SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 30 de junho de 2011

E SE ELA NÃO PERDOAR? (Crônica)

E SE ELA NÃO PERDOAR?

                Rangel Alves da Costa*


Queria de vez esquecer o passado. Aquilo que aconteceu pode acontecer com todo mundo. Eu não estava bem e você também não estava num dos melhores dias. Mas você rasgou o meu Neruda primeiro. Joguei sua fotografia pela janela, mas foi sem pensar, eu juro.
Você bateu a porta na minha cara e dou razão. Quando a gente está com raiva faz assim mesmo, e o motivo é o que menos importa, vez que a fúria sempre fala mais alto. Talvez você não estivesse enraivecida apenas pelo momento, mas por uma junção de pequenas coisas que repente aparecem por cima do tapete.
Eu tenho plena consciência que errei e errei demais. O meu erro maior foi não tentar fazer o que sempre fiz, que foi chamar à palavra, ao instante do necessário desabafo e o pedido de perdão quando possível. E por isso mesmo nunca saímos com danos maiores após nossas brigas.
Mas naquele dia foi demais. E digo demais porque nunca passamos dois ou três dias sem um procurar o outro, jogando pães pela estrada para ver se quem encontra o caminho do reencontro. Mas já se passaram dois meses e o nosso silêncio continua numa mudez de solidão. O que houve com a gente para uma separação assim tão verdadeiramente distante?
Não troquei o número do telefone, ainda moro no mesmo lugar e nem assim recebo nenhuma mensagem ou recado. Na última vez ela sabia que eu ia ao entardecer desenhar na praça e apareceu por lá, fazendo de conta que nem esperava me encontrar. Acabei fazendo o retrato dela e embaixo ainda escrevi algumas palavras:
“Apenas o esboço da mulher que amo, apenas o traço da mulher que quero, apenas a sombra da mulher que sonho, apenas a ideia da mulher que é minha. Mais tarde e sempre, nem fotografia nem desenho, mas o corpo nu da mulher que tenho...”.
Mas dessa vez ela sumiu de verdade. Talvez esteja pensando e sentindo o mesmo que penso agora, mas duvido que seja com tanta saudade, com tanta vontade de abraçar e beijar infinitamente. Quem dera se o telefone tocasse, se ela passasse, se ela viesse...
Verdade é que não suporto mais tanto sofrimento e solidão. Martírio de amor não tem razão de ser se quem você ama existe, pode ser encontrada. Vou abrir exceção ao coração que sangra e tentar curá-lo com o único remédio eficaz, fazer revelar a minha existência, de modo que sinta que existo e preciso reencontrá-la.
Talvez uma flor baste, talvez um grito embaixo de sua janela. Não. Melhor seria uma faixa estendida na rua ou uma serenata embaixo da sua janela. Chama muita atenção para algo que só diz respeito a nós dois. Mas talvez nada disso funcione.
Vou telefonar pra sua melhor amiga e pedir que lhe fale sobre esse meu sofrimento, sobre minha saudade, sobre o perdão que quero pedir frente a frente. Não sei se errei, mas perdão funciona tanto que dificilmente alguém deixa de perdoar, ainda que nem saiba do que se trata ou foi ofendida.
É isso, vou dizer à sua melhor amiga que estou louco para pedir perdão. Não somente um perdão, mas mil perdões, todos os perdões do mundo pelo que já fiz e acaso farei pela estrada. E se ela aceitar e quiser me rever vou esperá-la aqui mesmo onde estou, sentado no pé do sofá sobre o tapete da sala.
A música está baixinha, a luz está semiescurecida, há dois incensos queimando e uma atmosfera de alegre solidão. Deixarei do mesmo jeito se o meu amor chegar. Ela ainda tem a chave da porta, por isso talvez nem toque a campainha. Seria melhor que não, que venha caminhando como sempre fez, bela e descalça ao meu encontro.
Mas se ela não vier, se ela não quiser aceitar o perdão por qualquer coisa que tenha de ser perdoado? E se o meu amor não mais quiser me ver, me reencontrar, me escutar? E se o meu amor me abandonar?
Tem nada não. Um dia eu não a conhecia, ainda assim o meu olhar reconheceu o amor assim que a encontrou. Eu era tão jovem e ela também, e fomos nos conhecendo até um dia acontecer o primeiro beijo.
E acho que não é nada demais eu andar pela sua rua, passar por aquelas esquinas, esperando de novo encontrar aquele olhar. E quem sabe, crianças que ainda somos, nos olhamos e começamos tudo novamente.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com


  

Trancando a porta (Poesia)

Trancando a porta



Ontem comi o jardim
e nem senti os espinhos
o tanque de lavar roupas
foi pouco para tanta sede
fechei a casa por dentro
e saltei a janela para dormir
embaixo do flamboyant florido
e ao amanhecer nem falei comigo
cansado demais de sonhar
com uma vida muito diferente
do que esta que levo agora
queria somente sair disso tudo
de tanta gente em minha casa
todas fazendo barulho dia e noite
nas cartas, fotografias e recordações
e quanto grita essa tal de saudade
e o abandono nunca me deixa em paz
queria simplesmente expulsar
todo esse povo rapidamente daqui
dizer que não quero mais sofrer
falar que já enjoei de tédio e uísque
mas meu medo é na hora da despedida
pois sou apenas um para acompanhar
tantos que sou eu partindo
que tenho de ficar sofrendo.



Rangel Alves da Costa

TEMPESTADE - 52 (Conto)

