SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 30 de novembro de 2019

EM NOITES ASSIM



*Rangel Alves da Costa


Noite. Com a escuridão o despertar maior dos sentimentos. Sob o seu véu um emaranhado de segredos, mistérios e fotografias, tudo querendo se revelar de uma só vez, ou manter-se ainda nos labirintos da alma.
Noite. Talvez noite chuvosa, mais pesada, mais entristecida. Os pingos que caem vão alimentando os íntimos mais escondidos para, de repente, tudo aflorar como flores vivar de lembranças, saudades e nostalgias.
A janela aberta para o negrume lá fora é chamado ao sofrimento. O horizonte escurecido aclara-se somente para vislumbrar as distâncias existentes somente dentro do ser. Os reflexos estarão nos olhos e no coração.
Uma velha fotografia vai surgindo à mão. O olhar encontra a parede e nela as imagens emolduradas. O velho baú é reaberto e as cartas e os bilhetes ressurgem entre o aflitivo e o melancólico. Ali um passado que faz doer pela recordação.
Em noites assim, em negrumes fechados assim, as janelas e portas da memória e da saudade se abrem de vez. E tudo vai chegando, tudo vai tomando conta, tudo vai transformando os instantes em dolorosos percursos.
Um amor distante, um amor desamado, um abandono, um adeus que não desejava ter. Palavras e imagens, sons e pensamentos, diálogos íntimos, reencontros indesejados, eis o percurso até que o descontrole passe a domar aquilo que parecia já resolvido na alma.
Mesmo sem música alguma ao redor, de repente uma velha canção vais surgindo. As folhagens farfalham vozes já ouvidas, a leve ventania para declamar poesia. Um rastro de lua vai deixando suas marcas em meio ao negrume que o olhar desejava transformar em reencontro.
A pessoa parece estar bem, quer estar bem, imagina que daquela vez não irá deixar que a saudade e o entristecimento novamente provoquem enxurradas. O contextual, contudo, entre o instante que chama e o interior que desperta, vai rompendo seus laços e os transbordamentos se tornam inevitáveis.
São em noites assim que as lágrimas procuram vazões no subsolo da alma e vão surgindo como pequenos veios de angústias e aflições. Primeiro, o noturno, depois a moldura do instante, depois as imagens e as recordações que vão surgindo. E depois e depois...
Depois os olhos queimando na febre da saudade. Depois os olhos marejando para se derramar em rios ardentes de aflição. Depois os prantos e os soluços inevitáveis. A pessoa já não está mais em si. A partir daí somente responde ao que a propensão interior desejar.
São em noites assim que os lençóis são encharcados, que os travesseiros são molhados, que os lenços são alagados, que os rios transbordam toda lágrima de dor, de saudade, de relembrança, de nostalgia. São em noites assim que a pessoa navega e naufraga dentro da própria memória.
Os outros passam pelas calçadas, pelas ruas, ao redor, e de ondem passam avistam apenas uma casa fechada, uma janela fechada, uma noturna solidão. Logo imaginam que assim pelo recolhimento da hora, pelo repouso noturno. Nem sempre imaginam que após aquela janela ou porta, dentro da casa, alguém sofre, alguém agoniza.
Na cama ou no sofá, na cadeira de balanço ou num vão qualquer, apenas a pessoa, suas lágrimas, seus soluços e suas dores. Quem está distante ou quem deu causa a tamanho sofrimento, sequer imagina a triste cena noturna do silêncio e do soluço.
E os rios transbordam, inundam, a tudo invade, até que o alvorecer ressurja sem trazer consigo todo o retrato passado. Mas a saudade não passa. A verdadeira saudade nunca passa. Um amor verdadeiro jamais é esquecido.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


No meu sertão de Poço Redondo





Amor, amar (Poesia)



Amor, amar


Meu amor
o teu amor
é meu amor
e por amar
de todo amor
só sei dizer
que amo tanto
amar você

calar agora
e só olhar
no teu olhar
e no teu mar
quero o azul
de mar a mar
e te beijar
e te abraçar
te amar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – Coisa chamada amor



*Rangel Alves da Costa


Coisa chamada amor. E quanta complicação nessa coisa chamada amor. Para muitos o amor é tudo; para outros o amor é a maior expressão que possa existir num ser; para outros, o ato de amar significa acobertar-se do bem contra todo mal e negatividade. Seja como for, verdade é que o amor, ou a busca de sua verdade, é o desejo mais almejado entre os racionais. Viver sem amor, muitos dizem, é conviver com a escuridão e o sofrimento. Contudo, a primazia do amor não lhe afasta das críticas, das considerações negativas, das muitas inconveniências originadas em seu nome. Já que o amor é tudo, dizem, então seria também tudo aquilo que em seu nome é praticado. Daí ser o gume afiado de muitos males. E certamente muito se pratica com a pecha amorosa e mais tarde é revelado como graves problemas a ser resolvidos. Pois o amor, segundo também afirmam, é sentimento envolto de tamanha força que tem o dom de cegar, de tirar completamente a razão da pessoa, de deixá-la à mercê das ilusões e das fantasias, até mesmo as mais absurdas. Em tal estágio, agindo assim perante o indivíduo, eis que o amor acaba se transformando numa verdadeira armadilha, num abismo por onde se caminha sem saber. Mas não há que se desenganar. Tem que arriscar. Ninguém vive sem amor. A brasa vem, a chama ardente, para afagar, para queimar.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

