SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 31 de janeiro de 2017

UM ABRAÇO (E BEM APERTADO) EM SÔNIA GODOY


*Rangel Alves da Costa


Sônia, ontem eu lhe dei um abraço e um carinhoso beijo na testa, mas hoje, em palavras, quero parabenizá-la por mais este natalício em sua vida. Na verdade, em você parece que o tempo apenas passa e a idade é coisa que tanto faz. A mesma Sônia, de sempre e sempre.
Confesso, então, o imenso orgulho que sinto e o prazer sempre revigorado em ter Sônia Godoy como amiga, confidente, uma mão sempre estendida, uma voz sempre apta a se expressar em lições e conhecimentos. E cuja presença sempre vem acompanhada de força e determinação.
Alagoana de nascimento, mas filha de Poço Redondo por devoção e amor, Sônia Godoy no sertão sergipano aportou como se o destino lhe reservasse as terras de Zé de Julião como seu novo lar. E em lar Poço Redondo se transformou desde aqueles idos e para o sempre na sua vida.
Ora, Sônia é de família de extensas e profundas raízes não só em Alagoas como em Pernambuco. Os Godoy e os Honorato são troncos familiares de reconhecida pujança nos sertões nordestinos. Mas Sônia deixou sua Pão de Açúcar para viver e frutificar no sertão sergipano, em Poço Redondo.
Em Poço Redondo levantou parede, formou família, caminhou em passos firmes perante os seus objetivos. Depois de sua chegada, nada na vida do município passou sem a sua ativa presença. Já avó e ainda continua afoita, politiqueira, irrequieta, buscando sempre novas transformações.
Por longos anos foi apenas professora, por muito tempo foi apenas política, chegando à vereança municipal, mas durante todo o tempo, ao lado da cordial e bondosa amiga, foi também a voz que nunca calou diante das mazelas e dos absurdos.
A verdade é que Sônia Godoy se tornou não só útil como de fundamental importância na vida de Poço Redondo e sertões adentro. Pela sua luta e sua voz, pelo seu destemor e inteligência, sempre foi reconhecida e valorizada pela classe política e lideranças de Sergipe.
Sônia é daquelas pessoas que chamam o outro num canto e confessa, sem meias palavras, sua ira ou seu contentamento. Basta chamar que ela vai, que ela atende, mas não espere que ela simplesmente vá dizer o que ao outro agrada. É mulher da verdade.
Talvez tivesse sido por isso que meu pai Alcino sempre teve profunda amizade por Sônia. De Alcino ela foi amiga e conselheira, jamais dele se afastou ou deixou de estar ao seu lado nos momentos mais difíceis. Foi como uma enfermeira e uma mão carinhosa.
Eu sempre fui amigo de Sônia não por que ela era e continua amiga de meu pai, mas pelo reconhecimento que sempre tive de seu posicionamento diante das diversas situações da vida. Ela sempre me incentivou nos meus pleitos, sempre garantiu presença ao meu lado naquilo que eu precisasse. E de vez em quando nos encontramos para colocar em dia os novos e velhos assuntos.
No mesmo passo de Sônia, muitos de seus familiares passaram a ter Poço Redondo como moradia e construção de vidas. Zé Honorato e Joãozinho, seus irmãos, hoje são tão poço-redondenses como os nascidos na terra. Solange também morou e ensinou em Poço Redondo. Sua irmã Socorro adorava reencontrar seus velhos amigos sertanejos.
Suas filhas Viviane e Taysa são pessoas maravilhas. Seus netos Arthur e Heitor são umas lindezinhas sertanejas. Sua inseparável Lurdinha representa a feição da mais fiel amizade. Mazé, outra grande amiga, já não está aqui para abraçá-la com o mesmo afeto de filha. E Cícero, seu esposo, a paciência oposta à agitação da guerreira.
Qual a nova idade de Sônia? Não importa. Sônia ainda é menina, é traquina, é de eterna juventude. E que assim continue, Sônia. Poço Redondo necessita demais de sua presença, de seu olhar, de sua voz. E eu - e todos nós - de sua confortante amizade. Parabéns!


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Lá no meu sertão...


Caminhar pelas estradas sertanejas ao entardecer é a certeza de estar ao lado de paisagens assim, belas, comoventes, encantadoras.






Quando estou com saudade (Poesia)


Quando estou com saudade


O que dizer do amor
quando estou com saudade?

que lindo retrato
que bela canção
que doce bilhete
que cheiro de flor
que brisa suave
que beijo sentido
que frio e calor
que saudade
de amor
do amor

quanto estou assim
com tanta saudade
voando eu vou
aos braços do amor.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - quero dengo, quero cafuné


*Rangel Alves da Costa


Menina minha, meu amor só meu, venha cá juntinho a mim, deixe-me deitar no seu colo, preciso de dengo, preciso de cafuné. Quando eu era pequenino, menino traquina de bola de gude e cavalo de pau, mesmo sujo e suado, de repente me via correndo ao colo de minha avó para um dengo, para um cafuné. Mãos pelos cabelos, histórias e lições, de repente eu me via voando bem alto, para logo adormecer. Mas vovó partiu e fiquei com saudade daquele dengo, daquele cafuné. Hoje só tenho você, menina minha, minha mulher, para me fazer dengo, para me fazer cafuné. Faça de conta que sou seu menino, aquele pequenino que você tanto ama, e conte uma historinha bonita para me fazer voar e escrever seu nome nas nuvens, para desenhar seu rosto bonito no caderno do meu coração. Por que te amo, por que é minha menina mulher e me faz dengo, me faz cafuné. E se quiser faça-me mais que dengo, faça mais que cafuné.


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segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

