SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O POLÍTICO PERFEITO (Crônica)

O POLÍTICO PERFEITO

                                          Rangel Alves da Costa*


Política interiorana é coisa pra rir e chorar ao mesmo tempo, principalmente se diz respeito aos tempos mais antigos, quando as leis pareciam não alcançar aqueles espertos politicalhos e nem se falava em punição por crime eleitoral, prestação de contas ou qualquer coisa parecida. A lei era sempre ditada pela liderança mais forte e que fosse correligionário das malfadadas forças coronelistas do poder estadual.
 Casos de politicagens existem que se tornaram verdadeiro folclore, hoje repassado de boca em boca como se ontem tudo fosse o maior absurdo. Parecem não enxergar bem o que se faz no presente. O que se fazia ontem ainda não está de todo esquecido e desconsiderado em sua prática. Pelo contrário, continuam fazendo às escondidas e só não fazem mais e abertamente com medo de serem flagrados.
Verdade é que a maioria dos políticos de hoje ainda segue as lições de antigamente, de outros tempos onde o pleito eleitoral ou o ato de votar era apenas uma parte menos importante diante do que já havia sido vergonhosamente trabalhado, urdido, comprado, forjado. Talvez sigam mesmo as valiosas práticas eleitoreiras levadas a cabo por um tal político perfeito que havia por lá.   
 Esse político perfeito fez história pela sua canalhice eleitoreira, ainda que seu currículo tenha sido até de melhor aroma do que muitos que hoje se dizem honestos. Daí que contam que numa dessas regiões sertão adentro havia essa genialidade política. Maior líder de suas fronteiras, não havia oposição que o superasse nas urnas. Já havia sido vereador e prefeito uma tantas vezes e tentava sentar na cadeira do legislativo estadual.
Possuía estratégias políticas mais que inteligentes, ainda que com feições coronelistas, clientelistas e assistencialistas. Coronelista porque se firmava com voz inflexível perante as autoridades com quem tratava, fosse delegado, juiz, deputado e até governador. O respeito que impunha o fazia temido demais. Contudo, o que mais pesava era o balaio de votos que possuía e transferia um a um, no contadinho.
O clientelismo dele era mais que original. Procurava saber direitinho quem da região ainda não lhe havia pedido algum favor, ainda não havia batido à sua porta para precisar disso ou daquilo. Se soubesse de algum nome que ainda não havia se submetido, então logo providenciava para que o outro entrasse em desgraça e ficasse totalmente è mercê de sua diabólica benevolência. Resolvido o problema, o cabra não havia mais como deixar de ser seu eleitor. Ele e a família em peso. O cabresto já havia sido lançado e não tinha mais jeito de sair daquele pasto.
O homem era também um desavergonhado assistencialista. Dificilmente havia na região uma pessoa que não estivesse usando uma dentadura, um óculo de grau, uma muleta, uma cadeira de rodas, uma peruca, que já não tivesse receita despachada, conta de mercearia paga, frente de casa pintada, roupa do corpo doada. Quem morresse faria uma falta danada pelo voto a menos, mas a família não deixaria de ter o caixão adequado. Depois se discutiria os termos da doação.
Não somente isso, pois a visão do político era tamanha que até contava com uma peculiar rede de assistência social, contando esta com parteira diuturnamente, arrancador de dentes, benzedeira, rezadeira, catimbozeira, pai e mãe de santo, vidente, forrozeiro e muito mais. Do que precisasse e lá estava o homem para servir. Dizem até que escondia nas suas terras gente muito perigosa, matadores e ladrões, e até contava com jagunços de prontidão para atender às necessidades dos amigos eleitoralmente mais poderosos.
Sua casa vivia cheia de gente necessitada ou porque já estava viciada em pedir pacote de sal e açúcar, e isso pra dizer o de menos. Todo dia mandava matar um animal diferente para encher a barriga de quem chegava por ali dizendo que estava com as tripas roncando. Um dia era um porco, noutro um carneiro ou ainda não sei quantas galinhas e capões. Tinha vez que mandava derrubar um boi e ainda assim não dava pra quem queria.
Mas o homem quase não tinha paz com tanta gente ao redor. Se por um lado havia a mendicância generalizada, de outro estavam os imprestáveis que tinha de suportar a qualquer custo. Eram dezenas de fofoqueiros, bajuladores, puxa-sacos, carpideiras da desgraça alheia, pessoas que iam ali contar mentira sobre os adversários para ver se amealhavam simpatia. Ele ouvia tudo e não dizia nada, mas depois ordenava investigação e se fosse mentira mandava dar uma surrada bem dada no mentiroso.
Tinha gente especialmente para viver de caderninho à mão para tomar nota do nome das pessoas que chegavam ali. No povoado tal tantos eleitores, na rua de cima e na rua de baixo mais tanto, lá pelas bandas do vai quem quer mais outro tanto, e assim por diante. Pelas estatísticas sempre atualizadas, não havia como não sufragar de goleada. Ainda assim tomava outras precauções, que era mandar distribuir dinheiro em notas só pela metade. A outra metade só depois do voto e da vitória.
Mas um dia aconteceu o impensável. O velho coronel, o pai dos pobres, o benfeitor, foi traído pelo povo e tal traição confirmada nas urnas. No povoado tal foi uma decepção, na rua de cima e na rua de baixo tomou de lavagem, e no restante o mesmo fracasso eleitoral. Por que tanto prestígio político tornado em nada de uma hora pra outra? Alguém haveria de perguntar.
Ora, aconteceu apenas o que sempre acontece quando se trata de povo eleitor. Quanto mais recebe mais trai, quanto mais é ajudado mais deixa de reconhecer o apoio dado, quando mais o político lhe compra o voto mais ficará sem este. E depois da derrota aquele velho político repensou suas estratégias e resolveu que seria o pior de todos, que perseguiria, faria maldades com todo mundo, mandaria passar o chicote.
E assim fez. E nunca mais perdeu uma eleição.