TEMPESTADE – 52

                          Rangel Alves da Costa*


Quanta tristeza cercava o menino Tiquinho sem que ele soubesse da verdadeira dimensão da dor. Já estava sofrendo demais com a misteriosa doença da professorinha, de vez em quando se lembrava do difícil estado de saúde da mãe, porém ia levando tudo como podia. Mas se o pior realmente acontecesse à sua querida mãe, naqueles momentos, naqueles instantes, e sem que o mesmo pudesse estar por perto?
Após a tormentosa visão no meio da tempestade, com a certeza de que aquela aparição era mesmo de sua esposa e que não restava mais dúvidas de que ela não havia suportado tanto sofrimento e se despedido dessa vida, o pai de Tiquinho levantou do chão empoçado. Ali havia estado se martirizando e inconscientemente maldizendo a sorte e a divindade, esconjurando a fé e se sentindo descrente de tudo no mesmo instante.
Levantou cambaleante e se sentiu completamente perdido, sem saber se seguia adiante, pra qualquer lugar em busca do filho, ou se voltava para confirmar o que não tinha mais dúvidas. Como não estava longe de casa, não durou muito e conseguiu abrir a porta e entrar.
Lá dentro escuridão e silêncio, uma paz amedrontadora que fazia o reinado de fantasmas e visagens. A vela havia apagado, o candeeiro também, tudo tão negro e tão triste. Silêncio mais doloroso, nenhum barulho vindo do quarto, nenhum arfar, nenhum murmúrio de arquejamento. Era sinal de sono profundo ou morte rasa, visível, escancarada, feia, feia demais na feição de quem se ama. Era amor matuto, simples, sem agarramento nem confissões silenciosas, mas um amor grande demais e profundamente verdadeiro.
Mesmo em meio ao negrume, sabia onde encontrar o candeeiro, pois ele estava em cima de uma cristaleira sem porta de vidro, ali na sala, pertinho do quarto. Riscou um palito na caixa de fósforo que estava ao lado e depois reacendeu o pavio, iluminando ao redor, com luz suficiente para se locomover para onde quisesse. Mas o olhar só mirou a porta do quarto, a porta que levaria ao encontro de Mazé deitada na cama, ali estendida para...
Para a morte. Caminhou lentamente com o candeeiro na mão e foi sentar na beirada da cama, calmamente, para não fazer barulho e acordar se ela estivesse dormindo. Levou a luz mais próxima da face da esposa e apenas confirmou o que já sabia. A face amarelada, esbranquiçada, cinza, sem cor, com a cor da morte, ali pintada pelo pincel mais doloroso de toda a existência, o pincel que traceja de morte uma vida.
Levou a mão ao rosto desfalecido, fechou-lhe os olhos, percorreu carinhosamente os cabelos escorridos, seguiu até a face e acariciou cuidadosamente, como se estivesse querendo saber de qual fruta seria a maciez daquela pele. Era o namorado enamorado, ao lado da tão amada mulher, querendo mais uma vez dizer o quanto amava, o quanto era bom viver ao seu lado, quanto era valioso ser seu esposo.
Estava normal, muito normal, apenas um homem apaixonado pela mulher amada, ali deitada, talvez somente dormindo. Ora, Deus, ainda não havia absorvido aquela realidade, ainda não estava consciente da morte da esposa, ainda era apenas um homem apaixonado ao lado de sua mulher, e tanto era assim que se aproximou um pouco mais e levou os lábios diante dos lábios dela e beijou-os, numa doçura de encantar. E então o mundo caiu, diante da frieza correspondida, dos lábios mortos, enrijecidos, frios, do nada encontrado em troca.
Levantou numa rapidez tresloucada, furioso, agitado, nervoso, jogou violentamente o candeeiro contra a parede e gritou, num brado de animal ferido de morte, gritou incontidamente em plenos pulmões. E talvez, mesmo inconscientemente, tenha bradado como no Evangelho de Mateus 27: "Eli, Eli, lama, sabactani", "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?", “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”.
E talvez ainda tenha falado bem alto, num verdadeiro rugido em cima da montanha da desesperança pela perda da esposa amada, o Salmo 21:

“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes? E permaneceis longe de minhas súplicas e de meus gemidos?  
Meu Deus, clamo de dia e não me respondeis; imploro de noite e não me atendeis.  
Entretanto, vós habitais em vosso santuário, vós que sois a glória de Israel.  
Nossos pais puseram sua confiança em vós, esperaram em vós e os livrastes.  
A vós clamaram e foram salvos; confiaram em vós e não foram confundidos.  
Eu, porém, sou um verme, não sou homem, o opróbrio de todos e a abjeção da plebe.  
Todos os que me vêem zombam de mim; dizem, meneando a cabeça:  
Esperou no Senhor, pois que ele o livre, que o salve, se o ama.  
Sim, fostes vós que me tirastes das entranhas de minha mãe e, seguro, me fizestes repousar em seu seio.  
Eu vos fui entregue desde o meu nascer, desde o ventre de minha mãe vós sois o meu Deus.  
Não fiqueis longe de mim, pois estou atribulado; vinde para perto de mim, porque não há quem me ajude.  
Cercam-me touros numerosos, rodeiam-me touros de Basã;  
contra mim eles abrem suas faces, como o leão que ruge e arrebata.   
Derramo-me como água, todos os meus ossos se desconjuntam; meu coração tornou-se como cera, e derrete-se nas minhas entranhas.  
Minha garganta está seca qual barro cozido, pega-se no paladar a minha língua: vós me reduzistes ao pó da morte.  
Sim, rodeia-me uma malta de cães, cerca-me um bando de malfeitores. Traspassaram minhas mãos e meus pés:   
poderia contar todos os meus ossos. Eles me olham e me observam com alegria,  
repartem entre si as minhas vestes, e lançam sorte sobre a minha túnica.  
Porém, vós, Senhor, não vos afasteis de mim; ó meu auxílio, bem depressa me ajudai.  
Livrai da espada a minha alma, e das garras dos cães a minha vida.  
Salvai-me a mim, mísero, das faces do leão e dos chifres dos búfalos.  
Então, anunciarei vosso nome a meus irmãos, e vos louvarei no meio da assembleia.  
Vós que temeis o Senhor, louvai-o; vós todos, descendentes de Jacó, aclamai-o; temei-o, todos vós, estirpe de Israel,  
porque ele não rejeitou nem desprezou a miséria do infeliz, nem dele desviou a sua face, mas o ouviu, quando lhe suplicava.  
De vós procede o meu louvor na grande assembléia, cumprirei meus votos na presença dos que vos temem.  
Os pobres comerão e serão saciados; louvarão o Senhor aqueles que o procuram: Vivam para sempre os nossos corações.  
Hão de se lembrar do Senhor e a ele se converter todos os povos da terra; e diante dele se prostrarão todas as famílias das nações,  
porque a realeza pertence ao Senhor, e ele impera sobre as nações.  
Todos os que dormem no seio da terra o adorarão; diante dele se prostrarão os que retornam ao pó.  
Para ele viverá a minha alma, há de servi-lo minha descendência. Ela falará do Senhor às gerações futuras e proclamará sua justiça ao povo que vai nascer: Eis o que fez o Senhor”.

E mais tarde, na mais completa escuridão, depois de ter chorado, gritado, bradado, gemido, se jogou na cama e ali adormeceu ao lado da esposa morta, com o braço estendido sobre ela, com a face tocando o rosto amado.

                                               continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com       

quarta-feira, 29 de junho de 2011

UMA MENINA ASSIM... (Crônica)

UMA MENINA ASSIM...