EU E POÇO REDONDO


*Rangel Alves da Costa


Eu já tenho mais de cem anos de idade. Talvez duzentos anos ou mais. E assim por que vivo e convivo com o passado distante, com aquilo que comumente chamam de velharias ou coisas velhas.
Enquanto uns procuram se distanciar ou esquecer, eu simplesmente vou ao encontro e abraço, pois amo o passado, a história, as raízes. Guardando as proporções, assim meu pai Alcino fazia e assim eu faço agora.
Sou esse Matusalém da História porque sinto a necessidade de que os de agora conheçam - ao menos um pouco - os passos e a saga de Poço Redondo, seus personagens e suas importâncias em determinados contextos do nosso percurso.
Sei um pouco da história de Boboca, por exemplo, mas quero conhecer muito mais. Mas quem foi Boboca, alguém há de perguntar. Um humilde e pobre sertanejo igual a tantos, mas de igual importância aos grandes nomes ainda relembrados.
Preocupo-me tanto com a história de Boboca como a de meus avôs China e Ermerindo ou minhas avós Mãeta e Emeliana. A mim, a saga de cada sertanejo é que possui valia e merecimento no contexto histórico, seja Tonho Biôto ou Alcino, seja Remígio ou Seu Durval.
Acumulo e entrelaço percursos passados para transmitir aos de hoje, objetivando mostrar a importância de cada um. Assim faço no Memorial Alves Costa, assim faço nos meus escritos, nas minhas palestras e nas postagens fotográficas que faço.
Tenho compromisso com Poço Redondo. Deus não me deu conhecimento egoísta, e sim um destino de sabedoria a ser partilhado com todos. Tudo o que aprendo, logo faço questão que outros saibam. E assim vou dividindo conhecimentos do já esquecido por muitos.
Sou incansável nessa luta pelo resgate da história, das velhas raízes. Possuo avidez em partilhar da vida dos meus conterrâneos. Quero cada vez mais estar presente na vida desse povo que também é minha raiz.
Por isso que vou ao casebre mais distante e sinto o peito pulsar ouvindo o velho sertanejo, a velha lanhada de tempo, o autêntico conterrâneo. Vou aonde se esconde a humilde família, empobrecida e calejada de tempo, e de lá retorno cheio de felicidade e contentamento.
Faço das estradas, veredas e caminhos, meus mais costumeiros percursos sertanejos. Não gosto de estar no centro da cidade, mas pelos arredores e distâncias no convívio com a pedra, o bicho, a planta, o morador, a solidão dos casebres.
Coloco tudo no meu aió da memória e depois retorno para mostrar aos de agora. Não sei se mais tarde, quando eu já tiver mais de quinhentos anos e partir, alguém vai se lembrar do meu nome ou se existi. Não importa. Importa o que faço agora.
Não quero depois uma estátua em praça ou um nome de rua. Não quero outorga póstuma nem reconhecimento tardio. Tudo o que faço agora é deixar para a posteridade um caderno de vida, e esta entremeada de todo o passado de minha terra e do meu povo.
E um dia serei feliz. Daqui a mil anos ou mais, quando todos já se esqueceram daquilo que distantemente existiu, eu ainda estarei vivo. Tão vivo quanto a eternidade dos que agem para a imortalidade.
E assim por que cultivo e planto sementes. E as espalho por aí. O vento do tempo nem a tudo levará. Algumas frutificarão de tal modo que nada, absolutamente nada, conseguirá apagar.

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Lá no meu sertão...


Meu Poço Redondo, sertão sergipano.






Sobre estradas e ventanias (Poesia)


Sobre estradas e ventanias


Ao lado dos velhos retratos
eu me vejo imaginando a estrada
e logo sinto o quanto caminhamos
e deixamos para trás nossas alegrias
nossas magias e nossas razões de viver

por que o tempo acorrentou os sonhos
por que a idade aprisionou as esperanças
por que a pressa deixou para trás um mundo
e nada mais resta que diários e álbuns abertos
e lenços tristes procurando olhos umedecidos

e eu que sonhei voar no mais alto da colina
eu que criei asas para escrever salmos nas nuvens
sinto apenas que a janela e a porta estão fechadas
e as flores de plástico empalideceram empoeiradas
replanto os jardins apenas naquilo que posso sonhar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – da desonesta arte de ser desonesto


*Rangel Alves da Costa


“Se o desonesto soubesse a vantagem de ser honesto, ele seria honesto ao menos por desonestidade”, eis uma sentença moral atribuída ao filósofo Sócrates. Na verdade, gente há que a única honestidade que é possui é exatamente sua desonestidade. Desonesto consigo mesmo, desonesto nas relações, desonesto com a vida e com o mundo. Nada faz que se tenha como conduta ética, moral, respeitosa. Nada faz que não seja na mentira, no embuste, na malandragem, na covardia. É desonesto ao negar ou falsear o nome, ao forjar documentos, ao mentir a tudo e a todos, as tentar sempre enganar o próximo. Não importa a desconfiança e a reconhecida falta de caráter, pois o que importa é que de sua ação surja um proveito escuso, algum ganho que chegue enlameada. Também por que pessoas assim querem ser as mais honradas e honestas do mundo, o que já é uma desonestidade. E são mais pessoas assim do que imagina a nossa vã filosofia. Talvez fosse preciso iluminar a todos através da lanterna da honradez para ver quantos resquícios ainda restam das respeitosas condutas humanas.


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domingo, 29 de janeiro de 2017

MENINO OLHANDO O MAR


*Rangel Alves da Costa


Um leito de mar sem fim. Do beiral na areia molhada, o menino mira o seu espelho infinito. Uma infinitude que mansamente se alonga e se distancia. Sabe-se que o menino avista o mar. Mas ninguém sabe ao certo o que o menino imagina perante aquele mar imenso, aquele imenso mar.
Mar, lâmina molhada que se estende além e muito além de todo olhar. Vagas e véus que se misturam aos horizontes e infinitos e se perdem aonde voam as últimas gaivotas. Mas no seu beiral de areia molhada, um menino se lança em sua linha e seguindo vai por sua direção. O menino olha o mar, tão silenciosamente como um leve sopro de calmaria.
Uma fotografia de tristeza e solidão. Um retrato de silêncio e viagem em pensamento. Uma imagem mostrando a singeleza da vida a partir de um menino que olha o mar. Ou talvez o espelho de tudo aquilo que o ser humano deseja vivenciar enquanto seu olhar, demorado e calmo, faz rasante por cima das águas de qualquer mar.
Mas diante de mim, seja em retrato ou espelho, um menino que olha o mar. A moldura é ocre outonal, tudo envolto em branda ferrugem envelhecida. Talvez o tempo sem céu azulado faça dê às cores da paisagem uma tonalidade nublada. Ou talvez ainda um instante do dia onde o sol já esmoreceu sua força para chamar no seu resto o amarelado do poente.
Adiante o mar. Uma imensidão de águas azuis-esverdeadas que ao longe vão sumindo. Não há barco, vela ou escuna, apenas o mar aberto em seu silêncio e mistério. Não há navio nem qualquer outra embarcação, apenas águas na valsa da solidão. Também não há gaivotas nem outros pássaros, não há revoadas nem outras viagens de penas e voos. Os coqueirais inexistem, assim como as pedras molhadas que repousam em todo cais.
E o menino, aquele menino que olha o mar? Sim, avisto o menino. Ele está sentado na areia defronte àquela infinitude de águas. Não posso avistar seus olhos nem as marcas de seu semblante, pois está de costas de onde o avisto, mas creio ter um olhar que se tornou pequenino de tanto mirar aquele mar, mas também tão profundo e molhado como aquelas águas de mar. Veste uma camisa e talvez uma bermuda. Está descalço, com os pés tomados da areia úmida daquele beiral de mar. É um menino bonito.
É um menino bonito, assim imagino. Mas tenho certeza que também é um menino triste. Não é fácil encontrar meninos assim, sentados na areia, em posição demoradamente contemplativa, deixando que seus olhos avancem e naveguem sobre o mar. Não é fácil avistar meninos assim, no silêncio e na solidão, desejando apenas meditar e refletir sobre aquelas águas que se alongam em mistérios e encantamentos.
Perante o mar, naquele ritual singelo e filosófico de contemplação, o que estaria imaginando o menino? Meninos sonham, meninos viajam em sonhos, meninos fantasiam, meninos criam barcos mentais e neles navegam até onde quiserem. Meninos caminham nas águas, dão braçadas entre as vagas molhadas, sobem aos céus em revoadas, se tornam gaivotas quando desejam. Por isso mesmo difícil decifrar o que o menino pensa perante aquele mar.
Talvez o menino esteja repousando do cansaço do dia e apenas avistando aquele mar como qualquer água. Meninos gostam de cais, gostam das pedras do cais, gostam de correr nas areias, gostam de tomar banho sem roupa, gostam de deitar e adormecer ali mesmo nos beirais molhados. Mas aquele menino está vestido, aparentando estar apenas mirando o mar. E com este seguindo numa distância desconhecida. A força da imaginação no menino.
Será que o menino fez nascer no olhar um barquinho de papel e naquele momento já o avista entrecortando aqueles azuis-esverdeados? Ou será que está se imaginando um corsário em busca de tesouros perdidos e outros tomados à força da pirataria? Ou será que imagina que lá adiante, bem mais longe do mais longe, há uma terra igual aquela onde está sentado e nela uma vida muito melhor? Talvez seja um menino aflito, sofrido, que ali chora seu sofrimento enquanto viaja nas águas do mar em busca de sonhos bons.
Não sei. Não sei. Apenas avisto o menino olhando o mar e de repente sinto vontade de ser aquele menino. Talvez seja eu mesmo aquele menino. Já faz muito tempo que preciso avistar o mar. Talvez seja eu mesmo aquele menino.


