SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 31 de outubro de 2011

SOBRE PÍFANOS E SAUDADES (Crônica)

SOBRE PÍFANOS E SAUDADES

                                              Rangel Alves da Costa*


Era dia de festa. E festa da Padroeira, a santa protetora do lugar. Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo, que Seu filho seja louvado, em nome de Deus, amém! Que seja louvado meu bom sertanejo!
Lá pelas cinco da manhã já se ouviam os fogos, o silêncio das ruas já era cortado pelos primeiros devotos. Que alvorada mais bela, manhã mais enfeitada de bandeirolas, um cheiro bom de paz e alegria pelo ar. Que Deus seja louvado!
Deixava-se o milho pra ser ralado dali a pouco, o café no pilão esperando um pouquinho, o leite de coco ainda envasilhado, os ovos de capoeira ainda no girau das galinhas, pois lá fora havia uma coisa tão bela que tudo pode esperar pra mais tarde.
E ouvia-se ao longe, bem mais afastado do centro, da praça da matriz e redondezas, a melodia ao mesmo tempo festiva e entristecida e o baque dos tambores, o trinado dos pratos, o xaxado caminhante nas areias sertanejas. Formando um grupo de cinco ou seis, caminhavam soltando sua música ao arrebol.
Ainda não haviam nem entrado na cidade, mas já se ouvia a família em comitiva com seus instrumentos de taboca sobre a boca, pequenos instrumentos artesanais, soprando suave, coisas de fé e do coração. Era a orquestra de pífanos que já estava chegando. Orquestra de uma família só, inigualável na originalidade e tradição.
Não havia sinfônica igual por todo o sertão. Ao menos naquele sertão de meu Deus. E todos os membros, do mais novo ao mais velho, de uma família banhada de sol: os Vítor. A velha e festeira Alzira, enrugada na vida e de festejar; Zé Vítor, o marido, sofredor com as danações da mulher, com seu chapeu e óculos escuros, numa alegria de envergonhar qualquer tristeza; Mané Vítor, o filho, cabra de toda obra, não só trinava na sua orquestra como fazia enxada, boi e boiada cantarem.
E outros, pois os Vítor eram muitos, pequenos ou já envelhecidos, uma família tão cheirando a terra e ao seu canto. Que se diga Dona Guiomar, João Vítor e Ventura e tantos outros Vítor de vitória da arte e da tradição.
Cria dessa prole é o maior aboiador das redondezas, respondendo por Geno Vítor ou simplesmente Genovito, versejador do mais autêntico lamento vaqueiro. Traz no sangue não só o traço artístico dessa família grandiosa, mas imensidão de autenticidade na preservação de uma cultura que já vem dos antepassados e raízes, cultuada e preservada como se fosse da própria gene familiar.
Alzira era uma fanfarra à parte. Já idosa, era amiga de todo mundo e muito mais de um fuzuê, de uma batucada, de uma festança. Com seu vestido rendado, lenço na cabeça, rosto fino e fortemente tracejado pelo tempo, aonde chegava já era chamando atenção, pedindo a palavra e uma pinga pra animar. Com mais uma dose começava a sapatear, a xaxar xaxado bom, a colocar na boca a taboca cantante e rodar pelo salão feito uma deusa de matiz sertaneja.
Esse tronco dos Vítor, do qual a velha e boa Alzira era matriarca, morava um pouco afastado da cidade, coisa de uns dois quilômetros, correndo por uma estradinha até chegar à casa que ficava numa pequena propriedade, onde procuravam sobreviver nos ofícios da terra, na vaqueiragem, no tanger carro de bois, em qualquer coisa que desse para a feirinha da semana.
Mas a residência de Alzira e Zé Vítor, casal de proa e de canto, era famosa demais. Além da fama festeira da mulher, ali, vez por outra, se realizavam leilões de oferendas caipiras, colocando-se no “quem dá mais” o bolo de milho, o doce de leite, a garrafa de pinga, o licor, o queijo de coalho, o capão, a galinha.
À luz de candeeiros, na malhada da casa e na salinha de chão de barro batido, no vento frio da noite sertaneja, depois de uma talagada tudo era arrematado ligeiro porque o melhor estava para chegar: a família reunida com seus pífanos, caixas, zabumbas, pratos e mãe e filho e xaxar. Alzira balançava os cambitos de um lado, batendo ligeiro o pé no chão, e Mané Vítor, seu filho, trejeitava de outro lado, numa pisada compassada com o som do zabumba.
Era essa família que vinha chegando logo cedinho para a festa da Padroeira Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo. Com passos lentos, ecoavam sua música enquanto as portas eram abertas, pessoas saíam para acompanhar, se fazia um cortejo de beleza sem igual.
E todos seguiam em direção ao grande salão, ao local da festa maior. E que estupendo palco. E eis que todos se postavam no lado de fora da igreja, próximo à porta de entrada e faziam dos pífanos um coro de anjos, querubins sertanejos chamando os seus para a festa da fé e devoção.
Ainda vejo os dedos magros passeando pelas tabocas; vejo os lábios ressequidos dando o tom da melodia, beijando a madeira em cone; ainda ouço aquela maravilhosa música. E que saudade que sinto, que saudade que dá!




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Faminta solidão (Poesia)

Faminta solidão



Queria um doce sabor
sabor assim meio acre
doce de fel e de sal
sabor de sol derretido
na sede escaldante
no lábio lambido
ânsia de querer
no corpo escorrido
feito um doce amargo
assim meio paixão
meio fome voraz
de veneno e você
meio pedra e bagaceira
pegando com a mão
e levando à boca
e querer mais
muito mais ainda
porque a solidão
está sempre de regime
e só come esse prato
antes de me devorar.