                         Rangel Alves da Costa*


Ela era uma menina assim, tão comum que chegava a ser diferente.
Assim como uma menina verdadeiramente menina, vivendo seu tempo e espaço, sua carreira e seu laço, sem querer ser criancinha nem mocinha igual às outras.
Assim menina sapeca, amiga de sua boneca, arrumando sua casa de tenda para receber as visitas, a borboleta e a flor, a vassourinha e o espelho, a brisa que gostava dali e a vida que não queria partir.
Uma menina assim sem maldade, sem ser briguenta e turrona, sem responder com ignorância, ouvindo o que lhe diziam para pedir o que devia, tudo na medida da educação e do respeito, sempre calma do seu jeito.
Menina assim nascida para ser feliz, com cara de manhã bonita, jeito de jardim florido, alegre feito a revoada, olhando da sua janela quem era mais bela, se era a paisagem ou se era ela.
Menina normal, com pai, mãe e irmãos, família e outros parentes, primos que chegavam e partiam, muitas saudades que ficavam, lembranças que torturavam, outros momentos que chegavam.
Menina de roupa de menina, sem enfeite, sem botina, de sapatinho ou sandália, de sainha ou vestido de chita, laço no cabelo, a coisa mais bonita, um brinquinho na orelha e duas maças na face, e esse era o seu disfarce pra parecer com a natureza.
Uma menina assim com seus sonhos, seus medos e desafios, coisas de dar arrepios, viagens que fazia sem sair do lugar, no seu arco-íris na parede, no seu castelo encantado, que tinha um príncipe enjaulado para ser logo libertado.
Menina assim que desenhava, no caderninho rabiscava, um céu bonito estrelava e pelas nuvens andava, ao lado de sóis e luas, de pássaros voando no céu, viagem ao horizonte distante, dessas coisas sempre amante, errando sem ser errante.
Menina de agenda e segredo, de frase sem nenhuma maldade, de estórias encantadas, duendes e contos de fadas, tudo contado em verso, na página e seu reverso os sonhos que ela tinha.
Menina que gostava de doce, de pipoca e algodão de lambuzar, de maça e de goiaba, de suco de beterraba, de chocolate e sorvete, mas se nada disso tinha bastava um copo de água, um pedaço de bolo ou de pão, tudo com satisfação sem fazer cara feia, sem qualquer reclamação.
Menina que fica febril, gripada e toda vermelha, com a mãe de lado mimando pra tomar o que detestava, pois remédio odiava, injeção injuriava,dizia que nada prestava, que já estava melhor, que queria tomar chuva, que queria tomar sol, curar de vez pelo arredor.
Uma menina assim de mimos e abraços, de carinho nos seus pais, de palavras cativantes, sem exigir nada com isso, apenas pela presença de quem tanto gostava e amava.
Uma menina que um dia ouviu de sua mãe um segredo, coisa que deu muito medo, pois não pensava em ser outra, outra menina nela mesma, com seu nome e sobrenome, mas agora já crescida, coisa chamada mocinha, o mesmo que adolescente.
Uma menina assim, a mesma com outro corpo, outro jeito de se ver, outra maneira de vestir, até outro jeito de sorrir, de brincar e de andar, como se nada fosse dela e nem ela fosse mais ela.
Uma menina mais triste, mais indecisa e medrosa, com medo de não se reconhecer, de sentir tudo mudar sem saber por que tudo aquilo pra crescer, mudar tudo e se ver sem boneca e sem correr, com a criança rapidamente no seu corpo adormecer.
Uma menina de espelho, de batom mais que vermelho, de brinco e roupa da moda, mas nada disso queria, preferindo pular corda, tomar banho nua na chuva, desenhar um balão de verdade e fugir daquela idade.
Uma menina assim, que um dia olhou adiante e viu um menino interessante, garoto bem cativante, e esqueceu de ser criança, porque a vida segue em frente, na angústia e na esperança.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

A dois (Poesia)

A dois


Dois é a soma de tudo
dois é a frente e o verso
é o vulnerável e o escudo
é o caos e o universo
e somente a dois
dois corpos em apenas um
na nudez que é tão comum
multiplica-se todo desejo
mil vezes mais outro beijo
tudo se perde e nada vejo
se num segundo de lampejo
o mundo cai num despejo
o prazer todo espalhado
do querer o resultado
querer ser mais saciado
juntando tudo de novo
um a um tudo somado
em dois corpos lado a lado.



Rangel Alves da Costa

TEMPESTADE - 51 (Conto)

TEMPESTADE – 51

                          Rangel Alves da Costa*


E havia mesmo. Quase no mesmo passo dos meninos, dando tempo somente que a molecada se afastasse o suficiente para não ser atingida, o raio caiu sobre a árvore deitada entre o vão de entrada da escola e o portão.
Vindo de cima fininha e certeira, a descarga elétrica atingiu a árvore de tal forma que a mesma se partiu em instantes, esturricando troncos e galhos, fazendo surgir labaredas e fumaça em meio à tempestade. Ainda chovia, e cada vez mais forte, e o fogo passava em meios aos pingos grossos, numa paisagem bonita e amedrontadora. Era força da natureza contra força da natureza, agindo perante uma só causa e consequencia.
Se Tonico, teimoso e atrevido como era, ficasse realmente ali como queria a qualquer custo, nessa hora teria virado cinzas também, nem tanto pela força e gravidade do raio, mas pelas águas que tomavam conta de tudo e faziam de todo o arredor um verdadeiro fio descapado, o mais propício para produzir mortal corrente elétrica.
Mas Tiquinho, por essas intervenções que as forças superiores impõem nos momentos exatos, havia impedido que o mesmo ficasse ali e até puxado à força seu braço. Foi o próprio Tonico que observou, se pelando todo de medo e após observar ao longe o estrago feito:
“Essa foi por pouco. Quase que eu tava virando fumaça também. Mas olha que bagaceira ficou aquilo ali. Olha que tem tição espalhado até aqui, basta ver o cheiro e a presença da fumaça. Sempre soube que o danado do raio tinha muita força e era muito perigoso, muito destruidor, mas desse jeito nunca pensei não. E agora, o que vamos fazer?”.
“Por enquanto não vamo chegar nem perto, pois a gente não sabe se os efeitos do raio já acabaram completamente, mas daqui dentro de uns dez minutos vamos voltar lá e jogar pra fora aquela bagaceira de vez. E já vai ser tempo também do maluquinho chegar trazendo qualquer coisa pra professorinha. Por falar nisso, vamo lá dentro saber como tá a bichinha”, disse Totinha.
Encaminharam-se para o local e encontraram as meninas chorosas e ainda mais tristes. Aninha logo tentou justificar:
“Sempre ouvi os mais velho dizendo que a pessoa quando já tá perto de morrer dá sinal de vida, que está se recuperando, faz alguma coisa que é para os outros pensarem que está ficando boa, e depois fecha os olhos, dá o último suspiro e vai embora. E o meu medo maior é esse. Ela, que não falava mais nada de jeito nenhum desde que murmurou sem parar o nome do seminarista, abriu a boca pra dizer baixinho e num esforço danado que vocês saíssem de lá. Ela nem sabia nem podia saber que vocês estavam lá fora, perto do portão, mas ainda assim disse essas coisas. Será que foi o aviso que já está partindo, indo embora, morrendo, será que foi a sua última palavra? Agora ela não diz mais nada, não gesticula nem mexe com nada, apenas o seu corpo doente fica mexendo todinho, com um frio ou calor que não sei, que deixa o corpo pegando fogo e suando frio. Não sei não, meu Deus, mas ou damos logo um remédio a ela ou vai morrer daqui a pouquinho, sem demorar mais nada...”.
De tão comovidos com as palavras da amiga, os meninos abriam a boca sem conseguir dizer nada. Então, Tonico, sempre ele com seu sentimento de culpa, tocou no ombro de Murilo e chamou-o para um lado e disse: “Vamos sair por aí batendo nas portas até encontrar um remédio pra salvar ela?”.
E o outro respondeu, com a voz embargada: “Vou avisar os outros. Se daqui a cinco minutos Teté não chegar vamos enfrentar tudo e vamos encontrar seja onde for o remédio dela. Não tenho medo de nada, principalmente se é pra salvar nossa amiguinha. Vou avisar a eles e daqui a pouco a gente sai, mesmo que o tempo lá fora queira engolir a gente”.
Tiquinho era um dos mais encorajados desse meio, um dos mais preocupados também com a saúde da professorinha. Não imaginava, contudo, o que se passava na sua casa naqueles momentos. Na verdade, já sabia da enfermidade de sua mãe, do seu contínuo e crescente enfraquecimento que quase não a deixava levantar da cama.
Seu pai, mais de vez, já havia conversado sobre o grave estado de saúde de sua mãe. Mas parecendo acostumado com tanta melhora e piora, o levantar e deitar sem fim, o sorriso de vez em quando e de repente a dor estampada no rosto, o menino sempre achava que ela mais cedo ou mais iria se recuperar de vez.
Mas a partir daquela tarde/noite o estado de saúde da mulher, afetado demais pelas circunstâncias do tempo e pelo demasiado enfraquecimento do corpo, já mostrava claramente que ela não amanheceria com vida. O esposo desesperado, sem saber o que fazer com a mulher já quase defunta e a ausência do filho, pensou demais no que fazer e quanto mais matutava mais ficava em tempo de enlouquecer.
Correu apressado até o quarto, ficou uns dois minutos com as mãos grossas e rudes sobre a face da querida esposa, alisou-lhe a face como há muito não fazia, depois, com lágrimas descendo pelo rosto dolorido, beijou-lhe a face e saiu quase correndo, sem olhar pra trás.
Cortou a escuridão da casa feito um raio, abriu a porta que nem sentiu a lufada de vento quase o impedindo de se mover, ignorou os pingos cortantes de chuva, os relâmpagos, os raios, a escuridão mais tenebrosa, e se pôs a correr feito um alucinado. Iria de qualquer jeito buscar o filho Tiquinho para se despedir da mãe.
Correndo sem saber o rumo certo aonde ia, rasgou a camisa e de peito nu desandava no mundo com a disposição dos aflitos. Mas de repente seu passo apressado, veloz, não ia mais adiante, quanto mais tentava ir mais à frente mais ficava no mesmo lugar e um clarão se fez diante de si, num rompante, como nuvem de luz. Mazé, a querida esposa, sorria o mais belo sorriso do mundo.
Era o aviso, era a luz da confirmação, era a despedida. Ela estava morta. Ajoelhou-se, prostrou-se em meio ao aguaceiro e gritou todos os gritos de dor que alguém poderia gritar.

