SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 31 de agosto de 2010

METADES DE MIM (Crônica)

METADES DE MIM

Rangel Alves da Costa*


Nasci inteiro e sou completo, tão imenso e todo que me divido em metades: uma que sou eu e outra que esse eu exige que seja.
Uma metade corpo, carne, músculos, ossos, sangue, vértebras, veias; outra metade força, coragem, luta, medo, fraqueza, temor, espanto, suor, lágrimas, sonhos, objetivos, realizações.
Uma metade pessoa, homem, ser, indivíduo, voz, grito, defesa, ataque, renúncia, aceitação; outra metade objeto, inimigo, indefeso, estranho, qualquer, vítima, usado, abusado.
Uma metade sobe a montanha, busca, procura, tem crença, tem fé, se encanta, levanta a voz, se agiganta, reconhece, faz prece, agradece; outra metade se nega, se ilude, descrer, é vazio, não ora, implora por qualquer deus.
Uma metade é certeza em Deus, no Pai, no Senhor, no Pai e no Filho do Homem, na Bíblia, na Luz, no terço, na reza, na procissão, na comunhão, na chama da vela; outra metade é ateu, é nada, é sozinho, é esquecido, inexiste, é perdido, é triste.
Uma metade brinca, sorri, se alegra, canta, barulha, pula, joga, corre, cai, levanta, quer mais, faz mais; outra metade se tranca, se fecha, é sem rua, sem amigos, sem bola, peteca, sem janela, sem vidro, sem viver.
Uma metade trabalha, recebe, compra, empobrece, come, bebe, fuma, se cansa, deita, dorme, sonha, se assusta, acorda, faz tudo de novo; outra metade espera, é preguiça, é doença, é distância, é demência, é querer, é não ter.
Uma metade é desejo, é querer, é amor, é paixão, é namoro, é sexo, é tesão, é gozo, arrependimento, é querer mais, é não ter, é buscar, é pagar, é qualquer prazer; outra metade é certinho, é fingimento, é sonsice, é simulação, é fazer escondido, é lavar as mãos, é sujar o corpo, é disfarce.
Uma metade é cidade, é rua, movimento, é carro, buzina, é freio, é xingamento, é placa, marquise, é assalto, é mão estendida, é terror, é pavor, acidente, é morte, abismo, é ter de viver; outra metade é campo, é sertão, é saudade, lembrança, família, é pinga, é barro, massapê, é seca, é amigo, é pobreza, casebre, estrada, vereda, caminho, é seca, é esperança, é lua, é sol, sou eu.
Uma metade é flamboyant, é pinheiro, palmeira, cerejeira, é ipê, figueira, eucalipto, é jaborandi, paineira, é arbusto, floração, é poda, é tronco, cupim, canteiro; outra metade é catingueira, é juazeiro, umburana, é umbuzeiro, goiabeira, aroeira, é palma, é xiquexique, mandacaru, é facheiro, mato, esconderijo, é passarinho, é fruto.
Uma metade de mim é solidão, é tristeza, angústia, é silêncio, saudade, lembrança, é abandono, desilusão, é mistério, é pensamento, é viagem, adeus, é ilusão, é certeza, é desespero, é você; outra metade é o passo, a porta, a chave, o caminho, a vontade, a fronteira, o encontro, o reencontro, o abraço, o amor, o ficar.
Uma metade de mim é Chopin, é Neruda, é Strauss, é Da Vinci, é Whitman, é Sonata, é Drummond, é Amado, é Jorge, é Monet, é Manet, é um Porto, é Pessoa, é O Grito, é Exupéry; é Shakespeare, é Portinari, é Symphony nº 5, é Gardel; outra metade é qualquer um, é um brega, é um chique, é caipirinha, é rabo-de-galo, é Valdick Soriano, é gibi, é palavras cruzadas, é grafite, é mural, é sarapatel, é buchada, é lambada, é forró.
Uma metade de mim é chuva, é tempestade, trovão, é raio, relâmpago, vento, é ventania, é neblina, orvalho, é garoa, é frio, calor, é estação; outra metade é insensibilidade, é tanto faz, é qualquer tempo, é distração.
Uma metade é ouro, diamante, topázio, é jade, rubi, é brilho, é riqueza; outra metade é pedra, é rocha, brita, é areia, pó, é cisco nos olhos.
Uma metade sou eu; a outra metade sou eu no meu ser.
Te dou a outra metade, para ser eu em você.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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POÇO REDONDO: ASPECTOS SOBRE O REFÚGIO DO SOL (Décima terceira viagem)

POÇO REDONDO: ASPECTOS SOBRE O REFÚGIO DO SOL (Décima terceira viagem)

Rangel Alves da Costa*


Diferentemente do que se poderia imaginar em se tratando de um município sertanejo, onde as pessoas que não conhecem a realidade começam logo a espalhar feitos inexistentes de valentias, cangaceirismos e mortes, as disputas partidárias, e a política em si, sempre ocorreram na normalidade permitida perante os embates adversários. Verdade é que nos primeiros momentos da vida política do município ocorreram fatos extraordinários, com consequencias trágicas, mas este é um capítulo histórico que deve ser analisado à parte.
De início, pode-se afirmar que a história politíco-partidária de Poço Redondo possui três momentos distintos, três fases com características próprias. A primeira, que denomino de fase emancipatória, que vai da emancipação política, em 1953 e a primeira eleição em 1954, até a segunda eleição de 1958 (de Artur Moreira de Sá a Eliezer Joaquim de Santana). A segunda fase, que denomino de confirmatória, que vai da terceira eleição em 1962, até a décima eleição em 1992 (de Durval Rodrigues Rosa a Ivan Rodrigues Rosa). E a terceira fase, aqui denominada expansionista, que vai desde a eleição de 1996 até os dias atuais (de Enoque Salvador de Melo até o presente).

