta. Vamos viajar com um profeta ao nosso lado e assim não seremos surpreendidos por nada”.
“Você que pensa Yula. Profeta das coisas da terra é o povo que vive lá, mas certamente um profeta de outras profecias você irá encontrar. E quando esse dia chegar sua história será revelada”. Disse Carlinhos.
continua...
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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
DANDINHA, A MATADORA (Crônica)
DANDINHA, A MATADORA
Rangel Alves da Costa*
Casado com Dandinha e enlouquecido de paixão pela tal, tudo o que ocorria em casa o esposo logo mais ia contar a uma velha conhecida.
Então ele chegava e dizia:
“Você soube que Dandinha quer me matar?”.
“Mas que conversa é essa homem?”.
“Pois é, mas matar de beijos, de abraços, de amor, daquelas coisas que a gente faz quando finge que vai dormir...”.
“Ainda bem, ainda bem...”.
Então ele chegava de novo:
“Você soube que Dandinha quer me matar?”.
“Mas de novo com essa conversa homem, que tanto morrer é esse?”.
“Pois é, mas matar de susto. Ela me disse pra não chegar sem bater primeiro na porta de casa, mas ontem cheguei lá sem avisar e tomei até um susto quando ela apareceu toda suada e ofegante na porta do quarto, e de lençol encobrindo aquele corpo só meu...”.
“Ainda bem que você tem certeza, ainda bem...”.
Então ele aparecia novamente:
“Você soube que Dandinha quer me matar?”.
“Pelo jeito você é gato, tem sete vidas. Mas como foi essa história homem?”
“Pois é, mas matar de prazer. Só pode ser de prazer, pelo jeito é. Imagine que ela agora inventou da gente nem dormir junto por uns tempos, deixando também de fazer aquilo. Ela dorme no quarto e eu durmo trancado no quartinho dos fundos. Diz ela que é pra quando for daqui há alguns dias a gente tá pegando fogo, com vontade de não acabar mais. Espie se ela não quer me matar?”
“Matar não sei não, mas coisa boa não é não, disso já tá mais que bem claro e entendido. Abra o olho homem, abra esse olho pontudo!”.
Então ele aparecia apressado e dizia:
“Você soube que Dandinha quer me matar?”.
“Não sei como você ainda tá vivo. Certa vez um homem se enganchou na porta e morreu porque a mulher não ajudou ele a tirar as galhas presas na madeira. Mas por que ela quer lhe matar novamente?”
“Pois é, mas matar de satisfação. Quantos homens têm uma mulher como a minha, que faz comidas e mais comidas gostosas, tudo saboroso demais, e depois ainda guarda um pouquinho pra mim? Tem amigo que até está indo experimentar direto a comida de minha mulher. Não me importo não, pois sei que o tempero dela é dos melhores mesmo. Então, quem tá com fome que coma um pouquinho, não é mesmo?”.
“Comida boa é pra se lambuzar mesmo, ainda mais como a de sua mulher. Aliás, sua mulher sabe fazer um mexido como ninguém. A panelada dela é famosa há muito tempo, só não sei por que você veio perceber somente agora. Não sei nem como ainda sobra um tantinho pra você, já que tem tanta gente comendo”.
Então ele aparecia quase correndo:
“Você soube que Dandinha quer me matar?”
“De tiro ou de peixeira? Homem, já disse que deixe dessa história dela querer lhe matar com isso ou aquilo, assim ou assado. Acho melhor você ficar de olho é em outras coisas, pois se ela for matar alguém, e com outras armas poderosas que ela possui, certamente não será você, disso tenho certeza. Homem, se ajuíze homem, faça o teste da porta”.
“Pois é, mas matar de alegria. Até milagre tá acontecendo lá em casa, pois há mais de seis meses que a gente não faz aquilo bem bom e agora ela veio e me deu a notícia mais maravilhosa do mundo, dizendo que está grávida de um nenenzinho nosso. Não é um verdadeiro milagre, não é pra me matar de alegria?”
“Bote milagre nisso. Pode ter certeza que sua Dandinha vai ser beatificada com bucho, macho e tudo. Homem, já disse, se ajuíze, faça o teste do chapéu”.
Noutra vez ele chegou todo nervoso:
“Já descobri tudo. E quem vai matar ela sou eu...”.
“Já descobriu tarde demais. Mas não mate ela não, apenas deixe a safada”.
“Mas não é nada disso não, Deus me livre. Descobri que ela tem medo de dormir só durante a gravidez e permiti que uns amigos meus se revezem vigiando ela enquanto tenta cochilar. Mas ela não sabe ainda disso não. Quando eu disser, quem vai matar ela de prazer sou eu”.
“Você? Se ajuíze homem, faça o teste da testa suada. Passe a mão nela pra ver uma coisa...”.
Poeta e cronista
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Rangel Alves da Costa*
Casado com Dandinha e enlouquecido de paixão pela tal, tudo o que ocorria em casa o esposo logo mais ia contar a uma velha conhecida.
Então ele chegava e dizia:
“Você soube que Dandinha quer me matar?”.
“Mas que conversa é essa homem?”.
“Pois é, mas matar de beijos, de abraços, de amor, daquelas coisas que a gente faz quando finge que vai dormir...”.
“Ainda bem, ainda bem...”.
Então ele chegava de novo:
“Você soube que Dandinha quer me matar?”.
“Mas de novo com essa conversa homem, que tanto morrer é esse?”.
“Pois é, mas matar de susto. Ela me disse pra não chegar sem bater primeiro na porta de casa, mas ontem cheguei lá sem avisar e tomei até um susto quando ela apareceu toda suada e ofegante na porta do quarto, e de lençol encobrindo aquele corpo só meu...”.
“Ainda bem que você tem certeza, ainda bem...”.
Então ele aparecia novamente:
“Você soube que Dandinha quer me matar?”.
“Pelo jeito você é gato, tem sete vidas. Mas como foi essa história homem?”
“Pois é, mas matar de prazer. Só pode ser de prazer, pelo jeito é. Imagine que ela agora inventou da gente nem dormir junto por uns tempos, deixando também de fazer aquilo. Ela dorme no quarto e eu durmo trancado no quartinho dos fundos. Diz ela que é pra quando for daqui há alguns dias a gente tá pegando fogo, com vontade de não acabar mais. Espie se ela não quer me matar?”
“Matar não sei não, mas coisa boa não é não, disso já tá mais que bem claro e entendido. Abra o olho homem, abra esse olho pontudo!”.
Então ele aparecia apressado e dizia:
“Você soube que Dandinha quer me matar?”.
“Não sei como você ainda tá vivo. Certa vez um homem se enganchou na porta e morreu porque a mulher não ajudou ele a tirar as galhas presas na madeira. Mas por que ela quer lhe matar novamente?”
“Pois é, mas matar de satisfação. Quantos homens têm uma mulher como a minha, que faz comidas e mais comidas gostosas, tudo saboroso demais, e depois ainda guarda um pouquinho pra mim? Tem amigo que até está indo experimentar direto a comida de minha mulher. Não me importo não, pois sei que o tempero dela é dos melhores mesmo. Então, quem tá com fome que coma um pouquinho, não é mesmo?”.
“Comida boa é pra se lambuzar mesmo, ainda mais como a de sua mulher. Aliás, sua mulher sabe fazer um mexido como ninguém. A panelada dela é famosa há muito tempo, só não sei por que você veio perceber somente agora. Não sei nem como ainda sobra um tantinho pra você, já que tem tanta gente comendo”.
Então ele aparecia quase correndo:
“Você soube que Dandinha quer me matar?”
“De tiro ou de peixeira? Homem, já disse que deixe dessa história dela querer lhe matar com isso ou aquilo, assim ou assado. Acho melhor você ficar de olho é em outras coisas, pois se ela for matar alguém, e com outras armas poderosas que ela possui, certamente não será você, disso tenho certeza. Homem, se ajuíze homem, faça o teste da porta”.
“Pois é, mas matar de alegria. Até milagre tá acontecendo lá em casa, pois há mais de seis meses que a gente não faz aquilo bem bom e agora ela veio e me deu a notícia mais maravilhosa do mundo, dizendo que está grávida de um nenenzinho nosso. Não é um verdadeiro milagre, não é pra me matar de alegria?”
“Bote milagre nisso. Pode ter certeza que sua Dandinha vai ser beatificada com bucho, macho e tudo. Homem, já disse, se ajuíze, faça o teste do chapéu”.
Noutra vez ele chegou todo nervoso:
“Já descobri tudo. E quem vai matar ela sou eu...”.
“Já descobriu tarde demais. Mas não mate ela não, apenas deixe a safada”.
“Mas não é nada disso não, Deus me livre. Descobri que ela tem medo de dormir só durante a gravidez e permiti que uns amigos meus se revezem vigiando ela enquanto tenta cochilar. Mas ela não sabe ainda disso não. Quando eu disser, quem vai matar ela de prazer sou eu”.
“Você? Se ajuíze homem, faça o teste da testa suada. Passe a mão nela pra ver uma coisa...”.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Chance (Poesia)
Chance
Você estava na beira do cais
e as águas do rio transbordaram
com sua infinita tristeza
você estava orando na montanha
e os anjos cansaram de tanto voar
para levar suas súplicas aos céus
você estava tristonha na janela
e a brisa se tornou ventania
para espalhar de vez tanta agonia
você estava solitária chorando
e fui lenço e companhia
sem nada exigir ao voltar a alegria
com seus novos rumos e sorrisos na vida
pensei na distância que nos separava
mas quando triste subi na montanha
de braços abertos você lá estava...
Rangel Alves da Costa
Você estava na beira do cais
e as águas do rio transbordaram
com sua infinita tristeza
você estava orando na montanha
e os anjos cansaram de tanto voar
para levar suas súplicas aos céus
você estava tristonha na janela
e a brisa se tornou ventania
para espalhar de vez tanta agonia
você estava solitária chorando
e fui lenço e companhia
sem nada exigir ao voltar a alegria
com seus novos rumos e sorrisos na vida
pensei na distância que nos separava
mas quando triste subi na montanha
de braços abertos você lá estava...
Rangel Alves da Costa
DESCONHECIDOS - 34 (Conto)
DESCONHECIDOS – 34
Rangel Alves da Costa*
As duas viúvas se entreolharam realmente espantadas. Diante da estranha e inusitada observação do menino Carlinhos talvez não tivessem encontrado palavras adequadas para indagar ou comentar. Coube ao próprio Yula falar: “Não entendi direito Carlinhos, se aproxime mais e veja se pode explicar melhor, por favor”.
Então o menino colocou o álbum com as figurinhas num canto e se aproximou mais para tentar explicar a seu novo amigo e, logicamente, às duas senhoras que continuavam sem saber o que dizer.
“Pois então tá certo. Yula, o seu nome é esse mesmo não é? E se o sou nome não fosse Yula, mas sim João, Pedro ou José, o que você ia fazer? E se os seus pais não fossem aqueles que estão na sua confortável casa e sim pessoas pobres e humildes que morassem em barraco de taipa, em tapera caindo aos pedaços? E se você não tivesse nascido com essa pele clara, esse corpo bem nutrido, como costumam dizer, e esse cabelo louro e escorrido, que quase chega nos ombros, como você ia ser? E se você não tivesse nascido no meio de uma família tão rica, sempre tendo ao alcance, e no mesmo instante, aquilo que sonha e deseja, tendo oportunidade de estudar nas melhores escolas, ter bons amigos, freqüentar os melhores ambientes, como você seria? E se você não nascesse nesse meio poderoso e que pôde e pode pagar os melhores médicos, comprar os mais caros remédios, colocar à sua disposição tudo o que a medicina faça aparecer de novidade no seu tratamento, o que seria de você? E se você não fosse neto de Dona Condessa que é rica e é amiga de Dona Doranice que é rica e as duas não se encontrassem no encontro de ricas de ontem à tarde, como você iria aparecer nessa história e como iria fazer essa viagem com a gente para cuidar de sua saúde?...”.
“Mas meu amiguinho, ainda não estou entendendo nada...”, falou o rapazinho, com semblante realmente de quem ainda não sabia o que Carlinhos dizia nem onde queria chegar. Mas o menino continuou:
“Você entenderá logo, todos entenderão logo. Tudo o que eu disser aqui é coisa que vem na minha cabeça, no meu pensamento, pois falo como se alguma coisa tivesse vindo e soprado no meu ouvido. E essa coisa soprando que me faz ficar imaginando as coisas só me diz que Yula foi plantado aqui, mas tem raiz em outro lugar. Ele brotou aqui nesse chão, mas sua semente é de lá. É como se ele já tivesse existido, nessa mesma pessoa que ele é hoje, noutro lugar bem distante, bem lá nas terras pra onde ele vai voltar agora. Assim, esse lugar pra onde a gente vai pode ser estranho pra mim e Dona Doranice e pra os outros, menos pra ele, pois de certa forma Yula não será um estranho no lugar nem estranhará nada que encontrar. Não se pode estranhar a própria casa onde se nasceu um dia. É como se alguém tenha sumido de sua casa por um tempão, até seus familiares fiquem um pouco esquecido, mas que um dia retorna para reviver tudo o que deixou e continuar sobrevivendo naquilo que encontrou...”.
“Você entende e acredita nessas coisas de reencarnação é?”. Perguntou o agora avermelhado e eufórico Yula, porém querendo mantendo a maior calma do mundo.