DAS MAIS PROFUNDAS RAÍZES



*Rangel Alves da Costa


O tempo passa, a gente vai envelhecendo, de repente já estaremos distanciados demais de nossos antepassados, nossas raízes familiares e de todo o convívio que nos permitiu chegar até onde estamos agora. Mas jamais esquecer.
Ora, não se pode esquecer as lições de um livro bom que sempre pede para ser relido em nossa memória. Mesmo que às vezes doa, que aflija por dentro pelas recordações, lembranças e nostalgias, ainda assim temos que olhar pra trás e avistar o que há de nós e o que há dos nossos que ainda podem ser avistados.
Não nasci agora, não vim ao mundo sozinho. Sou filho de pessoas que foram gestadas por outras pessoas, e daí um vínculo consanguíneo e familiar que jamais poderá ser negado em nome do esquecimento, da ingratidão ou do tanto faz.
Meu pai Alcino era filho de Dona Emeliana e Seu Ermerindo. Minha mãe Maria do Perpétuo, Dona Peta, era filha de Teotônio Alves China (o China do Poço) e Dona Marieta (Mãeta). Sou neto deles, sou neto de Seu Ermerindo e Dona Emeliana Marques, e de China do Poço e de Mãeta.
E estes também tinham suas raízes, seus berços familiares. O pai do pai de meu pai, a mãe da mãe de minha mãe. E mais distante ainda, lá longe, nas lonjuras das nascentes familiares. E tudo sendo semeado, vingado, gestado em outros e outros. Fios da vida que se alongaram até o presente, ainda que muitos sequer percebam que são tão distantes em suas raízes.
Com isto quero afirmar que minha presença de agora é um reflexo do ontem, do passado distante, do que foi brotado pelos meus até que em mim florescesse a vida. Por isso não posso enxergar o espelho do presente sem avistar as velhas fotografias molduradas na parede do tempo e do coração. E quanta saudade dá!
Lembro-me, dentre tantas lembranças e nostalgias, dos santos no céu amadeirado do oratório de minha avó Emeliana, de seu gosto pelo Juazeiro do Padim Ciço e de sua voz firme dizendo assim e assim. Romeira, devota, uma sertaneja de rosário de contas e de promessas.
Lembro-me do coração perfumado de meu avô Ermerindo e do seu jeito firme, como a não querer revelar seu sentimentalismo e sua bondade. Relembro seu armazém, sua mercearia, seus couros, seus fardos de algodão, seu balcão imenso e sua geladeira a gás nos fundos da venda. Lembro sua predileção pelos repentistas nordestinos e o monte de discos que ele trazia a cada romaria.
Meu avô China era um abridor de portas para os muitos amigos que possuía. Não recebeu apenas Lampião e o Padre Artur Passos em sua moradia, mas também comboeiros, andantes, mascates, pessoas que cortavam os sertões poço-redondenses. Sua vendinha ao lado da casa era mais para prosear com os amigos do que mesmo como meio de sobrevivência, vez que possuindo algumas fazendas e sendo reconhecido como um de posses da pequena povoação.
Minha avó Marieta, Mãeta, vivia para os santos, para as rezas, para as igrejas, para abençoar quem passasse pela sua porta e para avistar o mundo, ali sentadinha ao entardecer em sua calçada. Em dias de missa, e lá ia ela, toda miudinha, levando livros de rezas e crucifixos, levando sua cadeira de oração e seu xale de renda escura sobre a cabeça.
Meu pai Alcino sempre foi dividido em muitos, o Alcino político, o Alcino amante de seu sertão e o Alcino familiar. Mas eu gostava mesmo era do Alcino sertanejo, aquele apaixonado pela terra, pelo seu povo, adorador de Tonico e Tinoco, catador de causos e histórias da saga sertaneja, aprendiz de escritor dedilhando em antiga máquina de escrever. Inesquecível aquele Alcino saindo com sua pequena radiola e discos e indo até o cruzeiro da Praça da Matriz, e aí fazer ecoar pelas noites sertanejas o cancioneiro apaixonado de seu sertão.
Minha mãe Dona Peta, a fina flor do meu coração. Sem outras palavras para descrevê-la, senão aquelas que dizem sobre sua beleza, sua doçura humana, seu indistinto amor. Costurava, bordava, pintava tecidos, gostava de fazer doces e comidas, possuía uma voz tão bela que os anjos se encantavam quando chegava à igreja.
E eu, eu sou uma parte de tudo isso, uma prenda viva de laços familiares, ou aquele que tudo faz para jamais se afastar daquele jardim de onde floresci. Por isso que olho no espelho e me avisto em muitos. No meu eu também aqueles outros. Aqueles que sequer conheci, mas que em mim estão pela força hereditária.
Não sou apenas Rangel. Sou Rangel de Alcino e de Dona Peta, mas também Rangel de Seu Ermerindo e de Seu China, de Dona Emeliana e Dona Marieta. Tenho um nome, mas sou aquele que vem do sobrenome.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


Eu...



Amor e fim (Poesia)



Amor e fim


Até que enfim
chegou ao fim
era jardim
virou capim

poema feio
chinfrim

há de ser assim
se é tão ruim
aquele sim
ter fim

amor que dói
em mim.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – por amor



*Rangel Alves da Costa


. Tudo fazer por amor. Ser Ulisses, ser Hércules, ser um herói, um deus, um semideus, mas tudo ser pra ter amor. Desandar de tudo, ser outro e diferente, revirar pelo avesso, contrariar a si mesmo, mas tudo fazer pelo amor. Mas vale a pena amar assim, se doar, se entregar, deixar de ser pra ser do outro? Quem ama sabe se vale a pena amar assim. Andar distâncias atrás de um chocolate que ela quer. Contar moedas para comprar o que ela quer. Buscar a flor, mas não a flor, e sim a mais bela, a mais perfumada, pra dar a ela. E aquela joia, aquele perfume, aquele presente bonito? Tudo pra ela, em nome dela, sem que nada falte ao seu desejo. E subir de escada pra buscar a lua. E criar asas pra buscar estrelas. E ser poeta e encontrar a mais bela palavra que houver. Sim, tudo por amor. E por amor, porém a outro, ela simplesmente dá um chute e vai embora, sorrindo.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