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 77 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 77

                                          Rangel Alves da Costa*


O corpo de Paulo foi retirado daquele local pelos agentes prisionais e deram destinação ignorada, simplesmente desapareceu. Foi enterrado no dia seguinte num cemitério qualquer, sem acompanhamento de qualquer familiar.
Na mesma manhã após o ocorrido, a sua irmã recebeu um comunicado urgente pedindo o seu comparecimento ao estabelecimento prisional. Como não dizia do que se tratava, sem menção alguma ao fato, ela simplesmente ignorou. Continuava com medo de ir até lá sozinha. E realmente não foi.
Um mês após recebeu outro comunicado, dessa vez informando que o seu irmão Paulo havia sido sepultado no Cemitério das Almas Aflitas. Contudo, não citava em que local do sepulcrário estava o corpo, o número da cova, qualquer indicação para se saber a exatidão do último endereço.
Mas nem os responsáveis pelo sepultamento sabiam. Não precisava saber nada disso. Ora, tanto fazia. Era apenas um indigente, um presidiário. Pessoas assim não merecem qualquer respeito ou consideração, mesmo depois de mortos. Por isso mesmo que deveria ser logo esquecido pelos seus e pela sociedade. Um a menos, apenas um a menos, era assim que pensavam.
Assim que souberam da trágica morte daquele que tanto lutaram, gastaram, redobraram esforço e poder, o empresário, pai da mocinha que um dia havia incorrido no erro de gostar de um pobre chamado Paulo, bem como o juiz tio desta, não só se deram por satisfeitos em ter alcançado plenamente seus objetivos, que era acabar de vez com a vida do rapaz, como se dispuseram a preparar um grandioso brinde.
Como haviam conseguido isso tão eficiente e rapidamente, também logo mandaram organizar uma grande festa para comemorar. Espalharam que o grande festim seria em comemoração a uma boda qualquer, aniversário de casamento já duradouro, mas alguns, logicamente os envolvidos na organização criminosa, já sabendo que o motivo era bem outro.
Bebia-se do melhor uísque, saboreava-se o vinho mais festejado e da safra mais premiada, comia-se petiscos e pratos importados, ouvia-se o som harmonioso de uma grande orquestra de cordas. Um luxo só, relíquia da grã-finagem, coisa de gente influente e poderosa demais. Por isso mesmo que ali, ao lado da fina flor da corrupção, estavam juízes, empresários, parlamentares, desembargadores, ladrões endinheirados, políticos, puxa-sacos e uma leva burguesa malcheirosa e totalmente contaminada de podres e podridões.
E tudo para comemorar a morte de um inocente, de um pobre, de um morador de subúrbio, de um injustiçado, a morte de Paulo. Nunca mais ele andaria pelo mesmo caminho da mocinha, e por isso mesmo seu desaparecimento deveria ser tão festejado. No dia seguinte as colunas sociais estamparam o glamour, porém sem saber da covardia.
Não obstante tais absurdos, verdade é que dos envolvidos nessa trágica história de injustiça alguns já tinham partido, morrido em bem pouco tempo. Talvez outros ainda estivessem trilhando por esse mesmo caminho, seguissem esse mesmo enredo desumano. Mas estes não estavam do lado festivo, mas na fronteira dolorosa e sofredora. Até o momento já haviam pagado com a morte o preço da luta pela justiça as mães Leontina e Glorita, a sonhadora Carmen, o sempre indignado advogado Céspedes Escobar e agora Paulo, o louco, o nada. O inocente.
Mas não demoraria para a lista aumentar, pois o forte, o destemido e justiceiro senhor do agreste, apenas um frágil velho depois da morte da filha Carmen, morreu ao entardecer agrestino, de sol entristecido, enquanto estava sentado num banquinho debaixo da baraúna e ao lado da sepultura de sua menina. Cena mais comovente e tão verdadeira, numa partida em busca de um impossível encontro, talvez.
O homem era outro, estava completamente mudado, parecendo que havia perdido o gosto pela vida, pouco se importando com os negócios, as propriedades, as tantas posses, os amigos e familiares. Pouco comia, pouco falava, já não demonstrava disposição para nada. Inicialmente tencionou mandar investigar a fundo aquela história mal contada do acidente, contratando profissional competente para vasculhar tudo o que pudesse encontrar. Entretanto, tal ideia foi se esvaziando, esvaindo como a própria alegria e a vontade de viver.
A única coisa que verdadeiramente ainda lhe trazia preocupação era em estar sempre ali debaixo da sombra da baraúna, como se eternamente quisesse velar sua menina bonita e tão amada. Seis da manhã e já estava por lá, voltando quando o sol esquentava; retornava ao local logo que o sol baixava, começando o entardecer. E ninguém o encontrava mais em outro lugar senão ali conversando palavras de dor e saudade. Um banco de madeira, um velho pai sentado mirando o túmulo sempre florido da filha.
Mas não somente lamentação e lágrimas se derramando dos olhos, pois também mostrava uma feição mais alegre, pois também sorria e até parecia ter dito ou ouvido alguma coisa animada e interessante. “Filhinha, durma sossegada que seu pai está aqui, não vai sair tão cedo. Pode descansar em paz, durma tranquilamente que espero o seu acordar para beijar seu rosto, minha menina!”.
“Carmen, minha pequena Carmen, seu pai já está cansado demais dessa vida, já se esforçou demais, já fez de tudo e viveu de tudo, e agora já está chegando o momento de descansar. Sei que onde você está é um lugar muito bom, pois os anjos devem morar num lugar muito bonito, com uma natureza muito mais bonita do que essa daqui. Sei que não mereço ir pra esse lugar de música tão suave e tão perto de Deus, mas peça aos anjos e santos pra eu ficar só um pouquinho ao seu lado, abraçar um abraço de pai e depois tomar a estrada que merecer. Espere por mim Carminha, espere por mim que não demoro a chegar por aí!”.
E com as mãos encobrindo a face avermelhada de tanto pranto, baixava a cabeça perto da terra tomada por flores do campo. Numa tarde quis beijar a cruz e caiu desfalecido por cima da sepultura. Quando a noite chegou e ele não havia retornado, se encaminharam até a velha baraúna e o encontraram caído sobre o túmulo, como se estivesse abraçando a terra, beijando-a sorridente, feliz.
Era mais um a ser somado dentre os mortos em consequencia de uma única e injusta decisão: condenar dois inocentes em nome da honra corrompida e corruptora e do poder daqueles que vivem em torno das leis, que deveriam utilizá-las como defesa e como parâmetro para justo julgamento. Mas não, apenas no sentido de uma injustiça vergonhosamente praticada é que agora tantos mortos tinham de ser somados.
Daí ser ver as consequencias nefastas de uma injustiça. Sendo a injustiça a falta ou ausência de justiça, bem como o uso dos meios próprios desta para distorções de julgamento; ou ainda a prática de atos condenatórios com base na consciência individual ou para atender objetivos escusos, logo se vê o resultado disso. O simples ato de condenar injustamente inocentes trouxe em si consequencias que infelizmente não haviam refletido sobre culpados pelos atos e ações de injustiça, mas tão-somente pelos que haviam lutado pela prevalência do justo diante de todo o mal articulado.
Ora, até esse momento todos os reveses se mostravam refletindo naqueles que estiveram ao lado da justiça, enquanto os injustos continuavam apenas observando as consequencias trágicas acontecendo do outro lado. Enquanto uns morriam, outros, os injustos, brindavam. Mas até quando? Será que a injustiça continuaria sendo premiada enquanto os que pagaram com a vida lutando pela justiça eram simplesmente sepultados?