“Não sei nem o que é isso. Já ouvi uma vez um homem na rua falar sobre isso, mas nem lembro mais o que ele disse, também era doido o coitado. Sim, mas voltando ao assunto, não sei o que é isso, mas sei que seja o que for o Yula que vai pra lá é o mesmo Yula que é de lá, por causa disso que eu disse que o nome dele poderia ser João, Pedro ou José, pois tem muita gente com esses nomes por lá. É por isso rapaz que você vai se dar muito bem naquela região, pois não será mais estranho chegando e sim um filho voltando. Você não vai perceber isso, mas toda casa vai se sentir feliz quando você entrar, toda porta vai querer logo se abrir quando você bater, toda moringa e todo pote vai querer ter água pra matar sua sede. As pessoas do lugar não olharão você como um forasteiro, como um branquelo estranho que chegou por ali, mas sim como um igual, como um conterrâneo, mesmo que você tenha aparência e modos de ser totalmente diferentes dos de lá. E digo mais, se for por causa de bem estar, de se dar bem e gostar da terra que, como eu disse, é a sua terra, sua cura estará garantida, e para sempre, a não ser que...”.
“A não ser o que meu filho? Diga, pelo amor de Deus diga meu filho!”. Implorou quase ajoelhada a velha Condessa, que diante do relato e das últimas palavras do menino já estava totalmente tomada pelas lágrimas.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
As duas viúvas se entreolharam realmente espantadas. Diante da estranha e inusitada observação do menino Carlinhos talvez não tivessem encontrado palavras adequadas para indagar ou comentar. Coube ao próprio Yula falar: “Não entendi direito Carlinhos, se aproxime mais e veja se pode explicar melhor, por favor”.
Então o menino colocou o álbum com as figurinhas num canto e se aproximou mais para tentar explicar a seu novo amigo e, logicamente, às duas senhoras que continuavam sem saber o que dizer.
“Pois então tá certo. Yula, o seu nome é esse mesmo não é? E se o sou nome não fosse Yula, mas sim João, Pedro ou José, o que você ia fazer? E se os seus pais não fossem aqueles que estão na sua confortável casa e sim pessoas pobres e humildes que morassem em barraco de taipa, em tapera caindo aos pedaços? E se você não tivesse nascido com essa pele clara, esse corpo bem nutrido, como costumam dizer, e esse cabelo louro e escorrido, que quase chega nos ombros, como você ia ser? E se você não tivesse nascido no meio de uma família tão rica, sempre tendo ao alcance, e no mesmo instante, aquilo que sonha e deseja, tendo oportunidade de estudar nas melhores escolas, ter bons amigos, freqüentar os melhores ambientes, como você seria? E se você não nascesse nesse meio poderoso e que pôde e pode pagar os melhores médicos, comprar os mais caros remédios, colocar à sua disposição tudo o que a medicina faça aparecer de novidade no seu tratamento, o que seria de você? E se você não fosse neto de Dona Condessa que é rica e é amiga de Dona Doranice que é rica e as duas não se encontrassem no encontro de ricas de ontem à tarde, como você iria aparecer nessa história e como iria fazer essa viagem com a gente para cuidar de sua saúde?...”.
“Mas meu amiguinho, ainda não estou entendendo nada...”, falou o rapazinho, com semblante realmente de quem ainda não sabia o que Carlinhos dizia nem onde queria chegar. Mas o menino continuou:
“Você entenderá logo, todos entenderão logo. Tudo o que eu disser aqui é coisa que vem na minha cabeça, no meu pensamento, pois falo como se alguma coisa tivesse vindo e soprado no meu ouvido. E essa coisa soprando que me faz ficar imaginando as coisas só me diz que Yula foi plantado aqui, mas tem raiz em outro lugar. Ele brotou aqui nesse chão, mas sua semente é de lá. É como se ele já tivesse existido, nessa mesma pessoa que ele é hoje, noutro lugar bem distante, bem lá nas terras pra onde ele vai voltar agora. Assim, esse lugar pra onde a gente vai pode ser estranho pra mim e Dona Doranice e pra os outros, menos pra ele, pois de certa forma Yula não será um estranho no lugar nem estranhará nada que encontrar. Não se pode estranhar a própria casa onde se nasceu um dia. É como se alguém tenha sumido de sua casa por um tempão, até seus familiares fiquem um pouco esquecido, mas que um dia retorna para reviver tudo o que deixou e continuar sobrevivendo naquilo que encontrou...”.
“Você entende e acredita nessas coisas de reencarnação é?”. Perguntou o agora avermelhado e eufórico Yula, porém querendo mantendo a maior calma do mundo.
“Não sei nem o que é isso. Já ouvi uma vez um homem na rua falar sobre isso, mas nem lembro mais o que ele disse, também era doido o coitado. Sim, mas voltando ao assunto, não sei o que é isso, mas sei que seja o que for o Yula que vai pra lá é o mesmo Yula que é de lá, por causa disso que eu disse que o nome dele poderia ser João, Pedro ou José, pois tem muita gente com esses nomes por lá. É por isso rapaz que você vai se dar muito bem naquela região, pois não será mais estranho chegando e sim um filho voltando. Você não vai perceber isso, mas toda casa vai se sentir feliz quando você entrar, toda porta vai querer logo se abrir quando você bater, toda moringa e todo pote vai querer ter água pra matar sua sede. As pessoas do lugar não olharão você como um forasteiro, como um branquelo estranho que chegou por ali, mas sim como um igual, como um conterrâneo, mesmo que você tenha aparência e modos de ser totalmente diferentes dos de lá. E digo mais, se for por causa de bem estar, de se dar bem e gostar da terra que, como eu disse, é a sua terra, sua cura estará garantida, e para sempre, a não ser que...”.
“A não ser o que meu filho? Diga, pelo amor de Deus diga meu filho!”. Implorou quase ajoelhada a velha Condessa, que diante do relato e das últimas palavras do menino já estava totalmente tomada pelas lágrimas.
continua...
Poeta e cronista
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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
FALSOS AMIGOS (Crônica)
FALSOS AMIGOS
Rangel Alves da Costa*
Um dia, pensando que a letra da música era realmente sinônima de solidariedade e compartilhamento, eu quis ter um milhão de amigos. E bem mais forte poder cantar...
Hoje sei que os que catei, tirando do saco um ou outro nome, não valem absolutamente nada. Isso mesmo, não valem nada e ainda dão o desprazer de não estarem completamente esquecidos, apagados de vez, como bem merecem.
Mas como esquecer falsidades? Uma falsidade vinda de alguém que você confia, passou tanto tempo acreditando sinceramente na sua honestidade, honradez e bom coração, é igual ter que gritar o mesmo espanto de Júlio César ao ser apunhalado pelo próprio parente: Até tu, Brutus?
É até compreensível que o papagaio que você mesmo ensinou a falar depois lhe chame de gordo, feio e chato; que o espelho nunca esteja lhe sorrindo ou que atenda quaisquer de suas expectativas de estar ao menos simpático; que o cachorro que você tanto paparica comece a latir quando chega pé ante pé às três horas da manhã; que o colega de trabalho que você tanto ajuda vá dizer ao chefe que você anda e vira e esculhamba com ele.
Até aí é compreensível porque você não está lidando com pessoas ou seres realmente confiáveis. Porém, quando se trata de outros que você sempre diz que “botaria a mão no fogo”, “daria a cara a tapa”, “juraria por tudo na vida”, ou “confia muito mais nelas do que em si mesmo”, então as coisas mudam de rumo.
E mudam totalmente de direção porque quando a falsidade parte de quem você jamais imaginaria que pudesse chegar a tal ponto, o gesto de pura vileza passa a tomar contornos indescritíveis e a se caracterizar como uma descrença total nos outros. Nesse sentido, falsidade e traição se irmanam.
Como consequencia, difícil que não haja um rompimento sangrento nas relações de apreço e afetividade, um trauma tão profundo no senso de amizade que a partir daquele instante parece que o coração petrificou na crença de que não existem mais amigos e não se pode mais confiar em ninguém. E quase sempre está com a razão.
Outras vezes, porque o senso de cautela pede que a ação inescrupulosa de alguns não seja motivadora para a quebra de confiança de todos. Assim, a prudência passa a dizer que nem todos devem pagar pelos erros de uns, que nem todos são desprezíveis no mesmo patamar.
O próprio conceito de falsidade já deixa a gente com uma pulga atrás da orelha. O pior é que a gente só vai entender depois o significado, quando o “grande amigo” já deu provas suficientes de que há muito tempo quer o pior pra você, tanto faz como tanto fez se você precisa de algo ou o sorriso de felicidade que é dado diante de sua dificuldade.
Mas o conceito está lá: Falsidade é agir com mentira; é mentir, dissimular perante o outro que está crente de que é verdadeiro o que está sendo feito enganosamente; característica, qualidade ou condição do que ou quem não é verdadeiro; atitude de fingimento, deslealdade e hipocrisia; atitude reprovável que visa prejudicar outrem modificando de modo intencional a verdade.
Conheço muitas pessoas que vivem próximas e ao meu redor que são falsas até em demasia. Vivem fingindo que estão sempre aptas a compartilhar as alegrias e as tristezas, o bem e o mal, mas não conseguem esconder que por trás disso tudo há outras intenções.
Agindo sempre com a velha noção de que amigos só servem para servir, para deles subtrair o máximo possível, vão usando e abusando até secar o poço. Se acaso for dito a eles que está precisando que façam isso ou aquilo, ajudem a resolver um pequeno problema ou mesmo que não revele um segredo, então tudo se revelará instantaneamente, ainda que através da falsidade.
Após arranjar mil desculpas para não ajudar, o passo seguinte é desqualificar seu pedido e tentar mostrar que é injusto que um amigo peça uma coisa desse tipo a outro. E o circo vai sendo armado até que todo mundo ache que ele está com a razão.
E nesse passo, o falso vai espalhando às escondidas que nunca esperou que você fizesse isso com ele, que sempre foi bom amigo, que nunca deixou de servir em momento algum. E o seu jeito de mentir é tão eficiente que o os outros acabam acreditando. E o falso passa a ser você.
Conheço um monte desses. E de vez em quando ainda querem aparecer com carinha de bons moços, de coitadinhos, de pobrezinhos e desvalidos. Adoram uma cerveja de graça, uma feijoada também. No próximo mês é o meu aniversário e eles vão estar ciscando ao redor. Tudo venha a nós, ao vosso reino nada.
Vai-te pra lá magote de cabra safado, de coisa ruim!
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Rangel Alves da Costa*
Um dia, pensando que a letra da música era realmente sinônima de solidariedade e compartilhamento, eu quis ter um milhão de amigos. E bem mais forte poder cantar...
Hoje sei que os que catei, tirando do saco um ou outro nome, não valem absolutamente nada. Isso mesmo, não valem nada e ainda dão o desprazer de não estarem completamente esquecidos, apagados de vez, como bem merecem.
Mas como esquecer falsidades? Uma falsidade vinda de alguém que você confia, passou tanto tempo acreditando sinceramente na sua honestidade, honradez e bom coração, é igual ter que gritar o mesmo espanto de Júlio César ao ser apunhalado pelo próprio parente: Até tu, Brutus?
É até compreensível que o papagaio que você mesmo ensinou a falar depois lhe chame de gordo, feio e chato; que o espelho nunca esteja lhe sorrindo ou que atenda quaisquer de suas expectativas de estar ao menos simpático; que o cachorro que você tanto paparica comece a latir quando chega pé ante pé às três horas da manhã; que o colega de trabalho que você tanto ajuda vá dizer ao chefe que você anda e vira e esculhamba com ele.
Até aí é compreensível porque você não está lidando com pessoas ou seres realmente confiáveis. Porém, quando se trata de outros que você sempre diz que “botaria a mão no fogo”, “daria a cara a tapa”, “juraria por tudo na vida”, ou “confia muito mais nelas do que em si mesmo”, então as coisas mudam de rumo.
E mudam totalmente de direção porque quando a falsidade parte de quem você jamais imaginaria que pudesse chegar a tal ponto, o gesto de pura vileza passa a tomar contornos indescritíveis e a se caracterizar como uma descrença total nos outros. Nesse sentido, falsidade e traição se irmanam.
Como consequencia, difícil que não haja um rompimento sangrento nas relações de apreço e afetividade, um trauma tão profundo no senso de amizade que a partir daquele instante parece que o coração petrificou na crença de que não existem mais amigos e não se pode mais confiar em ninguém. E quase sempre está com a razão.
Outras vezes, porque o senso de cautela pede que a ação inescrupulosa de alguns não seja motivadora para a quebra de confiança de todos. Assim, a prudência passa a dizer que nem todos devem pagar pelos erros de uns, que nem todos são desprezíveis no mesmo patamar.
O próprio conceito de falsidade já deixa a gente com uma pulga atrás da orelha. O pior é que a gente só vai entender depois o significado, quando o “grande amigo” já deu provas suficientes de que há muito tempo quer o pior pra você, tanto faz como tanto fez se você precisa de algo ou o sorriso de felicidade que é dado diante de sua dificuldade.
Mas o conceito está lá: Falsidade é agir com mentira; é mentir, dissimular perante o outro que está crente de que é verdadeiro o que está sendo feito enganosamente; característica, qualidade ou condição do que ou quem não é verdadeiro; atitude de fingimento, deslealdade e hipocrisia; atitude reprovável que visa prejudicar outrem modificando de modo intencional a verdade.
Conheço muitas pessoas que vivem próximas e ao meu redor que são falsas até em demasia. Vivem fingindo que estão sempre aptas a compartilhar as alegrias e as tristezas, o bem e o mal, mas não conseguem esconder que por trás disso tudo há outras intenções.