Poeta e cronista
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Waynu, o amor (Poesia)

Waynu, o amor



O imperador inca
pediu ao poeta do templo
um madrigal waynu
para o seu amor mais amado
e o bardo galante
entristecido pela solidão
imaginou como seria o amor
e mandou para o soberano
simples inscrições que diziam

Ainda não digas nada
que um dia ela sentará
eternamente à sua direita
e ao anoitecer fará moradia
dentro do seu coração
embaixo dos lençóis

ainda não diga a ela
que as manhãs e os dias
as noites e até os sonhos
serão mais belos e singelos
porque o seu bem amado
pediu ao maior Criador
estas provas de amor

ainda não diga a ela
que preferia não dizer nada
pois na mudez do lábio
se esconde a doce palavra
que um dia será ouvida
com a boca tocando a boca
num beijo levemente dado
que o céu dos passarinhos
será também do amor alado.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: COITADO DO BICHO-PAPÃO

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: COITADO DO BICHO-PAPÃO

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Dizem que um menino arreliento demais, malino até dizer chega, desses que não tem medo de nada e ainda por cima leva a vida a assustar os outros, depois que se cansava das peraltices do dia corria para o colo de sua avó. Era chegar e pedir uma história de bicho-papão.
E quanto mais a boa velhinha contava, inventava e reinventava estórias sobre o danado do bicho-papão, o neto reclamava e dizia que o tal bicho não era de nada, eram um frouxo, um covarde, e que contasse outra bem assustadora.
Mas a coitada da avó não sabia mais o que fazer, pois já havia transformado o bicho que era apenas papão num monstro terrível, num ser medonho e comedor de criancinhas e até adultos, numa coisa verdadeiramente do outro mundo. Mas não surtia efeito nenhum, pois o menino dizia que aquele bicho-papão era mesmo afrescalhado, um abestalhado, um zé-ninguém.
Como não tinha jeito mesmo, então a vovozinha disse que ele parasse com aquilo, com aquele negócio de falar tanto mal do bicho-papão porque o mesmo poderia estar por ali escondido e ouvindo tudo, e se isso acontecesse bem que poderia fazer moradia debaixo de sua cama. E o pior, pois qualquer noite dessas poderia lhe papar.
Ao ouvir isso, o menino pulou do colo e gritou bem alto, em tom zombateiro, chamando o bicho-papão e dizendo que se ele fosse bicho mesmo de respeito que fosse pra debaixo de sua cama, e só assim ele ia ver o que era bom pra tosse. E o danado estava ali mesmo escondido, raivoso, ouvindo tudo. E decidiu que iria se esconder debaixo da cama dele e naquela mesma noite lhe paparia inteirinho.
Assim, sorrateiramente, o bicho-papão foi na frente, se escondeu debaixo da cama e esperou o molecote chegar. Não demorou muito e o danadinho chegou já cansado das reinações do dia, tirou a roupa, colocou o pijaminha listrado e deitou. Vai ser já já, disse o bicho consigo mesmo. Mas parecia que o moleque não adormecia de jeito nenhum, pois rezou e começou a falar sozinho, numa altura que cada palavra chegava nitidamente aos ouvidos do bichão.
E o menino dizia que queria ver o bicho-papão enfrentar o feiticeiro malvado que estava no guarda-roupa; que só dizia que ele era valente mesmo se tivesse coragem de olhar nos olhos do velho do anoitecer que já estava chegando; que ia deixar o bichão lhe engolir se ele primeiro agüentasse tomar um banho da água fria do balde que estava em cima da cama e que já ia jogar lá embaixo; que...”.
E o bicho-papão, coitado, se pelando de medo, nem esperou o menino dizer mais nada e saiu correndo desesperado, gritando e pedindo socorro, implorando por tudo na vida que o livrasse daquele pestinha. E deu um pulo janela abaixo que ninguém mais viu.
E o menino dormindo. Cochilando e falando alto, sozinho.  