                                                   continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com   
 

terça-feira, 28 de junho de 2011

OS MENINOS BRINCANDO (Crônica)

OS MENINOS BRINCANDO

                               Rangel Alves da Costa*


Na linha do tempo ainda era infância, mas na linha da vida era qualquer idade. Se a idade da infância é tempo de brincar, se divertir, ir aprendendo no lúdico os manejos da vida futura, então aqueles meninos se divertiam demais com o que faziam.
Mas parecia que os meninos brincavam com coisas diferentes, corriam por lugares diferentes, estudavam em escolas muito diferentes. Ninguém via uma bola pulando, uma pipa feliz, um cavalo de pau adoidado, um caderno, um lápis, uma borracha, um tênis, uma farda, um menino indo à escola e voltando. Ora, mas também e escola era outra...
As brincadeiras dos meninos eram outras, inusitadas, numa correria danada, numa pressa desenfreada, nos pés nus que viravam a esquina, no corpo que rolava morro abaixo. Pega, pega que eles vêm aí...
Zoinho soltava pipa para avisar aos marginais, traficantes e todos os envolvidos na bandidagem, que lá embaixo havia aparecido um carro da polícia e que já ia subindo o morro.
Meio-Quilo fazia verdadeiro atletismo, descendo ladeira escorregadia pra fazer a entrega de papelotes de drogas aos carros bacanas que estavam parados pelas esquinas. Feita a entrega, voltava na mesma corria para receber o seu prêmio: um cigarrinho pra acender e viciar.
Tição descia mais cedo, se largava pelo mundo feito qualquer criança, corria, zanzava, pedia, roubava, e quando não era pego pela polícia voltava correndo para entregar o ganho do dia na mão do dono do pedaço. Tinha o resto da tarde para se animar fumando maconha, usando crack, numa animação que ia até a boca da noite, quando se recolhia pra dormir em qualquer calçada, embaixo de papelões.
Zoiúdo se achava esperto demais, ficando ali mesmo, olhando e vigiando tudo, com menos de doze anos e já sedento e faminto pelas coisas que viciavam, que usava feito um doce ou sorvete, uma bala ou chocolate, até que começou a roubar gente da própria comunidade e foi deportado para outra comunidade, pra um cemitério embaixo do morro e nunca mais saiu de lá pra brincar de brincar.
Meleca crescia, mas nunca deixava de ser criança, nunca abrindo olho quando os outros mandavam, nunca fazendo no mesmo instante que os outros exigiam, se negando a trazer sua irmã do meio para a molecada se divertir. Um dia disse que ainda ia ser o dono dali e nunca mais ninguém ouviu ele dizer mais nada, pois foi jogado vivo e amarrado dentro de um saco costurado, bem na hora que um trem ia passando lá embaixo. Ninguém sabe se seguiu ou ficou pelos trilhos.
Exímio na brincadeira de bola de gude, sabendo como ninguém abrir buracos na terra para as bolas serem arremessadas, Taioba aprendeu depressa a abrir buracos maiores e mais fundos, nos escondidos do morro, nos fundos das casas, nos descampados. Cada buraco que abria cabia de três a quatro bolas de drogas prensadas e encobertas por plástico. Sabia certinho onde ficava cada buraco, pois sabia que se esquecesse algum iria pra dentro de um deles, com menos de sete palmos, cova rasa, sem nada por cima, sem cruz nem saudade.
Raposinha era nome de animal carnívoro, mas o menino sabia mesmo era cantar feito passarinho, imitar todos os pássaros e arremedar como ninguém sabiá e rouxinol. Todas as vezes que o pássaro cantava em cima da laje era porque tinha usuário de droga esperando na subida do morro. Um dia esqueceu de avisar a chegada de bom comprador e acertaram ele com baleadeira, bem no lugar do bico, espalhando a penugem nova pelo ar. Despencou de lá feito rolinha que cai morta do pé de pau.
Buiú aprendeu muito cedo a escrever. Ler não sabia não, mas escrevia certinho quantos quilos de maconha haviam chegado, quantas pedras de crack havia no estoque, quantas tinham sido vendidas, os fiados, os lucros, o deve e o haver. Mas também quem já havia passado tempo de pagar e ainda não tinha comparecido. Anotava o endereço do cabra e entregava ao dono da boca, seu parente, talvez seu pai. Era um bilhetinho selando a morte, partindo das mãos do menino que já era praticamente doutor no que fazia.
E a pipa subia no céu azul, fogos cortavam a noite, o cavalo de pau sobre o morro apressado, a bola de gude acertava o buraco, o caderno era todo rabiscado, o grito, o espanto, tudo tomava conta do ar. É a vida era festa, pois era a vida que se tinha. Se desse para viver e brincar na dor um pouco mais.
E assim os meninos brincavam; os meninos viviam; os meninos morriam...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com    

Cantiga de retornar (Poesia)

Cantiga de retornar



De tempos em tempos
o tempo se abre no espaço
o percurso da vida refaço
bato à porta de casa e abraço
a chuva, o sol, o mormaço
e querendo ser forte enlaço
a saudade no pé e no passo
pra sentir na força o fracasso
do menino que sou e me faço
chorando no colo e regaço
de quem amo e me satisfaço

é o homem que volta menino
o mesmo ser e outro destino
sertanejo mais que genuino
fugindo da dor e do desatino
da lição e doloroso ensino
que na vida nada eu determino
senão a carta que escrevo e assino
dizendo da terra que descortino
pra chegar muito mais cristalino
pois no começo é onde termino.