Agindo sempre com a velha noção de que amigos só servem para servir, para deles subtrair o máximo possível, vão usando e abusando até secar o poço. Se acaso for dito a eles que está precisando que façam isso ou aquilo, ajudem a resolver um pequeno problema ou mesmo que não revele um segredo, então tudo se revelará instantaneamente, ainda que através da falsidade.
Após arranjar mil desculpas para não ajudar, o passo seguinte é desqualificar seu pedido e tentar mostrar que é injusto que um amigo peça uma coisa desse tipo a outro. E o circo vai sendo armado até que todo mundo ache que ele está com a razão.
E nesse passo, o falso vai espalhando às escondidas que nunca esperou que você fizesse isso com ele, que sempre foi bom amigo, que nunca deixou de servir em momento algum. E o seu jeito de mentir é tão eficiente que o os outros acabam acreditando. E o falso passa a ser você.
Conheço um monte desses. E de vez em quando ainda querem aparecer com carinha de bons moços, de coitadinhos, de pobrezinhos e desvalidos. Adoram uma cerveja de graça, uma feijoada também. No próximo mês é o meu aniversário e eles vão estar ciscando ao redor. Tudo venha a nós, ao vosso reino nada.
Vai-te pra lá magote de cabra safado, de coisa ruim!
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Vento soprando segredo (Poesia)
Vento soprando segredo
E talvez saiba mesmo
da minha angústia e solidão
da minha tristeza e teimosia
dessa imensa desilusão
dessa cor da noite no dia
porque deixei a janela aberta
escancarei a porta inteira
não permiti nem cortina nem véu
e tudo para que o vento passasse
e você rapidamente soubesse
que não finjo sofrer nem sentir
nada escondo ou procuro fingir
o sofrimento que rasga o peito
o vazio que se derrama no leito
e a vontade de beijar uma face
tão verdadeiro e sem disfarce
só que o vento passou e não viu
quem havia saído de casa
quem dobrou a esquina e se foi
quem agora o meu peito arrasa
quem é a mulher do segredo
que ele soprou sem saber
que era outra e não você.
Rangel Alves da Costa
E talvez saiba mesmo
da minha angústia e solidão
da minha tristeza e teimosia
dessa imensa desilusão
dessa cor da noite no dia
porque deixei a janela aberta
escancarei a porta inteira
não permiti nem cortina nem véu
e tudo para que o vento passasse
e você rapidamente soubesse
que não finjo sofrer nem sentir
nada escondo ou procuro fingir
o sofrimento que rasga o peito
o vazio que se derrama no leito
e a vontade de beijar uma face
tão verdadeiro e sem disfarce
só que o vento passou e não viu
quem havia saído de casa
quem dobrou a esquina e se foi
quem agora o meu peito arrasa
quem é a mulher do segredo
que ele soprou sem saber
que era outra e não você.
Rangel Alves da Costa
DESCONHECIDOS - 33 (Conto)
DESCONHECIDOS – 33
Rangel Alves da Costa*
Enquanto o profeta Aristeu, sempre olhando pra cima seguindo o voo lento do passarinho, caminhava apressadamente em meio a troncos, pedras e matarias, cortando sertão e suas surpresas, rumo à ribanceira do São Pedrito, bem distante dali pessoas se preparavam para embarcar num pássaro de aço rumo àquela região.
Dizer que o profeta acompanhava o passarinho que voava lentamente só pode ser mentira de quem afirmar isso. Melhor seria dizer, porque mais verdadeiro, que o passarinho voava e voltava, talvez com outra intencionalidade nessas incursões. Voava pra bem longe, observava se estava na direção certa, e depois fazia o caminho de volta, para não deixar o profeta sem rumo, e depois alçar voo adiante novamente.
Mas como afirmado, lá pelas bandas sulistas, na metrópole de Nova Paulo, depois de atrasos e mais atrasos, enfim a comitiva da viúva Doranice estava pronta para seguir rumo à região mais empobrecida do país, mais precisamente para aquelas bandas por onde caminhava o profeta Aristeu, a jornalista Cristina, a quase fugitiva Carolina, menina Carol, e a sempre bela e doce prostituta Soniele, aquela mesma chamada Jasmim de Fogo. E também onde vivia o pescador João, o ainda jovem viúvo dividido entre o romantismo agreste e a dor da solidão.
A comitiva da milionária Doranice já deveria ter partido há, no mínimo, três dias. Contudo, talvez tenha sido o seu jeito metódico e de pessoa que gosta de tudo certinho demais que tenha atrasado a viagem. Em primeiro lugar, mandou confirmar quais bancos existiam naquela região e que pudesse dispor de dinheiro quando precisasse; exigiu que o próprio Carlinhos fosse acompanhado de ajudante para comprar as roupas que quisesse e onde achasse melhor; e resolveu dar uma festinha de despedida para umas velhas amigas.
E foi durante a festinha que uma das melhores amigas da viúva, a também viúva Condessa de Albernazzi, teve uma ideia que atrasou ainda mais a viagem. Eis que a velha senhora, na altura dos seus oitenta e poucos anos, gostou tanto da exposição que Doranice fez da viagem e dos objetivos que pretendia alcançar com as ações que empreenderia, que começou a implorar com lágrimas nos olhos que um neto seu pudesse também fazer parte da comitiva. E explicou porque o rapazinho precisava tanto fazer essa viagem.
Segundo a Condessa, o rapazinho de dezoito anos estava acometido de uma doença rara e degenerativa, que não era contagiosa e nem deixava apresentar no portador qualquer sinal de enfermidade. Quer dizer, o rapaz possuía uma doença que não se manifestava exteriormente, mas aos poucos tendia ir minando as forças físicas e orgânicas. E segundo os médicos ele poderia viver mais cinco anos ou até mesmo um mês, dependendo de como ele fizesse o tratamento.
E o mais curioso é que o tratamento mais indicado era para que ele viajasse a lugares desconhecidos, tivesse contato com pessoas e novos hábitos e culturas, enveredasse mais de perto na natureza, de modo a seu organismo, e principalmente sua mente, se manter estável ou até mesmo ganhar novas forças. Haveria até possibilidades de ficar completamente curado.
Depois da verdadeira exposição de motivos da avó desesperada, com lágrimas nos olhos e mãos que chegavam a tremer, a viúva Doranice, que tinha um coração de plena doçura, se sentiu totalmente tomada de emoção. Não podia negar o pedido da velha amiga de jeito nenhum, ainda mais diante daquelas circunstâncias. Aceitou sorridente o encargo e prometeu que se dependesse dela e de Carlinhos o rapazinho voltaria da região agreste totalmente curado.
A viúva Doranice só fez uma exigência: que o rapazinho se apresentasse perante ela sem falta no dia seguinte, pois gostaria de conversar com o mesmo antes de seguir viagem. E já no outro dia. Quer dizer, a partida que estava certa para o dia seguinte sofreu mais um atraso. Contudo, diante do fato novo até que não traria maiores problemas. Ademais, passagens de avião ela poderia ter às mãos na hora que quisesse e subir no pássaro de aço na hora que pretendesse. E quem não conhecia e obedecia à viúva, principalmente a milionária Doranice?
Na manhã seguinte a Condessa se apresentou na mansão com o neto. A velha senhora não tinha nem mais como mostrar tamanha felicidade e esperança. O rapazinho, demonstrando aparência saudável e muita disposição, realmente não parecia portador de doença algum. Os olhos chegavam a brilhar de alegria e expectativa com a viagem.
Nome estranho, mas Yula era o nome dele. Segundo as explicações da avó, era homenagem a um grande guerreiro nórdico. De qualquer forma, o jovem agora guerreava em outras batalhas, em outro front, fazendo de cada combate uma esperança para continuar sobrevivendo de forma saudável.
Diferentemente dos rapazes da sua idade, não tinha aparência desligada para a realidade do mundo, não demonstrava rebeldia, mas uma calma e uma simplicidade admiráveis. Era sereno e terno, tranqüilo e admiravelmente possuidor de grande empatia.
Doranice, ao passar as mãos pelos seus cabelos louros e lisos logo foi dizendo com um sorriso: “Cabelo bom vai encarapinhar no sertão, vai mudar de cor, vai se tornar cor do chão, da terra. E o melhor é que vai ver de perto como a vida renasce a cada dia naquele povo sofredor. Está pronto então, meu rapaz?” “Quero conhecer tudo isso. Dizendo melhor, quero viver tudo isso!”. Disse o resoluto e contente Yula.
Carlinhos, que observava tudo silenciosamente, enfim abriu a boca para dizer: “Ele sente isso porque não é daqui. Vocês pensam que ele é daqui porque veio ao mundo aqui, mas na verdade ele nasceu lá. O que ele vai fazer agora é voltar pra o seu lugar de origem e ficar próximo de sua família”.
As duas senhoras se entreolharam estranhamente.
continua...
Poeta e cronista
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Rangel Alves da Costa*
Enquanto o profeta Aristeu, sempre olhando pra cima seguindo o voo lento do passarinho, caminhava apressadamente em meio a troncos, pedras e matarias, cortando sertão e suas surpresas, rumo à ribanceira do São Pedrito, bem distante dali pessoas se preparavam para embarcar num pássaro de aço rumo àquela região.
Dizer que o profeta acompanhava o passarinho que voava lentamente só pode ser mentira de quem afirmar isso. Melhor seria dizer, porque mais verdadeiro, que o passarinho voava e voltava, talvez com outra intencionalidade nessas incursões. Voava pra bem longe, observava se estava na direção certa, e depois fazia o caminho de volta, para não deixar o profeta sem rumo, e depois alçar voo adiante novamente.
Mas como afirmado, lá pelas bandas sulistas, na metrópole de Nova Paulo, depois de atrasos e mais atrasos, enfim a comitiva da viúva Doranice estava pronta para seguir rumo à região mais empobrecida do país, mais precisamente para aquelas bandas por onde caminhava o profeta Aristeu, a jornalista Cristina, a quase fugitiva Carolina, menina Carol, e a sempre bela e doce prostituta Soniele, aquela mesma chamada Jasmim de Fogo. E também onde vivia o pescador João, o ainda jovem viúvo dividido entre o romantismo agreste e a dor da solidão.
A comitiva da milionária Doranice já deveria ter partido há, no mínimo, três dias. Contudo, talvez tenha sido o seu jeito metódico e de pessoa que gosta de tudo certinho demais que tenha atrasado a viagem. Em primeiro lugar, mandou confirmar quais bancos existiam naquela região e que pudesse dispor de dinheiro quando precisasse; exigiu que o próprio Carlinhos fosse acompanhado de ajudante para comprar as roupas que quisesse e onde achasse melhor; e resolveu dar uma festinha de despedida para umas velhas amigas.
E foi durante a festinha que uma das melhores amigas da viúva, a também viúva Condessa de Albernazzi, teve uma ideia que atrasou ainda mais a viagem. Eis que a velha senhora, na altura dos seus oitenta e poucos anos, gostou tanto da exposição que Doranice fez da viagem e dos objetivos que pretendia alcançar com as ações que empreenderia, que começou a implorar com lágrimas nos olhos que um neto seu pudesse também fazer parte da comitiva. E explicou porque o rapazinho precisava tanto fazer essa viagem.
Segundo a Condessa, o rapazinho de dezoito anos estava acometido de uma doença rara e degenerativa, que não era contagiosa e nem deixava apresentar no portador qualquer sinal de enfermidade. Quer dizer, o rapaz possuía uma doença que não se manifestava exteriormente, mas aos poucos tendia ir minando as forças físicas e orgânicas. E segundo os médicos ele poderia viver mais cinco anos ou até mesmo um mês, dependendo de como ele fizesse o tratamento.
E o mais curioso é que o tratamento mais indicado era para que ele viajasse a lugares desconhecidos, tivesse contato com pessoas e novos hábitos e culturas, enveredasse mais de perto na natureza, de modo a seu organismo, e principalmente sua mente, se manter estável ou até mesmo ganhar novas forças. Haveria até possibilidades de ficar completamente curado.
Depois da verdadeira exposição de motivos da avó desesperada, com lágrimas nos olhos e mãos que chegavam a tremer, a viúva Doranice, que tinha um coração de plena doçura, se sentiu totalmente tomada de emoção. Não podia negar o pedido da velha amiga de jeito nenhum, ainda mais diante daquelas circunstâncias. Aceitou sorridente o encargo e prometeu que se dependesse dela e de Carlinhos o rapazinho voltaria da região agreste totalmente curado.
A viúva Doranice só fez uma exigência: que o rapazinho se apresentasse perante ela sem falta no dia seguinte, pois gostaria de conversar com o mesmo antes de seguir viagem. E já no outro dia. Quer dizer, a partida que estava certa para o dia seguinte sofreu mais um atraso. Contudo, diante do fato novo até que não traria maiores problemas. Ademais, passagens de avião ela poderia ter às mãos na hora que quisesse e subir no pássaro de aço na hora que pretendesse. E quem não conhecia e obedecia à viúva, principalmente a milionária Doranice?
Na manhã seguinte a Condessa se apresentou na mansão com o neto. A velha senhora não tinha nem mais como mostrar tamanha felicidade e esperança. O rapazinho, demonstrando aparência saudável e muita disposição, realmente não parecia portador de doença algum. Os olhos chegavam a brilhar de alegria e expectativa com a viagem.
Nome estranho, mas Yula era o nome dele. Segundo as explicações da avó, era homenagem a um grande guerreiro nórdico. De qualquer forma, o jovem agora guerreava em outras batalhas, em outro front, fazendo de cada combate uma esperança para continuar sobrevivendo de forma saudável.
