SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 29 de fevereiro de 2020

DE DESALENTOS E CAMINHADAS



*Rangel Alves da Costa


Os tempos sertanejos já estão mais entristecidos, desalentados, desvalidos como a planta angustiada e o tanque já sedento. Os períodos chuvosos foram passando, as sementes esturricaram debaixo do chão, tudo foi definhando de vez. Não é só o cenário de paisagens desalentadoras de agora, mas as experiências matutas, as velhas sabedorias sertanejas, antevendo dias de tristezas ainda mais contundentes. Coisas de cortar coração, como no mundo-sertão se diz.
Verdades que muitos preferem viver a ilusão do verdor ainda existente num canto ou noutro. Mas como existir tempo bom sem a comida no pasto, sem a água na fonte, sem a despreocupação com o amanhã? Como dizer que tudo está bem, que tudo é confortante, se o velho cesto já foi retirado dos cantos para a palma pinicada, o resto de capim, qualquer coisa que vá sustentando o bicho? Noutros idos, então se dizia que estava chegando o tempo do pote rachando e da moringa molhada apenas pelas lágrimas do barro.
Muitos ainda se deixam enganar pela tal da seca verde. Aquela mesma do aparente verdor, da ilusão da terra molhada e da bonança do clima. Mas quem é enraizado na terra não se deixa enganar. Ainda que existam algumas flores e frutos por cima dos campos, nada se mostrará como bom se nos horizontes apenas a permanência de mil sóis a cada instante do dia. A seca verde é como um papel manteiga por cima do chão abrasado. Não demora muito e tudo vai virando cinzas de vez. E para fugir dessa ilusão, somente os sons dos relâmpagos e dos trovões, somente a chuvarada caindo, somente aquele cheiro forte da terra sendo entranhada pelo pingo grosso.
Enquanto as nuvens gordas, negras, prenhes, estiverem nos escondidos, nada se mostrará como esperançoso aos olhos sertanejos. Olhos que também avistam as esperanças nos gravetos de pau, nos ninhos dos passarinhos, nos sopros do vento. Na sabedoria sertaneja, fazendo a leitura do mundo, graveto que parece se retorcer sozinho é sinal de chuva breve. Quando os ninhos são feitos nas locas mais altas das pedras e não na copa das árvores, igualmente sinaliza chuvarada que se aproxima. Quando o vento começa a sopra assobiando, forte e fazendo curva, a certeza de muito pingo d’água cairá.
Mas por enquanto nada disso. Nenhuma leitura no tempo está sendo proveitosa. O que se espalham são os medos, os temores, as reclamações de falta de água, de comida pro bicho, de alimento à mesa. Os retratos vão surgindo e estes mostrando os campos secos, os barreiros vazios, os pequenos rebanhos pastando entristecidos debaixo do sol. Quem não teme ser humilhado ou tornar o seu voto e de sua família em moeda de troca, logo vai esmolar uma carrada d’água ao político da hora. E agora, em tempos eleitorais, são muitos. Mas depois?
A politicagem desenfreada sempre humilhou o sertanejo. O homem da terra, tão forte e tão lutador, mas fragilizado perante as estiagens, de repente se vê às portas da prostituição eleitoreira. Mais que uma humilhação, uma verdadeira desonra àquele que tem de submeter ao político em busca de um pouco de água para a sua cisterna. E basta que um carro-pipa chegue à sua cancela para nunca mais deixar de ser usado e abusado pela política. Daí para sempre será lembrado como aquele que deve o voto por causa de um pouco d’água.
Mas sempre assim. Mesmo na humilhação, na submissão eleitoreira, o temor maior é que as chuvas sumam de vez e a seca voraz abra cada vez mais sua boca. O medo maior é ouvir o bicho berrando e nada poder fazer. A angústia maior é avistar tudo ressequido e os sonhos serem engolidos pelo sol inclemente. E ter que desistir daquele mundo seu, e ter de fechar as portas da casinha, e ter que arribar mundo afora sem destino certo. Assim como aqueles retirantes tão bem retratados por Portinari. Famílias pelas estradas nuas. Restos humanos sendo levados ao deus dará.
Um espelho vivo da obra do grande mestre da pintura brasileira. Após os anos 40, Cândido Portinari deu início a uma série de pinturas que espelhavam a realidade social brasileira e, mais de perto, a nordestina. Exemplo disso, em 1944 surgiram as famosas e expressivas telas denominadas “Os Retirantes”. Nestas, tão conhecidas, uma família pelas estradas áridas, secas e espinhentas, fugindo das aflições de um mundo de dor e sofrimento.
Ante a fidelidade dos retratos pintados, sequer precisaria dizer mais alguma coisa. Ali a família fugindo da seca, tão esquelética e triste quanto o seu próprio mundo desfolhado e seco. Ali a família tendo que arribar de seu mundo e seguindo em desvalia pela incerteza das estradas. Ali o fiel retrato da desvalia nordestina ante a estiagem devoradora de tudo, lançando ao desalento vidas de todas as idades.
O que se teme, com os avanços sempre inevitáveis da seca, é que tais pinturas sejam novamente retratadas em cenários melancolicamente vivos pelas estradas sertanejas. Famílias que partem, mundo que fica. E sem um olhar para trás. Não há mais lágrima. A estrada, apenas.


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Lá no meu sertão...


Silêncio das horas...


Sexo (Poesia)



Sexo


Revelado
desejo
de ter

corpo
em plena
transformação

a chama
vulcão
erupção

e nas cinzas
a brandura
de suave brisa.

Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – Dona Domingas


*Rangel Alves da Costa


Bom dia, Dona Domingas! Cadê a almofada, cadê a linha, cadê o tamborete, cadê os bilros, cadê os espinhos longos e pontudos de mandacaru, cadê o papelão marcado com linhas perfeitas e motivos floridos? Dona Domingas, bom dia! Cadê a formosura da renda, cadê o prazer pelo ofício, cadê a arte maior nascida de mãos rendeiras? As calçadas adormecem nos silêncios da passagem das horas. Os cantos das salas já não cantam a canção dos bilros. Ainda se faz, mas agora se faz muito pouco. Já não ouço, como noutros dias, o som dos bilros sendo tocados, sendo levados por cima da almofada e tracejando a marcação. Já não vejo a artista dando vida ao seu bem-fazer, bem-criar, bem-gestar os traços do encantamento. As rendas de bilros não podem parar, as rendeiras não podem ser esquecidas, a arte sertaneja não pode deixar de brotar. Que Dona Domingas e todas as rendeiras de Poço Redondo e do sertão, jamais guardem suas almofadas nem repousem em desencanto suas mãos sábias e geniais.


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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

TEMPORADA DE CARA DE PAU



*Rangel Alves da Costa


As eleições se aproximam. Muitos já estão em pré-campanha. É coisa de se imaginar – e até de não acreditar – como grande parte dos políticos enfrentam os eleitores depois de um vergonhoso mandato e em busca de reeleição. Tem de ter muita cara de pau mesmo. Tem de ser desavergonhado mesmo, cínico, descarado sem ter medida. Olhar no olho do votante, que muitas vezes sabe de cor e salteado toda a vida política do postulante, e ainda assim estender a mão santificada, é mesmo levar óleo de peroba na cara. Cara de pau sem igual.
Mas sempre acontece assim. Do contrário, como se apresentaria novamente como candidato aquele que nas alturas do mandato é negado e aviltado pela população, e que logo sentencia: “Esse aí não ganha mais de jeito nenhum”, “Esse aí tinha era que ter vergonha na cara antes de pensar em ser candidato novamente”, “Esse aí deu pior que abóbora de chiqueiro”. Pelos naufrágios conceituais, logo se tem que o político nem adianta mais se meter em disputa eleitoral. Mas nada. De repente já estará desfazendo todo o enlameamento com o seu nome. E como consegue?
Consegue. Sempre consegue. E consegue por que a desonra sempre possui correspondência no mau-caratismo. Político assim, negado pela população, criticado até por suas bases, enlameado até dizer chega, não busca outro caminho senão suprir pelo dinheiro, pela compra de voto ou pelo deslavado assistencialismo, seu desfalque no caráter e no respeito. Tendo com o que comprar e encontrando quem aceite vender o voto, então o cara de pau logo se transforma – ao menos para o eleitor – no candidato mais virtuoso do mundo. E haja óleo de peroba pra todo mundo.
Um tostão que transforma o ladrão em salvador. Uma cesta de alimentos que cala de vez toda a infestação de palavras ruins. Uma promessa que vai sendo engolida com o cuspe da cumplicidade. Um abraço que acaba selando a conivência com o imprestável. Um aperto de mão que firma o compromisso com o quanto pior melhor. Que tempos, que costumes, diria o outro. Mas é este o tempo do vale-tudo, do não vale nada valendo tudo, dos acertos e conchavos que redundam na desonra pessoal presente e na desgraceira futura. Acaba-se criando um círculo tão vicioso quanto destrutivo.
E já está em plena efervescência a estação dos caras de pau. Os cupinzentos já deflagram investidas devastadoras. Mas uns santos, uns verdadeiros santificados ao chegarem às comunidades, nas povoações, na casa de cada um. Perecem mais amigos de velhas datas ou parentes que andaram distantes. E logo aquele sorriso imenso, as cinco ou seis mãos estendidas, abraços tão apertados como afetuosos. Tudo no engodo, na trama da enganação. Alguns até sabem os nomes dos eleitores e não raro que vão até a cozinha, abram panelas, metam a mão no pedaço de carne e depois lambam os beiços. Assim o metiê do desavergonhamento. Mas tem muito mais.
 Depois os particulares, as conversas pelos cantos, as mãos nos bolsos, a sem-vergonhice. Acaso se trate de liderança política, os acertos são sempre mais formais, porém não menos vergonhosos. Retratos abraçados com o povo, verdadeiros álbuns que mais tarde serão de tristes recordações. Depois do voto comprado, a partida. E a certeza que somente dali a quatro anos o cara de pau estará de retorno. Acaso não seja eleito, nunca mais sequer recordará que aquele povo existiu.
Contudo, há um mistério por trás do cinismo e descaramento político-eleitoral. A falta de vergonha na cara ainda não foi cientificamente conceituada. Talvez pela enormidade de tipos e espécies, com cada uma de mais óleo de peroba que a outra. Há indivíduo que já perdeu sua aparência e sua feição tornou-se apenas numa máscara que é trocada de momento a momento, dependendo da situação e perante o tipo de leitor. Mas todas as máscaras sobressaindo um sorriso largo, bondoso, bonachão. É através da máscara que faz a política, pois a verdadeira face sempre é imprestável a qualquer apresentação pública. Já se deteriorou nos lamaçais.
O problema é que o cara de pau sequer está aí para o seu futuro político, pois sempre com a certeza de que terá sua eleição garantida. Culpa dele não, mas do povo, do eleitor, este tão esquecido, vendável e consumível eleitor. Como dizia o Velho Titó, “o homem que vende o voto vende tomem a muié, os fio, toda a vergonha se argum dia teve”. Não muito diferente a assertiva difundida por Totoinho Bonome: “Acerto político, como compra e venda de voto, deveria ser feito em cabaré, dentro dos quartos imundos. Depois ninguém se conhece nem se cumprimenta mais. Já tá tudo pago, sem ninguém reclamar mais um do outro”.
Tristes tempos, mas apenas uma repetição do historicamente costumeiro. Agora, por exemplo, já batem de porta em porta candidatos cujo mandato foi todo contra o povo e a classe trabalhadora. E pousando de bons moços, fazendo doações e fechando ruas para festanças. Ainda outro que lá em cima é algoz e cúmplice de toda a situação de miséria do povo, mas que aqui se diz até postulante à governança. Só mesmo tendo muita cara de pau. Mas o pior é que tem de sobra.