                                                 continua...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com    

domingo, 30 de outubro de 2011

OS AMIGOS DO MENINO (Crônica)

OS AMIGOS DO MENINO

                                         Rangel Alves da Costa*


Sertanejo enviuvado de pouco, porém ainda novo e tendo um filho pra criar, depois que a mulher morreu achou que não tinha mais responsabilidade com a vida, com a manutenção da tapera, com o sustento dele próprio e do menino.
Deu pra ser preguiçoso e até arranjando inimizade com que lhe falasse ou oferecesse trabalho. De uns tempos pra cá não queria outra coisa senão armar a rede debaixo de pés de pau em frente da casinha virada pro mato e ali inventar que estava doente, com reumatismo, dor disso e daquilo, com enjoo na cabeça. Tudo mentira.
E o pior é que mesmo sabendo que não tinha mais alimento na cozinha, continuava dia e noite com o seu balançar de rede. Na dispensa não tinha mais nada mesmo porque catou tudo que havia ali de comida, entocou num embornal e levou pra debaixo da rede. Dormia um pouquinho, dava fome e metia a mão na cumbuca.
Aí aconteceu da comida dele acabar, mas com vergonha do filho ficou calado. O menino, nos seus dez anos, comia o que arrumava pelo quintal e ficava só esperando até onde o pai ia com aquela preguiça toda. Mas a fome bateu mais forte e o homem gritou pelo menino.
Zezinho vá matar rolinha que é pra nóis assar e comer. E o menino respondeu bem ao seu gosto.
Rolinha é bicho que nem caço nem mato. Num crio nem passarinho, muito menos rumar pedra com baleadeira bem no cocuruto dele. Deus me livre. Passarinho nasceu foi pra viver livre na mata, voar pra onde quiser, alegrar com seu cantar e não pra matar fome de preguiçoso. Rolinha é minha amiga e é melhor uma amiga que voa do que um pai preguiçoso.
O pai fazia que nem ouvia. E mais tarde gritava: Zezinho vá caçar preá pra gente fazer um guisado. Preá cozido num tem igual. A gente come de lamber os beiço e adespois dá um sono danado.
Preá é bicho rasteiro que nem caço nem mato. O que mais tem é preá, sei muito bem mas num vou não. Tem toca ali e acolá e tem o bichinho zanzando por todo lugar. Nessa hora deve tá roendo o capim que o senhor num alimpou, tá comendo formigueiro que na roça se alastrou, por isso deixe ele lá, roendo o que quiser, pois num vou botar mão no buraco do preá quando a cobra está por lá. Além disso, preá é meu amigo, nunca me fez mal, até deixa eu lhe pegar pra servir de animal no carro de boi que fiz.
Zezinho vá procurar cabeça de frade, adespois tire os espinhos e a pele e me traga a carne de dentro. Carne não tem igual a do frade, cor de coco molinho e sabor de peixe bom. Ande logo menino, vá.
Cabeça de frade num trago não. Mais fácil trazer urtiga e cansanção, que também é bom pra quem tá com fome de comer qualquer coisa. O frade é o próprio sertão, dá na pedra e no chão, se espalha por todo lugar, mas é fruto bem sagrado, por Jesus foi coroado e é por isso que vive do sol e da seca, agüentando um sofrimento que ninguém pode duvidar. E quem sou eu pra ir até lá e tirar na ponta do facão aquilo que é a própria natureza daqui? Cabeça de frade é minha amiga, além disso é do meu sangue sertanejo e eu num ia matar um parente só pro senhor encher barriga.
Zezinho vá lá na mata e procure ninho onde tiver, tire de dentro os ovinho e adespois jogue na água quente que é pra fome se sumir. Vá logo menino, cuide de ir.
Nem passarinho nem seu ninho, muito menos os ovinhos que vão trazer mais filhotinho. Até tô vendo a mãe chegar, alegre porque vai esquentar o que botou e se num encontra o seu fruto deve ser tamanha dor. Tanto esforço e sacrifício, tanto cuidado que tem, pra eu ir até lá e roubar o que mais tarde vai nascer e piar ao seu lado. É como filho tirado da mãe ainda na barriga e por isso eu num vou não. Ovo de passarinho é meu amigo, mais tarde vai voar por aqui e cantar juntinho de mim, até vou conversar com ele e dizer que nem passe perto de certa pessoa esfomeada.
Zezinho me traga água, me traga a rapa do prato, me traga o que tiver, senão enfraqueço demai e num posso mais trabaiá.
E Zezinho respondeu: Já que vai chover vai beber água, mas vou buscar uma coisa pra quando a terra tiver molhada. Vou trazer uma enxada, uns caroços de feijão e outros de milho. O senhor lavra a terra e espalha as sementes. Depois se deita na rede e espera brotar pra comer. Comigo se preocupe não, pois sou sertanejo e também amigo da fome.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com  

Por que? (Poesia)

Por que?



E tanta vida
tanta coisa a fazer
por que você
me encontrou
me despertou
e me olhou?
com tudo ao redor
caminhos e estradas
por que você
veio em minha direção
parou onde eu estava
ficou ao meu lado?
com a vida inteira
para exalar encantos
por que você
soprou no meu coração
me fez tão admirado
me tornou apaixonado?
com tanta gente insensível
tanto fazendo querer
por que você
fez isso comigo
por que me fez amar
e depois abandonar?


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 76 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 76

                                          Rangel Alves da Costa*


Embora atormentado e física e moralmente esvaziado, Jozué era um dos poucos que continuava tendo alguma percepção sobre a realidade imposta, dolorosamente vivenciada. Por isso mesmo quando começou a ouvir boatos sobre o que tencionavam fazer com Paulo correu de lado a outro implorando que não fizessem tamanha perversidade com alguém que nem se reconhecia mais de tão enlouquecido que estava.
Tentou persuadir os iguais no infortúnio, fazia de tudo para mudar tão horrendo objetivo, mas a cada palavra que dava ouvia desdém como resposta. Ameaçou fazer chegar à direção aquele plano macabro e foi logo alertado que ao invés de um a morrer crucificado seriam dois, bastando que fizesse a besteira de abrir a boca ao menos para um daqueles agentes prisionais.
Depois da meia noite, por volta de uma hora, três ou quatro saíram no encalço de Paulo e foram encontrá-lo sorridente, traçando desenhos pelo ar, num canto afastado, perto de uns escombros. Sorria, parecia feliz com os seus devaneios psicóticos, e assim continua mesmo quando começaram a puxá-lo pelos cabelos e arrastá-lo por cima de bagaceiras e objetos cortantes espalhados pelo chão.
Triste e terrível cena, quem bem poderia recordar outra triste e terrível cena num tempo já muito distante. Mas como o martírio está sempre presente!