Fase Emancipatória (de Artur Moreira de Sá a Eliezer Joaquim de Santana)

Na fase emancipatória (1053-1958) foram realizadas duas eleições municipais. A primeira, realizada no dia 03 de outubro de 1954, contou com 626 eleitores inscritos e apenas 278 votantes. Disputaram o pleito Artur Moreira de Sá, candidato do Partido Republicano (PR) e José Francisco do Nascimento, o ex-cangaceiro Cajazeira, pelo Partido Social Democrático (PSD).
Os dois candidatos empataram em número de votos, obtendo cada um o apoio de 134 eleitores. Como a legislação eleitoral previa que em caso de empate o mais velho dos candidatos ganharia o pleito, Artur Moreira de Sá foi eleito o primeiro prefeito de Poço Redondo. Cinco vereadores também saíram vitoriosos e passaram a compor a recém criada Câmara Municipal: Francelino dos Santos, João Emídio de Souza, Lourival Félix de Azevedo, Lucas Evangelista de Sousa e Oscar Feitosa Matos. Essa primeira administração compreendeu o periodo entre 06 de fevereiro de 1955 a 31 de dezembro de 1958.
A segunda eleição municipal, e a última do período emancipatório, marcada para ser realizada no dia 03 de outubro de 1958, não se concretizou por fatos extraordinários que aconteceram nessa data, e que serão adiante citados, e o pleito acabou sendo realizado, e não disputado, no dia 26 de outubro desse mesmo ano. Disputavam a prefeitura Eliezer Joaquim de Santana, pela União Democrática Nacional (UDN) e novamente José Francisco do Nascimento, pelo Partido Social Democrata (PSD).
Após os inúmeros incidentes ocorridos, foi eleito o candidato da UDN Eliezer Joaquim de Santana. Para a Câmara Municipal foram eleitos Antonio Campos (genro do então prefeito Artur Moreira de Sá), Agenor Rodrigues da Silva, Augusto José Fernandes, Lucas Evangelista de Sousa e Abdenago Ferreira de Sá.
Os fatos envolvendo o candidato José Francisco do Nascimento merecem uma rápida análise. Como já citado noutros textos que compõem este trabalho, este rapaz era filho de família abastada na povoação poço-redondense. Por uma dessas circunstâncias da vida, segue o sonho de muitos outros rapazes e meninos da região e entra para o bando de Lampião, que à época também reinava nas caatingas em volta de Poço Redondo.
No bando do capitão, José Francisco do Nascimento, o Zé de Julião, recebe a alcunha bandoleira de Cajazeira. Ao lado de sua esposa Enedina, permanece na vida cangaceira até o fatídico 28 de julho de 1938, quando Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros, dentre eles sua Enedina, são mortos na Gruta do Angico, ali mesmo em Poço Redondo, às margens do Velho Chico.
Após fugas e esconderijos, depois de passar um período no estado do Rio de Janeiro (Nova Iguaçu), retorna ao seu Poço Redondo e tenciona disputar a primeira eleição que seria realizada. Assim o faz e enfrenta nas urnas Artur Moreira de Sá. Contados os votos, 134 a 134, havia dado empate. Sendo mais novo que o outro pleiteante, vê Artur Moreira de Sá ser reconhecido como primeiro prefeito do recém emancipado município.
O fato de não ter sido derrotado e mesmo assim não haver alcançado seu objetivo, não desanima Zé de Julião. No pleito seguinte candidatou-se novamente, dessa vez para enfrentar Eliezer Joaquim de Santana, candidato do então prefeito municipal e do líder estadual da UDN, Leandro Maciel.
Contra Zé de Julião não havia somente um candidato, mas sim uma potente e fervorosa máquina política que não admitia ser derrotada de jeito nenhum. Segundo relatos, todos no município sabiam que aquela eleição de 58 seria vencida de qualquer jeito, e com todas as armas possíveis, por Elizer Santana. E sabiam disso porque os títulos de eleitores não chegavam às mãos dos simpatizantes de Zé de Julião, além de muitas outras manobras que estavam sendo praticadas.
Indignado com a situação, o candidato Zé de Julião, no dia marcado para a eleição, a 03 de outubro de 1958, resolveu que os adversários até poderiam ganhar, só que não com a votação daquele dia. Daí, juntamente com alguns companheiros montados em cavalos, roubou urnas, espalhou o terror e desafiou as forças constituídas. O candidato adversário só foi confirmado vitorioso na eleição posteriormente realizada, a 26 de outubro de 1958.
Daí por diante a vida desse grande sertanejo se tornaria num grande calvário, com processos judiciais, fugas e mais traições, até ser encontrado morto no dia 19 de fevereiro de 1961.

Fase Confirmatória (de Durval Rodrigues Rosa a Ivan Rodrigues Rosa)