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Lá no meu sertão...


Curralinho, Poço Redondo, sertão sergipano



Pelas calçadas velhas (Poesia)



Pelas calçadas velhas


Pelas calçadas velhas
as cadeiras na calçada
as debulhas de feijão
melancias sendo cortadas
rendeiras tecendo a vida
fumo sendo pinicado
menino com bola de gude
prosas e proseados
vizinhos e conhecidos
pelas calçadas velhas

e o vento chegava em voo
canções da tarde ecoavam
boa tarde minha senhora
boa tarde oh meu senhor
então vinha a ventania
batendo portas e janelas
e dando adeus de saudade
ao mundo belo e singelo
daquelas calçadas velhas.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – o velho



*Rangel Alves da Costa


O velho sentiu saudade. Mas a saudade não podia lhe fazer companhia. O velho mirou a velha fotografia na parede. Mas a fotografia não podia lhe fazer companhia. O velho quis sorvete, chocolate e muito doce. Mas nada disso chegou sequer perto do velho. O velho queria conversar, relembrar causos do passado, rememorar instantes de vida. Mas ninguém chegou para conversar com a velhice. O velho queria caminhar, subir a montanha, admirar o por do sol. Mas ninguém deixou que o velho saísse sequer à porta. O velho quis ser passarinho, quis voar, alcançar alguma liberdade. Mas tudo isso lhe foi negado. Um dia, o velho foi visto conversando sozinho. Noutro dia, foi visto lacrimejando um fiozinho de lágrima. E ainda depois foi visto chamando um nome que a ele muito interessava. Mas era apenas um velho. Ninguém se importou, ninguém sentou ao seu lado para saber o que estava sentindo. Ninguém deu a mínima importância às saudades, aos desejos, às angústias, às aflições do velho. Morreu assim, esquecido, abandonado, rejeitado de tudo. Contudo, importante demais da morte, pois havia deixado bens. Sua valia passou a ser a estupidez da herança.


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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

A BEATA E O CANGACEIRO



*Rangel Alves da Costa


Quando Padre Gerôncio ficou sabendo da notícia, então só faltou endoidar. “Mas não pode, isso é coisa do outro mundo, não pode estar acontecendo uma coisa dessas na minha paróquia. Se for verdade, eu juro por Deus que hei de excomungar a beata Santinha...”. E disse mais, muito mais.
Tudo pela notícia logo espalhada pelos quatro cantos e para espanto de meio mundo de gente. Grande parte da população não queria acreditar de jeito nenhum que a beata Santinha tivesse alçado o cangaceiro Lampião ao mesmo posto das santidades. Não só santificou o cangaceiro como lhe deu altar.
Assim mesmo aconteceu. A velha beata cismou de colocar dentro do oratório uma imagem de barro de Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Capitão Lampião, e bem ao lado dos santos da igreja e de outros santos sertanejos. E para a santidade cangaceira se devotava com a mesma fé e profusão. Até havia criado uma reza própria para louvar o rei das caatingas: “Ladainha ao Cangaceiro Sagrado”.
Isso mesmo, se aumentar nem diminuir. Significa dizer que Lampião estava ao lado de São Jorge, São Pedro, Nossa Senhora das Virgens, Nossa Senhora Aparecida, Santa Edwiges, São Sebastião, bem como de Padre Cícero, Frei Damião e o Beato Pedro Batista, dentre outros. E até de um Jesus Cristo antigo e todo trabalhado em madeira de lei, verdadeira relíquia.
Quem deu a língua nos dentes, indo contar essa novidade medonha ao Padre Gerôncio, foi outra famosa beata, a conhecida Gerimunda Linguaruda. Só que dessa vez, a história contada ao padre era verdadeira, pois Santinha sequer escondia a devoção sentida pelo cangaceiro por ela mesmo santificado.
Assim que contou a história ao sacerdote, o homem quase teve um piripaqui na hora. Era de pele clara, logo avermelhou, para depois parecer um tição fagulhando de raiva. Lançou mão do vinho da missa e secou a garrafa em minutos. Andava de lado a outra, ora querendo levantar a batina ora puxando os cabelos. A beata Gerimunda chegava a delirar com tudo isso, principalmente quando o sacerdote fazia menção de levantar a batina.
Enfim, Padre Gerôncio chegou à conclusão que teria de convocar a beata Santinha para se explicar, em meio aos fiéis, a sua atitude desatinada e pecadora de levantar altar entre os santos para um cangaceiro. E ainda por cima um cangaceiro tido por muitos como a ferocidade maior nordestina, líder de um bando de facínoras desalmados e até acusado de desvirginar mocinhas indefesas e levantar criança para o alto e esperar a descida na ponta do punhal. Ah, sim, a desnaturada beata tinha que se explicar direitinho.
Assim que soube da convocação, ao invés de se preocupar com as explicações que teria que dar ante o sacerdote e todos, sob pena de ser até mesmo excomungada, Santinha o que fez foi se ajoelhar perante o oratório e, mirando bem a imagem de Lampião, começar a entoar seu “Ladainha ao Cangaceiro Sagrado”:
“Meu santo santificado, santo do meu sertão, pois todo mal é curado no punhal de Lampião. Homem que veio como guia para afastar a opressão, para combater a tirania do mundo em desolação, trazendo uma estrela na mão e na outra um mosquetão, como enviado dos céus, para ser nossa salvação. Livra de todo quebranto, Virgulino Capitão, afasta do mundo a maldade pela sua estrela em clarão. Meu santo santificado, santo do meu sertão, pois todo mal é curado no punhal de Lampião”.
Pelo jeito, a beata lampionista estava mais que preparada para ir defender sua devoção cangaceira perante a igreja. Uma verdadeira Inquisição Sertaneja e com grande possibilidade de lançar à fogueira uma mulher cujo pecado maior era acreditar no que achava melhor acreditar, fazendo de sua fé um jeito próprio de veneração. E assim, se achando pronta e preparada para o que desse viesse, colocou um chapéu cangaceiro e rumou até a igreja.
Ao colocar os pés perante a multidão de sertanejos curiosos e amedrontados pelo que pudesse acontecer, Santinha logo ouviu do Padre Gerôncio, aos gritos: “Entrar com chapéu cangaceiro no templo de Deus, nem pensar...”. Então a beata começou a falar ali mesmo, sem sequer dar tempo de o sacerdote começar a inquisição:
“Quem disse que sua batina de pouca vergonha, pois todo mundo sabe o que faz nos escondidos da sacristia, é mais importante que esse chapéu sertanejo? Quem disse que sua fé é maior que a minha? Agora, sobre eu ter Lampião no meu oratório, eu tenho apenas a dizer o seguinte. Diga um só santo que não foi injustiçado em vida. Se disser o nome de um eu tiro Lampião agora mesmo do oratório. Ou o senhor acha que lutar contra a opressão, combater o dragão do poder e confrontar uma violência maior que a cangaceira, é coisa pra qualquer um? A vida de Lampião foi de martírio ou apenas de beber vinha de missa em cálice de ouro? Diga seu padre!”.
E depois disso, sem sequer prestar atenção no desmaio do padre, deu meia volta e seguiu caminho. Voltando-se apenas para um último grito: “E amanhã vou voltar pra contar os milagres de Lampião!”.