“Os soldados conduziram-no ao interior do pátio, isto é, ao pretório, onde convocaram toda a corte.  
Vestiram Jesus de púrpura, teceram uma coroa de espinhos e a colocaram na sua cabeça.  
E começaram a saudá-lo: Salve, rei dos judeus!  
Davam-lhe na cabeça com uma vara, cuspiam nele e punham-se de joelhos como para homenageá-lo.  
Depois de terem escarnecido dele, tiraram-lhe a púrpura, deram-lhe de novo as vestes e conduziram-no fora para o crucificar.  
Passava por ali certo homem de Cirene, chamado Simão, que vinha do campo, pai de Alexandre e de Rufo, e obrigaram-no a que lhe levasse a cruz.  
Conduziram Jesus ao lugar chamado Gólgota, que quer dizer lugar do crânio.  
Deram-lhe de beber vinho misturado com mirra, mas ele não o aceitou.  
Depois de o terem crucificado, repartiram as suas vestes, tirando a sorte sobre elas, para ver o que tocaria a cada um.  
Era a hora terceira quando o crucificaram.  
A inscrição que motivava a sua condenação dizia: O rei dos judeus” (São Marcos, 15 16-26).

Por que fazer isso com o pobre Paulo, o doido, o insano, o enlouquecido pelas circunstâncias? Talvez a resposta estivesse em Isaías 53 2-9:

“Cresceu diante dele como um pobre rebento enraizado numa terra árida; não tinha graça nem beleza para atrair nossos olhares, e seu aspecto não podia seduzir-nos.  
Era desprezado, era a escória da humanidade, homem das dores, experimentado nos sofrimentos; como aqueles, diante dos quais se cobre o rosto, era amaldiçoado e não fazíamos caso dele.  
Em verdade, ele tomou sobre si nossas enfermidades, e carregou os nossos sofrimentos: e nós o reputávamos como um castigado, ferido por Deus e humilhado.  
Mas ele foi castigado por nossos crimes, e esmagado por nossas iniqüidades; o castigo que nos salva pesou sobre ele; fomos curados graças às suas chagas.  
Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas, seguíamos cada qual nosso caminho; o Senhor fazia recair sobre ele o castigo das faltas de todos nós.  
Foi maltratado e resignou-se; não abriu a boca, como um cordeiro que se conduz ao matadouro, e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador. (Ele não abriu a boca.)  
Por um iníquo julgamento foi arrebatado. Quem pensou em defender sua causa, quando foi suprimido da terra dos vivos, morto pelo pecado de meu povo?  
Foi-lhe dada sepultura ao lado de facínoras e ao morrer achava-se entre malfeitores, se bem que não haja cometido injustiça alguma, e em sua boca nunca tenha havido mentira”.

Por fim, como desfecho do martírio do inocente e agora anestesiado pela própria mente:

“Era quase à hora sexta e em toda a terra houve trevas até a hora nona.  
Escureceu-se o sol e o véu do templo rasgou-se pelo meio.  
Jesus deu então um grande brado e disse: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. E, dizendo isso, expirou” (São Lucas 23, 44-46).

Arrastado, chutado, ferido, achincalhado, Paulo foi levado, sempre sorridente, como se não estivesse sentindo nenhuma dor, até um poste de iluminação. Ao redor, cuidaram de trazer uma barra de ferro, e estendo-a horizontalmente sobre as costas, estenderam-lhe os baços, amarram-nos com cordas e depois se esforçaram o máximo que podiam para conduzi-lo até o alto do poste, onde amarram o corpo com outras cordas e o deixaram lá estendido de braços abertos, feito Cristo crucificado.
Com o corpo já naquela posição, um dos algozes subiu novamente e aplicou-lhe dois golpes na barriga. Neste momento Paulo bradou de dor, soltou um grito horrendo. Não disse, mas poderia ter encontrado forças para dizer: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!”. E, dizendo isso, expirou. Coincidência?
Ao amanhecer apenas olhavam aquela terrível cena. Todo mundo sabia quem havia feito aquilo, mas ainda assim todos se perguntavam quem poderia ser o culpado por uma crueldade tamanha. Mas ninguém respondia. Todo mundo sabia, mas ninguém respondia.
Se perguntassem a Jozué encontrariam o silêncio e um grito nos olhos. Passou a noite chorando e assim continuava.

                                                        continua...







Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com   

sábado, 29 de outubro de 2011

QUANDO A DOR ADORMECE (Crônica)