Rangel Alves da Costa

TEMPESTADE - 50 (Conto)

TEMPESTADE – 50

                          Rangel Alves da Costa*


Com aquela árvore caída impedindo a visão, se é que alguma visão existia em meio àquela escuridão persistente, e também a entrada e saída de qualquer pessoa, certamente o maluquinho teria dificuldades de fazer a entrega de qualquer coisa que houvesse conseguido. Se o remédio chegasse poderia não ser entregue.
Contudo, pouco antes da árvore cair o maluquinho já havia estado quase na esquina que dava para a rua da escolinha. Quando saiu da igreja apressado, pensando somente em alcançar logo a escola para entregar o remédio preparado por sua mãe, se continuasse em frente já teria feito o percurso e alcançado seu objetivo há algum tempo. Eis porque era realmente afetado do juízo, insano: somente quando já ia virando a esquina lembrou que o mesmo remédio da professorinha poderia servir para o seminarista.
Se tivesse o juízo bom já teria dado algumas colheradas da garrafada medicinal ali mesmo enquanto estava na igreja, entregando o atormentado seminarista, adoentado demais, nas mãos daquelas mulheres. Se o remédio estava no bolso, era só tirar o lacre da garrafa, fazer com que o enfermo tomasse umas três colheradas e pronto. O efeito em um faria no outro, com certeza, pois doença nascida do mesmo jeito.
Aliás, se tivesse o juízo em condições razoáveis não teria separado os dois enamorados enfermos, complicando ainda mais o tratamento e os cuidados. Sabendo que Suniá estava prostrada na sala da escola, sendo cuidada pelos meninos, teria que ter conduzido Tristão para o mesmo local assim que o encontrou caído no meio da rua, quase morrendo debaixo da tempestade. Mais tarde certamente descobririam que os sintomas eram quase os mesmos e conjuntamente os dois receberiam o tratamento possível. Se houvesse como tratá-los.
Mas não, nem pensar em voltar e dali mesmo seguir até a igreja e fazer o que já deveria ter feito pensou. O que lhe veio à mente, no juízo que comprovadamente não era bom, foi fazer todo o percurso de volta até sua casa e pedir à mãe para providenciar outro remédio igual. E realmente voltou já da esquina que levava à rua da escola. E enquanto isso a professorinha continuava oscilando entre a vida a morte, e decididamente a corda quase já arrebentando.
Mesmo num dia ensolarado, sem nenhum perigo ao redor e vindo de cima, a árvore era grande demais para a força dos meninos. Puxavam e arrancavam as folhagens galhos, mas o extenso trono com suas ramificações continuavam praticamente intactos. Diante da impossibilidade de se remover ou tirar dali pedaço a pedaço, Beto propôs que era melhor deixar como estava e arranjar outro meio de abrir no muro uma nova passagem.
“Mas como, se o muro é alto e antigo e feito de material muito resistente, e já tentamos abrir diversos buracos nele lá pelos e nunca conseguimos? Só mesmo com foice, porrete e tudo que tivesse ponta pra bater até furar, e furando até abrir uma parte toda. É muito difícil. Diante de uma tempestade dessas a gente não ia conseguir nunca, arriscando até a vida se um raio caísse por aqui...”. E Totinha foi interrompido por Murilo, que disse algo totalmente inesperado:
“Mas se um raio caísse aqui por cima dessa árvore ela ia ficar em pedaços no mesmo instante...”. “E a gente ia virar lama seu besta”, retrucou Tonico. Beto continuou:
“Por falar nisso, Tonico tem toda razão, pois se um raio cair por aqui não vai ficar um vivinho da silva pra contar a história. O raio traz consigo uma descarga elétrica tão forte que torra um boi no mesmo instante. E o pior é que eu já vi dizer que uma tempestade assim é prato cheio pra raio cair e ele sempre procura lugar descampado, desprotegido, como a gente tá agora. Por isso é melhor a gente pensar no que fazer lá dentro, na sala mesmo, que é pra não correr esse risco todo...”.
“Minha gente, tá certo que a gente tem de sair daqui e arrumar um jeito de derrubar logo uma parte desse muro, mas se o maluquinho chegar e começar a gritar chamando, tentando entrar, procurando entregar qualquer coisa que tenha trazido? O problema é esse, pois acho que ao menos tem que ficar alguém ali na cobertura esperando ele chegar, e pelo tempo já deve tá a caminho”, opinou Tiquinho.
“Não tem problema não, se é pra ficar eu fico, já que fui eu mesmo quem começou isso tudo, que botou a vida professorinha em perigo, então eu fico, podem ir lá pra dentro que eu fico...”. Tonico procurava a todo custo se redimir de um pretenso erro cometido.
Entretanto, antes que alguém falasse mais qualquer coisa, Carminha chegou toda alvoroçada, correndo de se acabar e dizendo que saíssem dali no mesmo instante, pois não se sabe como, mas a verdade é que a professorinha havia aberto a boca e murmurado pra chamar eles de volta, senão todos corriam risco de morrer.
“Mas morrer como, de quê?”, perguntou Murilo, já perto da sala. “É melhor não querer saber agora se a gente corria perigo ou não, pois todo mundo sabe exatamente no que a gente tava falando. E se a professorinha, mesmo doente, teve um aviso que um raio pode cair ali a qualquer instante?”, ajuntou Tonico. “Só sendo, mas não acredito muito nisso não”, disse Tiquinho.
Já haviam ultrapassado a porta da sala de aula quando ouviram um intenso e rápido barulho lá fora, algo como um estouro, um estrondo diferente, fino, agudo, cortante. Ao mesmo tempo sentiram algo se partindo, se quebrando, se despedaçando. Quase todo mundo queria voltar pra olhar o que teria ocorrido, quando Beto perguntou: “Será que foi um raio que caiu bem ali onde a gente tava, perto da árvore?”.

                                                   continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com









segunda-feira, 27 de junho de 2011

AMOR: EGOÍSMO A DOIS (Crônica)