Na segunda fase, a fase confirmatória (1962-1992), foram realizadas oito eleições e nove administradores municipais estiveram à frente dos destinos de Poço Redondo. Nove prefeitos porque a gestão 1963-1967 teve início com a posse e destituição do prefeito Durval Rodrigues Rosa, e a posterior posse do vereador Cândido Luis de Sá à frente da prefeitura municipal.
Assim, a terceira eleição municipal, disputada a 03 de outubro de 1962, teve como pleiteantes o candidato do prefeito Eliezer Santana, Joaquim Fernandes de Barros (conhecido como Joaquim Itabira) pela União Democrática Nacional (UDN); Francisco Néri de Araújo (Chico de Lulu) pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB); e Durval Rodrigues Rosa, herdeiro político de Zé de Julião, pelo Partido Social Democrático (PSD).
Com larga vantagem de votos sobre os demais, Durval Rodrigues Rosa foi eleito o terceiro prefeito de Poço Redondo. Para a Câmara de Vereadores foram eleitos os seguintes postulantes: Luís de Sousa (Luís Maranduba), Francisco Anicácio Silva, Cândido Luis de Sá, Lourival Félix de Azevedo e Darcy Cardoso de Souza (teve o mandato cassado e em seu lugar assumiu João Batista Filho, o Joãozinho de Bizu).
Contudo, Durval Rodrigues Rosa ficaria no cargo somente até a eclosão da Revolução de 64, pois assim que os ditadores lançaram seus olhares sobre o estado de Sergipe cassaram o mandato do governador do estado, Seixas Dória, e dos prefeitos de Poço Redondo e Canindé do São Francisco. Nos documentos oficiais consta que houve renúncia de Durval Rodrigues, mas a verdade dos fatos apontaria para a imposição feita pelos militares, como não haveria de se duvidar. Com a vacância do cargo, o escolhido foi o vereador Cândido Luis de Sá, recém eleito presidente da câmara e a seguir nomeado novo prefeito.
A quarta eleição municipal foi realizada no dia 03 de outubro de 1966. Os candidatos que se apresentaram para a disputa do pleito foram o ex-prefeito Artur Moreira de Sá e o jovem, então com 26 anos, Alcino Alves Costa, apoiado pelo prefeito cassado Durval Rodrigues Rosa. Foi eleito Alcino Alves Costa, pelo PSD, tendo como vice-prefeito (a primeira vez que a figura do vice passou a ser exigência eleitoral) Lourival Félix de Azevedo. A posse ocorreu no dia 12 de março de 1967, com a gestão indo até 31 de dezembro de 1970.
Juntamente com Alcino, foram eleitos para compor a Câmara Municipal os seguintes vereadores: José Francelino dos Santos (Zé Preto), Francisco Vieira dos Santos (Chico Bilato), Francisco Luís dos Santos (Nonô de Sítios Novos), Nivaldo Alves de Sousa e João Rodrigues da Silva (João Tutu).
A quinta eleição municipal foi realizada a 03 de outubro de 1970. Diferentemente dos demais pleitos, o eleito teria dessa vez sua gestão diminuída pela metade, sendo apenas de dois anos o período em que ficaria à frente dos destinos do município. Ao cargo de prefeito se candidataram o jovem João Rodrigues Sobrinho (João de Durval), filho do ex-prefeito Durval Rodrigues Rosa, pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA), tendo como vice Tertuliano Lima e Silva, genro de Artur Moreira de Sá, e Manuel Machado Feitosa (Mané Joaquim), pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
O vitorioso nesse pleito foi João Rodrigues Sobrinho, o João de Durval. Foram os seguintes os vereadores eleitos: Lucas Evangeista de Sousa, Francisco Vieira dos Santos (Chico Bilato), Francisco Luís dos Santos (Nonô de Sítios Novos), Nivaldo Alves de Sousa, José Ednalvo Feitosa e Antônio José Filho (Tonho Bento de Santa Rosa).
A sexta eleição para a escolha do prefeito de Poço Redondo ocorreu no dia 03 de outubro de 1972. Pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA I) concorreu um candidato apoiado pelo ex-prefeito Durval Rodrigues Rosa, José Florêncio Neto, o Zé de Lídia, um bem conceituado rapaz da comunidade; e também pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA II), o candidato escolhido foi o ex-prefeito Alcino Alves Costa.
Alcino Alves Costa, juntamente com o vice-prefeito Darcy Cardoso de Sousa, foi o vencedor e pela segunda vez seria o prefeito do município no período compreendido entre 1973/1976. Foram também eleitos os seguintes candidatos a vereador: Francisco Vieira dos Santos (Chico Bilato), Lucas Evangelista de Sousa, Adilson Costa Mendes, Antônio Alves de Sousa (Tota), João Vieira da Costa (Joãozinho de Bel) e Francisco Bezerra Caldas (Francisquinho de Santa Rosa).
A sétima eleição foi realizada no dia 03 de outubro de 1977 e o prefeito eleito ficaria no cargo durante seis anos. Os candidatos foram o ex-prefeito Durval Rodrigues Rosa, tendo como vice Nivaldo Alves de Sousa, de Santa Rosa do Ermírio, e Darcy Cardoso de Sousa, então vice-prefeito municipal.
O escolhido pelo povo foi Durval Rodrigues Rosa, o mesmo que fora cassado pela Revolução de 64 e que se impunha como poderoso chefe político do município. A sua administração compreenderia o período de 1º de janeiro de 1977 a 31 de dezembro de 1982. Os vereadores eleitos foram: Francisco Luís dos Santos (Nonô de Sítios Novos), Francisco Vieira dos Santos (Chico Bilato), João Florêncio de Santana (Nanã de Lídia), José Rivaldo Feitosa (Vadinho de Mané Joaquim) e Sebastião Lucas de Sousa (Tião de Sinhá).
A oitava eleição municipal de Poço Redondo, disputada em 15 de novembro de 1982, teve como candidatos a prefeito João Bernardino de Sá (João Pinguinho), do Partido Democrático Social (PDS I), apoiado pelo então prefeito Durval Rodrigues Rosa; e o ex-prefeito por duas gestões Alcino Alves Costa, também pelo Partido Democrático Social (PDS II).
O vencedor do pleito foi Alcino Alves Costa, eleito para o terceiro mandato. A posse se deu a 1º de janeiro de janeiro de 1973, com o término do mandado em 31 de dezembro de 1988. Os sete vereadores eleitos, todos do mesmo grupo político que apoiou Alcino, foram: João Florêncio de Santana (Nanã de Lídia), José Rivaldo Feitosa (Vadinho de Mané Joaquim), João Paulo Nunes, Mauro Cardoso Varjão, Antônio Marques Neto (Toinho de Cordélia), José Bezerra Caldas (Zé Preto de Francisquinho) e João Rodrigues da Silva (João de Zé da Silva).
Durante essa terceira gestão de Alcino Alves Costa houve intervenção estadual no município durante quatro meses, sob a alegação de má gestão das finanças públicas municipais. Nesse breve período, o interventor nomeado pelo governo do estado foi Raimundo Ferreira da Silva. Após esse período, Alcino retornou à frente da administração municipal para terminar sua gestão.
A nona eleição municipal, para o período de 1989 a 1992, ocorreu a 03 de outubro de 1988.Os candidatos eram o jovem advogado Ivan Rodrigues Rosa, filho do ex-prefeito Durval Rodrigues Rosa e irmão do também ex-prefeito João Rodrigues Sobrinho, o João de Durval. Candidato pelo Partido da Frente Liberal (PFL). O outro candidato era José Roberto de Barros Godoy, um empresário pernambucano com família naquelas redondezas, apoiado pelo prefeito Alcino Alves Costa.
Depois de uma disputa renhida, o vitorioso nas urnas foi José Roberto de Barros Godoy, tendo como vice-prefeito José Laurindo Filho (Zé Pequeno, um rapaz de Santa Rosa do Ermírio. Desta vez, treze foram os vereadores eleitos: Antônio Marques Neto (Toinho de Cordélia), Edeilson Titico dos santos (Edilson Titico), João Rodrigues da Silva (João de Zé da Silva), João Florêncio de Santana (Nanã de Lídia), João José de Oliveira (João de Eredia), Manoel Zacarias dos Santos (Zominho), Joemil Rodrigues Rosa, José Bezerra Caldas (Zé Preto), José da Silva (Guilherme de Sítios Novos), Jeová Idalino Alves, Manoel Messias Militão, José de Sousa Barros e José Rivaldo Feitosa (Vadinho de Mané Joaquim).
A décima eleição, a última da fase confirmatória, para a gestão de 1993 a 1996, foi realizada a 03 de outubro de 1992, tendo como candidatos o derrotado na eleição anterior, Ivan Rodrigues Rosa, pelo Partido da Frente Liberal (PFL) e o seu vice Gerino Alves Costa, irmão do ex-prefeito Alcino Alves Costa; e José Azevedo Dias, o Zé Dias, apoiado pelo então prefeito José Roberto de Barros Godoy, tendo como vice outro irmão de Alcino Alves Costa, Nilton Alves Costa. Quer dizer, nesse pleito dois irmãos disputaram a vice-prefeitura.
O embate entre os candidatos foi dos mais duros, contudo prevaleceu o apoio das duas maiores lideranças municipais, Alcino e Durval, e assim Ivan Rodrigues Rosa e Gerino Alves Costa saíram vitoriosos como prefeito e vice, respectivamente. Os vereadores eleitos foram: Aderaldo Rodrigues caldeira, Antonio Marques Neto (Toinho de Cordélia), Delmiro Alves de Matos, Edileuza Vieira dos Santos, Heleno Batista dos Santos (Leno de Santa Rosa), João Florêncio de Santana (Nanã de Lídia), João Rodrigues da Silva (João de Zé da Silva), Joemil Rodrigues Rosa, Manoel Messias Militão, Manoel Messias Gregório, José Reinaldo farias, Sebastião Lucas de Sousa (Tião de Sinhá) e Maria Sônia Godoy Nascimento.


continua...