QUANDO EU MATO BORBOLETAS E COLIBRIS



*Rangel Alves da Costa


Passei, e então um menino de repente se aproximou tocando em minha camisa, tentando dizer alguma coisa, mas não dei a menor atenção. Que coisa mais chata, inoportuna, e minha camisa tão limpa! Logo tentei me afastar daquela mão de mendicância e seguir adiante.
Mais à frente, achando-me no conforto do distanciamento da miséria humana, olhei para trás e avistei o menino. Que olhar mais tristonho! Certamente mais uma vez desapontado pelo que eu fiz. E ele só queria dizer que estava com fome e precisava de uma moeda pra comprar um pão.
Que traste humano eu sou. Quando e onde eu me esqueci das velhas lições de minha avó, sempre dizendo que a bondade faz bem ao coração e que não se deve negar àquele que está precisando. Minha avó certamente ficaria muito desgostosa com o neto que tem e com o que ele faz, assim como fez com o menino faminto por um pão.
É assim que a gente mata borboletas e colibris. É também assim que a gente esmaga flores, joga pedra em vidraças, chuta o lixeiro do jardim, arranca e joga fora o ninho de passarinho. Quem nega um pão a um faminto faz oração ao contrário, cospe na imagem sagrada, diz não quando pode dizer sim.
Que coisa mais sádica, mais insensível e humanamente degradante é matar borboletas e colibris, alguém poderia, acertadamente, dizer. Mas a gente vive matando borboletas e colibris a todo instante. A todo o momento a gente dizima pintassilgos, vaga-lumes, beija-flores, esperanças e pirilampos. Não há um segundo sequer que a gente não esteja maldizendo o sol, o lua, a estrelas, os astros do firmamento.
Não, não precisa que eu lance ferozmente meu sapato sobre a borboleta que mansa e belamente repousa no umbral da janela. Não, não precisa que eu mire a peteca atiradeira na direção do colibri para vê-lo cair despedaçado ao chão. Não, não precisa que eu faça assim. Mato borboletas e colibris com minha insensibilidade, com o descaso e a omissão, perante as coisas boas e belas da vida. Dizimo indefesos no jardim sem precisar devastar cada um, mas tão somente pelo meu desapego ao que há de mais singelo na vida: os encantos da natureza.
Mato colibris e borboletas quando não deixo que o menino de rua toque em minha camisa nem fale comigo, nada me peça. Ora, se eu faço isso com um ser infantil, marcado pelo sofrimento, carente e faminto, o que eu poderia fazer perante uma borboleta e um colibri? Também matá-los. E até mesmo pela ideia de que humanos podem ser simplesmente ignorados nas suas insignificâncias e os seres da natureza meramente dizimados, pois nada além que espécies sem nenhuma importância.
Quanta covardia em mim, quanta barbárie em mim. Sou gente, sou humano, possuo algum valor? Acaso eu tenha, ou ache que tenha, e por que não teria a borboleta e o colibri? Talvez a vida das espécies não valha nada, de nada é o viver de um sabiá, de uma seriema, de um galo de campina. E talvez pensem que uma gaiola é pouco: tem que matar. Vivemos num egoísmo que cega, num soberba que faz ignorar a tudo e a todos, numa vaidade que nem o ouro do Rei Midas nos servirá de exemplo de como não ser e não fazer.
Quantos rios eu penso que são colibris e vou simplesmente matando. Ora, sou humano e o homem gosta de destruir nascentes, leitos, bordas, vegetação ciliar. Sou pessoa, e coisa que a pessoa gosta é de envenenar água corrente, lançar esgotos doentios, tornar imprestável a vida nas águas. E quem mata colibris pode também matar cardumes, fazer com que as espécies aquáticas fiquem sem seu habitat natural para, que mais tarde, reste apenas o leito entristecido e vazio. E também para dizer: não fui eu, não tenho culpa alguma, nada tenho a ver com isso!
Se o bicho, o passarinho, a folhagem e a roseira, pudessem falar, não seria injusto se dissessem o quanto eu sou imprestável. Qual valia possui alguém que derrama a água da cuia para o bicho não ter o que beber, que corta a machado a árvore centenária, que envenena as gramíneas que nascem e verdejam pelos campos? Qual valia possui quem arranca cabeça de calango, assa passarinho em braseiro, aprisiona eternamente o canto de um coleirinho numa gaiola?
Aquele pobre menino não foi minha única vítima, certamente que não. Na sua inocência faminta, o garotinho ainda não entende bem das entranhas do mundo, ainda que padeça demais perante sua idade. Mais adiante, contudo, verá que os homens nasceram humanos e foram se bestializando por esforço próprio. A mais asquerosa das artes, mas no coração humano parece gestado o ofício do fazer sempre o pior.
Faz isso com o próprio homem, com o semelhante. E por isso de nenhuma importância será matar borboletas e colibris.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


No sertão, desde cedo...



Jardim da noite (Poesia)



Jardim da noite


A lua descendo sobre a fresta
ilumina um jardim florido
na cama um corpo em rubor
de nudez em pétala
com sua flor

e eu jardineiro amante
pela primavera apaixonado
acaricio e beijo sua flor
cheirando o lascivo perfume
do amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - eles... e os outros