QUANDO A DOR ADORMECE

                                  Rangel Alves da Costa*


Depois de tanto sofrer, o que restaria dos sentimentos?
Nasceu para a alegria, o amor, a felicidade, a vida em plena e completa efervescência, mas...
O sorrir que era tanto sorrir, a infância que era tanta esperança, os sonhos que faziam viajar, as janelas abertas para a brisa passar, tudo tão sublime, no entanto...
Primeiro viu a lua se esconder e a noite de medo surgir, depois viu o sol sair para a nuvem carregada se fazer tempestade, depois teve frio e calor, teve temor.
Um dia sentiu o outono nos seus olhos e sentimentos. As árvores nuas e as folhas jazendo adormecidas no leito de terra foram marcas tão entristecedoras que pensou em não mais voltar ao jardim.
Outro dia viu uma árvore apodrecida cair, um ninho desabar lá de cima, um passarinho voar sem rumo certo, uma dor, uma dor, um enternecimento sem fim...
Gostava de flores e mantinha um caqueiro na sua janela. Olhava a planta e via a vida, pensava na vida e imaginava ser como planta. E a rosa mais bela foi murchando e um dia morreu. Seria assim também com a vida?
Jogou fora a roseira morta e colocou no lugar uma plantinha de plástico, linda demais e parecendo eterna. Não demorou muito e o plástico perdeu a cor, a rosa também murchou, ficou velha e enrugada. Seria assim também com a vida?
Não tinha mais saia rodada, não tinha mais laço de fita, guardou a boneca de pano e a casinha de brinquedo. Encontrou uma agenda e começou a pensar o que escrever ali e primeira palavra que rabiscou foi amanhã.
Todos os dias escrevia uma coisa nova, mas nada que lhe desse qualquer satisfação, pois queria anotar uma coisa bonita e só lhe vinha amanhã, amanhã e amanhã...
Mas por que só me vem esse amanhã? Ficou uma semana sem escrever nada até que um dia descobriu o que seu amanhã queria dizer. E então escreveu uma palavra nova: hoje.
Em seguida ficou mais fácil de imaginar frases completas: hoje afasto da dor a alegria de amanhã; hoje vivo toda essa tristeza para acordar sem sombras; hoje vou abrir uma porta e amanhã conhecerei o mundo.
Mas a agenda só trazia tristeza e então resolveu que o grande diário de sua vida não seria noutro lugar senão no pensamento. Então começar a imaginar coisas boas, belas, bonitas, coisas que logo eram desmentidas pelo olhar.
Tudo ideia. A natureza ideia de pujante força, os dias e as noites ideias de coisas boas acontecendo, o trabalho uma ideia de dignidade, o amor uma ideia de compartilhamento. Mas a realidade...
As pessoas tão belas e caminhantes, por que praticam tanta maldade? O mundo parecendo ter sido feito para viver em perfeita ordem, por que de repente tanta catástrofe, terror e medo? O corpo com tanta saúde, por que num instante a doença e a morte?
Mas não podia desacreditar na vida, no mundo, nas pessoas, em nada. E soube do irmão contra o irmão, da defesa da honra através do sangue, da paz buscada na guerra, do alimento que é tirado da boca do faminto, do povo que erra e procura justificar.
Fechou a janela e a porta, mas ouviu os gritos da violência lá fora, a televisão mostrava cenas estarrecedoras, lia jornais e ficava com as mãos sujas de sangue. E o vizinho do lado, do outro lado, da frente e detrás, todos batiam na sua porta para inventar maldades.
Fechou a casa e saiu. Não sabia pra onde ia, mas resolveu caminhar por aí em busca de qualquer resposta para tanta aflição. Entrou na igreja e lembrou que se quisesse manter a fé tinha de ser na igreja do próprio coração.
Queria saber por qual caminho seria mais fácil encontrar a felicidade. Ninguém sabia e ninguém ensinou, pois todos já estavam voltando dessa procura.
E nada mais lhe fazia sofrer, trazer tristeza, angústia e aflição. Percebeu que assim mesmo era a vida, que tinha de acostumar. Até mesmo ser insensível a tudo, pois a dor dolorida demais um dia entorpece, adormece as pessoas e os seus sentimentos.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Evangelho (Poesia)

Evangelho



Fala pela voz do silêncio
e tem a força do vento em brisa
porque existe sem a presença
e vejo com meus olhos fechados
e tudo sinto e tudo tenho e mais
ao meu lado e por todo lugar
porque preciso ouvir sua voz
e por isso o caminho se encurva
e mais adiante retorno ao passo
encontro a mesma porta e janela
humildemente vivos como oração
que logo rezarei ao pé da santa
ao pé da fita e da vela no oratório
e antes de ajoelhar toda minha fé
beijo na face daquela que já ora
por mim e todos de tanto amor
pois a mãe que é minha e sua
é essa imensa força que chama
nas distâncias do nosso perigo
ao repouso seguro no seu abrigo
lar e tão imenso e tão doce lar
saudade de filho que faz retornar.


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 75 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 75