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EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 92

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 92

Rangel Alves da Costa*


Quando no outono as folhas antes verdejantes vão perdendo suas forças e suas cores, entristecendo e tornando-se amareladas, ocres, acinzentadas, para depois ficar à mercê de qualquer vento que sopre, igualmente é o homem nos instantes mais cruéis do abandono e da solidão. Muitas vezes só resta mesmo esperar a ventania para lhe fazer pelos ares sem destino.
Os dias e as noites continuavam cada vez mais difíceis para Lucas. Durante os dias com a certeza de que os seus planos, objetivos e metas estavam sendo ameaçados de ter prosseguimento, pois rareavam cada vez mais as pessoas que frequentavam as atividades do barracão e mesmo assim não podia dar conta do que era preciso fazer. Durante as noites porque repensava e refletia as dores dos dias, causando insônias e pesadelos. E nisso tudo, se dava cada vez mais conta de que as águas eram cada vez mais fortes e cruéis ao pé do rochedo.
Agarrado cada vez mais na esperança, cada vez mais fazia das orações e da busca de conforto nas palavras da bíblia um verdadeiro ofício de quase todos os momentos em que estava sozinho ou lutando consigo mesmo.
“Não entregues tua alma à tristeza, não atormentes a ti mesmo em teus pensamentos. A alegria do coração é a vida do homem, e um inesgotável tesouro de santidade; a alegria do homem torna mais longa a sua vida. Tem compaixão de tua alma e torna-te agradável a Deus, e sê firme; concentra o teu coração na santidade, e afasta a tristeza para longe de ti; pois a tristeza matou a muitos. E não há nela utilidade alguma, A inveja e a ira abreviam os dias, E a inquietação acarreta a velhice antes do tempo. Um coração bondoso e nobre, banqueteia-se continuamente, pois seus banquetes são preparados com solicitude” (Eclesiástico 30, 22-27).
"Vendo aquelas multidões, Jesus subiu à montanha. Sentou-se e seus discípulos aproximaram-se dele. Então abriu a boca e lhes ensinava, dizendo: Bem-aventurados os que têm um coração de pobre, porque deles é o Reino dos céus! Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados! Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra! Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados! Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia! Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus! Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus! Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus! Bem-aventurados sereis quando vos caluniarem, quando vos perseguirem e disserem falsamente todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois assim perseguiram os profetas que vieram antes de vós.Vós sois o sal da terra. Se o sal perde o sabor, com que lhe será restituído o sabor? Para nada mais serve senão para ser lançado fora e calcado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre uma montanha nem se acende uma luz para colocá-la debaixo do alqueire, mas sim para colocá-la sobre o candeeiro, a fim de que brilhe a todos os que estão em casa. Assim, brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus" (Mateus 5, 1-16).
"... tu, que eu trouxe dos confins da terra, e que fiz vir do fim do mundo, e a quem eu disse: Tu és meu servo, eu te escolhi, e não te rejeitei; nada temas, porque estou contigo, não lances olhares desesperados, pois eu sou teu Deus; eu te fortaleço e venho em teu socorro, eu te amparo com minha destra vitoriosa. Vão ficar envergonhados e confusos todos aqueles que se revoltaram contra ti; serão aniquilados e destruídos aqueles que te contradizem; em vão os procurarás, não mais encontrarás aqueles que lutam contra ti; serão destruídos e reduzidos a nada aqueles que te combatem. Pois eu, o Senhor, teu Deus, eu te seguro pela mão e te digo: Nada temas, eu venho em teu auxílio" (Isaías 41, 9-13).
E depois disso Lucas sempre se fortalecia e procurava esquecer as angústias, firmar o seu passo e seguir seu destino. As coisas não podiam mais continuar como estavam. Aquele silêncio todo que rondava e tomava conta do lugar não lhe fazia bem. Não gostava de ouvir o barulho das pessoas trabalhando no novo barracão, mas sim de ouvir as vozes, os murmúrios e os gritos daqueles que sempre estavam fazendo alguma coisa no outro barracão, na praça da cruz, nos arredores.
Mas onde estariam os idosos, os adultos e os jovens que queriam estudar; onde estariam os artistas com seus violões, suas gaitas, seus tambores e pandeiros, suas sanfonas e zabumbas; onde estariam os artesãos com suas mãos catando os bilros, dando ponto após ponto, tecendo na colcha a paisagem de linhas coloridas; onde estavam as cozinheiras com seus cozidos e sarapatéis, as merendeiras com seus lanches e sucos; onde estariam as beatas e fiéis com suas bíblias, seus símbolos, suas crenças, seus temores, suas reverências, seus crucifixos; onde estariam os estranhos com seus olhares, seus passos ao redor, suas vontades e suas distâncias; onde estariam os amigos que restavam; onde estariam os meninos, cadê os meninos, onde estão os meninos, sumiram os meninos?
Onde estaria isso tudo? A vida ali estava um vazio. Seria a vida um vazio? Como preencher novamente o vazio da vida?


continuar...





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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

PALAVRAS AO SILÊNCIO (Crônica)