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Lá no meu sertão...


Um menininho sertanejo




Apenas amor (Poesia)



Apenas amor


Nem flor
nem espinho

apenas amor
e seu desalinho

doçura de mel
estranheza de fel

água de beber
sol de esmorecer

assim o amor
espinho e flor

jardim de vida
sangria e ferida.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – silêncio e voz



*Rangel Alves da Costa


É carnaval. Depois da porta, certamente muita folia, muita festa, muita animação. Mas eu escolhi o silêncio como companhia. Sequer tenho saído de casa. Hoje cedo dei algumas voltas pela cidade, em instantes de calma e sem nenhum barulho, e logo retornei. E há festa por todo lugar. Mas não irei a nenhum lugar. Aqui mesmo hei de ficar, no silêncio e ouvindo vozes. Sim, no silêncio e ouvindo vozes. Aquelas vozes que surgem na memória, nas relembranças, nas recordações. O pensamento viaja e reencontra, e depois do reencontro impossível que não comece a haver um diálogo com o reencontrado. A feição, a boca, os olhos, as palavras, até os toques. Tudo para chamar a voz, ainda que seja em silêncio, e dizer da saudade, do amor, do quanto dói a distância. E dizer do quanto ainda ama e ainda tanto quer a presença para, enfim, confessar, todo o amor sentido.


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sábado, 22 de fevereiro de 2020

HOJE FOI DIA DE MATO



*Rangel Alves da Costa


Hoje, em pleno sábado de carnaval, eu preferi tornar o meu dia num dia de mato. Quer dizer, ao invés de estar na cidade acompanhando as folias carnavalescas, peguei a estrada e fui conhecer outros sertões do meu sertão.
Ao amanhecer e o itinerário já estava certo. E o destino era uma comunidade chamada Garrote do Emeliano – ainda que não seja formada por habitações conjuntas, mas em propriedades ladeando umas às outras.
O Garrote do Emeliano, assim denominado em homenagem a Emeliano Vito da Silva, um senhor de profunda religiosidade que possuía moradia, está localizado nas proximidades do povoado Santa Rosa do Ermírio, no município de Poço Redondo, sertão sergipano do São Francisco.
Nesta região, minha intenção primeira – como de fato aconteceu – era visitar o amigo Marcos Moreira, um exímio artesão que me despertou curiosidade pelas miniaturas de carros antigos que faz em madeira. Uma perfeição.
A família de Marcos é maravilhosa, animada, muito acolhedora. Seu pai, um misto de criador e agricultor, parece viver e respirar sua terra, seu rebanho, suas criações. Sua mãe, que depois revelou sua maestria artística em tecidos, outra pessoa maravilhosa. Assim também com sua cunhada e outro senhor que ali faz moradia.
Interessantes também os três sobrinhos de Marcos, o pequenino Fael, e seus irmãos Emanuel e Larissa. Que meninos ativos, brincalhões, conversadores, nos seus moldes de todo menino que se expões em plenitude perante sua idade. E falavam, e explicavam, mostravam coisas interessantes pelos arredores. Três amores de crianças.
A arte produzida por Marcos é de uma beleza sem igual, coisa mesmo de quem tem muito cuidado e paciência para trabalhar a madeira e a tudo transformar em miniaturas de ônibus, tratores, carros-pipas, caminhões, caminhonetes, uma gama imensa de veículos, principalmente antigos.
De sabor sem igual o almoço servido após o meio-dia. Galinha de capoeira, macarrão, arroz, feijão e, como sobremesa, mel de abelha legítimo e ali mesmo produzido e umbuzada. Uma panelada de umbuzada, feita no capricho, que quanto mais era bebida mais se tinha vontade de colocar mais. Meu gosto era tanto que a mãe de Marcos compreendeu meu apetite pela iguaria sertaneja e me presenteou com uma vasilha cheia.
Depois da despedida de tão proveitosa visita, já na estrada resolvemos fazer outras visitas pelos arredores. Seguimos, então, em direção a casa de Dona Guiomar Vito. Esta senhora quase sexagenária é uma das matriarcas de uma importante família dos sertões de Poço Redondo: a Família Vito.
A Família Vito, passando de geração a geração, perpetua diversas feições da cultura sertaneja, pois desde os tempos antigos que preservam a arte dos pífanos, do aboio e da toada, dos folguedos e de diversas tradições. Dona Guiomar Vito ainda hoje é reconhecida pelos seus dotes no samba-de-doce, tanto como emboladeira (cantora de coco) como dançante.
Encontramos Dona Guiomar ao descanso da tarde, mas assim que chamada em seu quarto, logo surgiu alegre e sorridente. O peso da idade mostra suas marcas em Dona Guiomar, pois tem dificuldades para ouvir e também enxergar, além de caminhar quase sempre com bengala ou amparada por parente.
Perante Dona Guiomar, apresentei-me como filho de Alcino e logo vi nascer um sorriso na face. Relembrou meu pai e minha mãe e daí em diante pareceu mais encorajada para falar. Perguntada sobre os seus dotes no samba-de-coco, disse que naquela idade já não fazia mais nada. Mas para nossa surpresa, a velha matriarca logo começou uma cantoria de indescritível beleza. E cantou embolada como se estivesse numa roda de samba. Que força persiste e resiste nesta mulher!
O último destino foi uma visita a velha casa daquele que dá nome ao local: Emeliano. A velha moradia, no barro batido, ainda está de pé. Seu filho Antônio abriu suas portas e adentramos num mundo de religiosidade tão antiga como a própria fé. Retratos antigos pelas paredes, imagens de Padre Cícero e Frei Damião, objetos do passado, raízes ainda preservadas pela família.
Assim, um dia de mato, mas também de história, de arte, de cultura, de religiosidade e tradições.