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Lá no meu sertão...


No sertão, ao entardecer...






Sopro de vento (Poesia)


Sopro de vento


Ao vento digo venha
ao vento eu digo vá
ao vento eu digo já
o vento eu espero
quando vai passar

e folha ao vento
me deixo me levar
em meio à ventania
meu eu a esvoaçar
um sopro pelo ar

e olho o vento
quando vai passar
e sei que o vento
logo vai chegar
e me soprar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – redes sociais e as imundas palavras


*Rangel Alves da Costa


Pessoas utilizam as redes sociais também para expressar suas dores, suas mágoas, suas raivas, suas alegrias e contentamentos, seus amores e para tudo o mais. Tem gente que gosta de se esconder atrás de mensagens religiosas. Tem gente que somente utiliza para criticar ou fazer maldades com os demais, até com quem não está nem aí para esse tipo de coisa. Contudo, o que comumente se observa é a utilização do facebook, por exemplo, para escrever todo tipo de baboseira, de verdadeiras bobagens. Conhecendo as pessoas que assim escrevem, há sempre de se imaginar que aquelas palavras surgiram depois de uma bebedeira ou mesmo durante festins alcoólicos. Não se pode acreditar que de sã consciência ou sem a ingestão de bebidas ou afins, a pessoa crie coragem para escrever tanta porcaria. Os erros de grafia são até insignificantes ante as asneiras despejadas. Porcarias que enojam e fazem pensar no que as pessoas são capazes. O problema é que tais expressões acabam traduzindo o verdadeiro caráter de quem assim age. E não passam daquilo que escrevem na intenção de aos outros afetarem.


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sábado, 28 de janeiro de 2017

A RAINHA DE PERNAS ABERTAS


*Rangel Alves da Costa


Era uma vez... Era uma vez num reino distante, mas muito distante mesmo, onde uma rainha, ao invés de exercer seus ofícios reais ao lado do velho soberano, preferia fazer coisas mais apimentadas. Era a rainha da luxúria, da devassidão, da libertinagem. Mais tarde, como bem escreveu um insuspeito historiador, seu nome ficaria conhecido como a rainha de pernas abertas.
Rainha, pelo amor que sente ao reino, feche essas pernas, rainha! Alertava o conselheiro da corte. Mas não tinha jeito, pois quando o velho rei cochilava, lá ia a rainha abrir as pernas. Rainha, por tudo mais precioso na vida, feche essas pernas, rainha! Implorava a dama da corte. Porém não tinha jeito. Bastava uma breve distração do rei ancião e a rainha corria soltar os panos e abrir as pernas.
O curandeiro da corte já havia quase endoidado em busca de um remédio para a safadeza da rainha. Já havia testado mais de mil ervas, mais de uma centena de poções diferentes, quase uma carrada de mezinhas e outras preparações. O que se via, contudo, era o fogo da rainha aumentar. O mago da corte já havia desistido. Todos os seus intentos foram de água abaixo ante os prenúncios mostrados nos espelhos. Ou estes se partiam envergonhados ou mostravam uma depravada no cio mais irrequieto.
Rainha, pelo brasão e o escudo da corte, pelo amor da honra real, feche essas pernas rainha. Não fica bem uma senhora impoluta e de sangue azul, de coroa e potestade, viver por aí levantando os panos reais para ficar de pernas abertas diante de qualquer um. Feche as pernas, sua mais que safada alteza! Disse o cozinheiro da corte, num instante em que a rainha devassa exigia uma gemada de mil ovos para recompor suas forças. Até o bobo da corte, de soslaio, soltou a sua: Santa Messalina perto dessa aí. Puta perde, pois isso é mesmo uma cadela dando pra gato e rato.
Todo mundo sabia dessa história, porém ninguém a espalhava livremente por medo de a notícia chegar aos ouvidos do velho rei. Homem justo, bondoso, reinando com respeito aos servos e serviçais, não merecia conhecer o que a sua jovem rainha andava fazendo e fazendo demais. A mulher era tão sedenta de sexo que certa feita agendou de antemão a visita de todo jovem do reino que tivesse entre dezoito e vinte anos.
Guerreiros, soldados, campesinos, pobres aldeões, mancebos e envelhecidos, ninguém escapava do seu flerte. Ordenava que um ou outro fosse trazido às escondidas, pelos fundos do castelo, ou simplesmente se vestia de aldeã para ser usada e abusada por cima do capim, nas estrebarias ou em qualquer lugar. Subia no alto da torre e lá mandava tocar os clarins enquanto abaixava a roupa para ficar de pernas abertas. Toda vez que os clarins tocavam, então o povo já sabia da safadeza da rainha.
Rainha, pela dignidade do seu velho esposo, feche essas pernas. Tal fome de sexo já passou dos limites. Que safadeza é essa de não respeitar sequer os aposentos de um castelo cheio de honra e glória. E do jeito que vai, não vai demorar muito e o seu senhor e rei tomará ciência dos chifres que vem levando a cada dia e da sua quenganhice sem fim. É o conselho que dou. Feche as pernas, rainha. Foi o que afirmou o sacerdote estupefato com os boatos espalhados por todo lugar.
Um dia, a safadeza da rainha chegou aos ouvidos do velho rei. Imediatamente este se dirigiu aos aposentos de sua senhora real e lá, abrindo as portas de surpresa, encontrou a soberana puta de pernas abertas. Diante da cena, teve um piripaqui e morreu. Depois disso o reino ficou sem rei nem rainha. Ela abdicou do trono e resolveu abrir as portas do castelo para outros fins. E ali surgiu um famoso cabaré.
Contudo, como toda a burguesia da antiga corte não saía do cabaré, era nos seus aposentos que todos os destinos eram resolvidos, entre bebidas, grunhidos e pernas abertas.