PALAVRAS AO SILÊNCIO

Rangel Alves da Costa*


Depois de luas e sóis, te encontrei somente agora, após o açoite do vento, o sopro da brisa, a tarde/noite chegar, e a solidão e a tristeza dizer que enxugue os olhos e faça silêncio para falar com o silêncio, pois chegaste sorrateiro depois que um grito bem alto partiu.
Tenho muito a dizer ao silêncio. Durante toda a existência, se paga o alto preço da dor por sempre procurar esconder ou deixar para mostrar mais tarde o quanto mortal na vida de uma pessoa é a negação, o esquecimento, a omissão, o fazer de conta que ela não existe.
Chega um dia que a dor é de morte e a vida fica na dependência do grito. Gritar para ver se o silêncio silencioso demais desperta e termina logo com o que começou, acabando com tudo de uma vez. Se é assim é assim que se deseja, que seja.
Não falo da morte, nem falo de continuar vivendo; não falo da vida, nem falo em deixar de viver; mas sim de saber se a vida é morte ou a morte é assim como a vida mesmo. O que não é aceitável é estar suportando isso tudo por causa do silêncio do silêncio.
Não seria um acerto pensar que foste somente egoísta, vaidoso e frio. Tuas outras características são como névoas aos olhos dos desatentos, mas não fogem das brumas que te cercam quando silenciosamente chegas e vai logo despertando na vítima a sensação da dúvida, do medo e da insegurança.
Muitos já enlouqueceram por causa da tua insensibilidade e omissão. Bastaria dar uma única resposta, dizer uma palavra, segredar um ruído. Mas não. Vendo os olhos se avermelharem de sofrimento, as lágrimas surgirem aflitas, as mãos serem erguidas à cabeça, o terror tomar conta de tudo, ainda assim ficaste em silêncio. Bastava dizer "ela não te quer mais"; bastava balbuciar "ela não te quer"; bastava soprar "ela não"; bastava mandar um recado: "não".
Quem não te conhece mandará flores, dirá aos outros do apreço que sente, terá regozijo em dizer que te conhece e preza. Coitados dos que só veem as flores no jardim, o sol na manhã e a lua na noite! Infelizes aqueles que possuem olhos somente para fingir a beleza, boca para fingir as palavras, mãos para fingir que tocam! A verdade nunca se esconde; quem vive fingindo a verdade é quem se contenta com a mentira. Por isso dizem gostar de ti. Ai se te conhecessem na essência!...
Um dia sacrificaram a palavra para te defender; disseram, simulando uma filosofia, que estais na essência originária e no fim da vida, pois ainda nenhuma palavra e depois nenhuma palavra; afirmaram que é melhor viver contigo do que se perder em frases comprometedoras; pensaram que o teu jeito tão sério e distante fosse sinal de inocência e pureza.
Perdoai, grande Deus, os que pecam pelo desconhecimento; porém não deixai de castigar os que te conhecem e, refletindo o seu mesmo jeito covarde, explode por dentro para não dizer ao menos "fica", "perdoa", "ainda te amo".
Saiba que por tua culpa a menina bebeu veneno, cortou os pulsos e se jogou do último andar. Chorou, implorou, gritou e não deixaste que ninguém respondesse. Por tua culpa o vento levou a roupa do varal e a chuva entrou pela janela para molhar os sonhos de alguém que dormia. As tempestades nem te consideram, por isso todos ouvem quando está presente. Mas o vento e a chuva não, pois silenciosamente chegam e fazem os estragos que querem.
Saiba que por tua culpa, me achando revoltado com os exemplos da vida, que me negava a oferecer no mesmo instante tudo que eu queria e pedia, abri a janela e gritei bem alto, disse o que não deveria: desfiz da minha fé, desacreditei das minhas crenças, maculei minha religião. Era para ficar em silêncio e não fiquei. Por isso a culpa é tua.



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POÇO REDONDO: ASPECTOS SOBRE O REFÚGIO DO SOL (Décima segunda viagem)

POÇO REDONDO: ASPECTOS SOBRE O REFÚGIO DO SOL (Décima segunda viagem)

Rangel Alves da Costa*


Como se não bastassem os fatos e episódios fantásticos que parecem somente ocorrer no sertão, o realismo fantástico que torna aquelas paragens num mundo verdadeiramente diferente, de vez em quando surge elementos novos para aguçar ainda mais a curiosidade do sertanejo e testar seu poder de compreensão sobre a realidade. Mas não pode ser, será mesmo que isso é verdade? De vez em quando têm de se perguntar.
Fato é que já há alguns anos surgiu um boato de que tanto as terras de Poço Redondo como as do município vizinho, Canindé do São Francisco, não seriam das inúmeras famílias, proprietários e assentados que nela vivem como verdadeiros donos, porque compraram ou adquiriram por outros meios, ali construíram e vivem, mas sim de uma única família: a família Marinho, formada pelas herdeiras Adélia Ferreira Marinho e Luzia Ferreira Marinho, afirmando terem adquirido por herança toda a aquela imensidão de terras. Mas vamos aos fatos.
Há mais de 40 anos que as herdeiras, senhoras já idosas e de poucos recursos, começaram uma briga na justiça para verem reconhecidas as terras deixadas como herança por seu pai, Amâncio Ferreira da Silva, que as adquiriu de Francisco Correia de Brito em 1947. O problema é que tal herança envolve todas as terras que formam os municípios de Poço Redondo e Canindé do São Francisco.
Como fundamento fático do pedido da ação, "As demandantes dizem-se proprietárias, por herança, de parte das terras então integrantes do "Morgado de Porto da Folha", terras essas que constituiriam um imóvel individualizado cuja área seria de impressionantes cento e noventa e três mil e quinhentos hectares" (ver sentença a seguir).
Na audiência judicial, realizada às 08h30m. do dia 31/08/2006, na 6ª Vara Federal de Itabaiana/SE, a requerente Adélia Ferreira Marinho prestou o seguinte depoimento pessoal:

"QUALIFICAÇÃO: ADÉLIA FERREIRA MARINHO, brasileira, do lar, separada judicialmente, RG nº 247.546 SSP/SE, CPF 294.555.705-30, residente e domiciliado na Rua Carlos Menezes de Faro, nº04, Conjunto Augusto Franco, Aracaju/SE. (...) que as terras em questão foram adquiridas pelo seu pai na década de quarenta, que por sua vez faleceu em 1952; que o processo de inventário só veio a terminar quando a depoente contava com dezessete anos; que nesse período passaram a se emitir escrituras públicas falsas em relação a área que então seu pai havia adquirido; que as áreas desapropriadas pelo INCRA correspondem a porções de terra que teriam sido transferidas por essas escrituras falsas a terceiros; que a depoente tomou conhecimento da primeira escritura falsa em 1965, época em que levou os fatos ao jornal GAZETA. (...) que só havia cerca de trezentas tarefas nas terras que pertenciam a sua família. (...) que a própria depoente informou ao INCRA sobre as irregularidades nas escrituras quando dos processos de desapropriação; que o INCRA não se dispôs a resolver administrativamente o problema; que o superintendente do INCRA à época era Manuel Hora. (...) que a escritura original das terras teria sido subtraída de autos de processo que a própria depoente moveu em 1959, na Comarca de Porto da Folha; que o INCRA cobrava o ITR tomando como base de cálculo toda a área da propriedade; que sua mãe nunca declarou área menor para efeito de reduzir a base de cálculo do ITR; que por fim esclarece a depoente que ela própria levantou a existência de 1726 propriedades decorrentes de escrituras falsas em 1980".