Diferentemente dos rapazes da sua idade, não tinha aparência desligada para a realidade do mundo, não demonstrava rebeldia, mas uma calma e uma simplicidade admiráveis. Era sereno e terno, tranqüilo e admiravelmente possuidor de grande empatia.
Doranice, ao passar as mãos pelos seus cabelos louros e lisos logo foi dizendo com um sorriso: “Cabelo bom vai encarapinhar no sertão, vai mudar de cor, vai se tornar cor do chão, da terra. E o melhor é que vai ver de perto como a vida renasce a cada dia naquele povo sofredor. Está pronto então, meu rapaz?” “Quero conhecer tudo isso. Dizendo melhor, quero viver tudo isso!”. Disse o resoluto e contente Yula.
Carlinhos, que observava tudo silenciosamente, enfim abriu a boca para dizer: “Ele sente isso porque não é daqui. Vocês pensam que ele é daqui porque veio ao mundo aqui, mas na verdade ele nasceu lá. O que ele vai fazer agora é voltar pra o seu lugar de origem e ficar próximo de sua família”.
As duas senhoras se entreolharam estranhamente.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
NO REINO DE TRINGUILIM (Crônica)
NO REINO DE TRINGUILIM
Rangel Alves da Costa*
Todo menino que preza sua idade, que é amigo de sua meninice, tem um rei amigo, um cavaleiro valente que lhe dá proteção, qualquer coisa que o acompanhe nas suas viagens pela magia, pelas aventuras no reino da fantasia ou como criação tão bonita que não se aparta nunca.
Não sou mais criança, infelizmente reconheço. Mas também não abdico de ser criança quando quero e procurar nos livros empoeirados, nas torres do meu quarto ou nas lembranças da imaginação, os meus amigos velhos de guerra.
Gostava muito das aventuras de Robin Hood porque o malfeitor mais honesto e bondoso do mundo; sempre quis ser um dos Cavaleiros da Távola Redonda e até guardava escondido um cálice sagrado; obedecer ao rei e defender o brasão com espada e armadura e montado num cavalo imenso era um dos maiores sonhos.
Contudo, não nego que também me encantei com aqueles moleques descritos por Charles Dickens e que andavam sofrendo e perambulando pelas ruas londrinas enfumaçadas; criei uma amizade tão grande com Zezé, aquele mesmo menininho de “Meu Pé de Laranja Lima”, que bolei um plano para ressuscitar a árvore cortada; não gostava que os outros soubessem não, mas um dia dei a volta ao mundo enquanto dormia, bem como Julio Verne descreveu. Cai da rede porque os selvagens acertaram bem no balão.
Mas tudo isso nem se compara ao maior amigo que já tive nesse reinado de heróis, aventureiros e pequenas histórias de tristezas e solidão envolvendo crianças. Não estava em nenhum livro não, ao menos que eu tenha lido. Apareceu de repente, enquanto eu estava desesperado atrás de um herói que quisesse me acompanhar e roubar a coroa do rei malvado.
Pensando num e noutro, sem achar ninguém tão valente que não tivesse medo nem de feitiçaria nem do poço assombrado do rei malvado, sem querer foi saindo de minha boca algumas palavras que me marcariam para sempre: Tringuilim, Tringulim, traga um herói pra mim que lhe dou proteção sem fim!
E Tringulim me deu a ideia, fez surgir o heroi e acabei vencendo o rei malvado. Só que daí em diante nem me preocupava mais em procurar o herói ideal para a próxima aventura em que ia me meter. Bastava dizer Tringuilim, Tringuilim e pronto, meus heróis surgiam e até um cavalo alado apareceu um dia.
Mas ficava triste com tudo isso. Tringuilim havia se tornado um ser importante demais em minha vida, obediente e verdadeiramente amigo, nunca falhando nos meus pedidos. Só que eu me aventurar por aí deixando o amigo Tringuilim esquecido, sem ao menos convidá-lo para as conquistas, não era nada justo. E já estava com a certeza de que ele também não gostava de apenas servir, ajudar, trazer os herois mais valentes e nunca ser lembrado em nada.
Um dia decidi fazer a mais perigosa das aventuras. Iria partir para uma ilha distante para roubar o caldeirão da bruxa mais malvada do mundo. Roubando aquele objeto onde ela fazia sua magia ruim e dizimava reinos e pessoas com cada mexida nos ingredientes macabros, estaria praticamente salvando a humanidade. Pensei, pensei e nesse dia resolvi invocar novamente o amigo Tringuilim, só que dessa vez para que me acompanhasse na missão quase impossível.
Tringuilim ficou contente demais, pulou, deu cambalhotas, cantou e começou a gritar evocações de batalhas: “prontos para a luta”, “os fortes sempre vencem”, “preparar, avançar, vencer”. Nesse instante, silenciosamente pedi desculpas aos outros heróis meus amigos, que talvez não estivessem gostando nada disso, e disse que ficariam descansando, pois por um bom tempo eu já teria outro companheiro de aventuras.
Assim, Tringuilim me acompanhou na luta contra os titãs, na guerra contra os fariseus, na batalha contra o imperador mal-humorado que queria implantar o império da sisudez. Mas a mais difícil mesmo foi vencer a revolta contra a idade. Um dia disse a ele que a idade estava avançando e certamente eu perderia minha infância, minha meninice, meu doce e bom tempo.
Então ele me disse que também já havia passado por esse problema. Na verdade não era mais nenhum heroi infantil como eu pensava, mas também já de minha idade. E por fim me pediu que lutássemos dali em diante em duas frentes diferentes: uma que ficava sempre sonhando e brincando e outra que ia à luta.
Fomos à luta e nem sei quando voltaremos. Talvez mais nunca, Tringuilim. Essa batalha é difícil demais de ser vencida...
Poeta e cronista
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Rangel Alves da Costa*
Todo menino que preza sua idade, que é amigo de sua meninice, tem um rei amigo, um cavaleiro valente que lhe dá proteção, qualquer coisa que o acompanhe nas suas viagens pela magia, pelas aventuras no reino da fantasia ou como criação tão bonita que não se aparta nunca.
Não sou mais criança, infelizmente reconheço. Mas também não abdico de ser criança quando quero e procurar nos livros empoeirados, nas torres do meu quarto ou nas lembranças da imaginação, os meus amigos velhos de guerra.
Gostava muito das aventuras de Robin Hood porque o malfeitor mais honesto e bondoso do mundo; sempre quis ser um dos Cavaleiros da Távola Redonda e até guardava escondido um cálice sagrado; obedecer ao rei e defender o brasão com espada e armadura e montado num cavalo imenso era um dos maiores sonhos.
Contudo, não nego que também me encantei com aqueles moleques descritos por Charles Dickens e que andavam sofrendo e perambulando pelas ruas londrinas enfumaçadas; criei uma amizade tão grande com Zezé, aquele mesmo menininho de “Meu Pé de Laranja Lima”, que bolei um plano para ressuscitar a árvore cortada; não gostava que os outros soubessem não, mas um dia dei a volta ao mundo enquanto dormia, bem como Julio Verne descreveu. Cai da rede porque os selvagens acertaram bem no balão.
Mas tudo isso nem se compara ao maior amigo que já tive nesse reinado de heróis, aventureiros e pequenas histórias de tristezas e solidão envolvendo crianças. Não estava em nenhum livro não, ao menos que eu tenha lido. Apareceu de repente, enquanto eu estava desesperado atrás de um herói que quisesse me acompanhar e roubar a coroa do rei malvado.
Pensando num e noutro, sem achar ninguém tão valente que não tivesse medo nem de feitiçaria nem do poço assombrado do rei malvado, sem querer foi saindo de minha boca algumas palavras que me marcariam para sempre: Tringuilim, Tringulim, traga um herói pra mim que lhe dou proteção sem fim!
E Tringulim me deu a ideia, fez surgir o heroi e acabei vencendo o rei malvado. Só que daí em diante nem me preocupava mais em procurar o herói ideal para a próxima aventura em que ia me meter. Bastava dizer Tringuilim, Tringuilim e pronto, meus heróis surgiam e até um cavalo alado apareceu um dia.
Mas ficava triste com tudo isso. Tringuilim havia se tornado um ser importante demais em minha vida, obediente e verdadeiramente amigo, nunca falhando nos meus pedidos. Só que eu me aventurar por aí deixando o amigo Tringuilim esquecido, sem ao menos convidá-lo para as conquistas, não era nada justo. E já estava com a certeza de que ele também não gostava de apenas servir, ajudar, trazer os herois mais valentes e nunca ser lembrado em nada.
Um dia decidi fazer a mais perigosa das aventuras. Iria partir para uma ilha distante para roubar o caldeirão da bruxa mais malvada do mundo. Roubando aquele objeto onde ela fazia sua magia ruim e dizimava reinos e pessoas com cada mexida nos ingredientes macabros, estaria praticamente salvando a humanidade. Pensei, pensei e nesse dia resolvi invocar novamente o amigo Tringuilim, só que dessa vez para que me acompanhasse na missão quase impossível.
Tringuilim ficou contente demais, pulou, deu cambalhotas, cantou e começou a gritar evocações de batalhas: “prontos para a luta”, “os fortes sempre vencem”, “preparar, avançar, vencer”. Nesse instante, silenciosamente pedi desculpas aos outros heróis meus amigos, que talvez não estivessem gostando nada disso, e disse que ficariam descansando, pois por um bom tempo eu já teria outro companheiro de aventuras.
Assim, Tringuilim me acompanhou na luta contra os titãs, na guerra contra os fariseus, na batalha contra o imperador mal-humorado que queria implantar o império da sisudez. Mas a mais difícil mesmo foi vencer a revolta contra a idade. Um dia disse a ele que a idade estava avançando e certamente eu perderia minha infância, minha meninice, meu doce e bom tempo.
Então ele me disse que também já havia passado por esse problema. Na verdade não era mais nenhum heroi infantil como eu pensava, mas também já de minha idade. E por fim me pediu que lutássemos dali em diante em duas frentes diferentes: uma que ficava sempre sonhando e brincando e outra que ia à luta.
Fomos à luta e nem sei quando voltaremos. Talvez mais nunca, Tringuilim. Essa batalha é difícil demais de ser vencida...
Poeta e cronista
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Ela (Poesia)
Ela
Conheci uma menina
que parecia o sol
olhei mais de perto
e parecia a lua
não acreditava porque
não via a menina
apenas
uma menina estrela
uma menina manhã
uma menina pingo de chuva
uma menina entardecer
uma menina natureza
uma menina jardim
uma menina beleza
mas nunca vi a menina
não encontrei a menina
na rua
na janela
saindo pra passear
em qualquer lugar
e um dia fui procurar
a menina em tudo
menos a menina em mim
e tão de repente
ela surgiu diferente
bem descendo o morro
bem subindo a favela
e vi a imagem mais bela
e vi a mais bela aquarela
era ela
era ela
a menina da favela
era ela.
Rangel Alves da Costa
Conheci uma menina
que parecia o sol
olhei mais de perto
e parecia a lua
não acreditava porque
não via a menina
apenas
uma menina estrela
uma menina manhã
uma menina pingo de chuva
uma menina entardecer
uma menina natureza
uma menina jardim
uma menina beleza
mas nunca vi a menina
não encontrei a menina
na rua
na janela
saindo pra passear
em qualquer lugar
e um dia fui procurar
a menina em tudo
menos a menina em mim
e tão de repente
ela surgiu diferente
bem descendo o morro
bem subindo a favela
e vi a imagem mais bela
e vi a mais bela aquarela
era ela
era ela
a menina da favela
era ela.
Rangel Alves da Costa
DESCONHECIDOS - 32 (Conto)
DESCONHECIDOS – 32
Rangel Alves da Costa*
O profeta Aristeu já se dava por satisfeito. Também seria injusto escavacar mais coisas, outras minúcias daquela cabecinha desajuizada. Mas pensando bem, até que tinha juízo melhor do que muita gente que se diz esperto e sadio; tinha muito mais sabedoria do que muitos que querem saber mais que os livros.
Mas pra sair de lá deu um trabalho danado. Toinho fez que sentasse debaixo do tamarineiro e queria porque queria que o profeta falasse por qual motivo ele tinha deixado o passarinho do destino voar. E falou dessa história como se já conhecesse a mesma de passo e compasso.
Aristeu se lembrou de certas coisas que poderiam levar até àquela história de passarinho, contudo não quis entrar em detalhes para não perder mais tempo. Se entrasse naquele terreno, quem ia ser chamado de maluco era ele. Mas por outro lado, tinha certeza que se alguma coisa parecia com passarinho que tinha voado só podia ser o bilhete sendo levado pelo vento lá de cima da montanha.
Disse que voltaria outro dia para contar a história todinha, sem esquecer nenhum detalhe. E vendo que não tinha mais jeito mesmo de continuar conversando com o amigo, o doidinho fez uma cara muito triste, de pura desolação, levantou e disse ao final:
“Pois o passarinho não voou pra bem longe não, pode saber disso. O passarinho vem voando atrás de você e aonde for ele vai atrás. Se para ele para, se dorme ele também fecha os olhos. Assim que você segue adiante ele bate as asas novamente e voa na mesma direção, só que um pouco mais distante, que é pra você não perceber. Agora mesmo ele tá por aqui pertinho, escondido num desses pés de pau, só esperando você seguir viagem. Ainda bem que ele não mau não, até que é coisa muita boa, só que tudo tem um limite, pois se você não fizer o que ele espera certamente ocorrerá o pior. E eu não queria nem tá por perto pra ver. Mas me diga qual o mistério entre você e o passarinho?”