*Rangel Alves da Costa


Eles se fartam nas mesas fartas e depois cospem nas mãos estendidas em esmolas. Eles bebem uísque escocês e vinho francês e depois arrotam em direção às janelas tomadas de olhos pedintes. Eles pagam com cartão de crédito internacional, com cheque especial ou apenas assinam a nota, e depois se negam a dar uma esmola à miséria ossuda pelas calçadas. Eles vão subindo as escadas, mais alto e cada vez amis alto, e a cada degrau subido vão chutando aqueles que lhe serviram de amparo. Eles usam caneta dourada para decidir o futuro dos outros, e sempre assinam sentenças de morte. Eles se arvoram de poderosos, de generais, de líderes maiores, mas nunca estão lutando perante o sangue e perante o medo. Eles levaram os louros da vitória sem jamais haver conquistado qualquer coisa. Eles sorriem e estendem os braços, mas eles escondem o precipício onde os outros serão lançados. Agora mesmo eles contam os seus lucros. Agora mesmo os outros choram a dor de um estômago vazia, da desesperança e da desvalia de tudo.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

terça-feira, 26 de novembro de 2019

BRIÓ E ANTÔNIO CANELA: QUANDO AS PALAVRAS E AS AMEAÇAS SÃO SENTENÇAS DE MORTE



*Rangel Alves da Costa


Muitos foram os acontecidos no solo sertanejo de Poço Redondo, no sertão sergipano, naqueles idos cangaceiros, principalmente a partir dos anos 30. Fato curioso é que a saga cangaceira na região não envolveu somente a ferrenha luta entre cangaceiros e volantes, mas também personagens que mesmo estando à margem das vinditas, ainda assim foram alcançados pela cruel sangria.
Mais curioso ainda é o fato de que dois destes importantes acontecidos, de consequências verdadeiramente trágicas, tiveram por motivação as palavras ditas e as ameaças impensadas. Ou mesmo de forma pensada, mas sem se imaginar no fatal desfecho depois de proferidas. Depois da análise do relatado abaixo, logo será fácil compreender que perante o cangaço - incluindo o mundo das volantes - a palavra e o gesto possuíam tamanha força, tamanha consequência, que exsurgiam até como sentença de morte para aquele que erroneamente se expressasse.
Assim aconteceu, por exemplo, com Brió e Antônio Canela. Este de trágico fim nas proximidades da Estrada de Curralinho (Estrada Histórica Antônio Conselheiro) e aquele ladeando a Estrada da Maranduba (região das Queimadas, nas beiradas do Riacho do Braz), bem próximo ao local onde, em 1937, Zé Joaquim (José Machado Feitosa), um rapaz de Poço Redondo foi torturado e morto pelo grupo de Juriti e Zé Sereno, sob a falsa acusação de ter dito a Zé Rufino que o bando de Lampião estava emboscado à sua espera na Lagoa da Cruz.
Como dito, Antônio Canela, um modesto vaqueiro vivente entre as beiradas alagoanas de Bonito e sergipanas de Curralinho, falou demais e, além disso, ameaçou demais, e acabou trucidado pelas próprias ações do passado. Segundo consta, nos idos de 1937, o vaqueiro se juntou com outros sertanejos e prometeu dar cabo a Lampião assim que este chegasse a Entremontes, nas barrancas das Alagoas. Pegou em armas, preparou a tocaia, mas nada de o bando aparecer. Contudo, a história ganhou o vento e foi parar aos ouvidos da cangaceirama.
Certamente que amedrontado com a irrealizada promessa e as juras de dar fim ao rei cangaceiro, Antônio Canela resolveu se bandear para o outro lado do rio, região sergipana do Curralinho. Oficiando como vaqueiro, um dia foi atrás de um jumento pelos arredores da fazenda Camarões e mais adiante avistou, na sede da propriedade, uma festança. Vai até lá e se junta à beberança. Não sabia, contudo, que logo a cangaceirama chegaria para cobrá-lo na dor e no sofrimento aquela emboscada feita pra Lampião.
E a cangaceirama que chega é a comandada por Mané Moreno. O líder do subgrupo já havia sido informado que o vaqueiro “metido a valente” poderia estar por ali. Tanto estava que logo o reconheceu. Identificou e logo deu início à cruel vingança. Sem dar o mínimo de atenção aos rogos dos sertanejos ali presentes, o cangaceiro logo sentencia o vaqueiro de morte. E de forma mais bestial ainda ante a confissão feita de que só não matou Lampião por que este não apareceu. Uma coragem que equivalia a pedir pra morrer.
A morte de Canela foi de indescritível perversidade. Picotado pelo canivete de Alecrim, tombado ante o açoite do mosquetão de Cravo Roxo, e depois disso amarrado a um animal e levado à morte certa. Foi Mané Moreno quem deu o tiro fatal. Mais um. E já morto é sangrado. E, segundo Alcino Alves Costa em seu Lampião Além da Versão (p. 196), o cangaceiro Cravo Roxo se acerca do corpo e bebe do sangue que borbulhava em seu pescoço.
Antes disso, nos idos de fevereiro de 1935, o sertanejo Brió (Benjamin, irmão do cangaceiro Demudado), um moço de Poço Redondo, igualmente falou demais e pagou no além da conta pela sua ousadia. Num meio onde a mera suspeita de ser alcoviteiro de volante já era correr perigo, que se imagine um cabra dizer - mesmo mentirosamente - que iria se juntar ao comando de Zé Rufino para perseguir aqueles que fossem amigos, coiteiros ou protetores de cangaceiros.
Num forró na fazenda de Julião do Nascimento, pai do mesmo Zé de Julião que mais tarde se tornaria no cangaceiro Cajazeira, Brió se desentendeu com a família dos Lameu e, raivoso, disse que todos pagariam bem pago assim que entrasse na força de Zé Rufino, o que já estava prestes a acontecer. Mentiu, contudo. E sua mentira teve uma trágica consequência. Sua verdadeira intenção era se juntar ao grupo de cangaceiros que estavam acoitados naquelas proximidades, nas Capoeiras. Iria servir ao subgrupo do perverso Mané Moreno, contando ainda com Zé Sereno e Juriti.
Sem saber que Brió se juntaria ao grupo, então Zé de Julião apareceu no coito para contar a novidade: Brió havia prometido ser cabra de Zé Rufino. Foi o fim de uma mentira. Não demorou muito, eis que Brió se apresenta àquele que seria o seu futuro grupo cangaceiro. Só não sabia o que lhe esperava. A sentença foi rápida: morte certa ao traidor. Tentou desfazer a todo custo o mal-entendido, mas não teve jeito. Os cangaceiros levam-no até o Riacho do Braz e o enforcam.
Indaga-se: por que enforcamento e não de outra forma? Apenas por que Brió, ante a certeza da morte, rogou para não ser nem enforcado nem afogado. Assim a vida cangaceira e daqueles que estavam ao seu redor, suas sagas e seus desatinos, seus tortuosos caminhos. 