Compradas por cinco mil cruzeiros por seu pai, à época da realização do negócio jurídico só havia abandono e mato em toda a região, e de vez em quando se encontrando apenas uma propriedade ou outra, segundo alegaram os herdeiros. Com o falecimento do comprador, assim que a família procurou abrir o procedimento do inventário alguns documentos, não se sabe por quais motivos, foram adulterados por cartórios da região. Sobrou apenas uma certidão que atesta a existência para a escritura dos terrenos. Com base nesse documento é que a família conseguiu entrar na Justiça.
A disputa judicial, que já durava mais de quarenta anos, já foi julgada. O Estado nunca concordou com essa dimensão do terreno mesmo porque são cerca de 195 mil hectares e em valores atuais seriam estimados em R$ 600 milhões, além do que nas terras vivem cerca de 50 mil famílias, estão fixadas centenas de propriedades particulares, indústrias, comércio próspero e também onde está instalada a Usina Hidrelétrica de Xingó. Além disso, toda a história de Poço Redondo e Canindé teria que ser revista e recontada.
Como afirmado, o caso já foi julgado pela 6ª Vara da Justiça Federal de Sergipe. Eis os termos da decisão prolatada, publicada no Diário da Justiça de 13/12/2006 - Boletim 2006.000054:

"Autores: Adélia Ferreira Marinho e Outro
Réu: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA

ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. TERRAS DO MORGADO DE PORTO DA FOLHA. TÍTULO DE PROPRIEDADE IMPRESTÁVEL. AUSÊNCIA DE INDIVIDUALIZAÇÃO DO IMÓVEL. INEXISTÊNCIA DE REFERÊNCIA À ÁREA, À LOCALIZAÇÃO E ÀS CONFRONTAÇÕES. APOSSAMENTO PELO PODER PÚBLICO NÃO DEMONSTRADO. PRESUNÇÃO DE VALIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS. EXISTÊNCIA DE FEITOS EXPROPRIATÓRIOS, PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA, ACOMPANHADOS DESDE 1985/1986 PELO PODER JUDICIÁRIO FEDERAL E PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. COMPLETA AUSÊNCIA DE PROVA ACERCA DE SUPOSTOS EQUÍVOCOS NA LIBERAÇÃO DAS RESPECTIVAS INDENIZAÇÕES. IMPROCEDÊNCIA.

- SENTENÇA -

Sob a égide do processo de conhecimento, sob o rito ordinário, Adélia Ferreira Marinho e Luiza Ferreira Marinho deduziram pretensão em face do INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, com o escopo de obter indenização por danos materiais e morais.
Em suma, alegaram o seguinte:

a) São legítimas proprietárias, por sucessão hereditária, da última parte do imóvel rural denominado "Morgado de Porto da Folha", cuja área corresponde a 193.500 (cento e noventa e três mil e quinhentos) hectares, abrangendo os municípios de Poço Redondo e Canindé do São Francisco;
b) As terras foram adquiridas de Francisco Correia de Brito em 1947 pelo pai das autoras, Amâncio Ferreira da Silva;
c) Em razão de dificuldades financeiras, apenas parte ínfima da propriedade foi declarada para fins tributários;
d) O INCRA, deu causa ao apossamento administrativo do imóvel, pois indenizou terceiros - que não seriam os verdadeiros proprietários - ao promover diversas ações de desapropriação para fins de reforma agrária acerca da área compreendida no imóvel das postulantes;
e) Por conseqüência, entendem devida indenização pelos danos materiais, lucros cessantes e danos morais daí decorrentes.

Citado, o INCRA respondeu por meio de contestação e aduziu, em suma, que as autoras não demonstraram a efetiva condição de proprietárias.
Conforme sustentou, o título anexado à inicial seria nulo, pois fere os princípios da especialidade - ao não especificar a localização do imóvel - e o da continuidade - por não observar a cadeia sucessória dominial.
Demais disso, ressaltou que os procedimentos de fiscalização agronômica que realiza são sempre instruídos com o levantamento exaustivo da propriedade junto aos registros imobiliários.
Por fim, afirmou que as autoras jamais exerceram a posse sobre o pretenso imóvel.
Apresentou documentos de fl. 94/98.
Houve réplica reiterativa.
Na fase de instrução, foram carreadas cópias de processos administrativos instaurados pelo INCRA (fl. 118/257), colhendo-se, em seguida, o depoimento pessoal de Adélia Ferreira Marinho.
As partes reafirmaram o antagonismo quando dos respectivos memoriais.
Ouvido, o MPF opinou pela improcedência do pedido.
Tenho por relatado. A seguir, fundamento e decido.

INTERVENÇÃO DO MPF

O pedido de indenização advinda de desapropriação indireta, de ordinário, estampa contornos meramente patrimoniais, reduzindo-se à espécie do gênero responsabilidade civil do Estado.
Nessa conformação usual, é cediço, o ordenamento jurídico não reclama a presença do Ministério Público, porquanto sua missão não reside na defesa judicial das entidades que compõem o aparelho administrativo.
Nesse sentido, tranqüila a jurisprudência:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL - DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA - INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO - AUSENTES OS PRESSUPOSTOS DO ART. 82 DO CPC - DESNECESSIDADE - DENUNCIAÇÃO DA LIDE - CONDENAÇÃO SOLIDÁRIA EM RAZÃO DE ATUAÇÃO CONCORRENTE - POSSIBILIDADE - PRESCRIÇÃO VINTENÁRIA - DOMÍNIO ÚTIL - INDENIZAÇÃO REDUZIDA - POSSIBILIDADE - BENFEITORIAS DE TERCEIROS - INCABÍVEL INDENIZAÇÃO - JUROS COMPENSATÓRIOS - SÚMULAS 618/STF E 345/STJ - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS REGULARMENTE FIXADOS - 1. A intervenção do Ministério Público, não sendo obrigatória dispensa intimações posteriores. Precedente. 2. Tendo a União, denunciada à lide, concorrido para o dano experimentado pelo autor, cabível sua condenação solidária. 3. O prazo prescricional, na desapropriação indireta, é vintenário e começa a fluir a partir do esbulho. Precedentes deste Tribunal. 4. Tendo o expropriado somente o domínio útil do terreno, razoável a limitação da indenização em 60% do valor apurado na perícia. 5. Incabível indenização por valorização do imóvel em razão de obras públicas e benfeitorias promovidas por terceiros. 6. Nas desapropriações indiretas os juros compensatórios são devidos à taxa de 12% ao ano (Súmula 618 do STF) e devidos desde a perícia, se esta atribuiu ao imóvel valor atualizado à data do laudo (Súmula 345 do STF). 1. Honorários advocatícios fixados em conformidade com o § 4º do art. 20 do CPC. Impossível sua majoração. 7. Aplicável à espécie o art. 15-B da MP 1.901-31, de 26 de outubro de 1999, que alterou o termo a quo dos juros moratórios para "a partir de 1º de janeiro do exercício seguinte àquele em que o pagamento deveria ser feito", nos termos do art. 100 da Constituição. Precedentes desta Turma. 8. Recurso do MPF não conhecido; recurso do Estado do Maranhão conhecido parcialmente e improvido; recursos da União e da parte autora conhecidos e improvidos; remessa oficial parcialmente provida. (TRF 1ª R. - AC 200101000364714 - MA - 4ª T. - Rel. Des. Fed. Carlos Olavo - DJU 06.12.2004 - p. 59).