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Lá no meu sertão...


Um menininho sertanejo




Como sopro de vento (Poesia)



Como sopro de vento


O vento sopro
as folhas esvoaçam
as velhas cartas
retornam ao olhar

assim também
com o amor
que persiste
em voltar

a saudade sopra
o desejo esvoaça
as asas do amor
vão buscar seu ninho.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – reencontrar



*Rangel Alves da Costa


Ontem reencontrei uma pessoa que admiro muito, que gosto muito. Não quero entrar no mérito do que nos fez distanciados. As pessoas têm desavenças, se desgostam, se distanciam e, ainda que não fosse o nosso caso, ainda assim estávamos ausentes demais um do outro. Mas reencontrar essa pessoa foi muito bom. Conversamos pouco, tivemos pouco tempo de diálogo, mas pudemos conversar o básico para muitas recordações do passado. Não sei quando será o nosso próximo encontro, ainda que não seja difícil pela pouca distância, mas espero que seja breve, de modo que novamente nossas memórias e afinidades voltem novamente à gaveta cheia de traças do tempo.


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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

A FELICIDADE NÃO SE COMPRA



*Rangel Alves da Costa


Quem possui sentimento de humildade, dificilmente estará apegado a bens ou coisas materiais. O ter significa apenas uma necessidade, não um luxo ou meio de ostentação.
Há pessoas, contudo, que forjam o ter como forma de demonstração de felicidade, de poder, de diferenciamento social. Mas aí as aparências servindo apenas para esconder os reais sentimentos.
E assim por que não há sorriso bonito sendo forjado, não há feição tomada de contentamento se o corpo e a alma estão apreensivos e descontentes, não há verdadeiro viver se a vida foi construída ou está sendo mantida sobre castelos de areia.
Somente é verdadeira a felicidade espontânea, nascida da conquista ou do reconhecimento de cada um de suas limitações. E para ser ato de normalidade, sem repentinos altos e baixos, o sentido da felicidade deve estar alicerçado na real valorização que cada um faz de si mesmo.
Ora, quando mascarada ou mantida em fingimento, a felicidade acaba se tornando um fardo a ser carregado. É possível mascará-la sempre? Nunca. Sorrisos dourados não significam nada. Se o coração não está sorridente e confortado, de nada adianta um rosto aberto e mãos brilhando de diamantes.
Carro de luxo não traz felicidade, anéis dourados não trazem felicidade, casarão de moradia não felicidade, ostentar que possui muito dinheiro e outras riquezas não traz felicidade.
Será que pode ser feliz aquele pobre casal que vive embrenhado nos cafundós do sertão? Será que traz consigo a felicidade aquela mocinha de chinelo barato no pé e vestido de chita? Será que encontra motivos de felicidades aquele rapazinho que sabe que tem pouco e por isso não vai além do que tem?
Sim. Ninguém vai ao supermercado comprar dois pacotes de felicidade, ninguém entra num banco para sacar um milhão de felicidades, ninguém entra numa loja chique para se vestir e revestir de felicidade. A felicidade não se compra.
Repita-se: a felicidade não se compra. A felicidade é como uma comunhão de aceitação de si mesmo com a negação daquilo que constantemente lhe é exposto para ser diferente. A felicidade é uma junção de humildade, de sabedoria, de nobreza da alma e de comedimento.
A felicidade é uma conquista que não precisa ser plantada para ser colhida, pois já florescendo dia após dia. A felicidade é ato de coração, de olhar, de palavra. Todo mundo conhece quem finge, quem mente, quem forja ser o que não é.
Muitas vezes, parece até um peso ruim e negativo estar ao lado de quem não é verdadeiro por viver revestido de ilusões de ser o que não é ou ter o que não possui. Outras vezes, uma pessoa carente se aproxima e é como um véu de alegria e de leveza boa se espalhe por todo lugar.
Ora, traz o bem no coração, chega com feição verdadeira, não traz consigo nada além do que o ser em si mesmo. Daí parecer ornada de luz, iluminada por dentro e por fora. E tornando o instante um prazeroso momento na vida.


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Lá no meu sertão...


Na magia do Velho Chico Sertanejo!