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segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

OS HIPÓCRITAS (Crônica)

OS HIPÓCRITAS

                          Rangel Alves da Costa*


Em muita gente, a sinceridade é virtude completamente desconhecida. Vivem na mentira, no fingimento, na personificação do inexistente. E onde não há sinceridade acolhe-se facilmente a hipocrisia.
A ação ou resultado de dissimular, falsear a verdade, as intenções, os sentimentos, redunda em hipocrisia, pois hipócrita é aquele que simula ter uma qualidade ou sentimento que não tem, ou finge ser verdadeira alguma coisa, mesmo sabendo que não é. Conhece alguém assim?
Os estudiosos dessa inversão de valores até apontam um exemplo clássico da hipocrisia: denunciar alguém por realizar alguma ação enquanto realiza a mesma ação. Qualquer semelhança com as ações de governantes não terá sido mera coincidência, vez que são exímios em desqualificar os adversários para encobrir suas incompetências administrativas.
Conheço muito, uma enormidade de hipócritas, falsos, fingidores, dissimuladores, mentirosos. Ali na esquina tem um, na outra esquina também, mas principalmente nos noticiários televisivos, nas páginas dos jornais, nos escritórios, nos órgãos de mando e poder. Ora, são os donos do poder que estão na mídia, e esta tenta fazer de determinados hipócritas semideuses das grandes realizações. Evidentemente que tal manipulação tem o seu custo, e geralmente a conta é paga com o dinheiro que deveria ser revertido para o bem da coletividade.
Muitos desses hipócritas podem ser facilmente encontrados. Época de eleições é celeiro para a sua maior visibilidade. Depois que são eleitos também, pois continuam vendendo inverdades e traindo a todo custo a confiança do povo. Mas agora não estão mentindo, apenas confirmando o quanto é fácil ludibriar a culpável inocência de grande parte da população eleitora.
Brasília é a capital da hipocrisia, sendo que em meio aos três poderes se assentam a nata dos hipócritas. São, na sua grande maioria, uns fingidos, cínicos, demagogos, que nunca agem perante aquilo que tanto defendem. Mas não poderia ser diferente, pois aí é que reside a característica essencial dos hipócritas: dizer uma coisa e agir contrariamente ao que pregou ou prega.
Alguma coincidência com os políticos? Sim, logicamente que sim, pois é da verve da classe política viver mentindo para a população, criando situações inexistentes ou impraticáveis, prometendo aquilo que não tem condições de cumprir, alardeando o não realizado ou inexistente, colhendo louros para aquilo que não fez. É da essência da hipocrisia política até o deslumbramento diante de uma tragédia por culpa sua.
É da lavra dos hipócritas que se espalhe inverdades para enganar o povo ou passar a falsa ideia de que alguma coisa possui excelência de qualidade. Para tal utilizam a propaganda, o marketing político, as redes de comunicação que faturam alto para maquiar as verdades ou encobrir as mentiras. Estampam outdoors pelos quatro cantos e ainda tem gente que acredita piamente naquela maquiagem de improbidade administrativa.
Assim, dificilmente deixará de haver uma certa hipocrisia em propagandas tais como: “Erradicação do trabalho infantil, educação de qualidade, merenda escolar para todos, todos na escola e lugar de criança é na escola, são prioridades do governo” ou simplesmente “Nunca se fez tanto em tão pouco tempo de governo”. Certamente alguém já ouviu um governante maior dizendo que a prioridade do seu governo é combater a miséria, erradicá-la totalmente. E o que acontece depois?  São afirmações difíceis de engolir até para quem não possui o mínimo de senso crítico.
Difíceis, indigestas, porque mentirosas, afrontosas à menor percepção da realidade. E dói acreditar que igualmente o adubo fortalece a terra, é o próprio povo, através do seu voto, que alimenta tanta hipocrisia. E que triste feição e percepção ela possui:
“Os homens deviam ser o que parecem ou, pelo menos, não parecer o que não são” (Shakespeare); “Quando eu perder a capacidade de indignar-me ante a hipocrisia e as injustiças deste mundo, enterre-me: por certo que já estou morto” (Augusto Branco); “Às vezes procura-se parecer melhor do que se é. Outras vezes, procura-se parecer pior. Hipocrisia por hipocrisia, prefiro a segunda” (Jacinto Benavente y Martinez).
Mas talvez sem a hipocrisia não houvesse a ilusão. Essa realidade deplorável que está adiante e em todo lugar, será ilusão ou ainda não foi vista por um político hipócrita, de modo a transformá-la em maravilhamento?