Aqui, porém, constatam-se aspectos diferenciais relevantes.
Tomada a tese encampada pelas autoras, teríamos, no caso de procedência, repercussão mediata sobre algo em torno de trinta e sete ações de desapropriação para fins de reforma agrária, distribuídas desde 1985/1986.
A área rural, objeto do presente litígio, supostamente abrange todas as propriedades abarcadas pelos referidos feitos; alega-se grave desvio de atuação/ineficiência por parte do INCRA; os recursos públicos envolvidos são de magnitude considerável.
Assim, acompanhando o MM. Juiz Federal Maximiliano Cavalcanti, que me antecedeu, entendo ser cabível a participação do MPF por vislumbrar a caracterização de interesse público evidenciado pela natureza da lide (art. 82, III, segunda parte, CPC).
Daí a participação enriquecedora do Parquet, que acompanhou e contribuiu com o desenrolar do litígio desde o início da instrução.

MÉRITO

As demandantes dizem-se proprietárias, por herança, de parte das terras então integrantes do "Morgado de Porto da Folha", terras essas que constituiriam um imóvel individualizado cuja área seria de impressionantes cento e noventa e três mil e quinhentos hectares.
Ainda nas palavras das demandantes, suas terras foram alvo de apossamento pelo INCRA, que teria promovido diversas ações de desapropriação que contemplaram terceiros - em lugar das demandantes - com a correspondente compensação pecuniária.
Pois bem.
As requerentes discorreram com habilidade ao tratar do perfil jurídico da desapropriação indireta. Conceituaram-na como esbulho forcejado pelo poder público; um ato ilegítimo que enseja indenização por não ser possível recuperar imóvel que, além de incorporado ao patrimônio, foi afetado a uma finalidade estatal.
Perfeita exposição.
Todavia, a despeito da destreza ao expor o fundamento jurídico da pretensão, carecem as autoras de respaldo probatório.
Deveras. Por ordem lógica, o primeiro item a ser provado em uma demanda centrada em desapropriação indireta consiste na propriedade do imóvel supostamente tomado pelo poder público. A premissa é simples: só pode ser indenizado algo que efetivamente figurava no patrimônio do pretendente à reparação.
Quando falamos em comprovar a existência de propriedade, notadamente de uma área rural, falamos em estabelecer com precisão sua área, estremar suas confrontações e definir, de forma segura, a sua localização. Estamos falando, pois, em se documentar a realidade de algo que existe em certa medida de espaço e que se distingue dos congêneres justamente por seus limites.
Conquanto intuitivo, não é ocioso realçar que a exigência de se identificar pormenorizadamente o bem não se funda apenas no propósito de individualizá-lo. Comparece, sobretudo, a necessidade de se elucidar se sua área foi submetida ou não ao apossamento administrativo.
O registro imobiliário ancorado aos autos, no entanto, é completamente inservível no que atina à identificação do imóvel que pertenceria às autoras, pois não faz nenhuma referência à sua localização.
Transcrevo o teor relevante do citado documento (certidão de fl. 21):

"CARACTERISTICOS E CONFRONTAÇÕES: uma parte em comum dos terrenos do extinto MORGADO DE PORTO DA FOLHA, situado no Termo de Porto da Folha, desta Comarca."

Impossível aferir, destarte, a real localização física do imóvel. Qual a sua área? Quais as confrontações? Em que lugar se situa? Sem essas respostas imprescindíveis, não se pode determinar se o INCRA, por meio de ações indevidas em face de terceiros, deu causa à desapropriação indireta; não se sabe se as terras alegadamente pertencentes às autoras foram alcançadas ou não por tais demandas.
O croqui de fl. 29, desnecessário insistir, nenhuma força probante apresenta. A partir de quais bases foi elaborado, se o título de propriedade não indica qualquer marco limítrofe das terras?
Tocava às acionantes, irretorquivelmente, esclarecer a contento essa verdadeira questão prejudicial, consoante dispõe o art. 333, I, do CPC. Deveriam, em tempo e sede adequados, ter buscado a demarcação das terras e/ou a retificação/suprimento do registro imobiliário. Entretanto, mesmo na corrente lide, em momento manifestaram interesse em dirimir, por meio de prova compatível, esse quadrante nuclear de sua pretensão (fl. 112 e 118/119).
A bem da verdade, sequer a continuidade da posse, como bem salientou o Ministério Público Federal, mereceu a atenção das demandantes. Nada há nos autos que permita inferir o exercício dessa prerrogativa, deixando-se em aberto a concreta possibilidade da perda do bem por força de usucapião.
Mas não é só.
O demandado fez chegar ao feito documentos pertinentes às ações de desapropriação intentadas a respeito de imóveis supostamente situados na área que pertenceria às demandantes. Ao correr dos olhos (fl. 151/251), não se percebe nenhuma irregularidade capaz de macular os procedimentos implementados pela autarquia, valendo frisar que, em todos os casos, foi realizado prévio levantamento da cadeia dominial das terras que foram objeto dos referidos litígios.
Não bastasse ser ônus processual das requerentes a comprovação de eventuais vícios que inquinassem os atos praticados pelo INCRA, é de se recordar que os mesmos são revestidos - como todos os atos administrativos - de presunção de veracidade (quanto ao substrato fático) e de legalidade (quanto ao seu ajustamento ao ordenamento jurídico). Por isso, são necessariamente presumidos válidos e regulares até comprovação segura em contrário.
Nesses termos, por mais credibilidade que se queira emprestar, o depoimento pessoal da parte autora por si só não basta para demonstrar a existência de fraudes - ou qualquer defeito - em detrimento dos registros públicos utilizados como supedâneo das mencionadas ações de desapropriação.
Tais registros, além de incorporados a processos administrativos, por si só gozam de fé pública e apenas pelo instrumento processual cabível poderiam ser desconstituídos.
A hipótese de fraude, a propósito, resvala para um extremo tal que só poderia ser acolhida diante de provas irrefutáveis.
Explico.
Quando o Estado promove uma ação de desapropriação, mesmo para fins de reforma agrária, a presença ou não do real titular do domínio no pólo passivo não condiciona o andamento da lide. Esta prossegue; é julgada; o imóvel é incorporado no patrimônio público. Entrementes, enquanto não solucionada a questão do domínio nas instâncias ordinárias, a indenização devida permanece retida, assegurando-se o seu recebimento pelo legítimo proprietário (vide art. 6º, §1º, da LC nº 76/93)1.
No mesmo sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

A ação judicial de desapropriação pode prosseguir independentemente de saber a Administração quem seja o proprietário ou onde possa ser encontrado; mesmo porque no processo de desapropriação. As questões referentes ao domínio não são objeto de consideração, já que as únicas matérias passíveis de serem alegadas na contestação são as nulidades processuais e o preço (art. 20 do Decreto-lei nº 3.365/41); apenas no momento de levantar o valor da indenização é que o interessado deverá fazer prova de domínio (art. 34 do Decreto-lei nº 3.365/41); segundo Antonio de Pádua Ferraz Nogueira (1981:101), "tratando-se de ação cujo processamento independe de contestação, basta ao chamamento do presumível titular do domínio, detentor da posse direta do imóvel, para que se admita a legitimidade passiva.