Voos e luas (Poesia)



Voos e luas


O dia passa
e a noite vem
meu coração
tão passarinho
voa também

asas para amar
para voar
ir mais além
subir ao alto
ser um luar

e o brilho
da lua minha
no meu olhar
fazem da noite
versos de amar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - a mídia também é nojenta



*Rangel Alves da Costa


Num período que tanto se fala em defesa do jornalismo, nada demais lembrar que quando ele quer faz e3scolhas mais que erradas. Ou certas, segundo as conveniências, como acontece com relação a política, políticos e ao poder. Um jornalismo que se declara de esquerda ou de direita não é jornalismo, mas mero caderno de catequização partidária. Mas não somente nisso o jornalismo possui função escatológica, nojenta mesmo, vez que de vez em quando envereda na defesa de coisas imprestáveis mesmo. Ora, que mídia é essa, que jornalismo é esse que ao invés de optar por um noticiário sério e proveitoso, prefere valorizar a todo custo o que faz Anitta, o que faz Pablo Vittar, e o escambau? Hoje mesmo eu avistei num site tido como de jornalismo sério, pois do grupo Globo, uma manchete dizendo que Anitta rebolou e mostrou o bumbum na prévia do carnaval não sei onde. O bumbum de Anitta deve ter alguma importância, mas creio que muitas outras coisas são menos vulgares e possuem muito mais valor.


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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

NAS NOITES DO SERTÃO, MEU CORAÇÃO SÓ QUER LUAR...



*Rangel Alves da Costa


As noites do sertão são lindas, grandes, imensas, poéticas, nostálgicas, orantes, pedintes. São portas que se abrem ao alto para, em direção ao luar, buscar os encantamentos da noite e da vida.
Quando as noites chegam e seu manto vai encobrindo a terra com suas cores sombreadas e escurecidas, logo as chamas do candeeiro da lua se acendem para tudo recobrir com seu dourado de paz e encanto.
A muitos, que apenas tratam a noite como parte escurecida do dia e a lua como o oposto do sol, tanto faz que após o entardecer os horizontes se encham de fogo e magia, e que os encantamentos surjam em cada raio de luar e em cada estrela que vagueia brilhosa pelos espaços.
Nada entendem de noite, de lua, e muito menos de luar sertanejo. Certamente não sabem que a lua carrega em si o dom da transformação e em cada dourado que espalha há um descortinar de sentimentos sem fim.
Igualmente não sabem de quanta simbologia há num clarão de luar sertanejo. No sertão, o luar não é de lua qualquer, não é apenas um astro noturno que brilha, não se contenta em ser somente uma luz clareando na noite.
O luar do sertão é sentimento aceso em fogo e brasa, é chama que reacende saudades, reencontros e recordações. O luar sertanejo crepita por dentro como tição e fagulha, como labareda e faísca. E tanto queima que é preciso cuidado ante sua luz.
Somente a luz do luar sertanejo para afastar as medonhices da noite e os medos dos esquecimentos. Impossível não abrir janelas, não reabrir velhos álbuns, não buscar fotografias, não reencontrar imagens de faces e feições, perante a luz que brilha lá em cima.
Nas noites do meu sertão, nada mais preciso que a luz do luar. Nas noites do meu sertão, meu coração só quer luar. E no luar o retrato vivo daquilo que sinto saudade, que amo, que merece ser recordado.
Nas noites do meu sertão, quando a lua se abre em flor, então os jardins da memória começam a brotar suas pétalas. Olhar para o alto e se encantar com o amarelado da lua, avistar a luz imensa perante a escuridão, tudo isso conforta a alma e o espírito.
Nas noites do meu sertão, quando os silêncios chamam à reflexão, nada melhor que compartilhar da voz interior com a auréola iluminada que desce do alto e a tudo envolve. Uma lua tão bela e sertaneja, tão cheia de palavras e vozes, que o silêncio se transforma em poesia e encantamento.
Bem disse o poeta: “Não há, oh gente, oh não, luar como esse do sertão...”. E digo mais: Uma luz que pacifica a alma, uma cor que enobrece o ser, um brilho que envolve todo o coração.
Na noite, nos altos e nas alturas da noite, é como se as recordações chegassem com a luz do luar. Um cheiro de café torrado, um cheiro de fogão de lenha. Vagantes vaga-lumes, réstias de candeeiros, fagulhas ainda vivas das fogueiras do tempo.
E uma canção no vento. Um vento que vem das montanhas, lá detrás dos montes enluarados, trazendo a cor da lua e o brilho das estrelas e para, perante o meu silêncio noturno, ecoar uma linda canção de amor.
De amor ao sertão. De amor à sua lua, ao seu luar.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Poço Redondo Antigo




Amor, verdades e mentiras (Poesia)



Amor, verdades e mentiras


No amor
entre as verdades
e as mentiras
eu prefiro ficar
com o que acredito
pois tudo verdade
e tudo mentira

pois no amor
a verdade existe
quando se deseja
e a mentira surge
por conveniência
de tornar a verdade
apenas mentira.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - lei do retorno


*Rangel Alves da Costa


A lei do retorno é certa: mais cedo ou mais tarde, a retribuição chegará pelo bem ou pelo mal que foi feito. O tempo não tem pressa. Tudo feito permanece escrito. Ninguém imagine que sua ação será simplesmente apagada no tempo. Ledo engano. O tempo passa e quando menos se espera, então as retribuições começam a silenciosamente chegar. A felicidade, a paz, a alegria, a vitória, o contentamento, o sonho realizado, para quem fez o bem. A tristeza, a doença, o definhamento, a angústia, a aflição, para quem fez o mal. Muitas vezes, ante qualquer coisa ruim acontecida, a pessoa apenas reclama que não merecia passar por aquilo. Contudo, bastaria olhar atrás, tentar avistado o passado, para saber o mal cometido. E agora o retorno. Por outro lado, não significa que a pessoa injustamente afetada tenha que fazer qualquer coisa. De forma alguma. A lei do retorno não depende da ação humana, mas do julgamento sagrado que a tudo vê, tudo observa e comanda os destinos segundo o instante de tudo acontecer. A pessoa aviltada até esquece, mas as forças do alto não. Daí a reação sobre a ação praticada. E daí também o merecimento futuro recebido por cada um. Por isso mesmo que todo o mal cometido contra alguém, certamente será um mal que será reparado. Pela paz no coração do injustiçado, e pelo que de ruim vai acontecendo nos passos de quem feriu por ferir, traiu por trair, enganou por enganar, mentiu por mentir, praticou o mal pela mera intenção da maldade.