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Lá no meu sertão...


Meu sertão ao cair da tarde...






Agora e depois (Poesia)


Agora e depois


Esperei entre luas e sóis a chegada de perfume na brisa
esperei entre cansaços e lágrimas a chegada da esperança
mas quanto mais esperei mais foram chegando vendavais
e tempestades vorazes para levar o que restou nos varais

não quero mais sofrer as dores das tempestades e vendavais
não quero mais chorar a lágrima descida no grito de dor
e já me levantei da mesmice das janelas e portas fechadas
para caminhar sem destino por entre nuvens e estradas
em busca daquilo que sei que possuo e ainda não me chegou

e logo destruí ervas daninhos e despedacei pedras e espinhos
e logo plantei flores novas e fui espalhando sombras e água fresca
e não descansarei até que a vida retome sua feição de felicidade
e o viver vá além da melancolia para se transformar em encantamento.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – o que somos e o que fomos


*Rangel Alves da Costa


O ser humano, a partir de um determinado instante da vida, passa a se revestir de um manto que já não é mais o dele. Significa que a partir de um certo tempo ou uma certa idade, o ser humano passa a ser outro diferenciado daquele acostumado. Ou ainda: o tempo transforma a pessoa naquilo que já não deseja ser, vez que afastado daquela outra, em si mesma, que já não existe. Ora, até determinada idade, ainda que em muitos isso se prolongue até a velhice e além, a pessoa ainda vive envolta com o seu passado, com as suas memórias de criança, de infância, da vida boa de outros tempos. Pensa e relembra como foi sua meninice, sente saudades das brincadeiras e peraltices, ainda vive como se não tivesse totalmente apartado daqueles doces instantes vivenciados. Contudo, chega um instante da vida aonde tudo isso vai sendo deixado de lado, esquecido. As preocupações de adulto e da velhice passam a tomar conta do pensamento e a mente já não retorna ao passado como desejo e necessidade. As memórias de criança vão desaparecendo em nome de outros e breves instantes. Relembra-se apenas o ontem, o momento passado, e quase sempre em situações que nada têm de lúdicas ou prazerosas. São as preocupações próprias dos adultos que afastam os seres de ser si mesmos, naqueles ontens vivenciados, para serem somente os seus presentes. Então somos apenas o espelho presente e não os retratos passados.


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sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

GATO E RATO, AMOR E MEDO


*Rangel Alves da Costa


Noite alta. Na solidão da lua, o gato e o rato de repente se encontram pelas calçadas. O que poderia parecer um instante de ataques e recuos, de surpresas e espantos, passa a se transformar em situações mais que inusitadas.
Naquela solidão da noite, ao avistar o rato, o gato se tomou de espantosa sensação. Não teve vontade de atacá-lo, de feri-lo, de abocanhá-lo. Apenas de senti-lo mais de perto, como se tomado de um intenso e profundo desejo amoroso. E não sabia que se tratava de uma rata.
Por sua vez, a ratinha também se sentiu em delicada situação. Ora, qualquer rato logo procura fugir do gato assim que o avista ou encontra, mas daquela vez não, pois a ratinha apenas olhou para o bichano como se estivesse encontrando algo importante em sua vida.
Uma paixão repentina entre gato e rato? Tudo pode acontecer no reino animal. Ali não mais a presa e o predador, a caça e o caçador, mas apenas os instintos mostrando suas forças. As vontades, os desejos, tudo ali. Mas como ocorre no mundo humano, também a fronteira entre o querer e o ter.
E o querer distancia-se do ter na medida em que o desejo esbarra no medo. Para o gato tanto fazia, pois macho e bichano, predador e ávido por novas experiências. Mas com a ratinha não. Apenas uma fêmea repentinamente tomada de desejos, mas também um ser que poderia ser vitimado pela insensatez.
Ora, não se poderia imaginar como sensato que o gato tivesse boas intenções para com a ratinha. Sua vontade, sua volúpia, sua fome de prazer, bem que poderia ser saciada naquela pequenina fêmea. Mas depois? Já com medo de se apaixonar assim, pior ainda ser depois devorada.
Mas enquanto lentamente se aproximavam, tanto o gato como a rata faziam intensos diálogos mentais.
O gato: Estranho que eu não queira logo abocanhar aquela ratinha. Talvez eu faça isso depois. Mas antes do depois desejo mesmo é experimentar como é o sexo de uma ratinha, como é o seu prazer perante o seu maior inimigo.
A ratinha: Não, mil vezes não. Eu nem deveria estar aqui. Preciso fugir, porém sinto que desejo ficar. Estou atraída demais por esse gato que de repente me chega como algo que preciso ter, ao menos por um momento. Mas temo o pior. O que ele pensa em fazer comigo?
O gato: Eu deveria ser menos animal. Sempre imaginei ser impossível deixar de ser bicho ante toda e qualquer situação. Levava no sentimento a marca do tanto faz ou tanto fez. E agora, quando menos espero, logo uma gata aparece na minha estrada para me deixar assim transtornado.
A ratinha: Quero tanto. Quero demais. Mas não posso me entregar ao sadismo das unhas do gato, ao punhal nos seus dentes, à sua sanha e sede de ferir todo rato que encontrar pela frente. Será que eu seria uma coisa boa na sua vida, uma fêmea ratinha que possa transformar em flor tanto rancor bichano?
O gato: Que situação mais difícil a minha. E que prova encontro agora. Sou gato e sou perigoso, violento e voraz. Mas também sou gato e sinto desejo, tenho um coração e vontade de sexo. Mas por que com essa gatinha e não com uma cachorrinha ou outra gatinha?
A ratinha. Vou fechar os olhos e seguir adiante. Sinto um fogo me subir e já não temo nada. Que o gato faça de mim o que quiser. Que me coma do jeito que desejar, pelo sangue ou pelo prazer. Despeço-me de todo medo e vou. Sou cheirosinha e gostosinha, ao menos espero que ele perceba isso.
O gato: Gato, gato. Acho que chegou sua vez de rato. Deixo de ser gato e me torno rato por vontade. Depois do amor é que saberei o que realmente sou.
E os dois seguiram. Aproximaram-se cada vez mais. E no meio da noite ouviram-se gritos e gemidos de prazer. Ao amanhecer o gato havia desaparecido. E a gatinha jazia morta no beiral da calçada. O gato saciou seu prazer e depois mostrou apenas o seu lado predador.