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Esperança (Poesia)

Esperança



Se plantar semente
na terra desse sertão
vai nasce de tudo
tanto milho e tanto grão
mas cadê a chuva irmão?

se engordar esse boi
e vender por boa quantia
vai dar pra arrumar a casa
deixar ela menos vazia
mas cadê a chuva minha tia?

se o tempo melhorar
a desesperança for embora
compro pano e roupa de chita
pra cozinha uma caçarola
mas cadê a chuva senhora?

se Deus ajudar que amanhã
assim que na mata der flor
vou fazer uma festança
comemorar com todo louvor
mas cadê a chuva senhor?

se tiver vivo mais tarde
e estarei se Deus quiser
mando os meninos pra escola
na lonjura que tiver
mas cadê a chuva mulher?

se o Senhor souber o que sofro
como sei que tudo vê
não me deixe abandonado
sem saber o que escolher
se pra viver na esperança
ou de tanta esperança morrer.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O MENINO E O ESPANTALHO

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O MENINO E O ESPANTALHO

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Já era a segunda época de colheita que o sertanejo se via aperreado. O que seria motivo de alegria, pois a lavoura era tudo que se tinha como esperança para sobreviver, estava se transformando em motivo de graves aborrecimentos.
Verdade é que quando o milharal começava a bonecar, a soltar suas tranças amarelas pra fora da espiga, então os invasores chegavam para destruir tudo. As aves de rapina avançavam em voos certeiros, pousavam por cima das plantas, roíam as folhas verdes e carcomiam completamente as espigas.
Assim, as corujas, os carcarás, os gaviões, mas também periquitos, sabiás e anuns, chegavam e em instantes deixavam boa parte da plantação sem nada, completamente destruída, sem esperança de renascer ainda naquela safra. Então o filho do sertanejo, vendo a aperreação do pai, perguntou por que não colocava ali um espantalho.
Como o pai respondeu que até seria uma excelente ideia, mas impossível de ser colocada em prática porque não sabia fazer o danado do espantalho, então o menininho chamou para si a incumbência de dar vida ao espantador de aves gulosas.
Com a aceitação do pai, procurou troncos e garranchos, cabaças e cumbucas, calça comprida velha e camisa também comprida, se armou de outros apetrechos e começou bater, pregar, revirar, até colocar em pé sua obra prima. O espantalho estava perfeito. Do trabalho tão cuidadoso, cheio de apuros, redundou numa figura encorpada que parecia realmente gente.
Se fosse comparar com uma pessoa, poderia se dizer que era de altura mediana, nem magro nem gordo, de rosto arredondado, feição juvenil – parecendo até mesmo com o criador -, sorridente e com chapéu de palha na cabeça. O pai não acreditou no que viu, principalmente pela engenhosidade do filho.
Os dois saíram carregando o boneco em direção ao roçado e num local mais distante abriram uma cova funda, fincaram nela um pedaço de pau de boa altura, e em seguida se afastaram um pouco para ter uma visão geral de como havia ficado o espantalho. O pai olhou com estranheza para aquela figura que tanto parecia gente, e o menino mais ainda, principalmente porque tinha certeza de tê-lo visto sorrindo.
O boneco realmente começou a fazer efeito. Os bichos devoradores começaram a sumir com medo daquela figura de braços sempre abertos no meio do tempo, protegendo o roçado, dando a parecer que ali havia gente vigiando a plantação. Mas o menino todos os dias voltava ali não para ver se as aves estavam voltando, mas para confirmar grandes suspeitas.
Um dia, resolveu chegar por trás, silenciosamente escondidinho e se pôs embaixo de uma moita. Viu um gavião surgir e pousar bem em cima de um pé de milho. Mas em seguida ouviu o que jamais esperava. E o espantalho, agitando os braços dizia:
“Saía agora mesmo daqui seu gavião malvado. Não tá vendo que se você destruir essas espigas de milho vai causar prejuízo enorme para uma família pobre demais? Se você tem uma família deve saber o que significa não ter grão de milho verde pra mastigar porque vocês só pensam em destruir tudo”.
E a ave bateu asas e foi embora. No mesmo instante o menininho correu e ficou diante do boneco. Olhou-o bem no fundo daquilo que seriam os olhos e perguntou se ele falava mesmo. E ouviu: “Você me fez bem feito demais meu amigo. Agora só estou agradecendo pela vida que me deu”.   




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domingo, 29 de janeiro de 2012

O CORONEL, O FRADE E O DOCE DE FRADE (Crônica)