Escritor
blograngel-sertao.blosgpot.com

Lá no meu sertão...


Bonsucesso, Poço Redondo, sertão sergipano...



Estrela minha (Poesia)



Estrela minha


Não é noite
não é negrume
mas no pensamento
surgindo seu lume
em sua estrela
e teu perfume

eis o clarão do sol
em tua face radiante
e no brilho do teu olhar
uma luz assim brilhante
estrela amorosa em ti
meu amor a todo instante.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - destinos sem amanhãs



*Rangel Alves da Costa


Não sei o destino do mundo, não sei. Não sei o que será da vida, não sei. Não sei do instante seguinte, não sei. Mas tudo feio, tudo esquisito, tudo pesaroso demais. O menino ainda dorme debaixo da marquise. A menina engravidou aos treze anos, e sem certeza da paternidade. No menino de doze anos, as mãos já lanhadas do serviço duro, do corte da cana, da dureza debaixo do sol. A mãe deixa o menino de colo ao desvão da miséria e vai fazer o pior pelas ruas. Um varal estendido de restos de roupas, de frangalhos, de indigências. Todo dia há manhã, há cantar de galo, mas nem todo dia há sequer um pedaço de pão. Os homens chegaram e arrancaram o hidrômetro, cortaram o gato de luz. A escuridão toma conta do casebre empobrecido. O menino chora, a infância padece. O fogão de lenha repousa sem brasas, sem fogo, sem panela, sem qualquer serventia. O calendário da parede cai e elevado pelo vento. A vida vai assim levada, levada pela ventania... Ou pela tempestade, ou pelo vendaval, ou pela tormenta da existência sem viver.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

O DESCONHECIDO SERTÃO (PARA O PRÓPRIO SERTANEJO)



*Rangel Alves da Costa


Como já dizia o Coronel Tibúrcio Tertuliano nos tempos idos, assim que se aboletava na sua cadeira de balanço de varanda e poder, nada melhor que reinar em meio a um povo esquecido. E ajuntava: Aquele Euclides estava errado. O sertanejo não é antes de tudo um forte, mas antes de tudo um povo esquecido. E quem não tem mente para o passado não pode conhecer o presente, eis que tudo uma boiada num caminho só.
Jamais reconhecerei sua patente, mas não posso deixar de dar razão ao coronel. O sertanejo é um povo esquecido mesmo. Não só esquecido como alheio à sua realidade, até mesmo ausente do chão onde pisa. O viver para o momento o torna, além de alheio perante a realidade passada, também um descompromissado com o presente. Ora, acaso não volte seu olhar às raízes, às promessas, ao que ainda não foi feito por completo, ou sequer terá como reconhecer a si mesmo.
Nascer, crescer e viver num determinado lugar não significa muito se a pessoa não reconhece o seu berço e tanto faz ter nascido ali como noutro lugar. Deve haver um compromisso umbilical entre o sujeito e o seu chão, e ajuste este que envolve o conhecimento não só dos antepassados como da realidade presente. É como se um livro tivesse que estar sempre aberto para que jamais se afaste tanto das lições como dos novos escritos.
Com efeito, o sertão é desconhecido pelo próprio sertanejo. Não na generalidade de seus habitantes, mas grande parte pouco ou quase nada conhece de sua história, sua saga de lutas, sua geografia diferenciada, sua imensa riqueza cultural, as manifestações e tradições próprias de seu povo. Não conhece as raízes, olha para o passado somente até onde vão seus avôs e sequer possui a devida preocupação com o presente e os destinos de sua nação encourada.
Os mais velhos ainda cuidam de sua história, de sua memória, daquilo que lhe fez proveito. Muitas vezes, seus instantes presentes nada significam senão o espelhamento do passado. De seus presentes apenas fazem a devida comparação. Então dizem que antigamente era assim, que tudo era diferente e nada sequer parecido com a realidade de agora. Convive com o novo, mas sem jamais se esquecer daquilo que lhe acompanhou ou foi de serventia na caminhada. Porém nem todos de mais idade são assim, vez que muitos se declaram desapartados do tempo e até se negam a recordar.
Com os mais jovens, então tudo se deslancha mesmo. Para a maioria dos jovens, o ontem já passou e nenhuma valia terá recordar. Para estes, o passado é coisa tão velha que poderá até envelhecer se olhar pra trás. E assim se descompromissam totalmente com a realidade de sua cidade, seu município ou sua comunidade, pois apenas existindo sem ao menos saber de onde veio, quais as profundezas de suas raízes e de onde vem sua história.
Jamais deveria ser assim. Mas também culpa das escolas que não ensinam como deveriam ensinar. E assim porque há o repasse de conteúdos gerais sem haver a mínima preocupação com a história ou geografia local. Datas importantes, percursos de lutas, figuras ilustres, como o povo foi gestando na comunidade, como se deu a formação da povoação, nada disso parece ser importante para ser ensinado como conteúdo escolar. Então os alunos entram e saem da escola sem conhecer a realidade de seu próprio mundo.
Por isso mesmo que o sertão, lugar de tantas lutas, tantas histórias e tantas vultosas memórias, está ficando cada vez mais desconhecido, e para o seu próprio filho, o sertanejo. Não se valoriza mais nada. Manifestações culturais e tradições culturais, ao invés de serem permanências no povo, tornaram-se objeto de pequenos grupos, que pelo viés artístico ainda propagam suas existências. Não interesse sequer em saber como sua povoação foi fundada, como se deu a povoação até chegar ao presente, como tudo se encaminhou para se achegar onde chegou.
Por isso mesmo que não há mais autêntico forró-pé-de serra, não há mais brincadeiras noturnas, não há mais ciranda, cavalo de pau ou boneca de pano. As tecnologias surgidas foram trazendo consigo o dom de apagar o passado. E, como um quadro de giz, o sertão e sua história vão sendo apagados a cada dia. A moda é o modismo, o sertanejo vive segundo os ditames televisivos ou dos grandes centros urbanos. Muitos até renegam suas origens e se transmudam para o mundo que não é seu.
E o preço de tudo isso é sempre cobrado em dobro. Gerações inteiras alheias ao seu mundo e forjando realidades que não são condizentes com sua própria realidade. No intuito de querer inovar demais ou querer ser outro a todo custo, outro futuro não haverá senão o de serem engolidos pelo nada. O abismo do nada que aguarda a todos.
       