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Lá no meu sertão...


O sertão de Poço Redondo e suas belezas!






Cafuné da minha muié (Poesia)


Cafuné da minha muié


Cansaço de tudo
tomar um café
e pedir cafuné
de minha Zabé

venha cá Zabé
me fazer cafuné
pro fogo subir
feito chaminé

balança a rede
derrama o café
tudo revirado
depois do cafuné

venha cá Zabé
vem fazer cafuné
a vida é curta
vem ser minha muié.



Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – madrugadas


*Rangel Alves da Costa


Madrugadas. O silêncio, o silêncio, o silêncio, nem parece a vida. Madrugadas. Os gatos sumiram, desapareceram, choram a solidão pra depois gemer. Madrugadas. Não há chuva lá fora, não há vento lá fora, não há passos lá fora, nada existe lá fora, apenas a madrugada. Madrugadas. As pessoas dormem, as pessoas abafam soluços, as pessoas amam, as pessoas namoram, as pessoas morrem, as pessoas nascem. Madrugadas. As portas fechadas, as janelas fechadas, tudo escondido, tudo escurecido. Madrugadas. Passos pela casa, café no fogão, xícara na mão, cigarro aceso, tanta solidão, a desolação. Madrugadas. Saudades, lembranças, as recordações, de outras madrugadas sem tanta solidão. E assim passa o tempo, os segundos despertam, os minutos acordam, as horas levantam. Não há mais nada a fazer. Acaba o silêncio, acaba a ternura, a recordação. É amanhecer.

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quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

SER GENTE, SER POVO E SER HUMANO


Rangel Alves da Costa*


O ser humano deveria ser gente e ser povo; o povo deveria ser gente; e gente deveria ser cada vez mais humana. O mundo necessita de gente humana, de seres realmente humanos. O que faz com que gente não goste de gente, que povo odeie outro povo, que o ser humano se contradiga tanto a cada passo?
Criados para a pacificidade, de repente a liberdade humana se transformou em arma contra o próprio ser humano. O homem, ao preferir trilhar o caminho inverso aos bons valores, acabou por transmudar o seu meio numa selva brutal. Daí o homem ser lobo do próprio homem, ser o algoz de sua espécie, ser aquele que pensa no próximo como inimigo.
O senso de humano deveria estar cada vez mais presente em cada um enquanto gente e em cada sociedade enquanto povo. Não se admite que gente seja apenas gente e povo apenas povo, sem a característica maior do humano. Como tudo se entrelaça para caracterizar o viver e o fazer humano, tal contexto não deveria ser desvirtuado em nome de crenças, religiões, preconceitos, discriminações, ódios pessoais ou quaisquer coisas que ameaçassem a estadia humana sobre a terra.
Mas vamos aos conceitos, lembrando apenas que serão vistos de modos específicos e não na totalidade de suas compreensões, vez que, por exemplo, o significado de gente tanto pode dizer respeito à população em geral como a pessoas desse povo. Contudo, será visto de modo mais restrito ainda.
Gente, pois, é visto aqui como o indivíduo, o homem ou a mulher, vivendo em comunidade, dotado de inteligência, com poder de raciocínio e reflexão. Aquele que faz parte do gênero humano e que se individualiza perante os demais. Eu sou gente, você é gente, e assim deve ser visto.
Povo, por sua vez, deve ser visto como o conjunto da população, como os habitantes de um país, de uma cidade, de uma localidade. É um conjunto de indivíduos, de pessoas. Entretanto, para os fins aqui almejados, povo é a condição humana existente nas pessoas, é a sua capacidade de ser reconhecido pelas suas ações.
Neste sentido, se poderia dizer que gosta do cheiro de povo, que aprecia a atitude e a determinação do povo, que não pactua com a escolha do povo. Ou ainda, com relação a gente, que gosta do jeito de ser de determinada pessoa, que se sente bem em meio a gente educada. Assim, gente possui a conotação de pessoa, de indivíduo de sujeito.
Já o ser humano é a espécie humana. Ser enquanto indivíduo dotado de atributos humanos. Neste sentido é que se diferencia do animal e irracional e possui prevalência na cadeia da existência, exatamente por ser racional. Ou ao menos assim deveria ser, tão humano quanto a sua espécie, tão inteligível quanto à sua capacidade de raciocinar sobre o bem e o mal.
O humano distingue a gente e o povo do reino da irracionalidade. Não basta haver nascido de pai e de mãe, do sexo masculino ou feminino, ou mesmo híbrido, e não carregar em si o senso humanista. E ser humano implica em humanizar-se sempre e sempre mais, já sair do leito com a noção de servir e compartilhar, de ser socialmente útil, de tornar-se reconhecido como pessoa e não como bárbaro.
De pouca valia se tem que o mundo esteja cheio de gente, e de uma gente que forma o povo, se esta gente e esse povo apenas vivem sem se reconhecerem nos fundamentos da existência. Ora, se existem é porque nasceram com objetivos e finalidades, com caminhos a serem percorridos. Ao surgirem como dádivas da criação, no mundo foram colocados como promessas do bem e para o bem. E não para que transgridam a criação.
Talvez seja difícil compreender assim, mas todos possuem, na essência, o dom da existência, do conhecimento e do senso de comunhão, porém optam por irracionalidades. O ódio ao invés do perdão, a intriga ao invés da concórdia, o ciúme ao invés da compreensão, a agressão ao invés da proteção. Infelizmente é assim que o homem se pauta no seu lidar com a vida e com o seu semelhante.
Ainda que conheça as consequências das más escolhas e dos comportamentos de vida, ainda assim o ser humano acaba optando pelo individualismo, por atitudes egoístas e pela deturpação do caráter natural. Como se num mundo de concorrências pessoais, onde cada um quer se sobrepor ao outro para mostrar que é melhor, o resultado são confrontos e derrotados de todos os lados. E isto, irremediavelmente, leva a mundo desumanizado em todas suas vertentes.
Como visto, tanto povo como gente e ser humano fazem parte de um mesmo contexto de vida e de existência. O surgimento da espécie foi para a paz, para a comunhão, o amor e o respeito. Não se admite a opção pelo mal quando todos se ressentem das tantas maldades existentes. Contudo, falta o compromisso de cada um perante a sua própria vida e o viver de todos.