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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

POÇO REDONDO, SEU POVO E SEUS ANTIGOS COSTUMES



*Rangel Alves da Costa


Atualmente, ante a reconstrução da Praça da Matriz de Poço Redondo, no sertão sergipano, e o impedimento de encontros dentro de seus limites, senhores poço-redondenses se reúnem na calçada do outro lado, na esquina da Travessa Maria Marques. Depois do anoitecer, vão chegando um e outro, e de repente mais de dez estão por ali falando sobre política, sobre seca e sol, sobre esperanças de chuvas e quaisquer outros acontecimentos que seja de relevância, ou não.
Nos tempos idos, outros sertanejos se reuniam com a mesma finalidade, só que na calçada de Mané Azedinho, na atual Rua Prefeito João Rodrigues, onde hoje funciona um comércio. Encontro certeiro em todas as noites, os que chegavam logo iam procurando seu cantinho na calçada de cimento. Mané Azedinho (o dono da casa), seu irmão Joãozinho de Neuza, Né Cirilo, Zé de Iaiá, Meron, Lourenço, Manezinho França e tantos outros. Todas as novidades políticas apareciam primeiro por lá. Todos os destinos de Poço Redondo ali eram discutidos.
E assim ficavam até tarde da noite, com alguns de repente já cochilando, e outros aproveitando o frescor antes de retornarem a suas casas. No outro dia, ainda com pouca claridade, muitos seguiam para os seus terrenos logo ao lado da cidade, principalmente para tirar leite das vaquinhas que possuíam. Até os anos oitenta, grande parte daqueles senhores poço-redondenses possuía uma propriedade, ainda que coisa de poucas tarefas, muitas vezes. Alguns com pequenos rebanhos e outros com duas ou três vaquinhas, apenas. Mas suficiente para garantir o leite de toda manhã. A melancia, o feijão, o milho, o maxixe, quase sempre era trazido do próprio terreno.
Ao longo do dia, os afazeres eram divididos segundo as posses e o modo de sobrevivência de cada um. Delino, além de comerciante de bananas e outros produtos adquiridos na Boca da Mata (Nossa Senhora da Glória), também possuía bar. Joãozinho de Neuza era do dono de caminhonete para transportar feirantes e também vendedor de farinha, bem como seu irmão Mané Azedinho. Comerciantes de farinha também eram Zé de Iaiá e Ireno Cirilo. Quem vendia farinha geralmente vendia também feijão. E alguns também o açúcar. Aos fundos de onde ainda hoje reside sua esposa Loló, no local onde funciona a venda de doces de seu filho Almiro, Seu Wilson (que também era Oficial de Justiça) possuía uma pequena mercearia.
Bem próximo dali, na esquina, Dom possuía venda de aguardente e produtos básicos na cozinha sertaneja. Outro que possuía vendinha de cachaça e miudezas era Zé de Lola, primeiro nos arredores da atual Praça Lourival Batista (Praça do Banese) e depois na vizinhança do antigo posto telefônico, ao lado da Câmara de Vereadores. Também na Praça Lourival Batista ficava o famoso Bar de Noélia. Noélia, aliás, de inesquecível memória em Poço Redondo, pois mulher guerreira, alegre e amiga de todo o sertão. A mãe de Teinha, Gizélia e Chiquinho, dentre outros, e esposa do famoso vaqueiro Chico de Celina, possuía bar sempre cheiroso a comida boa, pois cozinheira de mão cheia, doceira de cocada e doce de leite com bola, e sempre alegre em seu comércio.
Daí que seu bar era tomado de vaqueiros em dias de feira. Também bar preferido de afamados fazendeiros como Zé Ferreira, Ademor e Expedito Pereira. No Bar de Noélia, a dupla Vavá Machado e Marcolino, trazida pelos fazendeiros alagoanos e pernambucanos fincados nas terras de cá, já entoou cantorias famosas como “A chuva chove, molhando a face da terra, a neve cobrindo a serra, vai ter outra trovoada”. Ou “Eu vi Bela chorando, fui lhe dar consolação, findei chorando mais Bela na noite de São João. A minha namorada ainda hoje chora, ainda hoje chora, ainda hoje chora...”. Eu também choro de saudade daquele Poço Redondo antigo, onde as pessoas eram mais humanas, mais preocupadas com os destinos da povoação.
Pessoas como Mariano, Manezinho França e Amarílio, que carregavam baldes de água para regar os canteiros das praças, que cuidavam de cada flor como se estivessem cuidando de seus jardins. Um Poço Redondo doce pelos pirulitos de Dona Luisinha, da cocada de frade de Cecília de Duié, da cocada branca de Dona Quininha, do arroz-doce de Baíta, das balas de mel de Tonho Bioto. Um sertão de cheiros e sabores inesquecíveis. Ainda hoje, ao entardecer, eu sinto o cheiro bom, forte e oloroso, do café de Dona Lídia subindo pela Praça da Matriz e tomando todos os espaços. O cheiro bom e cheio de gulodices do bife acebolado e das paneladas de Dona Jarde de Mané Lameu, em sua venda de comidas em dias de feira, ali no canto do Mercado da Carne (onde hoje Luiz Carlos possui um barzinho).
De vez em quando, Maria do Piau aparecia com balde do peixinho na cabeça, e já salgado, no ponto. Piaba com cuscuz é coisa do outro mundo de gostosura. Mas muita gente preferia experimentar a carne de bode vendida na praça por Pedro Bola. Tudo assim até que a Festa de Agosto fosse aproximando e logo a chegada de Seu João Retratista, do engraxate Manezinho Tem-Tem, dos vendedores de colchas e roupas de porta em porta, mas principalmente do parque. Saudade daqueles tempos de parque.
Pontualmente, às cinco da tarde, e a música “O Milionário” (Os Incríveis), anunciava o começo das brincadeiras. Não demorava muito e o baile no mercado. Música para dançar agarradinho. E de repente uma voz ecoava My Mistake (Pholhas). Era Boca Rica, um cantor de Monte Alegre. Hoje mais conhecido como Pastor Heleno.