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu sertão...



EMOCIONADO! Ainda estou comovido com as homenagens que me foram prestadas hoje no Desfile da Emancipação Política de Poço Redondo. Na foto abaixo, um aluno da Escola Municipal Zumbi dos Palmares levando o meu nome e um livro de minha autoria. Obrigado a todos. SAIBAM, CHOREI...




Amanhã (Poesia)



Amanhã


Se imaginou
que ia me ferir
ao ter dado fim
após me trair
nada é assim
você vai sentir
eu estou feliz
e você a fingir

tenho meu sorriso
tenho a minha paz
ao passar chorando
de longe eu aceno
no troco do mundo
mundo tão pequeno
eu sei que você vai
beber seu veneno.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - “empréstimo, dinheiro na hora...”



*Rangel Alves da Costa


Confesso que chego a entristecer ao caminhar pelo centro comercial de Aracaju, capital sergipana, e me deparar com tanto jovem exercendo um subemprego desesperançoso e até humilhante. Mocinhas e rapazes, de dezoito a vinte anos - e aos montes - fazendo panfletagem o dia inteiro de consultas de óculos, de empresas de empréstimos consignados, de lojas, de um monte de coisas. Em cada quarteirão nada menos que vinte em meio às pessoas e tentando que estas recebam um panfletinho ou ouçam suas vozes ecoando: “Empréstimo no cartão, dinheiro na hora...”. E tudo isso se repetindo e se repetindo, como se as palavras já saíssem automaticamente da boca. Quando ganha um jovem desse? Difícil saber, mas quase uma esmola para tanto esforço, o dia inteiro, debaixo do sol, da ventania ou da chuva. Ora, se o salário para o emprego do comércio já é aviltante, que se imagine uma mão de obra jovem, desempregada, sem oportunidade alguma de emprego, tentando a todo custo ganhar qualquer coisa. Certamente uma exploração, mas também uma humilhação interior difícil de ser digerida.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

domingo, 24 de novembro de 2019

A MENINA NUA



*Rangel Alves da Costa


Bela menina. Linda a menina. Mocinha, mas ainda na flor da mais bela idade. Parecia uma bonequinha de tão formosa. Laço de fita no cabelo, pés descalços, perfeita feição. Uma flor na flor da menina.
Tímida, recatada demais, distanciada de tudo. Dizia gostar da solidão, pois sozinha sabia que estava distante de olhares e até mesmo de pessoas. Não gostava de olhares em sua direção nem de pessoas ao redor.
Já mocinha, ou já moça feita, ainda assim a menina nunca se distanciava muito de sua boneca de pano. Cuidava de seu brinquedo de infância como se dela mesmo estivesse cuidando. Limpava, penteava, fazia roupa, vestia, conversava, colocava pra dormir. E de vez em quando com ela adormecia no mesmo travesseiro.
Flertar, paquerar, namorar? Nunca. Sua idade já permitia namoricos ou mesmo namoros mais alentados, porém ela sequer pensava em deixar seu prazer de solidão e passar a dividir seus instantes com outra pessoa. Ainda era capaz de se debruçar sobre o umbral da janela e sonhar com o príncipe encantado chegando em cavalo alazão.
Desejos de mulher, íntimas vontades de mulher, pensamentos íntimos e excitantes? Talvez sim. Ora, era mulher, uma mocinha, uma menina bonita que certamente não iria permanecer virginal por toda a existência. Mas não demonstrava o mínimo de interesse. O que lhe despertava em si mesma adormecia.
Ela não gostava de olhares, mas os olhares gostavam dela. Sua beleza era tamanha que logo despertava encantamento em que a avistasse. Despertava desejos, interesses, seduções, pensamentos que iam além da beleza física. Na verdade era a mulher que todo jovem desejava como namorada e, num sonho, como sua companheira.
Olhos que a avistavam e tiravam toda sua roupa, sem pudor algum. Rasgavam seu vestido, tiravas sua calcinha, seu sutiã e tudo que a recobrisse, para ter adiante apenas a beleza nua da menina. E uma nudez tão bela, tão meiga e sedutora, que certamente se poderia supor estar diante de uma musa de sonhos.
Aqueles seios perfeitos, aquela boca carnuda, aqueles lábios molhados, aquela pele sedosa, aqueles cabelos lisos deitados sobre lençóis, aquelas curvas em geografia corporal mais que perfeita, aquelas pernas torneadas como a cinzel dos deuses, um flor no umbigo, um sexo de indescritível beleza. E tudo no viço e na leveza da pétala...
Olhares imaginando ser assim. Olhares desejosos que fosse assim. E era assim mesmo. Mas não para a volúpia, para a libertinagem, para a pecaminosidade ou para qualquer uso que se fizesse fazer. Não. Aquela nudez na menina, aquela vista e desejada pelos olhares, jamais possuiria o sentido que os olhos desejariam, ainda que nudez feminina.
Quando estava nua, a nudez da menina era a nudez de um corpo, apenas, ainda que se diferenciasse de tantos outros pela inigualável beleza. Tudo belo na menina, os cabelos, a pele, os seios, o corpo, o sexo, tudo o que nela houvesse. Mas apenas um corpo de mulher, numa mulher nua.
Toda mulher nua possui uma nudez conhecida. Contudo, a beleza de um corpo nu está muito mais nos seus atributos físicos do que o sentido sexual que dele se deseje tirar proveito. Assim como bela flor em jardim, a nudez feminina não precisa ser extirpada da roseira para servir a outros propósitos de beleza. Será bela ainda que jamais saia do jardim.
E na menina a beleza da inocência ou na vontade de se manter em pureza até onde desejasse. E assim se mantinha. Nos instantes de nudez, aquele belo corpo nu como deitado em repouso sagrado: uma deusa adormecida. Por ser belo, atraente e desejado, não precisava ser mostrado nem ofertado. Apenas um corpo no corpo de sua dona, na nudez de qualquer bela mulher.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