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Lá no meu sertão...


Em Poço Redondo, no sertão sergipano, um entardecer de encantar os olhos e os sentimentos.







Beije-me (Poesia)


Beije-me

Beije-me
teu lábio é paz
é conforto e carinho

beije-me
quero a nuvem
no teu lábio céu

beije-me
dê-me tua boca
e todo amor terei

beije-me
quero senti-la
Mylla...


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - se bebe e se come segundo a sede e a fome


*Rangel Alves da Costa


Somente a sede para dizer o sabor e a valia que tem a água. Somente a carência e a vontade para dizer o que pode ser rejeitado ou não. Duvido que a burguesia não se empanturre ante uma farofa de ovo quando a fome bater forte. Duvido que a burguesia não se lambuze de lamber os beiços com comida estragada e restos de pratos acaso se veja sem a costumeira fartura. Quando o assunto é fome não há muita escolha não. Ou come ou morre de fome. Desse modo, a carência socializa o ser humano na sua verdade. Todos querendo mastigar o que encontrar. O mesmo acontece com a água. Tem famoso que outra coisa não aceita senão água mineral com bolinhas cristalizadas. Logicamente que não está com sede, apenas com frescura, pois se sentir debaixo de sol de deserto, sem qualquer moringa adiante, certamente que vai se lançar no primeiro poço barrento que encontrar. E vai beber tão gostosamente como se aquela imundície fosse a coisa melhor do mundo. É o momento da valia da salvação. Em instantes assim não há nem tempo de pensar em água gelada.


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quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

COMO BEBER CASCA DE PAU, CACHAÇA MATUTA DA BOA


*Rangel Alves da Costa


Zezim Bonome, famoso bebedor das ribeiras sertanejas, já cantava ao pé do balcão: Bebida pede um motivo e sem cachaça não vivo. Caço um motivo na hora, da saudade que arvora, da dor que não vai embora. Seja motivo verdadeiro ou não, o que importa é a intenção. E depois do copo virado outro motivo é achado e um novo copo emborcado. Então bote mais uma aí que eu tô é apaixonado.
Já Pé de Cana, cujo apelido já dizia bem o que mais gostava de fazer, chegava chorando no botequim pra todo mundo perguntar o que estava se passando e logo ele dizia: Joaninha das Cabaças me traiu, e veja que triste sina a minha. Pra não morrer de desgosto vim aqui pedi um lenço aos amigos. Mas como ninguém usa lenço, então prefiro uma relepada boa, uma cachaça de copo cheio que é pra ver se diminui a desdita da maldita.
Famosa era a toada ecoada por Zé das Quebranças toda vez que entrava no Gineta, um famoso botequim do passado sertanejo. Descendo o chapéu de couro no balcão antigo, logo entoava: Escute aqui ô Seu Né essa mágoa sertaneja. Dia e noite na peleja nesse sol que não troveja, tudo causa um sofrer que só me resta beber pra na vida ter prazer. Desce um copo bem cheinho que esse cabra tá doidinho e não quer enlouquecer.
E assim os copos são cheios, virados e revirados por esse mundão afora. Cada um chegando ao pé do balcão com seu motivo de beberança. Seja na alegria ou na tristeza, pelo prazer em beber ou pelo motivo da hora, a verdade é que a branquinha não deixa de ser virada. Então, o cabra chega ao pé do balcão e diz a escolha ou aponta o dedo. O vendeirim volta de litro à mão e despeja na medida. E o copo de pinga todo mundo já sabe como é: fundo encardido e o resto amarelado.
O copo é o que menos importa, pois é o sabor da pinga que mais interessa. Mas existem cachaças e cachaças, pinga de todo tipo. Tem gente que tanto faz beber uma destilada ou uma artesanal, tanto faz beber aguardente de rótulo como virar uma lapada de cachaça com raiz de pau. Gente assim não sabe nem beber nem escolher. O bom bebedor é fiel a uma marca ou tipo de bebida, nunca mistura no pé de balcão ou diz que tanto faz uma como outra.
O sertanejo, por exemplo, só bebe cachaça de rótulo se não houver a casca de pau, preparada no esmero. E quando se fala em preparo, logo se tem a pinga legítima, branquinha de engenho, despejada em litro e misturada ao que existe na vegetação ao redor. Casca de pau, raiz, folha, fruto, tudo serve como mistura. Mas a aceitação é maior quando a planta é conhecida por todos, assim como angico, bonome, aroeira, hortelã, quixabeira, umburana, cravo, cidreira, e muito mais.
Além disso, engana-se quem imaginar que beber cachaça matuta é apenas o ato de virar a dose goela adentro e acabou. Do mesmo modo, comete injustificável equívoco aquele que disser que a beberança da pinga do mato é igual a outra qualquer. A sabedoria sertaneja já disse que a cachaça matuta é tanto remédio como revigorante, é tanto expulsadeira de mazelas como chamadeira de apetite. Até mesmo os mais velhos dão uma bicada quando querem afoguear.
No mundo matuto, muitos são aqueles que chegam ao pé do balcão batendo na barriga e dizendo que ela anda meio roncadeira, meio desajeitada. Então pede, na dose, o remédio certo. Outros se previnem das consequências de uma comida pesada ou gordurosa com uma cachaça preventiva. Já outros até inventam desculpas para ter o copo cheio perto dos beiços. E se há umbu verde ao lado, perna de preá, caju ou qualquer frutinha azedada, então a dose se torna em beberança.
Como a cachaça com raiz, folha, semente, lasca ou fruto do mato, não deve ser vista como aquela destilada de fabricação em lote, o mesmo se diga com relação ao jeito de beber, ao modo de sorver cada tiquinho da branquinha de engenho misturado ao sabor da planta escolhida. Pinga de rótulo se bebe aos poucos, enquanto a casca de pau é virada de vez, mas sem se esquecer de oferecer um tiquinho ao santo beberrão lá embaixo.
Muitos podem ser os nomes para a mesma cachaça depois de misturada: casca de pau, raiz de pau, cachaça de mato, cachaça com casca ou raiz de pau. Nas prateleiras ou nos cantos dos velhos balcões, os sortimentos para a escolha perfeita. E muitas são as opções para a mistura da cachaça. Alguns vendeirins misturam a casca ou raiz com aguardente branca destilada. Contudo, a verdadeira cachaça matuta só presta com a pinga nova de engenho, branquinha e pura, ainda com o gosto da cana.
Conheço por que já bebi. E muito. Hoje troquei o bar por sorveteria, como diz a música.


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Lá no meu sertão...


Gosto de uma solidão assim. Silenciosamente conversando com o meu mundo adiante.