                                          Rangel Alves da Costa*


Mais tarde, dali a alguns dias, quem sabe, quando chegasse a notícia de sua transferência para um estabelecimento prisional mais rígido, certamente que ele indagaria o porquê daquilo tudo e não ouviria de ninguém qualquer resposta. Apenas vamos, ande logo, entre aí que o fim lhe espera. Jogado seria, empurrado seria, esquecido seria. Não seria mais nada...
Nesse sentido a sanidade, o entendimento do que acontecia a si mesmo e ao redor, era incomparavelmente pior do que a loucura, a insanidade, a perda total do juízo, como já havia acontecido com Paulo. Este, num estado lastimável, num surto psicótico definitivo, numa disfunção psicótica progressiva e debilitadora da mente e do físico, com estado comportamental deprimente, nem parecia mais ser humano, senão uma folha perdida ora na chuva ora na ventania.
Se na visita que Carmen e a irmã fizeram ao rapaz ele já estava num visível estado de insanidade, não durou muito, coisa de dia após dia, para a situação piorar sem que ninguém atentasse para o fato de que precisava de tratamento urgente. A própria Carmen havia conversado com o diretor da penitenciária sobre o problema, informando-o sobre a necessidade de um tratamento externo. Foi-lhe prometido providências acaso o advogado não providenciasse que tal fato chegasse ao conhecimento da justiça.
Contudo, com o falecimento da moça tudo ficou esquecido. Depois daquela visita, a irmã esperava retornar ali juntamente com a amiga. Sozinha não sabia nem chegar nem sair daquele ambiente, que dirá conversar com alguém e pedir providências. Quando soube pelo noticiário o que havia acontecido com a amiga então se desesperançou de vez em visitar novamente o irmão. Queria muito fazer isso, e todos os dias se fosse possível, mas o problema é que se sentia impossibilitada de ter acesso àquele lugar terrível. Ou ele ficaria recuperado e saía de lá um dia ou jamais veria seu semblante outra vez.
Mas como a ciência explicaria o jovem saudável, consciente de sua realidade, se transformar num ser humano totalmente diferente depois que foi enclausurado? Raiva, ódio, revolta, não aceitação daquela condição subumana imposta quando tinha plena consciência de sua inocência? Aquele cotidiano mortal e moralmente indigno teria afetado seu estado psicológico ou apenas despertado um distúrbio preexistente? Toda aquela situação serviu como alimento para a angústia, a tristeza, a depressão, o entorpecimento de suas forças, o enlouquecimento?
A ciência é clara ao dizer que os psicóticos, os mentalmente transtornados como Paulo, podem, dependendo da intensidade do problema, causar perigo a si mesmos, vez que a realidade passa a ser percebida de uma forma completamente distorcida, e consequentemente podem fazer as coisas mais incríveis e dolorosas com base nesta ilusão. Nesse contexto, impossível de ter ou manter uma válida percepção de si, das forças ambientais vivenciadas, das dimensões temporais e espaciais.
Ora, é o mundo ao avesso e ele girando dentro dele de cabeça pra baixo. Mas que cabeça, pois esta sem juízo não é nada? Talvez um mundo, talvez Paulo, mas este vivendo naquele sem ter mais como se sentir nele.  Daí as dolorosas consequencias, com sentimentos, ainda num estágio primário da doença, que vão da indiferença à depressão, do medo à raiva, do lógico ao absurdamente impensável.
Inicialmente, quando estava aparentemente sem ter problema algum, sem manifestar crises violentas ou perturbadoras, ainda que de forma passageira, ainda assim já não tinha condições de tomar conta de si mesmo, de viver de uma forma normal, alimentando sonhos, expectativas, desejos e até se relacionar bem com os outros. Ora, era impossível pensar nisso ali. O mais normal, o mais são que pudesse existir, quando pouco falava sozinho, fazia gestos repentinos querendo voar, inventava de ter a voz dos bichos e com esse brado dialogava suas queixas consigo mesmo.
Quando os surtos deixaram de serem apenas aparências e tomaram formas através das mudanças comportamentais, então tudo começou a apagar em segundos. Igual lâmpada que apaga e acende, a luz apenas às vezes brilhava na escuridão. O mundo desandou, a mente se transformou num horrendo jogo, as atitudes então, de tão insanas e aterrorizantes, passaram a causar arrepios e fazer nascer piedade aos olhos dos outros iguais, mas se revestindo do direito de ver o mundo desabando apenas no outro. Assim aconteceu com Paulo ou com o seu resto de ser.
Trilhando o percurso da loucura de forma rápida e progressiva, verdade é que, aos poucos, manifestações incomuns passaram a fazer parte do seu comportamento, do seu jeito de ser e enfrentar a realidade. Falava sozinho, alternava instantes de calma absoluta e de euforia extremada, atirando objetos nos outros, por todo lugar, querendo subir pelas paredes, querendo sumir, e efetivamente sumindo no inconsciente.
 Loucura ou psicose, o que se tinha era um distúrbio atípico da mente humana. Com tamanho transtorno psíquico, estava completamente dissociado da realidade; não conseguia mais elaborar idéias, entender nem o certo nem o errado, diferenciar o grito do silêncio, a luz da escuridão. E então os gritos, os berros, as aflições, as correrias por medo, as afirmações de que seres estranhos queriam chupar o seu sangue. E de repente o silêncio, a calma, o sono profundo jogado num canto qualquer, com insetos passeando pelo seu corpo e ratos lambendo e cheirando sua pele.
Verdade é que sua psicose, sua loucura, criara um mundo à parte, ainda que naquele mundo já doentio, absurdamente enlouquecido, cruel, destrutivo e perseguidor. Talvez por instantes, diante da dor sentida na pele, interagisse forçadamente com aquela realidade, mas certamente chamando para si, e até porque mais confortantes, seres e objetos irreais, ao mesmo tempo em que se ausentava, por força dessa fuga, realidade concreta.
Nesse mundo, que talvez para o seu bem blindava o fio da lâmina cortante nos sentimentos, vivenciava alucinações, delírios, alterações de atitudes, tendo seu norte e rumo de vida a mente confusa, mas ainda assim sem ter mais qualquer força perceptível de estar agindo dessa ou daquela forma, de forma estranha ou não. Conseguintemente, não haveria como ser visto como normal nem se relacionar normalmente com as outras pessoas, com os agentes e presidiários, muito menos manter uma aparência que fosse tida apenas como estranha.
Pelo contrário. Jamais poderia ser visto dentro da normalidade, ainda que ali dentro atitudes desviantes fossem mais que normal, de alguém que, por exemplo, se sentia verdadeiro rato e rastejando, fazendo grunhidos, ia cheirar ao redor dos lixões, revirar um daqueles depósitos e se entocar por dentro, ficando ali até que fosse percebido por alguém. E Paulo já havia ultrapassado até esse limite do desumano. Sua loucura já era total, visível sob todos os aspectos, lancinante.
E um doido atrapalhando a loucura dos outros loucos, fez surgir na mente de um daqueles presidiários uma incomparável brutal ideia: martirizar Paulo e prendê-lo de braços abraços nas alturas, deixando-o lá até a morte, feito um Cristo enlouquecido e que, por isso mesmo, não sabia por que morria.

                                                       continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

DECADÊNCIA (Crônica)

DECADÊNCIA

                                      Rangel Alves da Costa*


O progresso da civilização, contraditoriamente, reflete o seu estado de decomposição social, o seu declínio, a sua decadência. Significa que os avanços não permitiram melhorias na vida em sociedade, sob os mais diversos aspectos.
O conceito de decadência deixa indubitável tal entendimento. Pode ser o ato ou efeito de cair num estado ou condição inferior ou pior, se aproximando do fim ou da ruína; é deterioração ou degeneração, num visível declínio ou enfraquecimento, daquilo que perdeu sua força ou sua razão de ser.
Decadência seria, por exemplo, a morte de uma cultura, o crepúsculo da razão, o declínio do respeito ao próximo, o ocaso da esperança, a queda da moral. Num exemplo maior, pode-se afirmar que a decadência da importância familiar leva à degeneração da obediência da prole.
Contudo, nas coisas mais simples e rotineiras pode-se perceber o estágio de absoluta decadência dos valores morais, éticos, sociais e religiosos, dentre outros fundamentos da existência humana. O ser humano parece ter perdido sua condição de responsabilidade enquanto ser social, seus valores e suas condutas, seu significado perante a vida.
Ora, se diz por aí que um velho é apenas um velho, ou pessoa como outra qualquer, só que com mais tempo de vida. Daí não ser preciso levantar e oferecer o assento para o seu repouso, ajudá-lo naquilo que for preciso na sua lide diária, dar ouvidos para não ter que suportar conselhos e recriminações.
O pai quer impor respeito na casa, não mais através do exemplo dado e sim pela força, pela tentativa de submeter os seus à escravidão paternal. Em constante atrito com a esposa, deseja que o filho seja exemplo de pacificidade e respeito ao próximo. Xinga a esposa, que o esculhamba, quer jogar no filho a raiva que tem, e este, em contrapartida, não reconhecerá a legitimidade dos pais nem os respeitará nas decisões que queira tomar.
A vida do outro não vale realmente nada, qualquer coisa e começam as confusões, as ameaças, os xingamentos, as agressões, as tentativas, as afetações. Por uma coisa de nada, verdadeira besteira, encrenca de pouca monta, e então vai se armar com tanques de guerra, metralhadoras, mísseis, revólveres, baionetas, facas e facões. E por essa besteira, por esse nada, uma lesão corporal, uma tentativa de homicídio, uma morte. E tudo na absoluta normalidade, como um inseto que é pisado e os restos vão sumindo escondidos debaixo das botas.
Jovem, juventude, mocidade, adolescência, quanta decadência. Abrindo as portas e tomando o mundo, pegam nas rédeas do destino e seguem pelos descaminhos. Por onde seguirão se não conhecem mais a moradia do respeito, do pudor, do recato? Mesmo que exista uma estrada de sol, um caminho florido e seguro, certamente seguirão em busca dos labirintos, das pedras e espinhos, de tudo aquilo que façam correr perigo, que corrompa suas esperanças, que matem os sonhos bonitos de sua idade.
Um amigo se indigna pelo que outro amigo fez e se pergunta o que deverá esperar do inimigo. Acreditava no outro, acreditava no próximo, confiava no ser humano, até que soube da falsidade, da mentira surgida para denegrir, da aleivosia plantada por ciúme, da calúnia sustentada na sua ausência, na covardia em negar que fez quando tudo já produziu seus efeitos. E não demora muito para o falso voltar de bom moço e querer replantar a amizade destruída para colher novos frutos da destruição.
Após o jantar a família reúne-se diante da televisão para ver cenas de sexo explícito na novela; a menina telefona pra colega e diz que está com os lábios inchados de tanto beijar bocas desconhecidas na festa de ontem, já outra diz que transou com um e esqueceu até de perguntar o nome; o padre que celebra missa, casamento e batiza criancinhas, mais tarde tira o hábito e reveste-se de outro triste hábito, que é molestar jovens; o velho andante de bordel em bordel enfim encontra sua filha num deles e se espanta porque tinha certeza que ela estaria estudando àquela hora; o político fala e todo mundo acredita.
Não existe maracutaia, roubo ou corrupção. É a palavra do povo, e há que se acreditar nele. É assim que ele quer, e é isso que ele tem.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
  