Memória da Cavalhada. Povoado Bonsucesso. Poço Redondo, sertão sergipano - I




Ela é linda (Poesia)



Ela é linda


Ela é linda
e como pássaro
como nuvem
como brisa
ela chegou
minha menina

bom destino
com seu menino
e quis a sina
que uma partisse
para outra chegar
linda menina.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - beber no fel, calar na dor...



*Rangel Alves da Costa


Dizer que o outro é bicho, é estúpido, é ignorante, é bruto, é violento, é áspero, um desumano, é muito fácil. Dizer que o outro é tudo menos gente, basta abrir a boca e assim dizer. Dizer que o outro é insensível, é um algoz, é um carrasco, é um brutamontes, é fácil demais, pois só abrir a boca ou expressar. Dizer que o outro só tem consigo espinhos, é ponta de pedra que fere os passos, é um labirinto e seus fantasmas, basta dizer para se confortar. Dizer que o outro possui um abismo onde deveria ter um coração, possui o desprezo onde deveria ter atenção, possui a ignorância onde deveria ter o afeto, basta querer dizer assim e se contentar em se defender. Dizer que o outro não sabe abraçar, não faz carinho, não sabe amar, sempre fácil demais quando outra coisa não há a dizer. Dizer que o outro não cantou sua canção, não falou baixinho ao seu ouvido, não acarinhou a sua pele, soa tão fácil quanto dizer que o mesmo outro nunca existiu. Pode dizer, pois assim se diz, e assim se faz. E não adianta dizer que não, falar que nada assim aconteceu. É melhor deixar pra lá e beber com fel, calar na dor, o que foi dito. Não adianta contradizer o que não adianta ser contradito. Quando a pessoa se faz de vítima, e sempre se acha uma borboleta, um passarinho, uma flor inocente em um jardim, não adianta dizer que é gente e como gente tem seu punhal tem sua arma, e pode ferir e pode matar. Melhor calar, beber no fel, calar na dor, e aceitar ser acusado do que não foi, do que não é. Não adianta dizer que não, pois continuará sendo o mesmo bicho, o mesmo espinho, a mesma pedra.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

sábado, 23 de novembro de 2019

POÇO REDONDO, CULTURA E RESISTÊNCIA



*Rangel Alves da Costa


Na noite desta sexta-feira 22 de novembro, a Praça de Eventos de Poço Redondo recebeu diversos grupos culturais dando continuidade à realização da Semana Popular de Arte na Resistência, já na quinta edição, evento este promovido pelo Teatro Raízes Nordestinas em parceria com outras entidades.
Apresentações maravilhosas, a exemplo do grupo de jovens violinistas, as duas meninas que subiram ao palco para cantar, mas principalmente do grupo de dança da Comunidade Quilombola do Mocambo, no vizinho Porto da Folha. Outras apresentações demonstraram bem a força da arte, da cultura e da resistência.
Euziane, representante do Teatro Raízes e uma das organizadoras do evento, sempre de parabéns pelo contínuo esforço desenvolvido em prol do reconhecimento e da valorização das potencialidades artísticas e culturais de Poço Redondo e de todo o sertão sergipano. Reitero os parabéns, Euziane. Nosso amigo Damião Rodrigues também de incansável luta em defesa do mais belo que existe e brota nas terras desses sertões.
Contudo, de forma específica e até apaixonada, quero testemunhar aqui a comoção sentida perante a apresentação do Grupo de Xaxado do Centro Educacional Nossa Senhora das Graças, da cidade de Poço Redondo. São vinte alunos da escola representando, através do xaxado, uma antiga tradição cangaceiro em momentos de festança e descontração.
Mesmo com problemas no som, a meninada deu um verdadeiro show, com desenvoltura artística de gente grande e demonstrando que é desde cedo que a cultura deve ser gestada nos corações sertanejos, preservando e mantendo as tradições. E vi ali a presença da saudosa amiga Marcileide, uma presença viva em cada jovem, em cada cangaceira e cangaceiro mirim, em Lampião e Maria Bonita, em cada passo dançado e em cada som ecoado.
A partir dela, de seu grande sonho, de sua luta incontida em defesa de nossas raízes, é que tudo começou e este grupo de xaxado começou a florir, sob a direção inteligente e criativa do amigo Marcos. Agradeço-te ainda, amiga Marcileide, pela beleza e brilho na apresentação de ontem de seus meninos. E, lá do alto, saiba que eles cantaram, dançaram, mantiveram viva a força da arte e cultura, em sua eterna homenagem.
Sua semeadura mostra-se bela, com flor e fruto, e a certeza de que seus sonhos foram transformados em tão belas realidades.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...



AO LADO DO AMIGO AILTON DINIZ – Nesta sexta à noite, na Praça de Eventos de Poço Redondo, reencontrando um bom e cordial amigo Ailton Diniz. E ele que ali estava também para prestigiar a apresentação de seu filho entre os jovens violonistas. Um pai orgulhoso de sua cria. Parabéns, amigo Ailton!