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Lá no meu sertão...


MARIA, minha filha linda, parabéns pelo seu aniversário!





Alma minha (Poesia)



Alma minha


Alma minha
a paz irradia

nem o vento
nem a ventania

nem a tristeza
nem a agonia

nem a solidão
nem melancolia

apenas a paz
em mim irradia

n’alma minha
amor como guia.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - qual a serventia do carnaval?



*Rangel Alves da Costa


Outro dia, numa rede social, eu li que o carnaval não serve para absolutamente nada. A pessoa certamente querida dizer que o período carnavalesco não possui utilidade alguma enquanto festejo. E possui razão tal pensamento. A não ser para uma viagem de repouso, para um merecido descanso, o período carnavalesco não possui mesmo serventia alguma. Qual, realmente, a utilidade do carnaval perante aqueles que durante o período esquecem que existe uma realidade, que se voltam apenas a bebedeiras, ao esquecimento dos afazeres tão necessários e que mais tarde terá de enfrentar? Vale a pena apenas beber, pular, brincar, se por trás da cortina o mundo político trama contra si, se além do salão as canetas estão assinando decretos para diminuir seus poderes aquisitivos e suas dignidades? Mas tudo bem, pois bebe quem quiser, se esbalda quem quiser, esquece o mundo quem quiser. E não há que se negar que o carnaval se afeiçoa perfeitamente ao jeito omisso de grande parte do brasileiro, ao seu jeito de achar que tudo tanto faz, ao seu negligenciamento perante as realidades. Para uma gente que leva tudo na brincadeira, então não há nada melhor que o carnaval. Tudo como se a ilusão fosse mais importante que a realidade. Mas quando se dá conta, após a quarta-feira de cinzas, a ressaca não é da bebida, mas de preocupação com os compromissos não cumpridos e as contas a pagar que foram se acumulando. E a sensação de espanto perante o novo que foi tramando enquanto se achava o rei da folia.


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domingo, 16 de fevereiro de 2020

A VELHA SENHORA E AS FLORES DE PLÁSTICO


*Rangel Alves da Costa


Pela janela da sala avistava-se um jardim descuidado, porém com flores vistosas pela estação. Bastava chegar rente à janela e também avistar colibris e borboletas, folhas passando em voo, bem como ouvir algum canto de passarinho.
Mesmo com a possibilidade de lançar seu olhar para o além da janela, para as paisagens mais adiante, a velha senhora sequer sentava junto ao umbral, com sua cadeira de balanço recebendo o frescor das horas.
Quem adentrasse à sala - quase sempre escurecida - sempre encontrava a velha senhora no mesmo local, sempre sentada em sua cadeira de balanço e com os olhos voltados para uma mesa logo adiante. Não olhava, contudo, para a mesa em si, mas para um jarro que ali ficava.
Ali adiante, um velho jarro com flores parecendo ainda mais velhas. Flores de diversas cores, mas todas parecendo esbranquiçadas pelo tempo. Por mais que de vez em quando fossem lavadas, uma poeira se impregnava tal qual um pólen do tempo.
No passado, para o jarro bonito, de porcelana florida, as flores ali colocadas pareciam colhidas em jardim. As rosas então, estas pareciam viçosas, molhadas e perfumadas, mas somente para a ilusão do olhar. E com o tempo, com o passar dos anos, tudo esbranquiçando num buquê sem vida.
Perante estas flores sem vida, esbranquiçadas, murchas no plástico do tempo, é que a velha senhora levava os seus dias. Sentava na cadeira de balanço e passava horas e horas mirando aquela natureza-morta sobre a mesa. Mas o que motivava a velha senhora a fazer isso, quando bem poderia olhar as flores do jardim logo após a janela?
O mistério estava no pensamento. O segredo estava no diálogo que a velha senhora mantinha com as flores de plásticos. As memórias, as recordações, as nostalgias, bem como as perguntas e respostas feitas, tudo serviria como resposta àqueles momentos de olhar sempre fixo nas flores de plástico.
Toda vez que lançava o olhar às flores de plástico, era como se a velha senhora estivesse avistando a vida em todas suas consequências. Avistava o tempo caminhando, as folhas do calendário passando, o passado, o presente e o futuro.
E por dentro, no seu íntimo saudoso, certamente dizia: Não somos sequer como as flores nascidas em jardim, pois estas nascem belas, fulguram nas paisagens, perfumam ambientes, mas logos perdem o viço, a força, e morrem. E nós humanos convivemos um pouco mais com o jardim da vida.
E acrescentava: Somos assim como flores de plástico. Nada mais que isto, pois flores de plástico, apenas. Belas, coloridas, parecendo vivas quando novas, mas que aos poucos vai perdendo toda sua beleza. Não murcham, mas se dobram. Não caem, mas perdem a cor. Não perdem o perfume inexistente, mas sobre elas passa a restar somente o pó, a poeira do tempo.
Assim, eis a razão de a velha senhora tanto olhar e refletir perante as flores de plástico. Não meditava sobre as flores sem vida, sem cor, empoeiradas. Mas sobre a vida que também é flor de plástico. Vai perdendo a cor, o ânimo de flor, para depois se recurvar, se encher de marcas do tempo, até que um dia simplesmente ser jogada fora.
Flores de plásticos somos, não há que duvidar. A velha senhora uma flor de plástico já desgastada de tempo, já prestes a perder o seu jarro, já prestes a ser descartada pelo destino de todos. E em nós, em cada um de nós, a sensação que também estamos dentro de um jarro sobre uma mesa. E o tempo apenas passando.


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