“Um bilhete, um aviso, uma sina... Nada, nada, esqueça”. E Aristeu ficou nervoso, sem saber o que falar e foi saindo sem se despedir de verdade. “Diga que vai que digo que fico, se disser até mais digo que vá em paz, mas se sair desse jeito, com todo respeito, mas é viagem sem ter proveito...”, rimou o maluquinho, com jeito sério de quem esqueceu o sorriso.
“Tá bem, tá bem. Até, amigo Toinho, foi muito bom conversar com você”, disse enfim o profeta. “Então também digo que tá bem e digo que pode ir que ele já tá esperando, e quando virar a curva ele levanta voo na sua pegada...”.
E Aristeu seguiu pela mesma estrada que ia caminhando antes de encontrar com o senhor e o doidinho. Na verdade tinha esquecido de perguntar a Toinho como fazer para seguir em direção ao rio, já que ele havia desmentido o homem e disse que o São Pedrito cortava aquelas terras mesmo.
Contudo, notou algo diferente lá por cima que lhe chamou atenção. O doidinho havia afirmado que o pássaro o seguia, porém voando sempre atrás, de modo que não pudesse ser avistado, mas agora isso talvez tivesse mudado.
Primeiro observou que um pássaro voava constantemente acima de sua cabeça, como se o acompanhasse lá por cima, mas depois viu que ele seguia sempre em outra direção. E pairava no ar, soltando pios, como se quisesse avisar de alguma coisa.
Ficou com a mente que era só confusão com essa história do passarinho. Avistou uma árvore frondosa nas proximidades da estrada e resolveu que seria bom descansar um pouco debaixo dela, de modo que cochilando um instantinho pudesse raciocinar melhor mais tarde. E o passarinho que já estava um pouco afastado, recuo e voou até uns galhos que ficavam mais adiante. Enquanto o profeta tentava dormir, o seu guardião fechava um olho e deixava o outro aberto.
E o sonho veio rápido e sem deixar qualquer dúvida: você tem sua estrada e quer chegar, tem pressa e vai apressado, por isso vai seguindo por qualquer lugar, mas se quer chegar logo para ter tempo de ver as transformações e cumprido aquilo que ora teme ora deseja, então siga o pássaro, siga o pássaro, siga o pássaro, siga o pássaro...
E esse siga o pássaro ficou ecoando no sonho até que acordou assustado. Levantou num pulo e olhou para todos os lados para ver se enxergava o passarinho. E de repente ouviu dois pios. Agora dois passarinhos voejavam ao redor, só que cada um em direção diferente.
Se tivesse prestado mais atenção ao passarinho agora saberia qual o verdadeiro. Teria que seguir o passarinho, mas qual? O pior é que tinha certeza que um daqueles dois lhe chamava para o mau caminho, para a estrada da escuridão, para os portões do abismo.
Então lembrou da história da sombra, lembrou do maluquinho e pegou uma pedra e rumou com toda força no meio do mato. Depois só ouviu um barulhar de pássaro se debatendo lá em cima, penas voando e um som medonho de algo se desfazendo em pedaços e sumindo no ar ao cair.
Ouviu novamente o outro pio e seguiu adiante, na mesma direção.
continua...
Poeta e cronista
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Rangel Alves da Costa*
O profeta Aristeu já se dava por satisfeito. Também seria injusto escavacar mais coisas, outras minúcias daquela cabecinha desajuizada. Mas pensando bem, até que tinha juízo melhor do que muita gente que se diz esperto e sadio; tinha muito mais sabedoria do que muitos que querem saber mais que os livros.
Mas pra sair de lá deu um trabalho danado. Toinho fez que sentasse debaixo do tamarineiro e queria porque queria que o profeta falasse por qual motivo ele tinha deixado o passarinho do destino voar. E falou dessa história como se já conhecesse a mesma de passo e compasso.
Aristeu se lembrou de certas coisas que poderiam levar até àquela história de passarinho, contudo não quis entrar em detalhes para não perder mais tempo. Se entrasse naquele terreno, quem ia ser chamado de maluco era ele. Mas por outro lado, tinha certeza que se alguma coisa parecia com passarinho que tinha voado só podia ser o bilhete sendo levado pelo vento lá de cima da montanha.
Disse que voltaria outro dia para contar a história todinha, sem esquecer nenhum detalhe. E vendo que não tinha mais jeito mesmo de continuar conversando com o amigo, o doidinho fez uma cara muito triste, de pura desolação, levantou e disse ao final:
“Pois o passarinho não voou pra bem longe não, pode saber disso. O passarinho vem voando atrás de você e aonde for ele vai atrás. Se para ele para, se dorme ele também fecha os olhos. Assim que você segue adiante ele bate as asas novamente e voa na mesma direção, só que um pouco mais distante, que é pra você não perceber. Agora mesmo ele tá por aqui pertinho, escondido num desses pés de pau, só esperando você seguir viagem. Ainda bem que ele não mau não, até que é coisa muita boa, só que tudo tem um limite, pois se você não fizer o que ele espera certamente ocorrerá o pior. E eu não queria nem tá por perto pra ver. Mas me diga qual o mistério entre você e o passarinho?”
“Um bilhete, um aviso, uma sina... Nada, nada, esqueça”. E Aristeu ficou nervoso, sem saber o que falar e foi saindo sem se despedir de verdade. “Diga que vai que digo que fico, se disser até mais digo que vá em paz, mas se sair desse jeito, com todo respeito, mas é viagem sem ter proveito...”, rimou o maluquinho, com jeito sério de quem esqueceu o sorriso.
“Tá bem, tá bem. Até, amigo Toinho, foi muito bom conversar com você”, disse enfim o profeta. “Então também digo que tá bem e digo que pode ir que ele já tá esperando, e quando virar a curva ele levanta voo na sua pegada...”.
E Aristeu seguiu pela mesma estrada que ia caminhando antes de encontrar com o senhor e o doidinho. Na verdade tinha esquecido de perguntar a Toinho como fazer para seguir em direção ao rio, já que ele havia desmentido o homem e disse que o São Pedrito cortava aquelas terras mesmo.
Contudo, notou algo diferente lá por cima que lhe chamou atenção. O doidinho havia afirmado que o pássaro o seguia, porém voando sempre atrás, de modo que não pudesse ser avistado, mas agora isso talvez tivesse mudado.
Primeiro observou que um pássaro voava constantemente acima de sua cabeça, como se o acompanhasse lá por cima, mas depois viu que ele seguia sempre em outra direção. E pairava no ar, soltando pios, como se quisesse avisar de alguma coisa.
Ficou com a mente que era só confusão com essa história do passarinho. Avistou uma árvore frondosa nas proximidades da estrada e resolveu que seria bom descansar um pouco debaixo dela, de modo que cochilando um instantinho pudesse raciocinar melhor mais tarde. E o passarinho que já estava um pouco afastado, recuo e voou até uns galhos que ficavam mais adiante. Enquanto o profeta tentava dormir, o seu guardião fechava um olho e deixava o outro aberto.
E o sonho veio rápido e sem deixar qualquer dúvida: você tem sua estrada e quer chegar, tem pressa e vai apressado, por isso vai seguindo por qualquer lugar, mas se quer chegar logo para ter tempo de ver as transformações e cumprido aquilo que ora teme ora deseja, então siga o pássaro, siga o pássaro, siga o pássaro, siga o pássaro...
E esse siga o pássaro ficou ecoando no sonho até que acordou assustado. Levantou num pulo e olhou para todos os lados para ver se enxergava o passarinho. E de repente ouviu dois pios. Agora dois passarinhos voejavam ao redor, só que cada um em direção diferente.
Se tivesse prestado mais atenção ao passarinho agora saberia qual o verdadeiro. Teria que seguir o passarinho, mas qual? O pior é que tinha certeza que um daqueles dois lhe chamava para o mau caminho, para a estrada da escuridão, para os portões do abismo.
Então lembrou da história da sombra, lembrou do maluquinho e pegou uma pedra e rumou com toda força no meio do mato. Depois só ouviu um barulhar de pássaro se debatendo lá em cima, penas voando e um som medonho de algo se desfazendo em pedaços e sumindo no ar ao cair.
Ouviu novamente o outro pio e seguiu adiante, na mesma direção.
continua...
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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
CONVERSANDO SOZINHO (Crônica)
CONVERSANDO SOZINHO
Rangel Alves da Costa
Por mais que alguns continuem vendo como maluquice o hábito que os outros têm de conversar consigo mesmo, ou com os próprios botões como alguns preferem, ainda continuo achando que esse é o mais saudável diálogo que possa existir e o único onde não há distorção no que é falado, ainda que somente o próprio falante entenda o que diz.
Malucos, malucos de verdade existem que andam falando sozinhos por aí. E não são poucos não. Não é difícil encontrá-los por todos os lugares, por todas as ruas e muitas calçadas. Sem falar naqueles que sempre acham que os outros não os observam.
E é isso que complica a situação, pois muitas vezes conhecemos o doido e não conhecemos outras pessoas ditas normais que até chegam a sorrir com as besteiras que dizem a si e sobre mesmas. Dizem até que uns falam mais grosso e respondem com uma voz mais fina.
Conheço gente que não abre a boca pra dizer uma palavra sequer se alguém chega perto dele. Mal-humorado, muitas vezes deseducado, não dá a mínima atenção ao que o outro pergunta ou diz. Se alguém disser que tem uma aranha subindo na sua perna não tá nem aí.
Contudo, basta que a pessoa dê as costas e começa o converseiro que não acaba mais, falando sozinho e até alto, como se o interlocutor não ouvisse bem. E murmura e silencia, diz uma coisa que faz alegrar a face, diz outra que chama lágrimas, e assim vai o entardecer inteiro, na cadeira de balanço, embaixo do velho tamarineiro.
Já disse que pare de tá conversando sozinho homem. Parece que tem fantasma, coisa do outro mundo pilheriando com você. E ainda por cima dá susto na gente toda vez que conversa besteira. Se alembra que outro dia você tava dizendo a num sei quem que guardasse um lugarzinho pra você lá em cima aonde tivesse um botequim por perto. Quem já se viu uma conversa dessa homem de Deus, pois onde deve ter cachaça depois de morrer é lá mais pra baixo. Você quer ir pra lá? Reclamava a esposa e com toda razão.
E tinha razão porque o marido realmente só falava besteira. Outros, não se sabe se é besteira ou não o que dizem, mas falam palavras e frases somente entendidas por eles mesmos. E um diz que precisa baixar o sol pra tirar a ferrugem dele; outra afirma que quando pegar ele de jeito vai arrebentar a cabeceira do riachinho; e ainda outro diz que vai procurar o bicho porque nunca mais conseguiu morder ele.
Mas é cada coisa que se ouve nesse diálogo esquisito que nem dá pra acreditar. Tem gente que diz que não vê problema em conversar sozinho, pois os filósofos ficavam o tempo todo perguntando maluquices a si mesmos e ninguém dizia que eles tinham um parafuso a menos. Mas tem gente que é da opinião que isso tem muito a ver com coisas do outro mundo, com espiritismo e até com encosto.
Um filósofo caipira chamado Totonho de Tonha, ao seu modo, vivia alardeando que havia encontrado uma explicação para o fenômeno. Segundo ele, o problema só acontecia em pessoas potencialmente perigosas, astutas e valentes demais, e logicamente que além disso tudo eram possuidoras de fatores também perigosos, tais como a predisposição para a fofocagem, a língua solta demais e o prazer de falar aquilo que não conhece nem tem certeza.
E explicava ainda que pessoas que conversam sozinhas são explosivas e por qualquer motivo podem abrir a boca para falar besteira, para dizer o que não deve, para ferir através da palavra. E por quê? Alguém perguntou certa vez. Ora, se falam tanta besteira sozinhas, imagine pessoas dessas com raiva de outras!
Qualquer dia vou me perguntar sobre tudo isso. Por enquanto, continuo fingindo que não falo sozinho e os outros fingem que não se espantam com o que ouvem da minha boca solitária.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa
Por mais que alguns continuem vendo como maluquice o hábito que os outros têm de conversar consigo mesmo, ou com os próprios botões como alguns preferem, ainda continuo achando que esse é o mais saudável diálogo que possa existir e o único onde não há distorção no que é falado, ainda que somente o próprio falante entenda o que diz.
Malucos, malucos de verdade existem que andam falando sozinhos por aí. E não são poucos não. Não é difícil encontrá-los por todos os lugares, por todas as ruas e muitas calçadas. Sem falar naqueles que sempre acham que os outros não os observam.
E é isso que complica a situação, pois muitas vezes conhecemos o doido e não conhecemos outras pessoas ditas normais que até chegam a sorrir com as besteiras que dizem a si e sobre mesmas. Dizem até que uns falam mais grosso e respondem com uma voz mais fina.
Conheço gente que não abre a boca pra dizer uma palavra sequer se alguém chega perto dele. Mal-humorado, muitas vezes deseducado, não dá a mínima atenção ao que o outro pergunta ou diz. Se alguém disser que tem uma aranha subindo na sua perna não tá nem aí.
Contudo, basta que a pessoa dê as costas e começa o converseiro que não acaba mais, falando sozinho e até alto, como se o interlocutor não ouvisse bem. E murmura e silencia, diz uma coisa que faz alegrar a face, diz outra que chama lágrimas, e assim vai o entardecer inteiro, na cadeira de balanço, embaixo do velho tamarineiro.