AMOR: EGOÍSMO A DOIS

                              Rangel Alves da Costa*


A frase é de Madame de Stael (Anne-Louise Germaine Necker), romancista e ensaísta francesa falecida em 1817: “O amor é um egoísmo a dois”. Dizer mais o quê? Ora, simplesmente dizer que tal egoísmo muitas vezes é de um com relação ao outro, pois o sentimento de posse deixa o amado quase sem existência própria.
Mas não seria contraditório dizer que o amor é um egoísmo a dois, se o próprio sentido do egoísmo é centralizar tudo em uma só pessoa? Assim, levada a frase ao pé da letra, não haveria compartilhamento no amor, pois na relação o desejo, o querer e a paixão seria exclusividade de apenas um. E o outro?
Talvez o conceito de egoísmo sirva para clarificar essa questão. Segundo os dicionaristas, egoísmo é o amor exclusivo de sua pessoa e de seus interesses; é a dedicação excessiva que uma pessoa tem por si própria, esquecendo-se de considerar as necessidades e o bem dos outros; é o exclusivismo de quem toma a si próprio como referência para tudo; é a tendência presente nos seres humanos de levar em conta exclusivamente os próprios interesses em detrimento dos outros.
No amor, o egoísmo pressupõe uma paixão tão violenta que não deixa espaço para o outro manifestar sua correspondência ou contradição, vez que o egoísta procura se satisfazer em apenas ter aquilo como posse, como ser que lhe pertence e tanto faz que sinta a mesma paixão ou não.
O que importa é fazer desse amor um objeto de sobrevivência própria, tendo o outro apenas como paisagem para exposição dos instintos, e pronto, sem se ater ao fato de que esse impulso desenfreado se parte como vidraça assim que o outro diz não. E logo virá esse não porque dificilmente alguém se contenta em ser objeto eternamente passivo numa relação.
Esse egoísmo no amor também provocará a inevitável ruptura da relação pela disputa de forças, na hipótese de que um, ainda que fragilmente, reconheça a existência do outro. Isso ocorrerá porque haverá o risco de, ao invés de apenas um querer ser dono do outro, os dois buscarem ao mesmo tempo tomar para si todas as forças do outro, impor o ritmo da relação, fazer com que o outro se amolde aos seus anseios e desejos.
E o pior é que muitas vezes a imposição que parte de um ou de outro não é nem fruto de verdadeiro amor, mas apenas como uma forma de dizer que comanda a relação, de tentar submeter o parceiro a seus caprichos ou simplesmente tornar a vida a dois num jogo de subserviência, onde uma amante se submete sempre aos desejos cada vez mais impositivos do amado, ou senhor do coração e vida.
Contudo, ao dizer do amor como um egoísmo a dois, talvez Madame de Stael tenha objetivado mostrar o lado irrenunciável dos amantes numa verdadeira relação amorosa. Neste sentido, o egoísmo seria a absoluta cumplicidade entre os dois; o poder de sobressair-se a tudo e tudo vencer, pois máximo e aparentemente indestrutível, que a relação passa a ter perante os outros; a expressão maior dos interesses maiores de duas pessoas, tornados mais fortes na relação, e que por isso mesmo absolutamente senhores diante de tudo e de todos.
Madame de Stael preconiza a existência de um amor incondicional, onde os amantes unem os seus mais puros sentimentos para dar consistência e invulnerabilidade à relação. Mas será que ainda há espaço para uma relação tão pautada na compreensividade e cumplicidade, na mutualidade e aceitação ao que o outro traz e impõe como suporte amoroso, na junção do que se tenha como melhor para se ter um relacionamento estável e duradouro?
A frase da romancista não deixa de ter seu cunho de verdade, mas apenas uma veracidade poética e utópica, pois esse lado positivo do egoísmo amoroso, procurando vencer todas as barreiras para se impor sempre mais e diante de tudo, é meramente shakespeariano e literário. Na vida real, onde cada um procura mostrar que tem mais força perante o outro, tal egoísmo inevitavelmente produzirá o efeito destrutivo de dois objetos que não se cansam até que um derrube o outro sobre a terra e diga que é seu dono.
Nessas condições, não há egoísmo a dois que não se transforme numa obediência servil que durará até quando aquele subjugado for libertado das garras do outro.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com      

Antes da noite (Poesia)

Antes da noite



É por isso que a manhã
nasceu assim tão radiante
o sol apareceu mais cedo
com luz alegre e brilhante
o meu rosto sorridente
mais que feliz semblante
falando com o espelho
num diálogo extasiante
afastando de vez a tristeza
versos da vida cantante
porque depois do entardecer
o sol repousando avante
e a noite chegando enfim
na lua feito brilhante
e eu abrindo a porta
pra ela chegar num instante
e meu amor ser tão amada
e eu ser mais que amante.


Rangel Alves da Costa

TEMPESTADE - 49 (Conto)

TEMPESTADE – 49

                          Rangel Alves da Costa*


Para muitos, tais percepções e pressentimentos não possuem grande significado, não passando de meras recordações das pessoas visualizadas ou pensadas, mas para outras, como de fato ocorria com aquelas duas mulheres, já afetas a crendices e superstições, aqueles avisos tinham um fundamento incontestável.
Essa crença no explicável, aliás, fazia parte da cultura daquele povo com relação ao temor exagerado pelos sinais considerados divinos, pelas crendices nos fatos que permitiam uma interligação maior entre a vida e a morte, por tudo que dissesse respeito aos presságios, pressentimentos, intuições.
Ora, se acreditavam que orar para os mortos era uma forma de torná-los mais aceitos onde repousavam para a eternidade e ao mesmo tempo afastá-los do convívio familiar e amigável, evitando assim que viessem chamar as pessoas para acompanhá-las no além, com muito mais razão temiam receber os vivos em sombras ou vozes como se mortos estivessem. Segundo imaginavam, no mínimo tal aparição já era meio caminho andado para o funesto acontecimento.
Vestígios de morte eram o que diziam ser. Daí que no momento seguinte ao surgimento de tais aparições, de ouvir as vozes, começava a se travada uma verdadeira batalha para a vida, através de mais e mais preces, rezas e orações, promessas e até encantamentos, rituais e outros procedimentos, de modo que a morte perseguidora, já batendo às portas, fosse vencida. Ao menos por enquanto.
Mas aquelas duas, a mãe de Suniá e a avó de Tristão, mesmo profundas conhecedoras dessas possibilidades de enfrentamento da morte, preferiram, assim que ficaram mais calmas com as aparições e as vozes, simplesmente se apegar na força divina, que certamente não permitiria que nada de ruim acontecesse a duas pessoas tão jovens. Para ficar mais aliviadas, acabaram achando melhor fazer uma ligação entre o ocorrido e a instabilidade do momento, a escuridão que fazia e os barulhos provocados pela furiosa tempestade.
A mãe de Suniá nem quis comentar o ocorrido com outros familiares, de modo que não sabendo não aumentassem a corrente de medo e desconfiança. Ainda assim, procurando fingir que tudo estava tranqüilo e normal, não deixou de ser apegar aos santos, promessas e orações. E neste sentido foi até um cantinho onde havia um oratório de vela apagada e disse, num grito profundamente forte dentro de si mesma, as seguintes palavras:
“Senhor Deus, meu Senhor e de todos nós que habitamos nesta casa e somos desta família. Esta casa, moradia simples, mas rica em fé e devoção, tem na sua força e permissão para continuar existindo o alicerce e sustentáculo maior, do chão até o teto, entre portas e paredes, em cada uma das pessoas que nela habitam. É essa fé que traz alegria e vida para todos nós, mas há pouco tempo meu coração ficou temeroso e com vontade de chorar. Eis, meu Senhor, que um pressentimento ruim apareceu nessa escuridão e se fez visível diante do meu olhar e até ouvido com perfeição. A aparição queria significar que minha, nossa Suniá está correndo perigo, está passando por grandes dificuldades, está tendo a vida em perigo, e até, que Deus não permita, prostrada num leito de morte. Assim, Senhor, mesmo acreditando nesses anúncios inesperados que nos chegam, não quero crer que a força divina irá permitir que qualquer coisa de ruim aconteça com ela. Onde ela estiver que esteja salva e bem, onde ela estiver que esteja somente esperando essa tempestade passar para voltar pra casa. Mas se ela estiver realmente com algum problema, correndo algum risco, que me faça merecedora de outro aviso, mas sempre permitindo que ela esteja protegida sob o manto divino...”.
Nem bem terminou suas palavras e uma vela apagada caiu a seus pés. Pedi um aviso e essa vela caiu do nada, será que me veio o aviso? E se foi mesmo o aviso que pedi, então é verdade que a minha Suniá está correndo perigo? E as lágrimas começaram a brotar pelos cantos dos olhos, a face contrita e tomada de tristeza e agonia começava a se molhar sem saber mais o que fazer.
Na escolinha, na escuridão do cantinho de pé de parede onde a professorinha estava prostrada, ouviu-se um grito que nem precisava ser bradado assim, tão agudo e angustiado, vez que quase todos os meninos e meninas estavam ao lado ou bem próximos. Era Aninha: “A professorinha parece que vai explodir, o corpo tá pegando fogo e se tremendo todo. Corram lá fora pra ver se Teté conseguiu, se ele tá chegando com algum remédio...”.
“Calma Aninha, calma que a gente já vai dar uma olhadinha. Vamos Tonico, quem quiser me acompanhar venha logo”. Era Totinha, já levantando e correndo em direção à porta. Tonico veio logo atrás, ainda cheio de remorsos por achar que tinha sido o causador disso tudo.
Ao saírem na porta perceberam que tudo estava mais escuro e amedrontador, a chuva parecia mais forte e a ventania mais veloz e arrebatadora. Os trovões agora pareciam sair dali debaixo mesmo, das proximidades, com um barulho insuportável e arrepiante. Pelos trilhos iluminados que surgiam do céu, a única forma de se enxergar alguma coisa adiante, e assim mesmo muita próxima, perceberam que uma árvore havia caído bem diante do portão, pelo lado de dentro, o que impedia a passagem por ali. Aliás, impedia até de se enxergar o outro lado, saber se o maluquinho Teté já se aproximava.
“Você tá vendo o que eu tô vendo, Totinha?”, perguntou Tonico. E o desesperado amigo respondeu: “Tô. E o jeito que tem é chamar os outros meninos para ajudar a retirar essa árvore caída de frente o portão, impedindo tudo, de entrar e de ver quem tá lá fora, quem vem chegando...”.
“Mas será que vai dar tempo de fazer isso tudo e ainda salvar a professorinha Suniá?”. E falou Totinha, visivelmente desconsolado: “Salvar não sei, mas sei que vamos tentar. Se Deus quer que isso teja acontecendo é porque ele sabe o que tá fazendo...”.