O CORONEL, O FRADE E O DOCE DE FRADE

                                          Rangel Alves da Costa*


Dizem que numa terra distante, ainda num tempo onde o coronelismo imperava e tomava conta de terra e gente, havia um coronel afamado que se indispôs com o padre da serventia e foi a maior confusão. Dizem que a história chegou até o Vaticano. Sei não...
Verdade é que um jagunço, que de vez em quando ia chorar seus pecados na porta da igreja, ouviu o celebrante, que era um frade, dizendo missa e deixando o sermão das coisas divinas de lado se danou a falar mal do seu patrão, o Coronel Tiburciano Titó.
Perante a igreja cheia de fiéis pecadores e beatas fofoqueiras, o frade não mediu palavras para desqualificar o rei do mandonismo desde sua primeira raiz. Esculhambou com o coronel sem piedade, chamando-o de gerente de escravos, encomendador da morte de pobres donos de pedacinhos de terra, blasfemo, pai de uma ninhada de filho que não dava nenhuma importância, safado, grileiro de uma figa, corrupto e traiçoeiro. E prometeu que diria mais na próxima missa, pois aquilo não era nem metade do que sabia.
Como era de se esperar, ao ouvir aquele palavreado do frade o jagunço nem pensou duas vezes. Dobrou a esquina e seguiu em direção ao sobrado do poderoso, pedindo uma audiência urgente para tratar de assunto dos mais apimentados. Não demorou muito e foi avisado que o patrão estava deitado na rede da varanda lhe esperando.
Depois de tirar o chapéu e se ajoelhar perante o homem, ainda de cabeça baixa disse do que se tratava. O coronel deu um pulo que assustou até o jagunço. E a cada passagem que era contada o homem avermelhava, bufava, cusparava pelo chão, mordia charuto, ficava em tempo de explodir. Num dado momento disse “chega!”. E falou gritando:
“Apois, vosmicê volte até lá agorinha mermo, entre na igreja e procure aquele safado onde ele tiver, seja na sacristia ou de furdunço com beata sem vergonha, e diga a ele que na próxima missa eu vou levar um tabuleiro de doce de frade pra dar de presente, que é pra mostrar ao povo daquela igreja com quantas cabeças de frade safado se faz uma cocada. Vá, chispa daqui!”.
Como se sabe o doce ou cocada de frade tem esse nome porque é feita com a polpa branquicenta de um cacto ovalado, nascido na aridez da caatinga e chamado cabeça de frade. E isto porque na parte de cima do cacto existe uma auréola avermelhada por onde floresce. Retirando-se os espinhos e a casca verdosa e grossa, surge uma polpa que é cortada em cubos e levada ao fogo com leite de coco e açúcar para a feitura da cocada.
Mas voltando ao recado, verdade é que assim que chegou à igreja, o jagunço encontrou o frade já se encaminhando para a sacristia. A igreja estava totalmente vazia e o religioso despreocupadamente com um copo de cachaça na mão, pois era adepto convicto de uma branquinha. Segundo ele, superava em muito o vinho aguado que as beatas traziam. Virou o copo e perguntou o que o rapaz desejava.
E o homem disse ao seu modo: “Só vim dizer que o Coronel Tiburciano mandou avisar que já que o senhor está falando tanto mal dele, então ele vai trazer um tabuleiro de cocada de frade pra presentear na próxima missa”.
O frade não entendeu muito bem o recado repassado pelo homem. Mas começou a refletir no mesmo instante a partir das palavras “falando mal do coronel” e “presente de cocada de cabeça de frade num tabuleiro”.
Então rapidamente perguntou ao homem: “E por aqui alguém faz doce de frade? Onde tem cabeça de frade por aqui?”. E o jagunço respondeu: “Que eu saiba, a única cabeça de frade que tem por aqui é a sua”.
O coitado do frado quase congelou, passou rapidamente a mão pela cabeça para ver se esta continuava no lugar e pediu licença ao emissário do coronel. Disse que voltava num instantinho, mas no momento seguinte já estava pulando a janela da sacristia com sua maletinha e entrando amedrontado, apressado, no oco do mundo. Levando logicamente sua garrafa de pinga.
Para espanto dos fiéis e beatas, nunca mais foi visto por ali. Na ausência do religioso, o coronel até pensou em celebrar, ele mesmo, os ofícios religiosos. Mas depois lembrou que tinha pecado demais para se atrever a tal.


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Noite de lua, céu na bacia (Poesia)

Noite de lua, céu na bacia



Noite de lua
céu na bacia
toda a vida
toda a sorte
o ser e o destino
por cima da água

minha avó
olhava e sorria
trocava a água
e o mistério
era refeito
com a água
repousando calma
e brilhando muito
na meu rosto
espalhado ali
e nos olhos
da minha avó
que chorava
de felicidade

foi por isso
que um dia
ela disse contente
que o vasto mundo
era todo meu
mas bastando
que eu tivesse
apenas o necessário
para viver bem
com honra
coragem para lutar
e dividir a vitória
com a humildade
dos que sabem
que tudo tem
sem nada ter.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O ENGRAXATE E SUA FIEL AMIGA

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O ENGRAXATE E SUA FIEL AMIGA