Já disse que pare de tá conversando sozinho homem. Parece que tem fantasma, coisa do outro mundo pilheriando com você. E ainda por cima dá susto na gente toda vez que conversa besteira. Se alembra que outro dia você tava dizendo a num sei quem que guardasse um lugarzinho pra você lá em cima aonde tivesse um botequim por perto. Quem já se viu uma conversa dessa homem de Deus, pois onde deve ter cachaça depois de morrer é lá mais pra baixo. Você quer ir pra lá? Reclamava a esposa e com toda razão.
E tinha razão porque o marido realmente só falava besteira. Outros, não se sabe se é besteira ou não o que dizem, mas falam palavras e frases somente entendidas por eles mesmos. E um diz que precisa baixar o sol pra tirar a ferrugem dele; outra afirma que quando pegar ele de jeito vai arrebentar a cabeceira do riachinho; e ainda outro diz que vai procurar o bicho porque nunca mais conseguiu morder ele.
Mas é cada coisa que se ouve nesse diálogo esquisito que nem dá pra acreditar. Tem gente que diz que não vê problema em conversar sozinho, pois os filósofos ficavam o tempo todo perguntando maluquices a si mesmos e ninguém dizia que eles tinham um parafuso a menos. Mas tem gente que é da opinião que isso tem muito a ver com coisas do outro mundo, com espiritismo e até com encosto.
Um filósofo caipira chamado Totonho de Tonha, ao seu modo, vivia alardeando que havia encontrado uma explicação para o fenômeno. Segundo ele, o problema só acontecia em pessoas potencialmente perigosas, astutas e valentes demais, e logicamente que além disso tudo eram possuidoras de fatores também perigosos, tais como a predisposição para a fofocagem, a língua solta demais e o prazer de falar aquilo que não conhece nem tem certeza.
E explicava ainda que pessoas que conversam sozinhas são explosivas e por qualquer motivo podem abrir a boca para falar besteira, para dizer o que não deve, para ferir através da palavra. E por quê? Alguém perguntou certa vez. Ora, se falam tanta besteira sozinhas, imagine pessoas dessas com raiva de outras!
Qualquer dia vou me perguntar sobre tudo isso. Por enquanto, continuo fingindo que não falo sozinho e os outros fingem que não se espantam com o que ouvem da minha boca solitária.
Poeta e cronista
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Outras palavras (Poesia)
Outras palavras
Não direi mais
que te amo
não
enquanto te amar
não direi
que te amo
outro termo
outra expressão
outras palavras
haverão de surgir
tão mais fortes
e mais apaixonadamente
amada e amante
tão mais tudo
e verdadeiramente mais
mais fiel e constante
que o te amo
não seja preciso dizer
diante da palavra surgida
algo assim
algo tão doce e profundo
como
como te amo
não adianta
te amo!
Rangel Alves da Costa
Não direi mais
que te amo
não
enquanto te amar
não direi
que te amo
outro termo
outra expressão
outras palavras
haverão de surgir
tão mais fortes
e mais apaixonadamente
amada e amante
tão mais tudo
e verdadeiramente mais
mais fiel e constante
que o te amo
não seja preciso dizer
diante da palavra surgida
algo assim
algo tão doce e profundo
como
como te amo
não adianta
te amo!
Rangel Alves da Costa
DESCONHECIDOS - 31 (Conto)
DESCONHECIDOS – 31
Rangel Alves da Costa*
“Sim, homem de Deus, fale, fale logo dessa tal profecia”. Disse Aristeu, balançando o doido pelos ombros e quase dando uns tabefes na sua cara para ficar mais esperto.
Mas Toinho retrucava: “Num sei não. E se a sombra aparecer novamente, agora como defunta, que é mais pior?”. “Eu mato ela de novo, jogo dessa vez um milhão de pedras, uma pedreira inteira, um rochedo se for preciso, mas conte logo essa história”, gritava nervosamente Aristeu.
“Se você tem tanta força assim porque não muda aquele rio de lugar e empata que aquele pescador que já vive lá continue no lugar e não faz de tudo pra que as pessoas que vão pra lá desistam de chegar e ficar pelas beiragens do rio?”. Disse o maluquinho, atiçando a curiosidade do profeta, que imediatamente perguntou: “E por que eu deveria fazer isso?”.
“Ora, mas porque senão muita coisa ruim pode acontecer. A água do rio pode ficar com uma cor diferente daquele azul-esverdeado bonito e ficar com uma cor sem cor, perder a cor ou ficar com uma cor escura de tristeza e sofrimento. O pior é que também pode ficar da cor de sangue, vermelho como o sangue de rio, mas que não é do rio é das pessoas que vivem nas beiragens dele...”.
“Mas quem lhe disse isso Toinho”, perguntou ainda mais nervoso Aristeu. “Já disse que foi a sombra. Às vezes a sombra saía um pouquinho da sombra e vinha me segredar essas coisas. Fazia isso porque dizia que logo logo ia morrer e não queria ter passado pela vida apenas fazendo maldade, e como ninguém podia ver nem ouvir ela, só eu, então ela vinha e me dizia essas coisas. Dizia que era pra cumprir seu tiquinho de bondade. A história toda ela não me contava não, mas dizia apenas isso que eu disse e umas coisinhas mais e que o rio era aquele com quase nome de santo e que fica por ali adiante...”.
“São Pedrito, Rio São Pedrito, foi esse o nome do rio que a sombra disse não foi? E que história é essa do rio ficar por ali adiante? Aquele senhor que estava com a gente na estrada disse que o tal rio fica muito distante, subindo serra e descendo serra, que dificilmente alguém conseguirá alcançá-lo caminhando...”. Falou o profeta, cheia de dúvidas e interesses.
Toinho esboçou um leve e misterioso sorriso e foi logo dizendo: “Mentira, tudo mentira. O rio é esse mesmo que você disse, Pedrito, mas num fica lá longe não. É tudo mentira daquele mentiroso. Mas acho que mentiu não foi por maldade não, mas por medo mesmo. Todo mundo aqui se pela de medo só de ver falar nesse rio. E porque dizem que chama má sorte pra o resto da vida quem diz que ele tá perto. Dizendo que ele é bem longe, então as coisas misteriosas e assustadoras também vão cada vez mais pra longe...”
“Ah, tá certo Toinho. Mas você disse atrás que a sombra tinha dito outras coisinhas, não foi mesmo? O que foi que ela disse?”. E de olhos arregalados, parecendo assustado, segurando no braço do profeta, o maluquinho falou baixinho, com a voz entrecortada: “Parece que você vai ter de perguntar a ela mesma. Olhe ali atrás, ela tá se levantado raivosa, com a cara mais feia do mundo, perecendo que tá com raiva de mim porque eu tava contando tudo. Ela vai levantar, ela vai levantar, tá levantando...”.
E rapidamente Aristeu pegou no chão uma pedra bem brande e jogou sem direção. E foi um alívio no rosto do maluquinho, que disse em seguida: “Foi bem na cabeça e esbagaçou com tudo. Agora duvido que ela venha de novo. Tô até veno uma nuvem negra se formar por cima dela e já está começando a arrastar. Essa nuvem negra deve ir pra outro lugar que não pra cima, onde estão as outras nuvens branquinhas. Se elas não vão lá pra cima, em direção ao céu, então... Lascou-se!”. E deu um abraço apertado no profeta, que achou melhor não rechaçar.
“Agora que ela já morreu para sempre você pode falar sobre as outras coisinhas, não é mesmo?”, indagou. “Sim, mas deixe ver se eu me alembro. Já sei, já sei. Com sua força você pode tirar aquele rio de lá ou mudar o caminho dele, mas primeiro tem que cuidar das pessoas. Aí é que tá o problema, pois quem vive lá vive muito feliz e quem vai chegar lá ou ficar por perto também. Todo mundo vai achar que ali é a maior maravilha do mundo, só que as águas do rio que parecem passar silenciosas e mansinhas, na verdade conhece a história de todo mundo, e porque já conhecia e também porque fica vendo aquilo tudo quando passa e retorna. Você sabia que as águas daquele rio vão e voltam pra o mesmo lugar e começa a correr novamente? Pois é, o rio sabe de tudo e conhece tudo. Mas é um rio bondoso e maldoso ao mesmo tempo. Bom demais e ruim até dizer chega. Então é o passado dessas pessoas, juntamente com o que acontecer por ali, que vai mostrar a cara do bicho e aquilo que passa mansamente quando molhar os desconhecidos então é que o bicho vai pegar. Mas nisso tudo tem um problema maior, pois a sombra também falou que nesse meio vai estar um começo de vida e uma vida vivida...”
“Uma criança e uma velha?”, perguntou o esbaforido profeta, quase com o coração saindo pela boca. E Toinho respondeu mansamente: “Num sei, só sei que nesse meio vai estar um começo de vida e uma vida vivida...”.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
“Sim, homem de Deus, fale, fale logo dessa tal profecia”. Disse Aristeu, balançando o doido pelos ombros e quase dando uns tabefes na sua cara para ficar mais esperto.
Mas Toinho retrucava: “Num sei não. E se a sombra aparecer novamente, agora como defunta, que é mais pior?”. “Eu mato ela de novo, jogo dessa vez um milhão de pedras, uma pedreira inteira, um rochedo se for preciso, mas conte logo essa história”, gritava nervosamente Aristeu.
“Se você tem tanta força assim porque não muda aquele rio de lugar e empata que aquele pescador que já vive lá continue no lugar e não faz de tudo pra que as pessoas que vão pra lá desistam de chegar e ficar pelas beiragens do rio?”. Disse o maluquinho, atiçando a curiosidade do profeta, que imediatamente perguntou: “E por que eu deveria fazer isso?”.
“Ora, mas porque senão muita coisa ruim pode acontecer. A água do rio pode ficar com uma cor diferente daquele azul-esverdeado bonito e ficar com uma cor sem cor, perder a cor ou ficar com uma cor escura de tristeza e sofrimento. O pior é que também pode ficar da cor de sangue, vermelho como o sangue de rio, mas que não é do rio é das pessoas que vivem nas beiragens dele...”.
“Mas quem lhe disse isso Toinho”, perguntou ainda mais nervoso Aristeu. “Já disse que foi a sombra. Às vezes a sombra saía um pouquinho da sombra e vinha me segredar essas coisas. Fazia isso porque dizia que logo logo ia morrer e não queria ter passado pela vida apenas fazendo maldade, e como ninguém podia ver nem ouvir ela, só eu, então ela vinha e me dizia essas coisas. Dizia que era pra cumprir seu tiquinho de bondade. A história toda ela não me contava não, mas dizia apenas isso que eu disse e umas coisinhas mais e que o rio era aquele com quase nome de santo e que fica por ali adiante...”.
“São Pedrito, Rio São Pedrito, foi esse o nome do rio que a sombra disse não foi? E que história é essa do rio ficar por ali adiante? Aquele senhor que estava com a gente na estrada disse que o tal rio fica muito distante, subindo serra e descendo serra, que dificilmente alguém conseguirá alcançá-lo caminhando...”. Falou o profeta, cheia de dúvidas e interesses.
Toinho esboçou um leve e misterioso sorriso e foi logo dizendo: “Mentira, tudo mentira. O rio é esse mesmo que você disse, Pedrito, mas num fica lá longe não. É tudo mentira daquele mentiroso. Mas acho que mentiu não foi por maldade não, mas por medo mesmo. Todo mundo aqui se pela de medo só de ver falar nesse rio. E porque dizem que chama má sorte pra o resto da vida quem diz que ele tá perto. Dizendo que ele é bem longe, então as coisas misteriosas e assustadoras também vão cada vez mais pra longe...”
“Ah, tá certo Toinho. Mas você disse atrás que a sombra tinha dito outras coisinhas, não foi mesmo? O que foi que ela disse?”. E de olhos arregalados, parecendo assustado, segurando no braço do profeta, o maluquinho falou baixinho, com a voz entrecortada: “Parece que você vai ter de perguntar a ela mesma. Olhe ali atrás, ela tá se levantado raivosa, com a cara mais feia do mundo, perecendo que tá com raiva de mim porque eu tava contando tudo. Ela vai levantar, ela vai levantar, tá levantando...”.
E rapidamente Aristeu pegou no chão uma pedra bem brande e jogou sem direção. E foi um alívio no rosto do maluquinho, que disse em seguida: “Foi bem na cabeça e esbagaçou com tudo. Agora duvido que ela venha de novo. Tô até veno uma nuvem negra se formar por cima dela e já está começando a arrastar. Essa nuvem negra deve ir pra outro lugar que não pra cima, onde estão as outras nuvens branquinhas. Se elas não vão lá pra cima, em direção ao céu, então... Lascou-se!”. E deu um abraço apertado no profeta, que achou melhor não rechaçar.
“Agora que ela já morreu para sempre você pode falar sobre as outras coisinhas, não é mesmo?”, indagou. “Sim, mas deixe ver se eu me alembro. Já sei, já sei. Com sua força você pode tirar aquele rio de lá ou mudar o caminho dele, mas primeiro tem que cuidar das pessoas. Aí é que tá o problema, pois quem vive lá vive muito feliz e quem vai chegar lá ou ficar por perto também. Todo mundo vai achar que ali é a maior maravilha do mundo, só que as águas do rio que parecem passar silenciosas e mansinhas, na verdade conhece a história de todo mundo, e porque já conhecia e também porque fica vendo aquilo tudo quando passa e retorna. Você sabia que as águas daquele rio vão e voltam pra o mesmo lugar e começa a correr novamente? Pois é, o rio sabe de tudo e conhece tudo. Mas é um rio bondoso e maldoso ao mesmo tempo. Bom demais e ruim até dizer chega. Então é o passado dessas pessoas, juntamente com o que acontecer por ali, que vai mostrar a cara do bicho e aquilo que passa mansamente quando molhar os desconhecidos então é que o bicho vai pegar. Mas nisso tudo tem um problema maior, pois a sombra também falou que nesse meio vai estar um começo de vida e uma vida vivida...”