                                                  continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com    

domingo, 26 de junho de 2011

À DERIVA (Crônica)

À DERIVA

                              Rangel Alves da Costa*


Os ventos sempre gostam de soprar em sentido contrário ao destino de muitos, navegantes ou não. Há muito tempo navegando nessa imensidão de anos, meses, dias e horas, quando já deveria estar perto de qualquer cais para descansar, afastar o temor de tudo e procurar viver o que lhes é merecido, sentem que a embarcação por cima dos pés está cada vez mais à deriva.
Cresci e vivi navegando em águas de todo tipo, brandas e tormentosas, sem nunca saber o que seria estar à deriva. Um dia um velho marinheiro me ensinou que todas as vezes que me sentisse sem rumo certo, indo para um lugar com a intenção de ir para outro, ao sabor da sorte e da situação, é porque eu estava à deriva, pois deriva significa exatamente um desvio de rota, de percurso, de caminho pelo mar. No mar da terra também.
Aplicando-se o conceito aos navegantes do leito do mar terreno, a esses marinheiros que como eu saem por aí sem bússola na mão e sem dizer aonde vão, estar à deriva pode significar também o caminhar em vão nesse desvão, o andar em buscar do impossível, o percorrer a vida, por estradas incertas, em busca de qualquer significado. Quando menos se espera e a vela está perdida em meio à multidão.
Mas também pode ficar à deriva aquele que pensa que está no porto seguro de seu quarto, de sua rua, de sua casa, e ainda assim sabe que não chegou aonde deveria estar. Esses refúgios passageiros, tão próprios de navegadores inexperientes e sempre amedrontados, não passam de portos de passagens que nunca deixam os sonhadores seguirem adiante. Querem seguir por aí, sair da casa, do quarto, mas olham pro norte e pensam que os monstros marinhos já estão famintos à espera.
Outra situação de deriva se dá no mundo das viagens no pensamento, das ideias que selam cavalo e querem galopar por aí, chegar aos distantes portais do quase impossível. Quase sempre porque a viagem é muito arriscada pensando como seria vivendo com alguém em paz, em pleno amor, sem brigas nem situações conflitantes. E tão absurdo se torna esse caminho que o viajante tende a cair lá de cima todas as vezes que achar que algum dia conseguirá o que deseja.
Sem contar outros dias, meses e anos num passado distante e infinito, ontem mesmo eu me vi na mais absoluta deriva. Corri atrás de explicações para minha constante solidão e de repente me vi num emaranhado tão grande de explicações e possibilidades que parecia que iria afundar. Algo me dizia que se eu não tivesse feito aquilo, e aquilo me dizia que era melhor ter feito de outro jeito, mas esse outro jeito tinha tantas feições que me perdi completamente. Depois, quando pude emergir desse inusitado simplesmente descobri que o meu erro foi ter dito adeus a quem tanto amava. Só isso.
Poderiam até me chamar de eterno marinheiro de qualquer lugar. Não poderia reclamar se vivo sempre à deriva. É forçoso, mas reconheço que jamais aprendi ao menos nadar e quando menos se espera já estou em alto mar. Num barquinho de qualquer papel insisto entrar em águas profundas e perigosas para buscar a felicidade; numa caixa de papelão invento que vejo quem tenho saudade lá longe e me jogo sem remo e sem rumo; com braçadas que logo se cansam digo que vou atravessar os oceanos até chegar numa ilha onde possa enfim viver em paz. Quando gritam por mim já estou sendo tragado pelas correntezas da impossibilidade, à deriva, sem forças para encarar novamente a realidade.
Mas o velho e amigo marinheiro, conhecendo esse meu mar de águas tão perigosas e ventos que sempre sopram aos nortes contrários, um dia me disse que só havia um meio que eu navegasse sem sofrer os perigos de me perder nessas viagens que tenho de fazer para sobreviver. Ouvi atentamente o amigo conhecedor de barco e navio, mar e oceano, terra e distância.
E então ele me disse que é impossível fugir da deriva se não conhecemos as águas que navegamos. O melhor a ser feito é viver sempre no cais, ainda que a vontade de navegar faça as ondas chegar aos pés.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com    

Sincero amor (Poesia)

Sincero amor


Amor com sinceridade
terá a idade da eternidade
afastando qualquer temor
que a vileza cause o desamor

sinceridade no amor
impõe ao coração justo valor
impede a maldosa desconfiança
cimenta no destino a perseverança

amor e sinceridade
é a relação que traduz uma verdade
a confiança no amor que se tem
porque o outro pensa assim também

sinceridade no amor
não será folha que o vento levou
muito mais um imenso rochedo
que o tempo construiu e deixou.