Certidão (Poesia)

Certidão



Tá lá escrito e passado
papel de milho enrolado
no baú de toda memória
documento e tanta história
certidão de nascimento
da verdade o juramento
registro de bom sertanejo
saudade que eu revejo
prova maior do orgulho
que do passado vasculho
cortina que se descerra
pra ter como mãe a terra
ser filho da boa semente
irmão da planta carente
neto da velha catingueira
primo da flor rasteira
tão bela e tão faceira
família que vai pra feira
num cesto de caroá
fartura de não voltar
pois muitos desses parentes
nasceram pra alimentar
e eu como simples grão
sonho em vingar nesse chão.


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 74 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 74

                                          Rangel Alves da Costa*


Após a confirmação da morte de Carmen e sabendo quem poderiam ser os culpados, incluindo-se ele próprio, Auto Valente começou a amargar um sentimento de culpa que jamais esperava sentir em qualquer situação. Dor dilacerante, tudo parecendo corroer-se, como se o erro pudesse ser reparado pelo sofrimento. Agora era tarde demais, diria a lição exemplar.
Estava angustiado demais, entristecido, atormentado, arredio às situações normais da vida. Sem encorajamento para o trabalho, para talvez continuar enganando outros clientes, evitava até falar com o deputado ao telefone. O que para o homem continuava uma festa, para ele permanecia verdadeiro pesadelo. Era chamado a compartilhar dos prazerosos instantes, porém fugia para se esconder no profundo buraco da consciência do mal cometido.
Dizia-se vivendo agora num frágil fio esticado por cima de abismos. Como caminhar estava difícil, despencar lá de cima seria coisa de qualquer instante. No seu pensamento, insistente em não aceitar a ideia de que a morte da moça fora plantada por meio dele, desde o momento que começou aquela farsa com a família dos inocentes até o instante que deu continuidade ao plano, mesmo que agindo em nome de sombras poderosas, o único e verdadeiro culpado era o parlamentar. Estava certo, mas também errado.
Ele havia sido o fio condutor de tudo, não podia esquecer-se disso. Ele não honrou com seu juramento profissional e agiu para condenar quem deveria defender. Ele, juntamente com o juiz e o promotor, fez nascer e frutificar as acusações mentirosas, os absurdos jurídicos, as provas falsas e a materialidade enganosa. Ele era o advogado e, portanto, o insucesso premeditado recairia sempre na sua conduta. Ele, na verdade, compactuou com o erro que agora insistia em não reconhecer. Se o fizesse, se penitenciando com a verdade, certamente se destruiria, mas algum tipo de salvação lhe estaria reservada. Um resquício de salvação espiritual. Apenas isto.
Tendo por um dos culpados, mentor e verdadeiro assassino, o calhorda do parlamentar, então agora teria de buscar meios para que o mesmo pagasse pela vida ceifada do seu grande amor. O problema é que continuava sob suas ordens, fazendo o que ele mandasse, tendo que calar sorridente toda a dor imposta. E não somente isto, pois sabia que corria risco de morrer apenas pelo fato de considerá-lo um assassino. Situação dificílima, mas colhendo apenas o que havia plantado. Esquecer tudo e deixar pra lá, apenas procurando garantir sua sobrevivência seria uma solução. Mas não era nada fácil pensar assim.
E não era fácil porque estava sofrendo demais para calar de vez e deixar que tudo simplesmente fosse esquecido. Era o arrependimento que fragilmente lhe chegava, talvez muito tardiamente, mas que agora poderia trazer consequencias com duas feições diferentes: ou fugir dali e se embrenhar num lugar bem distante ou a afrontar a força dos poderosos e contar à imprensa, pois não confiava na polícia nem na própria justiça, toda essa trágica história. E tinha ainda mais uma via, e esta a mais extremada: vingar a morte de sua amada matando o deputado.
Estava vivendo, assim, com tais indagações e preocupações aflitivas. Mas na penitenciária havia gente também muito mais preocupada por causa disso, mas não propriamente pelo que o advogado iria ou não fazer, e sim com a continuidade daquela situação prisional que não tinha nenhuma razão de ser, de continuar subsistindo. E o pior é que não sabia que brevemente, com a transferência para outra penitenciária, tudo seria pior. Muito pior.
Tal era a preocupação de Jozué, o que não acontecia com Paulo, vez que este já estava completamente tomado pela loucura. A situação ali dentro, fosse para os conscientes ou insanos, estava realmente cada vez mais insuportável. E como se dizia, era apenas um presídio de passagem, um local onde se moldava, enfraquecia, tomava todas as forças do sentenciado, ou ainda não, para depois levá-lo à completa destruição na penitenciária onde fosse cumprir a pena em definitivo.
O lixo se acumulava cada vez mais pelos pátios e corredores, as celas eram completamente tomadas por imundícies; paredes caindo ou ameaçando desabar, esgotos por todos os lados fazendo jorrar resíduos fétidos e doentios; proliferação de insetos, pulgas, baratas, pernilongos, traças e ou outros pequenos depositários de graves moléstias; os gemidos de dor se espalhando, a dor em cada feição, a negação de ser humano em cada um; a violência gritante, as torturas cada vez mais constantes e com mais gravidade. A fome, a sede, a doença, a falta de medicamentos e de esperança.
Ratos convivendo com humanos num só habitat, como se amigos ou inimigos mortais fossem; ratos parecendo resto de gente, resto de ser humano se ratificando. Eram seres humanos ou bichos entocados aquelas sombras que se escondiam pelos cantos, pelas brechas, pelos esconderijos? Se um morria, humano ou bicho, por mais que os agentes fossem avisados, só eram retirados dali com luvas e máscara por causa do mau cheiro. Os agentes tinham sentidos, temor de doenças, cuidados no lidar com os bichos humanos. Estes não. Estes tinham de suportar sem contestar a dor e o odor do próprio sofrimento.
A agonia de Jozué era ainda maior porque aquela moça, futura advogada, que havia ido ali visitá-lo e proporcionar as maiores esperanças havia sumido. Lembrava que Carmen prometeu outras visitas, que voltaria ao local outras vezes para informar sobre o andamento do processo e sua defesa. Não sabia, contudo, o que tinha acontecido com ela, de sua morte. Ou do seu assassinato.
Se passava um dia e mais outro, sem que o agente lhe viesse avisar sobre a única visita que poderia ter, era como uma tortura psicológica, como vontade enlouquecedora de tê-la ali novamente à sua frente. Ora, sua mãe não viria mais, ninguém mais certamente se lembraria de sua existência. Então a única pessoa que podia ainda lhe alegrar o coração e passar um pouco de conforto estava demorando a voltar. Não sabia, mas ela já estava numa dimensão muito distante. Talvez voltasse para uma visita, quem sabe...
E muito pior se soubesse que ela havia morrido e com o seu falecimento ele começava a morrer um pouco também.