Filozinha, meu amor (Poesia)



Filozinha, meu amor


Filozinha, meu amor
menina do mato
flor de algodão
araçá docinho
do sertão

muita saudade, viu
da pétala desabrochando
da lua se clareando
no teu corpo de menina
luarando.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – tudo tem seu preço



*Rangel Alves da Costa


Nada grátis. Nada amostra grátis. Nada dado de graça. Nada ofertado porque assim achou melhor a fazer. Nada, absolutamente nada assim. Tudo tem seu preço, um valor cobrado, um benefício em troca, um proveito que se pretende tirar. Até mesmo um pai para com o filho. O pai dá, mas pede que faça isso e aquilo, que seja assim e assim. Do namorado à namorada, do esposo à esposa, e assim por diante. Presenteia com uma joia, mas quer uma retribuição. Mesmo que não seja também com joia, mas sempre com algo que do outro espera que venha: amor, respeito, honestidade. Uma simples esmola é sempre dada objetivando uma retribuição interior. A pessoa doa uma moeda, mas no seu íntimo um desejo de recompensa divina por aquele ato de bondade. Daí que ninguém imagine doar ou receber sem que algo de valor envolva essa bondade. O dar por dar não existe. Doação é também desejo de recebimento. E é por isso que há doação. O pensamento que aquele gesto seja reconhecido aos olhos de Deus. Assim, a certeza que tudo tem seu preço. E, muitas vezes, deseja-se receber muito mais do que o que se doa.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O PAPAGAIO DE DONA ZEFA



*Rangel Alves da Costa


Dizem que o papagaio de Dona Zefa da Guia já rondava aquelas paisagens sertanejas antes mesmo do surgimento do quilombo no alto da Serra da Guia.
O Quilombo Serra da Guia, no município sertanejo de Poço Redondo, surgiu como reduto escravo em tempos já muito idos. No tempo da escravidão, os negros fugitivos fizeram refúgio no alto de uma serra alta, chamada de Serra da Guia.
E o papagaio de Dona Zefa, no voo incerto que fez, foi parar exatamente no alto daquela certa, como por outras serras já havia passado e repousado desde os arredores das aldeias indígenas às senzalas de açoite e chibata.
Sua chegada ali se deu nesse percurso papagaiado. Coisa pra mais de trezentos anos, ou mais até, pois há uma conversa dando conta que ele chegou num dos navios do descobrimento do Brasil.
Assim que se viu em terra, pulou do umbro do português e fez voo sem direção, vindo parar nestas distâncias. O marinheiro tudo fez para recuperá-lo, mas o louro até zombava de seu algoz. Queria mesmo a liberdade e assim foi voando, voando, voando...
Quando Dona Zefa nasceu o papagaio já era tido como velho na casa, mas o tempo foi passando e ele só na dele, como um Matusalém das caatingas. E bote Matusalém nisso, vez que ele mesmo dizia que já havia sido muitos naquele mesmo corpo de papagaio.
Depois Dona Zefa levou o louro para sua companhia e até hoje o danado se mostra ativo. Ativo e famoso.  Não tanto quanto a sua dona, ainda assim muito afamado. E por várias razões.
Parecendo eternamente repousando perto da cumeeira entre a sala da frente e a entrada das demais dependências da casa antiga, o louro famoso vive ali à espreita de quem passa pela frente, quem chega chamando, quem entra e quem sai.
Mas que ninguém se atreva a chamá-lo de fofoqueiro, pois ouvirá uma resposta tão desbragada que é melhor nem citar. Todo dia sua dona reina com ele, mas não tem jeito. O motivo dos xingamentos de Dona Zefa não é outro senão a língua solta e ferina demais do papagaio.
Chega mulher barriguda na porta e ele logo diz: “De novo? Mas não é possível que você só leve a vida a fazer menino, pois todo dia tá aqui dizendo que tá perto de parir. Feche essas pernas, muié!”.
Ouve-se dizer que certa feita chegou um afeminado e cheio de trejeitos batendo palma e chamando Dona Zefa, certamente em busca de alguma reza para curar um mau olhado ou coisa parecida. Mas o papagaio disse assim que avistou: “Nem venha que não tem. O seu negócio não tem reza que dê jeito. Mas uma boa surra de cansanção talvez fizesse você se endireitar um pouquinho”.
Acaso chegue um com cara de doente, então ouve do danado: “Nem precisa Dona Zefa rezar, eu já sei o seu mal. Vá trabalhar e deixe de tomar cachaça que fica bonzinho!”. E de repente se ouve, ante a chegada de alguém que ele não gosta: “Dona Zefa não está, pode voltar, chispa daqui...”.
Aí vai Dona Zefa e grita de lá de dentro dizendo que está, e então o papagaio vira numa fera: “Deixe de ser mentirosa, a senhora não tá não!”. E assim o papagaio vai fazendo fama.
E se acaso você for até a Guia visitar Dona Zefa, então torça pra que o louro se agrade de sua chegada. Do contrário será, no mínimo, chamado de feio e convidado a se retirar. Assim mesmo, na cara de pau.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...



SAUDADE DESSES DOIS PEDRO: PEDRO E PEDRINHO. Saudade sim, e muita. Saudade desses dois jovens amigos, infantes guerreiros nordestinos, promessas confiáveis de permanência na luta e defesa de nossas raízes históricas e culturais, pois os dois fazendo parte da Família Cariri Cangaço: Pedro Popoff (O Menino do Cordel e do Baião) e Pedro Lucas Feitosa (O Menino do Museu). E Manoel Severo me confessou: Sem eles, nada seria assim tão belo e encantador!




Flor e perfume (Poesia)



Flor e perfume


Vê meu amor
dentro da noite
eu vejo a flor
no seu olhar
um brilho aceso
me chamando
a amar

e beijo a flor
e sinto a pétala
e quero o jardim
então o seu aroma
abre o frasco
e se derrama
em mim.

Rangel Alves da Costa