Num sonho (Poesia)


Num sonho

Num sonho
subi na noite
e trouxe a lua
ao meu amor

num sonho
peguei a lua
e fiz um anel
ao meu amor

num sonho
dei a ela o anel
e da lua restante
fiz uma lua de mel.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - não há igreja nem religião, apenas a fé


*Rangel Alves da Costa


Digo sem medo de errar: não há igreja nem religião, apenas a fé. As pessoas não vão à igreja por que acham bonitos os sermões, por que o padre é bom amigo e acolhedor, por que o prédio do templo é suntuoso, por que se sentem bem acomodadas naqueles bancos de madeira. Não. As pessoas vão ali porque acreditam na força da igreja, porque sentem a necessidade da presença de Deus, porque creem que os seus rogos ali serão ouvidos. E tudo isso se chama fé. A fé em acontecer, a fé em modificar uma situação, a fé de transformar tristeza em alegria, a fé de tornar a desesperança em sonho bom. Igualmente se diga com relação à religião. Ora, tanto faz que a pessoa seja católica, protestante ou de qualquer outra crença ou culto, pois importa mesmo a força da fé que lhe move. Não é a religião que produz um Deus diferente ou um Deus apropriado aos desejos da alma e do espírito, mas a própria pessoa. E o seu Deus sempre estará condizente com a sua fé. Ademais, a presença de Deus, a fé em sua existência, nos seus poderes e milagres, não exige que se tenha igreja ou religião. Se a fé possui templo no coração, então a presença divina passa a ter existência própria. Assim, o Deus é a fé, e a fé faz surgir o Deus desejado em cada um.


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terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O COITEIRO PEDRO DE CÂNDIDO E AS EVIDÊNCIAS DA TRAIÇÃO


*Rangel Alves da Costa


O famoso coiteiro Pedro de Cândido sempre teve seu nome envolto em mistérios. Sem dúvida, um dos personagens mais emblemáticos do cangaço. O filho de Dona Guilhermina e Seu Cândido, então donos das terras onde está situada a Gruta do Angico, por muito tempo foi apontado ora como traidor de Lampião, ora como vítima de maus-tratos da volante alagoana. No primeiro caso, simplesmente delatou o bando. No segundo, foi forçado a delatar. Assim os debates e as controvérsias entre pesquisadores e historiadores do fenômeno cangaço.
Contudo, interpretando uma passagem de um texto escritor pelo historiador e pesquisador José Jairo (“O Lobisomem e o Coiteiro de Lampião”, disponível em http://cariricangaco.blogspot.com.br/2014/01/o-lobisomem-e-o-coiteiro-de-lampiao.html), logo se tem como induvidoso que Pedro de Cândido realmente traiu Lampião, que agiu não por que foi torturado, ameaçado ou teve dedos das mãos decepados, mas que assim o fez premeditadamente, ou seja, falou onde era o coito porque quis e por vontade própria. Mas por que assim fez?
Mas vamos ao que diz José Jairo no seu texto: “Por ironia do destino coube a Pedro de Cândido juntamente com seu irmão mais novo, Durval, levar as forças policiais até a Grota de Angico no fatídico dia 28 de julho de 1938 no que culminou na morte de Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros além do bravo soldado Adrião Pedro de Souza. Após a morte de Lampião, o ex-coiteiro Pedro de Cândido assumiu o posto de subdelegado de Piranhas destacando no Distrito de Entremontes substituindo o seu irmão José Rodrigues Rosa conhecido por Zezé de Cândido”.
Um trecho conclusivo há, pois, há que ser destacado: “Após a morte de Lampião, o ex-coiteiro Pedro de Cândido assumiu o posto de subdelegado de Piranhas destacando no Distrito de Entremontes”. Tal afirmação implica em verdadeira revisão histórica do muito que já foi dito e escrito sobre a participação de Pedro de Cândido na chacina de Angico. Implica ainda em dizer que Pedro de Cândido traiu mesmo a confiança do líder cangaceiro e seu bando. E que, através de sua ardilosa ação, pôs fim ao cangaço. E mais: traiu em troca de benesses pessoais.
Ora, não há como concluir de modo diferente. As causas e as consequências do fato se entrelaçam perfeitamente. Vamos aos alinhavos: Pedro conhecia muito bem o local do coito cangaceiro, pois nas terras de sua família. Pedro servia como coiteiro ao bando, levando e trazendo recados e objetos, sortindo de mantimentos. Pedro era rapaz audacioso, ambicioso, sonhador, não se acostumando com aquele mundo de mesmice. Pedro desejava prosperar no seu meio. E Pedro mais tarde foi alçado à posição de subdelegado de Entremontes, distrito de Piranhas. Mas por que tal posto somente foi conseguido depois da chacina de Angico?
Simplesmente por que alguém enxergou sua ambição e foi em cima de seu ponto fraco, oferecendo tal posto acaso passasse a ser colaborador das forças policiais. E, mais de perto, dissesse onde Lampião e seu bando pudessem estar acoitados. Ou, noutra vertente da mesma situação, ele mesmo, já pensando em chamar para si o posto de subdelegado, simplesmente procurou a polícia e ofereceu seus préstimos de delação, sob a condição de receber aquela destacada posição.
De qualquer forma, inegável que a posição alcançada por Pedro de Cândido após a chacina de Angico teve por consequência a participação deste como delator. Impensável que a polícia fosse prender e torturar alguém e depois oferecer um prêmio tão dadivoso. Igualmente impensável que Pedro de Cândido tivesse conquistado tal posto se não tivesse colaborado com os objetivos da volante. A verdade é que o posto de subdelegado foi uma retribuição a ele concedida não só pela traição a Lampião como pela indicação exata de onde o bando estava acoitado. Também pelo sucesso da empreitada e aquelas tantas cabeças cortadas.
Pensar o contrário seria negar o dom da compreensão. Neste passo, por que o também coiteiro Joca Bernardes, que supostamente teria informado a policia das suspeitas que recaíam sobre Pedro de Cândido, não recebeu qualquer recompensa? Há relatos dando conta que Bernardes, com ciúmes de Pedro, procurou o sargento Aniceto Rodrigues para dizer que aquele talvez estivesse mantendo contato com os cangaceiros, pois tendo adquirido volumosos mantimentos. Acaso tal acontecido fosse confirmado, certamente que de algum modo Bernardes seria recompensado.
Mas por que a polícia recompensou somente Pedro de Cândido? Certamente pela sua frieza e coragem de traição a homens tão perigosos. Certamente pela infidelidade e deslealdade de conduta que pôs fim ao cangaço. Portanto, nada de tortura, nada de ameaça, nada de dedos e unhas arrancadas, apenas a ação pensada de um homem frio e ambicioso, interesseiro e perigoso. E talvez por isso mesmo que tivesse, três anos após Angico, pagado com a própria vida.