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Tem coisa que a gente sabe sem nem precisar ouvir dizer, sem ninguém ter de contar. Está diante e adiante, ressalta aos olhos, faz ferir, faz doer. E isso não é estória não, mas uma verdade tão verdadeira que só falando com um para acreditar.
Um, um menino, um engraxate. Fale com ele, se aproxime sem medo – não morde não e nem vai querer lhe roubar -, ganhe sua confiança, dê-lhe um trocado se puder, e depois, quando um início de confiança já tiver se estabelecido, pergunte quem é o seu melhor amigo.
Antes que você faça isso vou relatar o que um meninote engraxate, desses que vivem rodeando os mercados perguntando a um e a outro se quer que passe graxa e flanela no sapato, me contou numa manhã em que estava ali para comprar beiju, pé de moleque e macasado, iguarias com coco e tapioca que me faz lamber os beiços.
Pois bem. Perguntei ao menino como era sua vida e ele respondeu enquanto melava o dedo na graxa marrom: “Minha vida é essa mesma, seu moço. Daqui pra casa, que fica bem longe. Estudo não e o que faço na vida é sair cedinho de casa pra ver se engraxo algum sapato”.
Perguntei-lhe em seguida se brincava como criança e se tinha tempo de fazer amigos. Eis a resposta: “Só fui criança até quando ainda não andava. Assim que aprendi a caminhar já foram me mandando fazer isso ou aquilo, principalmente sair descalço e só de calção rasgado pra pedir esmola na rua. Apanhava quando voltava com pouco dinheiro. Por isso que brincar nunca brinquei não, ainda que fosse a coisa que eu mais queria...”.
Então nunca fez amigos, gente assim de sua idade? Interrompi para questionar. “Conheço muito menino, lá de onde moro e da rua, mas só conheço sem ter tempo de fazer amizade. Até hoje posso dizer que só fiz um amigo, que não é gente nem menino, mas uma coisa que o senhor não vai nem acreditar”. Foi a resposta.
Interessado na revelação, urgentemente perguntei sobre essa amizade. E ouvi o seguinte: “Minha melhor amiga só vive comigo, bem juntinho de mim, bem do meu lado. E ela tá bem aqui nesse momento. Não fico com raiva porque ela até gosta disso, mas o senhor está com o sapato bem em cima dela, da minha melhor amiga...”.
Olhei assustado e fiquei sem entender. Mas ele prontamente continuou: “Espante não, seu moço, mas minha melhor amiga é essa caixa de engraxate aí. Tá vendo ela assim toda sujinha, envelhecida, parecendo que não presta mais pra nada, mas é mais importante pra mim do que tudo na vida. Converso com ela, beijo na sua madeira, ajeito bem ajeitadinha, e até uso ela como travesseiro de vez em quando. O senhor não vai acreditar, mas ela responde ao que falo, ela também fala comigo...”
E o que ela diz? Então ele deu um sorriso e respondeu: “Diz que já tá velha e precisa ficar descansando num canto me esperando voltar do trabalho. Mas um trabalho bom, trabalho de gente mesmo, coisa que parece que não tenho sido até hoje”.  




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sábado, 28 de janeiro de 2012

PARTES ÍNTIMAS? (Crônica)

PARTES ÍNTIMAS?

  Rangel Alves da Costa*

Sem nenhum apelo, mas a verdade é que de vez em quando me ponho a pensar onde ficariam as partes íntimas de muitas pessoas. Indo mais além, me penitencio querendo saber que coisa é essa de parte íntima em quem não tem o mínimo respeito pelo seu corpo, pela sua sexualidade, pelo seu caráter e honradez.
Problema traumatizante, vez que o que mais me indigna é ter surgido recentemente a nova tipificação do crime de estupro ("Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso") e nesta prevê penalização pelo cometimento de crime de estupro àquele que passar, por exemplo, a mão sobre as partes íntimas de outra pessoa.
Assim, para a configuração do estupro basta que uma pessoa (homem ou mulher) obrigue a outra, com violência ou intimidação, a com ela praticar qualquer ato libidinoso, que no caso em comento seria apalpar as partes íntimas. Do mesmo modo, praticar o ato de modo forçado perante a suposta vítima.
A lei também deveria acentuar bem as qualidades e as características da pessoa que poderia ser vítima do crime. E seria preciso porque uma vagabunda qualquer poderia alegar que sicrano ou beltrano causou-lhe constrangimento ao tocar ou apalpar suas partes íntimas. E vagabunda tem partes íntimas que mereçam a imposição de tanto respeito?
Certamente não poderá alegar violação às suas partes íntimas quem expõe sua sexualidade a qualquer moeda; não poderá dizer que foi aviltada em sua honra a pessoa que mostra seios, bunda e genitália como se tais elementos corporais fossem mercadorias; não poderá dizer que foi bulinada aquela que silenciosamente chama o outro para tal.
Não se discute aqui o direito à personalidade e à privacidade de cada um. Verdadeiramente não se pode atentar contra tais princípios da dignidade humana, mas também há que se colocar na balança o valor da dignidade que cada um se impõe. Já diz a máxima que quem não se respeita não pode exigir respeito de ninguém. E digo mais: a honra de cada do indivíduo não está estampada na sua feição nem encoberta nas suas partes íntimas, mas na sua conduta.  
Vejo o conceito de partes íntimas pelo aspecto moral da pessoa, e não enquanto localização corporal no indivíduo. Uma pessoa que valoriza sua reputação, que se respeita física e socialmente, que não vive se entregando aos apelos sexuais nem se oferecendo a um e a outro, não faz do seu corpo um comércio, esta sim poderá dizer que possui valiosa intimidade, honradez na privacidade corporal e zelo por suas partes íntimas.
Comumente se diz que as partes íntimas são aquelas estruturas corporais onde estão localizados os órgãos genitais, as nádegas, os seios, enfim, as zonas erógenas. Partes porque fazem parte do corpo, e íntimas porque nelas se escondem as ditas vergonhas, a sexualidade, a erotização e outros valores somente consignados por cada um. Então, nestas partes íntimas residiriam os aspectos moralizantes, castos e personalizantes da sexualidade corporal nas pessoas.
Os dicionários definem íntimo como sendo aquilo que é de dentro, da essência de cada um, do interior das pessoas; a parte mais interna em cada um; o que tem e ao qual se tem uma afeição muito forte; o que é inteiramente privado. Nesta última acepção é que se deve realmente buscar o real entendimento sobre o que sejam partes íntimas.
Foi dito, então, que íntimo é o inteiramente privado, e o privado consistindo no que pertence a cada um, podendo dispor do modo que desejar. Então, a genitália, a nádega e os seios, que são as partes íntimas mais consideradas, seriam de estrutura e conteúdo privativo e sobre as quais somente ao seu dono ou sua dona caberia dispor ou dar destinação. Contudo, como já afirmado, privado à medida que a pessoa se priva da exposição demasiadamente sexualizada, pornográfica, desrespeitosa à moral e aos bons costumes.
Portanto, creio que muita gente há muito que se privou de suas partes íntimas, de sua intimidade sexual, de seu poder atrativo corporal. O que resta no corpo é tão público que até banheiro público é mais privado.