“Uma criança e uma velha?”, perguntou o esbaforido profeta, quase com o coração saindo pela boca. E Toinho respondeu mansamente: “Num sei, só sei que nesse meio vai estar um começo de vida e uma vida vivida...”.
continua...
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domingo, 20 de fevereiro de 2011
COMO OLHAR O ENTARDECER (Crônica)
COMO OLHAR O ENTARDECER
Rangel Alves da Costa*
O entardecer não é a tarde, são os momentos que antecedem a despedida desta e que muitos denominam de por do sol. Na tarde se perfaz uma parte do dia, enquanto no entardecer se perfaz uma parte da tarde.
A tarde se estende do meio dia até o ocaso, quando o sol se esconde e os sinais da noite começam a surgir; enquanto o entardecer se estende do coração até onde a saudade possa enxergar.
Seja sob qualquer condição climática, debaixo de chuva ou de sol, a tarde poderá ser vista uniformemente por todos, ainda mais quando o tempo está aberto, de céu azul e pessoas caminhando pela vida nos seus afazeres.
Com o entardecer é diferente, pois ainda que exista sempre, somente alguns têm o poder de encontrá-lo e reconhecê-lo. Eis que o entardecer traz consigo um mistério tão profundo que somente os que vivem, amam e sentem através do olhar podem compartilhar desse momento indescritível em sua plenitude.
Contudo, se existe aqueles de olhar já amigo e confidente do entardecer, mesmo assim esse instante mágico da natureza e dos elementos astrais pode ser compreendido e vivenciado por qualquer um, bastando que ao mirar adiante esteja tomado por sentimentos verdadeiros.
Mas umas lições básicas de como olhar e viver o entardecer sempre ajudará muito nesse encontro sentimental e afetivo.
Primeiro há que se perguntar qual o significado do entardecer em cada um. Então a pessoa se indaga se sente alguma transformação espiritual ao mirar mais demoradamente o entardecer, se o encontro com aquelas cores motiva alguma coisa e se aquele momento de solidão diante da paisagem tem o poder de transformar o seu pensamento.
O entardecer é sempre mais belo e influenciador do despertar de sentimentos se admirado e compartilhado quando a pessoa estiver sozinha ou ao lado de alguém que esteja ao seu lado pelo mesmo motivo, nunca em meio ao barulho ou na multidão que impeça da pessoa reencontrar-se.
Não é de qualquer lugar que os olhos devem se erguer para admirar e vivenciar o entardecer. Da janela que se descortina para o horizonte, em cima das montanhas ou dos montes, na pedra grande que está num local mais afastado, nas praças e jardins calmos e silenciosos, na praia ou onde o ambiente seja propício para o diálogo do espírito.
O entardecer é a visão ideal para recordar, lembrar, reviver momentos com pessoas queridas ou que tanto ama ou amou; é a porta aberta para voltar ao passado através da imaginação, para viver coisas boas e sonhar com tudo que grandiosamente lhe venha à mente; é o instante para refletir e se encontrar, para o diálogo consigo mesmo, para deixar que o coração tenha vez e voz.
Cabe tudo no entardecer, e se for coisas e pensamentos bons cabe muito mais. Cabe a prece e a oração, a diálogo com Deus que está presente e ouvindo na própria paisagem, o sorriso e a alegria, a face entristecida pela lembrança e a lágrima que não se conteve, o silêncio e o grito, cabe adormecer e acordar sempre mais feliz e realizado.
No entardecer cabe admirá-lo de mãos dadas, de mãos levantadas em louvor, de mãos que buscam os olhos para enxugar as lágrimas; cabe apreciá-lo com o diário na mão para escrever coisas bonitas, com a bíblia aberta, jogando oferendas adiante, pintando na tela o seu significado, as suas cores e o seu amarelo-avermelhado; cabe enxergá-lo até de olhos fechados, de braços abertos para o mundo e recebendo no corpo e espírito as influências positivas desse resto de sol.
Mas se o tempo estiver fechado, com a chuva caindo ou tudo nublado adiante e ao redor, ainda assim não esqueça do entardecer. Nunca esqueça do entardecer. O entardecer é uma presença no sentimento e não somente uma visão de fim de tarde.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
O entardecer não é a tarde, são os momentos que antecedem a despedida desta e que muitos denominam de por do sol. Na tarde se perfaz uma parte do dia, enquanto no entardecer se perfaz uma parte da tarde.
A tarde se estende do meio dia até o ocaso, quando o sol se esconde e os sinais da noite começam a surgir; enquanto o entardecer se estende do coração até onde a saudade possa enxergar.
Seja sob qualquer condição climática, debaixo de chuva ou de sol, a tarde poderá ser vista uniformemente por todos, ainda mais quando o tempo está aberto, de céu azul e pessoas caminhando pela vida nos seus afazeres.
Com o entardecer é diferente, pois ainda que exista sempre, somente alguns têm o poder de encontrá-lo e reconhecê-lo. Eis que o entardecer traz consigo um mistério tão profundo que somente os que vivem, amam e sentem através do olhar podem compartilhar desse momento indescritível em sua plenitude.
Contudo, se existe aqueles de olhar já amigo e confidente do entardecer, mesmo assim esse instante mágico da natureza e dos elementos astrais pode ser compreendido e vivenciado por qualquer um, bastando que ao mirar adiante esteja tomado por sentimentos verdadeiros.
Mas umas lições básicas de como olhar e viver o entardecer sempre ajudará muito nesse encontro sentimental e afetivo.
Primeiro há que se perguntar qual o significado do entardecer em cada um. Então a pessoa se indaga se sente alguma transformação espiritual ao mirar mais demoradamente o entardecer, se o encontro com aquelas cores motiva alguma coisa e se aquele momento de solidão diante da paisagem tem o poder de transformar o seu pensamento.
O entardecer é sempre mais belo e influenciador do despertar de sentimentos se admirado e compartilhado quando a pessoa estiver sozinha ou ao lado de alguém que esteja ao seu lado pelo mesmo motivo, nunca em meio ao barulho ou na multidão que impeça da pessoa reencontrar-se.
Não é de qualquer lugar que os olhos devem se erguer para admirar e vivenciar o entardecer. Da janela que se descortina para o horizonte, em cima das montanhas ou dos montes, na pedra grande que está num local mais afastado, nas praças e jardins calmos e silenciosos, na praia ou onde o ambiente seja propício para o diálogo do espírito.
O entardecer é a visão ideal para recordar, lembrar, reviver momentos com pessoas queridas ou que tanto ama ou amou; é a porta aberta para voltar ao passado através da imaginação, para viver coisas boas e sonhar com tudo que grandiosamente lhe venha à mente; é o instante para refletir e se encontrar, para o diálogo consigo mesmo, para deixar que o coração tenha vez e voz.
Cabe tudo no entardecer, e se for coisas e pensamentos bons cabe muito mais. Cabe a prece e a oração, a diálogo com Deus que está presente e ouvindo na própria paisagem, o sorriso e a alegria, a face entristecida pela lembrança e a lágrima que não se conteve, o silêncio e o grito, cabe adormecer e acordar sempre mais feliz e realizado.
No entardecer cabe admirá-lo de mãos dadas, de mãos levantadas em louvor, de mãos que buscam os olhos para enxugar as lágrimas; cabe apreciá-lo com o diário na mão para escrever coisas bonitas, com a bíblia aberta, jogando oferendas adiante, pintando na tela o seu significado, as suas cores e o seu amarelo-avermelhado; cabe enxergá-lo até de olhos fechados, de braços abertos para o mundo e recebendo no corpo e espírito as influências positivas desse resto de sol.
Mas se o tempo estiver fechado, com a chuva caindo ou tudo nublado adiante e ao redor, ainda assim não esqueça do entardecer. Nunca esqueça do entardecer. O entardecer é uma presença no sentimento e não somente uma visão de fim de tarde.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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O presente (Poesia)
O presente
Ninguém nunca deu um presente assim
mas vou tirar as pétalas da flor
e te dar somente os espinhos
tudo num buquê todo enfeitado
com algodão e esparadrapo
que é pra quando você sangrar
e de muita coisa lembrar
lá dentro vai um coração desenhado
igualzinho ao meu coração
que você disse que era de papel
rasgou e colocou na lixeira
e tive que juntar pedaço a pedaço
para no sangue renascer
quando da tua ferida beber
se em ti doer como doeu em mim
teremos novamente nos encontrado
tão amantes e tão amados
e tão juntinho e abandonados
levando um ao outro remédio
da palavra sem ter tédio
pois dois enfermos do coração
precisam se curar na paixão.
Rangel Alves da Costa
Ninguém nunca deu um presente assim
mas vou tirar as pétalas da flor
e te dar somente os espinhos
tudo num buquê todo enfeitado
com algodão e esparadrapo
que é pra quando você sangrar
e de muita coisa lembrar
lá dentro vai um coração desenhado
igualzinho ao meu coração
que você disse que era de papel
rasgou e colocou na lixeira
e tive que juntar pedaço a pedaço
para no sangue renascer
quando da tua ferida beber
se em ti doer como doeu em mim
teremos novamente nos encontrado
tão amantes e tão amados
e tão juntinho e abandonados
levando um ao outro remédio
da palavra sem ter tédio
pois dois enfermos do coração
precisam se curar na paixão.
Rangel Alves da Costa
DESCONHECIDOS - 30 (Conto)
DESCONHECIDOS – 30
Rangel Alves da Costa*
O maluquinho já havia deixado os dois e seguia catando pedra estrada adiante. Antes de agradecer as informações repassadas pelo homem da terra, o profeta Aristeu perguntou onde morava aquela pobre criatura sem juízo que Deus conservava no mundo.
“Toinho tem mais idade do que a gente imagina, mas parece criança. E pra você vê, mora sozinha uma criatura dessa. Mora bem ali naquela tapera por trás daqueles pés de moita. Na casinha mermo quase num fica, preferindo tá bateno perna pelo mundo, pedino de comer a um e a outro. Quando num sai é porque tá debaixo de uma jaqueira que fica bem na frente da casinha. Se assenta lá e parece que o mundo num existe mais. E eu queria saber o que uma pessoa demente dessa tanto imagina numa cabeça sem juízo pra pensar coisa certa...”.
“Pensa melhor do que nós, pensa muito melhor do que nós, pode ter certeza disso”, ajuntou o profeta. E prosseguiu: “A loucura não é má nem boa, por isso mesmo de feição desconhecida. Mas o louco em si, que vive nessa fronteira entre o absurdo e a realidade, conhece mais das coisas do que a gente, simples mortais que não entendem um grão sequer do que se estende nessa vida e seus labirintos...”.
Espantando pelo que ouvia, o homem falou apressado: “Me adesculpe, mas num tô entendo nadica de nada disso que tá dizeno. O moço tá falano pra uma pedra, pode ter certeza. Mai tenho que ir, e tenho quer ir porque tenho o que fazer e também porque num enteno direito o que diz. Entonce...”.
Já sabendo onde o maluquinho morava, e com declarada vontade de conhecer mais de perto os labirintos daquela loucura, assim que o homem desapareceu no caminho o profeta seguiu em direção às moitas de onde podia se avistar a tapera.
Não só avistou o casebre como a enorme jaqueira que ficava logo em frente. Assim que seguiu naquela direção e já se aproximava, sentiu cair uma pedra bem diante dos pés. Toinho estava escondido e aprontando das suas, logo pensou. Resolveu pegar a pedra e jogar de volta, com força, mas numa direção qualquer.
E o maluquinho apareceu veloz correndo de dentro de casa, todo esbaforido em direção ao profeta e dizendo: “Você conseguiu matar ela, você acertou bem na cabeça dela. Minha vida todinha foi tentando matar ela e você agora acertou bem na cabeça e com uma pedrada só. Você matou ela, matou, eu vi ela gritando e caindo morta, bem ali, bem ali, olhe...”.
O profeta ficou sem entender mais nada. Olhou de um lado pra outro e a não ser o maluquinho todo apavorado e agitado, não conseguiu ver nada caído nem morto. “Mas o que você está dizendo criatura de Deus, quem foi que eu matei ou o que foi que morreu?”, acabou perguntando.
“Você matou a sombra. E porque matou a sombra, matou também um monte de gente e de coisa que se escondia dentro e por trás da sombra...”, Toinho tentava explicar, quando foi interrompido pelo profeta: “Venha cá, vamos sentar ali embaixo da jaqueira pra você me explicar esse negócio da sombra...”.
“Não quero mais sentar aí não, mais nunca vou sentar aí debaixo dessa jaqueira. Se a sombra já tá morta, então não tenho mais que ficar aí horas e horas pensando como matar ela. Passei quase toda minha vida aí debaixo pensando em acabar com ela de vez, mas nunca pensei em jogar uma pedra na maldita, só nas pessoas, que era pra mim vingar. Mas agora você chegou e acabou com tudo. Só que agora tenho que lhe pagar. Sou muito rico, o que é que você quer?”.
“Não, nada. Não precisa me pagar nada, mas só quero que me fale mais sobre essa sombra que você disse que eu matei”. Insistiu o profeta, nem mesmo sabendo onde queria chegar.