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
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Lá no meu sertão...


Fé e devoção do povo sertanejo. Procissão de São Sebastião em Bonsucesso, povoação ribeirinha no município de Poço Redondo, sertão sergipano. 2



Uma felicidade (Poesia)


Uma felicidade

Nada tenho além
que esta manhã
que esta porta
e esta janela

nada tenho além
que esta oração
que este café
e este olhar

não tenho além
desse tudo
que tenho
e é tudo

e quando o amor
me chega e abraça
e me faz cafuné
então a felicidade.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - nossos buquês de flores


*Rangel Alves da Costa


Verdade que a vida não está fácil de ser vivida. Verdade que problemas e mais problemas surgem a cada instante. Verdade que não temos encontrado grandes motivos para contentamentos, para alegrias e felicidades. Verdade que as incertezas nos deixam aflitos e desencorajados. Verdade que as pessoas parecem mais tristes e angustiadas. Tudo isso é verdade. Mas sobreviver e amanhecer num mundo assim, colocar os pés no chão e abrir a janela, avistar alguma paisagem boa diante do olhar, já alimentam muito as esperanças. Além disso, mesmo imperceptivelmente, a cada dia colhemos lindos buquês de flores. E buquês que chegam nos planos e sonhos ainda presentes, nas alegrias e sorrisos dos bons encontros, na saúde e na força do espírito, na fé que alimentamos contra todo o mal. Temos buquês de flores no amor que ainda nos ama, nas mãos dadas pela estrada, nos beijos e abraços tão verdadeiros quanto o próprio amor. É o guie nos guia e nos fortalece. E são estes buquês que nos importa colher a cada dia da existência.


Escritor
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segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

JAGUNÇOS, CORONÉIS E URUBUS


*Rangel Alves da Costa


Toicim - era esse o apelido do cabra - não tinha mais nada a perder na vida. Nem vida tinha, segundo ele. Ora, não era vida aquilo que levava, emboscando, tocaiando, matando e matando. Mais que os dedos das mãos e dos pés.
Por isso mesmo que já puxava o gatilho como se estivesse num trabalho qualquer. Treco, treco, treco, e pá! Tufo de mato voava por todo lado, a fumaça levantava ardente, depois mais treco, treco. O serviço tava feito.
Mais adiante, por cima da terra nua, no meio da estrada de ponta de espinho e pedra, ainda sangrando, o corpo varado de balas. Já está morto, mas é preciso matar mais. Por isso que o jagunço dá três passos adiante, já fora do tufo de mato, e treco, treco, pá!
Toicim some no mato no mesmo instante. Leva no bolso a orelha do desditado. O seu patrão precisa saber do serviço feito. A orelha ensanguentada é a prova maior que a tocaia foi bem feita. Mas não se avexa muito no meio da mataria e logo pressente o pior.
Lança mão da arma, tenta se ajeitar. Mas é tarde demais. Um balaço surgido não se sabe de onde lhe atinge bem no meio da testa, pouco acima das sobrancelhas. E com uma violência tal que o corpo é jogado por cima de macambiras. Não é um preá morto, é um jagunço.
Aquele que atirou não é diferente do atingido, do morto. É da mesma laia, do mesmo saco, do mesmo ofício de covardia. Também é um matador de aluguel, também um jagunço, um pistoleiro a mando de morte. Ou da morte.
Pois morte também seria outro nome para o potentado assassino, o coronel matador pelas mãos de outro covarde. O coronel que de sua varanda cospe e diz que antes de o cuspe secar já quer que o seu desafeto esteja crivado de balas. O mais medroso dos algozes.
Assim, quase num só instante e dois defuntos de mesmo percurso. O tocaiado por Toicim jazendo no meio do tempo, com o corpo já esfriado e à espera de um viajante qualquer. O seu matador também estrebuchado por cima de macambiras, de olhos arregalados.
Logo os urubus começam a voar mais baixo, a se juntarem em rasantes em torno dos restos mortos. E descendo vão até a primeira bicada. Mais outra e outra. A pele dilacera, as tripas ficam expostas, a fedentina já é insuportável. E como fede esse mundo de coronéis e jagunços.
Não demora muito e chegam os carcarás, gaviões e outros carnicentos sempre à espreita. Brigam entre si, querem abocanhar os restos putrefatos, as entranhas de um mundo covarde, sangrento e cruel. Já não há mais sangue, apenas o lodo nojento da violência.
Triste mundo de ser tão assim. Sem valia de homem, sem valia da vida, sem valia de nada. Enquanto os vermes passeiam em cima dos mortos, outras ordens de mortes já são dadas pelas varandas dos casarões. E o jagunço vai fazer apenas o seu serviço.
Há nas mãos desses homens os dedos da morte. São pedras que se movem para esmagar. Há nos olhos desses homens a insensibilidade do mundo. Não avistam outra coisa senão a insignificância. Tanto faz ser pessoa como bicho do mato. Os olhos apenas miram e as mãos se movem para matar.
Que mundo é este de tamanha covardia e insensatez? Que mundo é este de cuspir no outro o fogo vil? Que mundo é este de estradas e veredas tomadas de urubus e podridões, sem que nada se possa se possa fazer senão fugir dos ódios coronelistas? Um mundo que existiu, mas que não desistiu completamente.
Pelos ares e arredores campeiam as podridões desse mundo. Jagunços e urubus são rapinas do mesmo tenebroso ninho. O coronel os alimenta com a sina injusta dos outros, até de um pobre coitado cujo erro na vida foi levar estaca nas vizinhanças do latifúndio coronelista.
Não sobre ninguém. Jagunço morre por jagunço, urubu morre envenenado de podridão, coronel morre pela mão do coronel. Somente a história fica para contar os mortos, porém sentindo-se enojada pela fetidez desse tempo de tocaias e emboscadas.
Mas por que a preocupação em mandar tocaiar e matar Toicim, o jagunço? Certamente que coronel não vai perder tempo em mandar um dos seus pistoleiros nos passos de outro pistoleiro, pois sua preocupação maior é dar cabo daqueles que ameacem o seu poder.
Mas Toicim tinha que morrer. Bem assim como morreu o pistoleiro que o matou, Tocim tinha que morrer. Também morreu pelas mãos de outro jagunço aquele que varou de balas o matador de Toicim. Mortes após mortes, por isso que Toicim tinha que morrer.
Toicim era testemunho vivo de tantas maldades. O seu assassino igualmente conhecedor de todas as perversidades. O matador deste também. E o coronel? Muitas mortes num só. Pela bala de seu jagunço, pelo seu poderoso inimigo, pelo seu próprio veneno.
Um mundo de cascavéis, de jararacas, de cobras peçonhentas. Um mundo que existiu. Um mundo que ainda persistir em existir.


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
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