Poeta e cronista
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Cantinho só meu (Poesia)

Cantinho só meu



Já caminhei
já corri
já chorei
já cansei
já cheguei
de tudo
que procurei
em tudo
que construí
quero apenas
ter a vida
que ainda
me resta aqui

e tendo tudo
nesse cantinho
só meu
minha casinha
minha serra
meu alpendre
minha varanda
minha árvore
minha tarde
minha sombra
minha rede
meu sono
meu sonho
meu passarinho
minha noite
minha viola
minha lua
meu amor
tão grande amor
que nem precisa
ser de gente
já que vivo
todo apaixonado
pelo meu sertão.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O ET MATUTO E A NAVE ENCOURADA

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O ET MATUTO E A NAVE ENCOURADA

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Essa ninguém me contou não, pois tive o prazer de ouvir, de testemunhar esse causo saído da boca de um velho sertanejo, lá pelas bandas do meu lugar, pois também sou das brenhas da mataria. E com muito orgulho, sim senhor!
A estória é por demais astuciosa, até difícil de se acreditar na primeira ouvida, mas como por aquelas redondezas acontece de tudo, então conto o que me contaram, ainda que o cantador de causo seja tido e havido como mentiroso de marca maior. Mas vamos ao que interessa.
Num pé de bodega, dessas especializadas em vender cachaça misturada a raiz e casca de pau, local onde se ouve de tudo nos lugarejos interioranos, depois de mandar descer um litro de aroeira para a sertanejada, logo me interessei por uma conversa que o velho tinha iniciado. Falava sobre um disco voador que havia visitado aquele lugar e não fazia muito tempo.
Perguntei como era o tal disco voador e de imediato ele respondeu: Pelos meus olhos que não mentem jamais, juro que era uma coisa pra lá de estranha. Era todo de couro cru, de couro já amarronzado de muito sol e de muitas andanças, e era igualzinho a um chapéu de vaqueiro, só que mais um pouco atarracado...
Perguntei por que achou que parecia um chapéu de vaqueiro sertanejo e o homem nem pensou duas vezes: Era igualzinho um chapéu de vaqueiro sim, desses que se tem muito por aí. Tinha até umas fivelas na parte da frente e uns adornos que caíam nas duas bandas laterais. Senti até o cheiro suarento do chapéu quando a agente tira depois de muito uso. E aquele chapéu voador parecia de muito uso, pois cheirava a encardimento que só...
Em seguida perguntei se tinha avistado algum ET, alienígena, gente de outro planeta ou coisa parecida. E o que ouvi foi impressionante: Tinha sim, seu moço, tinha sim. E tudo parecendo com a gente, só que muito maior que três matutos num só. O bichão usava roupa de couro também, um gibão todo bonito, chapéu encourado do mesmo formato do disco e até carregava um berrante na mão. E não acredite no que aconteceu...
Ele tocou o berrante? Perguntei assustado. E o homem respondeu: Depois, só depois ele tocou o berrante de um jeito que a gente nem toca mais, coisa bonita demais de se ver. Inté chorei na hora, mortinho de saudade que fiquei. Mas antes abriu a boca de dente de ouro e soltou um aboio que até os bichos da terra se tremeram de emoção. Levou um cantil à boca, tomou uma pinga e depois disse coisa do tipo “fasta pra lá boi danado’, “êia, êia, se achegue linda fulô”...
Tem certeza que era um ET num disco voador? Indaguei intrincado demais. E como resposta ouvi: Não só eu como muita gente viu. Esses aí não me deixam mentir. Não foi mesmo?
Olhei para os presentes, mas cada um parecia querer esconder o rosto, fingir que nem estava ali. Então achei melhor acreditar assim mesmo.   