“Ah, sim, a maldita. Ainda tá ali estirada, mortinha da silva, só faltando os urubus chegar. Você não sabe a cara medonha que a mentira, a falsidade, a preguiça, a inveja, a maldade, a ignorância e um monte de outras coisas fizeram quando você acertou a sombra. Elas achavam que não iam morrer nunca porque eu tentava matar mas não conseguia, até que você mostrou que tem gente mais valente do que a sombra...”.
“Mas a sombra era só isso?”, perguntou um profeta meio desapontado. “Não, de jeito nenhum. Com a morte da sombra agora vai ser cumprida a profecia...”. Tais palavras atiçaram imediatamente o profeta, que arregalou os olhos e perguntou que profecia era essa.
“Só vou dizer por que você matou a sombra. Amanhã mesmo vou cortar essa jaqueira...”. Agora totalmente desesperado, Aristeu balançou o maluquinho e falou: “Deixe esse negócio de jaqueira pra lá. Diga logo de uma vez que negócio de profecia é esse”.
“Ah, sim, a profecia. É a profecia do rio e das pessoas que vão em direção a ele...”.
continua...
Poeta e cronista
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Rangel Alves da Costa*
O maluquinho já havia deixado os dois e seguia catando pedra estrada adiante. Antes de agradecer as informações repassadas pelo homem da terra, o profeta Aristeu perguntou onde morava aquela pobre criatura sem juízo que Deus conservava no mundo.
“Toinho tem mais idade do que a gente imagina, mas parece criança. E pra você vê, mora sozinha uma criatura dessa. Mora bem ali naquela tapera por trás daqueles pés de moita. Na casinha mermo quase num fica, preferindo tá bateno perna pelo mundo, pedino de comer a um e a outro. Quando num sai é porque tá debaixo de uma jaqueira que fica bem na frente da casinha. Se assenta lá e parece que o mundo num existe mais. E eu queria saber o que uma pessoa demente dessa tanto imagina numa cabeça sem juízo pra pensar coisa certa...”.
“Pensa melhor do que nós, pensa muito melhor do que nós, pode ter certeza disso”, ajuntou o profeta. E prosseguiu: “A loucura não é má nem boa, por isso mesmo de feição desconhecida. Mas o louco em si, que vive nessa fronteira entre o absurdo e a realidade, conhece mais das coisas do que a gente, simples mortais que não entendem um grão sequer do que se estende nessa vida e seus labirintos...”.
Espantando pelo que ouvia, o homem falou apressado: “Me adesculpe, mas num tô entendo nadica de nada disso que tá dizeno. O moço tá falano pra uma pedra, pode ter certeza. Mai tenho que ir, e tenho quer ir porque tenho o que fazer e também porque num enteno direito o que diz. Entonce...”.
Já sabendo onde o maluquinho morava, e com declarada vontade de conhecer mais de perto os labirintos daquela loucura, assim que o homem desapareceu no caminho o profeta seguiu em direção às moitas de onde podia se avistar a tapera.
Não só avistou o casebre como a enorme jaqueira que ficava logo em frente. Assim que seguiu naquela direção e já se aproximava, sentiu cair uma pedra bem diante dos pés. Toinho estava escondido e aprontando das suas, logo pensou. Resolveu pegar a pedra e jogar de volta, com força, mas numa direção qualquer.
E o maluquinho apareceu veloz correndo de dentro de casa, todo esbaforido em direção ao profeta e dizendo: “Você conseguiu matar ela, você acertou bem na cabeça dela. Minha vida todinha foi tentando matar ela e você agora acertou bem na cabeça e com uma pedrada só. Você matou ela, matou, eu vi ela gritando e caindo morta, bem ali, bem ali, olhe...”.
O profeta ficou sem entender mais nada. Olhou de um lado pra outro e a não ser o maluquinho todo apavorado e agitado, não conseguiu ver nada caído nem morto. “Mas o que você está dizendo criatura de Deus, quem foi que eu matei ou o que foi que morreu?”, acabou perguntando.
“Você matou a sombra. E porque matou a sombra, matou também um monte de gente e de coisa que se escondia dentro e por trás da sombra...”, Toinho tentava explicar, quando foi interrompido pelo profeta: “Venha cá, vamos sentar ali embaixo da jaqueira pra você me explicar esse negócio da sombra...”.
“Não quero mais sentar aí não, mais nunca vou sentar aí debaixo dessa jaqueira. Se a sombra já tá morta, então não tenho mais que ficar aí horas e horas pensando como matar ela. Passei quase toda minha vida aí debaixo pensando em acabar com ela de vez, mas nunca pensei em jogar uma pedra na maldita, só nas pessoas, que era pra mim vingar. Mas agora você chegou e acabou com tudo. Só que agora tenho que lhe pagar. Sou muito rico, o que é que você quer?”.
“Não, nada. Não precisa me pagar nada, mas só quero que me fale mais sobre essa sombra que você disse que eu matei”. Insistiu o profeta, nem mesmo sabendo onde queria chegar.
“Ah, sim, a maldita. Ainda tá ali estirada, mortinha da silva, só faltando os urubus chegar. Você não sabe a cara medonha que a mentira, a falsidade, a preguiça, a inveja, a maldade, a ignorância e um monte de outras coisas fizeram quando você acertou a sombra. Elas achavam que não iam morrer nunca porque eu tentava matar mas não conseguia, até que você mostrou que tem gente mais valente do que a sombra...”.
“Mas a sombra era só isso?”, perguntou um profeta meio desapontado. “Não, de jeito nenhum. Com a morte da sombra agora vai ser cumprida a profecia...”. Tais palavras atiçaram imediatamente o profeta, que arregalou os olhos e perguntou que profecia era essa.
“Só vou dizer por que você matou a sombra. Amanhã mesmo vou cortar essa jaqueira...”. Agora totalmente desesperado, Aristeu balançou o maluquinho e falou: “Deixe esse negócio de jaqueira pra lá. Diga logo de uma vez que negócio de profecia é esse”.
“Ah, sim, a profecia. É a profecia do rio e das pessoas que vão em direção a ele...”.
continua...
Poeta e cronista
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sábado, 19 de fevereiro de 2011
INUSITADO (Crônica)
INUSITADO
Rangel Alves da Costa*
Depois de passar grande parte da adolescência lutando consigo mesmo para conviver e assumir sua opção sexual, depois de tanto lutar para vigiar-se perante a exposição de sua verdadeira sexualidade, e ainda depois de enfrentar barreiras familiares e sociais para dizer ao mundo que era homossexual, quando tudo foi vencido e caminhava na maior normalidade, eis que surge o inusitado.
Parece mentira, mas após esse enfrentamento todo lhe vem novamente os impulsos da sexualidade e o coloca sem saber o que fazer da vida. Quando esse verdadeiro problema começou a surgir parecia que ia enlouquecer, e realmente pensou mesmo em fazer terapias, freqüentar terreiros de macumba e se ajoelhar diante de todas as promessas do mundo.
Certa vez pensou em se matar, mas cismou que só ficaria chique se fosse se jogando debaixo do trem. Mas não era qualquer vagãozinho, maria-fumaça qualquer não, pois só serviria um vagão enorme e transportando caixas e mais caixas de perfume, que era pra quando estivesse sob os trilhos o aroma se desprendesse e fosse velar o seu corpo sem vida.
Não deu certo. Contudo, continuou amargando problemas e mais problemas, porém sem nenhuma razão, segundo poderia muito bem constatar alguém que fosse de sua proximidade. Ora, já tinha vencido uma verdadeira guerra para ser respeitado perante os seus impulsos mais secretos e os seus desejos mais escondidos, que era assumir-se gay. Agora não tinha cabimento viver nesse drama todo.
Tudo começou a ocorrer quando passou a se envolver com um conhecido, pelo qual já olhava adoçado há certo tempo e as pestanas estremeciam todas as vezes que estavam diante do belo rapazinho. Verdade é que começaram a se relacionar muito bem e os dois passaram a assumir publicamente a condição de namorados, com planos de algum dia juntar os trapos num mesmo saco.
Ciumento, ou ciumenta, em demasia, tudo fazia para agradar o seu caso, dando-lhe presentes e mais presentes, procurando saber se estava com algum problema, dando a terra e prometendo o céu, pois o amor era verdadeiramente ardente e incontido. Nem de perto as grandes paixões descritas por Shakespeare poderiam ser comparadas aos sentimentos que envolviam o alegre e contente rapaz.
Mas não era paixão de mão única, daquelas que nascem queimando tudo e depois vão arrefecendo até se tornar em cinzas frias e inoportunas. Era paixão verdadeira, vivenciada pelos dois, pois o rapazinho, mesmo sem expressá-la tão emplumadamente como o outro, ainda assim era a mais pura felicidade.
Quando tudo se encaminhava às mil maravilhas e já se cogitava em tornar cada vez mais real e presente aquele amor, através da celebração de uma união socioafetiva – que é como chamam o casamento entre pessoas do mesmo sexo -, eis, contudo, que o inusitado verdadeiramente faz uma surpresa e o gay assumido chamou o companheiro e disse-lhe algo surpreendente.
E contou aos prantos que estava muito agradecida por ele tê-la tornado tão verdadeiramente mulher, ter amado e se entregado tanto como jamais esperava amar na vida, mas por já se sentir tão mulher e tão assumidamente mulher é que a relação estava acabando naquele momento, pois ela já estava perdidamente apaixonada por outra mulher, e mulher verdadeira, do sexo feminino. Não tinha mais dúvidas, reconhecia-se agora como verdadeira lésbica.
Assim, o rapazinho que um dia se reconheceu gay, depois se reconheceu totalmente mulher, e depois se reconheceu lésbica porque mulher caiu apaixonado aos joelhos de uma bela jovem. E parecia amor para mais de mil anos, eterna paixão. E gostou tanto da fruta que cismou que naquela relação ele era o homem dali em diante. Então a outra perguntou se gostava de fazer às vezes de homem enquanto lésbica, então ele respondeu que até gostaria se tivesse nascido homem.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Depois de passar grande parte da adolescência lutando consigo mesmo para conviver e assumir sua opção sexual, depois de tanto lutar para vigiar-se perante a exposição de sua verdadeira sexualidade, e ainda depois de enfrentar barreiras familiares e sociais para dizer ao mundo que era homossexual, quando tudo foi vencido e caminhava na maior normalidade, eis que surge o inusitado.
Parece mentira, mas após esse enfrentamento todo lhe vem novamente os impulsos da sexualidade e o coloca sem saber o que fazer da vida. Quando esse verdadeiro problema começou a surgir parecia que ia enlouquecer, e realmente pensou mesmo em fazer terapias, freqüentar terreiros de macumba e se ajoelhar diante de todas as promessas do mundo.
Certa vez pensou em se matar, mas cismou que só ficaria chique se fosse se jogando debaixo do trem. Mas não era qualquer vagãozinho, maria-fumaça qualquer não, pois só serviria um vagão enorme e transportando caixas e mais caixas de perfume, que era pra quando estivesse sob os trilhos o aroma se desprendesse e fosse velar o seu corpo sem vida.
Não deu certo. Contudo, continuou amargando problemas e mais problemas, porém sem nenhuma razão, segundo poderia muito bem constatar alguém que fosse de sua proximidade. Ora, já tinha vencido uma verdadeira guerra para ser respeitado perante os seus impulsos mais secretos e os seus desejos mais escondidos, que era assumir-se gay. Agora não tinha cabimento viver nesse drama todo.
Tudo começou a ocorrer quando passou a se envolver com um conhecido, pelo qual já olhava adoçado há certo tempo e as pestanas estremeciam todas as vezes que estavam diante do belo rapazinho. Verdade é que começaram a se relacionar muito bem e os dois passaram a assumir publicamente a condição de namorados, com planos de algum dia juntar os trapos num mesmo saco.
Ciumento, ou ciumenta, em demasia, tudo fazia para agradar o seu caso, dando-lhe presentes e mais presentes, procurando saber se estava com algum problema, dando a terra e prometendo o céu, pois o amor era verdadeiramente ardente e incontido. Nem de perto as grandes paixões descritas por Shakespeare poderiam ser comparadas aos sentimentos que envolviam o alegre e contente rapaz.
Mas não era paixão de mão única, daquelas que nascem queimando tudo e depois vão arrefecendo até se tornar em cinzas frias e inoportunas. Era paixão verdadeira, vivenciada pelos dois, pois o rapazinho, mesmo sem expressá-la tão emplumadamente como o outro, ainda assim era a mais pura felicidade.
Quando tudo se encaminhava às mil maravilhas e já se cogitava em tornar cada vez mais real e presente aquele amor, através da celebração de uma união socioafetiva – que é como chamam o casamento entre pessoas do mesmo sexo -, eis, contudo, que o inusitado verdadeiramente faz uma surpresa e o gay assumido chamou o companheiro e disse-lhe algo surpreendente.
E contou aos prantos que estava muito agradecida por ele tê-la tornado tão verdadeiramente mulher, ter amado e se entregado tanto como jamais esperava amar na vida, mas por já se sentir tão mulher e tão assumidamente mulher é que a relação estava acabando naquele momento, pois ela já estava perdidamente apaixonada por outra mulher, e mulher verdadeira, do sexo feminino. Não tinha mais dúvidas, reconhecia-se agora como verdadeira lésbica.
Assim, o rapazinho que um dia se reconheceu gay, depois se reconheceu totalmente mulher, e depois se reconheceu lésbica porque mulher caiu apaixonado aos joelhos de uma bela jovem. E parecia amor para mais de mil anos, eterna paixão. E gostou tanto da fruta que cismou que naquela relação ele era o homem dali em diante. Então a outra perguntou se gostava de fazer às vezes de homem enquanto lésbica, então ele respondeu que até gostaria se tivesse nascido homem.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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