Rangel Alves da Costa

TEMPESTADE - 48 (Conto)

TEMPESTADE – 48

                          Rangel Alves da Costa*


Nesses momentos de dificuldades para se avistar ou se comunicar com a pessoa que se deseja ter, ver ou simplesmente saber como vai, os pressentimentos surgem como uma via dolorosa de aproximação.
Dizem que o pressentimento é a voz do instinto dizendo que algo está acontecendo ou vai acontecer, uma visão ou previsão de um acontecimento, uma intuição vaga das coisas futuras. É a previsão instintiva e sem causa aparente de alguma ocorrência. No pressentimento há um sentimento antecipado, como uma previsão, uma ligeira desconfiança, um palpite de que algo possa estar ocorrendo.
Quando menos se espera o pressentimento surge dizendo algo, mudando o rumo do pensamento para algo que a pessoa nem esperaria jamais imaginar, pois quase sempre terrível, medonho, doloroso. O que chega à mente como anúncio dificilmente é algo que se suporte com tranquilidade.
Desse modo, tanto os familiares da professorinha Suniá como do seminarista Tristão estavam envolvidos em outras preocupações, outros afazeres, outras coisas urgentes, quando sentiram surgir à mente terríveis indagações: Meu Deus, estou com um pressentimento ruim, uma coisa, um peso me dizendo que alguma muito ruim está acontecendo com...
Verdade é que estavam realmente preocupados com a tempestade, com a chuva ameaçadora, os ventos cortantes, os barulhos e os trilhos faiscantes que surgiam pelo céu totalmente enegrecido. Não havia tempo para pensar noutra coisa senão em rezar, orar, juntar forças de fé para que o mundo não acabasse como estava parecendo. Mas eis que de repente chegam os pressentimentos, os sinais, as outras preocupações.
A mãe de Suniá estava procurando seu livro de orações, um velho caderno preservado de geração a geração familiar, tateando nas gavetas com um candeeiro na mão, quando de repente a chama apagou e ela sentiu uma frieza estranha passando bem perto do seu corpo, como se um vento frio estivesse cruzando por ali naquele mesmo instante.
Com o arrepio veio o benzimento, o medo e a certeza do aviso: Meu Deus, dizei-me logo o que houve! Reacendeu o candeeiro e se prostrou na lembrança de uma oração que sempre guardava em mente, que era a Oração dos Aflitos: “Ó meu bom Jesus, Senhor dos aflitos, vós disseste: ‘Vinde a mim todos os aflitos, que vos aliviareis’. Aqui estou para conversar convosco, meu grande e generoso Senhor. Infundi em meu coração profundo amor, para que amando, servindo, e ajudando vós na Pessoa do meu semelhante possa viver o vosso evangelho, praticando o bem e sendo útil e assim participar da vida no céu. Senhor Bom Jesus dos Aflitos, vós sois minha única esperança. Resolvei os meus problemas, dizei-me o que significa este anúncio, este sinal que me chegou numa frieza medonha, dizei-me o que se passa e que com quem se passa, que é para mais fortemente eu me lançar a teus pés em busca de salvação. Isso vos peço em união com o Pai e o Espírito Santo. Amém”.
Assim, ainda ajoelhada no canto do quarto ouviu como se Suniá estivesse chegando, entrando em casa, falando alguma coisa. Então levantou e correu até a sala para confirmar o pior. Não havia nem sombra da filha e isto era o maior sinal de que todo aquele pressentimento ruim era de que alguma coisa desagradável estava realmente acontecendo com a mesma.
Daí em diante a aflição aumentou, pois à mente foram vingando pensamentos e ideias, suposições e imaginações, mais medo e muito mais certeza de que ela não estava bem, de que precisava ser logo encontrada para ser ajudada. E o desespero se alargava e tomava as mais tristes feições, à medonheza do tempo agora se juntava à estranheza do desconhecido.
Mas o que poderia estar ocorrendo com a filhinha querida, a tão doce e sublime Suniá, será que havia passado mal, estava presa num desses abismos da tempestade, havia sido levada pelas águas, tinha caído num daqueles bueiros sem tampa e sumido, tinha sido levada pela ventania desenfreada, havia morrido, será que Suniá havia morrido?
E a aflição aumentou a tempo de o grito cortar a noite a qualquer instante quando a pobre mulher passou a ter a certeza que tinha visto a filha andando lentamente e de cabeça baixa pela casa, falando baixinho, se despedindo de todos, dizendo que gostava de todos, que sempre amou a todos, e por isso mesmo queria ficar mais tempo junto com eles, mas tinha de ir mais cedo, tinha de partir, tinha viajar, pois já estava morrendo e o seu trem partiria dali a instantes.
Deus, meu Deus, dizei-me onde e como está minha filha! Gritou a mulher o grito dos desesperados. E o mesmo grito, com as mesmas visões surgidas dos mesmos pensamentos, ressoou por dentro da casa da casa da avó do seminarista Tristão, lá na subida da Ladeira dos Quatro-Ventos.
A velha senhora, que na falta da mãe e do pai do rapazinho era tudo isso e muito mais, na sua luta diária fazendo e vendendo cocada quebra-queixo para sobreviver, não podia nem pensar na ideia de qualquer coisa ruim estivesse acontecendo com ele. Ora, na sua concepção já era quase santo, pois estudando pra ser padre e vivendo dia e noite nos afazeres religiosos, e por isso mesmo nada de ruim poderia recair numa pessoa tão pura.
Sozinha trancada em casa, na esperança que a medonheza do tempo passasse logo, fazia da quase total escuridão uma forma de ficar recolhida ali num cantinho do sofá envolvida em pensamentos sobre a vida de padre do neto. E era como o visse celebrando missa, todo paramentado, falando palavras bonitas no sermão e distribuindo bençãos aos fieis.
Mas de repente janelas e portas estremeceram mais fortemente e um zunido diferente passou por onde estava e uma luz esbranquiçada, bem fraquinha de quase não enxergar, atravessou acompanhando o zunido e dentro dela a figura de um jovem que mais parecia um anjo. É Tristão, o que aconteceu com ele, meu Deus?
E os mesmos pensamentos ruins vivenciados pela mãe de Suniá agora chegavam à mente também aflita e desesperada da avó de Tristão. Teve vontade de abrir a porta e correr para a rua, seguir até a igreja, gritou num misto de aflição, angústia, descontrole e tormento para ver se alguém chegava até ali, mas nada. E quando ia se ajoelhar para a oração pareceu ouvir uma voz de vento falando por trás:
“Os sinos da igreja tocam apressadamente. Ouve, minha avó, os sinos anunciarem a partida do seu neto? Mas quando os sinos tocam não é a certeza da partida, mas apenas do chamado, pois não há badalar mais forte do que a voz de Deus. E se ainda não é a voz de Deus também não tenho a certeza dessa partida. Mas dizem que os sinos antecipam a voz de Deus, por isso não sei se ficarei ou se chegou o meu momento de partir”.
“Não, meu netinho, não!!!”. E a velha senhora ecoou numa aflição indescritível, mas depois levantou rapidamente, se virou para o lado de onde parecia ter vindo a voz e disse com firmeza: “O tempo dele pertence a Deus. E Deus não há de permitir que nada aconteça com aquele que já está semeando a sua palavra sobre a terra”.

                                                   continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com