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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A ESPINHENTA VIDA DO CACTO (Crônica)

A ESPINHENTA VIDA DO CACTO

                                          Rangel Alves da Costa*


Tudo que nasce na terra sertaneja já vem ao mundo com a sina do padecimento. Felicidade há muita, contentamento também, mas sempre prevalecem a dor e o sofrimento pelas próprias características da geografia sertaneja.
Nesse contexto de angústia e aflição que tomam conta dos homens, das plantas e dos bichos, sobressaem-se as secas inclementes que de vez em quando parecem querer se perpetuar de canto a outro, o abandono a que ficam relegados pelos órgãos governamentais e o preceito e discriminação tão visíveis nos olhos de muitos sulistas e citadinos.
Mas o sertanejo é acima de tudo um forte, já escreveu o desventurado jornalista. E tal força pode ser exemplificada no homem que não larga nunca sua persistência e esperança e nas plantas cactáceas que tanto representam a firmeza, a perseverança e a permanência inflexível na terra, mesmo que todas as outras plantas já tenham sucumbido às estiagens.
Parece mesmo que os seus espinhos são como escudos pontiagudos que conseguem afastar dos seus corpos as mais terríveis ameaças do tempo. De repente, quando tudo já está devastado e desolado, na terra só há rachadura e a aridez do abandono, o cacto serve como único e último alimento para salvar os bichos. Cortado, recortado, afastados os espinhos, é manjar para o gado faminto. A palma se mastiga e engole com espinho e tudo.
Assim, enquanto tudo entristece e murcha, a palma, o mandacaru, o xiquexique, o facheiro, a cabeça-de-frade e outras espécies espinhentas continuam imponentes, com suas cores ainda verdejantes, seus braços firmemente erguidos, cujos semblantes parecem candelabros ao entardecer. E os espinhos apontam para o norte e para o sul, ameaçam os invasores, acolhem os passarinhos, mas acima de tudo confirmam a força da vida num tempo de destruições.
Contudo, o que seria fator muito positivo para a vida no sertão de repente pode se transformar num problema difícil de ser resolvido. Não se sabe ao certo os motivos, mas a verdade é que os cactos possuem muitos inimigos, são vistos com maus olhos por muitos, são tidos como espécies que deveriam desaparecer de vez. E talvez seja sua força e resistência que provocam tantas inimizades.
Muitas plantas próprias da caatinga, as mesmas que quando muito possuem apenas alguns espinhos nas suas galhagens e ainda assim não estão protegidas contra os constantes ataques dos bichos e do pisoteamento e destruição por parte dos caçadores e mateiros, certamente que ficam com uma inveja danada daquelas outras espécies cujos corpos são totalmente tomados por armas de eficazes defesas.
Igualmente a cansanção e a urtiga que são odiadas por conterem nas suas folhas substâncias que causam queimações e coceiras, as cactáceas são detestadas exatamente porque são tomadas de espinhos ao invés de folhas. Se fossem folheadas seriam mais frágeis e estariam no mesmo patamar de destruição das outras plantas, sempre à mercê dos predadores.
Mas não somente isso, pois plantas inimigas espalham que os cactos não passam de vaidosos, egoístas, querendo ser mais do que realmente são, mas, principalmente que são as mais perigosas das espécies, vez que vivem abertamente, e dia e noite, portando perigosas armas pontiagudas e ameaçando as plantas e os bichos inofensivos.
Não sabem, contudo, o verdadeiro significado dos espinhos dos cactos nem do sofrimento que estas plantas têm no seu dia a dia, principalmente em épocas de grandes estiagens, ainda que sejam os últimos a serem afetados pela destruição. Dizem até que quando o cacto não suporta a seca é porque o homem corre o risco de também perecer.
Ora, os sertanejos mais velhos dizem que cada mandacaru ao se portar no meio do tempo de braços abertos não está fazendo outra coisa senão orando para que as nuvens carregadas de chuvas cheguem logo ao sertão. E a sua esperança é tanta que já fica apontando espinhos naquela direção, esperando apenas furar o corpo da nuvem quando ela estiver ao alcance e deixar as águas caírem em abundância.
Por isso mesmo que possuem a sina de serem as últimas a perderem a cor, o verdor, a secarem e a murchar quando todas as preces e orações não fazem efeito. E como sofrem nesse percurso, olhando pra trás e vendo suas companheiras de mato já misturadas à terra escaldante. Depois se dobram e também morrem.




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