                                                 continua...







Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

RECLAMANDO DA VIDA POR QUÊ? (Crônica)

RECLAMANDO DA VIDA POR QUÊ?

                                 Rangel Alves da Costa*


Ora, meu velho amigo de sol, minha boa amiga de chuva, eu que sou de trovoada pergunto: Está reclamando da vida por quê? Reclame não viu, reclame não viu...
A estrada, o chão, a pedra e o espinho, choram em silêncio pelo sol ardente demais, e você ainda passa raivoso e de botinas por cima...
Por isso reclame não viu, reclame não viu...
O zangão sabe que dará um só beijo, fará só uma vez doce amor, depois do abraço apertado cairá morto na colmeia, e ainda assim não fugirá da abelha rainha, sua mortal companhia...
As águas do rio que não passam no mesmo lugar, e por isso se despedem a cada segundo, não fraquejam no seu caminhar e sempre trazem atrás uma lâmina com o mesmo destino...
Por isso reclame não viu, reclame não viu...
O vento bem poderia seguir outro caminho, mas sabe que tem de soprar ao redor do jardim onde as folhas de outono choram por medo desse momento chegar. E ele vem cumprindo seu destino, sem dizer que não, sem poder perdoar...
O orvalho chora a noite inteira porque sabe que não viverá durante o restante do dia, e ainda assim volta na madrugada seguinte esperando que um dia o sol não apareça...
Por isso reclame não viu, reclame não viu...
Passarinho voa, colhe aqui colhe acolá, leva no bico o graveto, leva na pena o pano, segura na asa a linha, transporta nos pés o que encontrar, para formar o seu ninho, ter o calor do cantinho. E vem o homem, e vem o homem...
Vela não apaga no vento se a pessoa tem fé, candeeiro não perde a chama se a pessoa quer luz, a manhã sempre clareia mesmo pra quem não pode enxergar. Mas destino é coisa que não se muda.
Por isso reclame não viu, reclame não viu...
Será que você está vivendo ou ocupando um espaço na terra? Será que se acha digno de ser chamado de ser humano segundo a concepção divina da criação? Ou será que é daqueles que contradizem a vida, porém teme a morte a cada segundo?
Muitas coisas, seres e elementos vivem apenas um segundo na natureza; muitos seres já nascem para morrer em seguida; o que foi gestado é transformado antes de nascer para dar vida a outra ser. E o que significa tanto tempo na sua vida?
Por isso reclame não viu, reclame não viu...
Os bichos falam, sorriem, se comunicam, dialogam, trocam ideias, compartilham situações e sentimentos. Contudo, suas vozes são pios, zunidos, berros, algazarras. E nunca mais ninguém ouviu sua voz dizendo uma coisa bonita...
O leite fermenta e apodrece e renasce novamente em outro alimento; com a massa podre se faz salgadinhos deliciosos; de ossos imprestáveis surgem pentes e botões; as cinzas e o sebo dos animais são utilizados para fazer sabão, que lava as mãos e o corpo. Pessoas existem que deveriam sofrer o mesmo processo de reciclagem.
Por isso reclame não viu, reclame não viu...
A carpideira chora pra sobreviver; você vive chorando sem precisar carpir para sobreviver...
Pacientemente o girassol espera que o sol vá girando até alcançar sua face de flor; mas se você o encontra entristecido rouba-lhe o tronco e nem olha para o sol coberto pelas nuvens. Quando o sol começa a brilha a flor caída dá um último suspiro e morre. Você entende alguma coisa de natureza?
Por isso reclame não viu, reclame não viu...
Dentro do coco partido tem água doce e saudável; o ovo deixa de ser para alimentar e fazer nascer; a nuvem chora para molhar a terra; e o grito da mãe, e o grito da mãe?
Será que o barco volta? Mas ele é agora só um pontinho lá nas distâncias azuis. No cais, no porto, na vida, imenso e imensamente belo é um barco de chegada.
Por isso reclame não viu, reclame não viu...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com    

Meus nomes (Poesia)

Meus nomes



Meu nome é meu nome
mas o meu nome completo
é outro com outros nomes
o primeiro nome é face
é semblante e espelho
é também o que pensam
o que sou e o que não sou
mas por trás dessa aparência
surgem nomes verdadeiros
e logo o sobrenome materno
que sou eu sendo dela
tão menino e ainda criança
qualquer coisa de esperança
pra mostrar quem me brotou
e depois o nome paterno
tão simples e tão fraterno
sobrenome de chuva e de sol
sinal de luta desde o arrebol
por isso sou João ou José
Pedro ou um nome qualquer
mas por sobrenome só um
filho do pai e da minha mãe
pessoa de sangue e herança
identidade de tudo o que sou
e do que em mim frutificou.


Rangel Alves da Costa