Ora - e esse é o ponto a que tencionávamos chegar-, a tese das autoras implicaria admitir que o Poder Judiciário Federal e o Ministério Público teriam sido ludibriados nas quase quarenta ações de desapropriação para fins de reforma agrária ajuizadas em torno das terras localizadas na suposta área rural pertencente às autoras. Ou seja, seguindo o raciocínio das postulantes, o Judiciário, com a anuência e resignação do Parquet, haveria autorizado, em afronta à norma expressa de Lei, o levantamento de indenizações por pessoas que não demonstraram a condição incontroversa de titulares do domínio dos imóveis colhidos pelo programa de reforma agrária.
Enquanto instituições, Poder Judiciário e Ministério Público são constituídos de pessoas e, portanto, são falíveis. Não se insinua, portanto, a impossibilidade de que erros tão graves e tão repetitivos possam ocorrer ao longo de vinte anos. São, em tese, possíveis, mas - diante da realidade - improváveis. Por conseguinte, a par da completa ausência de elementos de convicção nesse sentido, tal hipótese, no mínimo, soa inverossímil.
Tão inverossímil quanto o comportamento das autoras: embora sabendo das desapropriações diretas (supostas causadoras da aventada desapropriação indireta) promovidas pelo INCRA desde a década de 80, somente em 2004, restando dois anos para a consumação do lapso prescricional, resolveram promover esta demanda indenizatória. Alguém que realmente estivesse sendo esbulhado de forma tão notória em sua propriedade, dotado de um mínimo de bom senso e diligência, certamente não teria um comportamento tão leniente.


Ante o exposto, julgo improcedentes os pedidos.
Custas e honorários dispensados nos termos do art. 12, da Lei nº. 1.060/50.
P.R.I.
Itabaiana, em 27 de novembro de 2006.

FERNANDO ESCRIVANI STEFANIU
Juiz Federal Substituto"

A sentença observada acima diz respeito à ação judicial promovida pela herdeira contra o Incra, postulando receber indenização pelas desapropriações irregulares que alegou terem sido feitas pelo órgão federal. Contudo, os pedido formulados foram julgados improcedentes. A competência para julgamento de tal ação foi, portanto, da Justiça Federal.
No dia 16 de fevereiro de 2007, os autos foram encaminhados, em grau de recurso, para o Tribunal Regional Federal da 5ª Região – TRF-5. Autuado em 13/03/2007, o Recurso de Apelação Cível foi tombado sob o nº 409688-SE, sob a responsabilidade da Primeira Turma julgadora, com a relatoria do Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira. Atualmente, em agosto de 2010, está concluso ao Relator, quer dizer, aguardando Despacho deste.
Contudo, as herdeiras, antes mesmo de entrar com a ação contra o Incra, já haviam ajuizado demanda indenizatória por dano moral e material contra o Estado de Sergipe. Com efeito, através do processo nº 199911903148, julgado pela 19ª Vara Cível em 09/02/2004, as requerentes atribuíram "responsabilidade ao Estado por omissão na prestação jurisdicional que teria levado à perda da propriedade, objeto de herança paterna, denominada "Morgado de Porto da Folha" (área equivalente a 193.500 hectares)".
Segundo os termos da Sentença, a justiça reconhece, em parte, o pleito indenizatorio: "(..) entendo, pois de bom tamanho, portanto, dentro do principio da razoabilidade e da proporcionalidade, que o requerido pague a cada autora, à título de indenização pelos danos morais como compensação aos danos sofridos a quantia de duzentos mil reais (R$200.000,00)".
Como eram duas as autoras, Adélia Ferreira Marinho e Luzia Ferreira Marinho, o Estado de Sergipe foi condenado a pagar indenização por danos morais no valor de R$ 400.000,00. O Estado recorreu através de Ação Rescisória (Processo nº 2007601095), porém teve o seu pleito negado. Não há mais possibilidade de recurso. O débito existe, mas o pagamento é outro problema a ser solucionado, pois o valor foi convertido em precatório: um título do Estado reconhecendo a dívida, que pode levar anos para ser paga.


continua...




Poeta e cronista
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EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 91

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 91

Rangel Alves da Costa*


Os problemas financeiros de Lucas começaram a surgir quando ele sentiu que tinha de vender uma das duas vacas que lhe restavam para manter-se por um período. As economias que havia guardado tinham ido embora sem que houvesse feito nenhum gasto desnecessário. Não era de luxos, não era desresgrado em nada, mantendo-se apenas com o essencial, comprando apenas o necessário, mas mesmo assim só lhe restavam alguns vinténs.
Deixar de procurar um emprego naquilo que gostava e sabia fazer, que era ensinar, para dedicar-se com exclusividade àquele sonho construído através do barracão, estava lhe custando muito sacrifício. Não podia cobrar um centavo sequer daquelas pessoas que faziam do barracão sua verdadeira escola. Eram pessoas muito mais pobres do que ele e talvez deixassem de frequentá-lo por vergonha de dizer que não tinham nada para oferecer ao menos como ajuda simbólica.
Não pediria um tostão à sua irmã Lúcia. Ela já havia sido boa demais ao fazer doação da parte que lhe cabia na herança e, através do seu esposo, continuava ajudando muito, pois o novo barracão estava sendo totalmente construído com o dinheiro que ele enviava.
Já estava comprovado por tudo que os comerciantes e empresários do lugar se negariam em ajudá-lo a manter aquela obra social. Os poucos que começaram a dar um pequeno apoio já haviam deixado de repassar qualquer ajuda financeira, sob a alegação de que as crises dificultavam poder continuar ajudando. Mas no fundo sabia o que os motivava, ou melhor, obrigava.
Consciente da decisão em vender um dos animais, no dia seguinte procuraria quem se dispusesse ao menos pagar o que a vaca leiteira realmente valesse. Mas não conseguiria fazer isso porque no meio da noite, enquanto ele dormia, entraram no terreno e depois no pequeno curral e sangraram até a morte as duas vacas que lhe restavam.
Logo cedinho, achando estranho que os animais não haviam berrado um só instante, se dirigiu até o curral e antes mesmo de entrar percebeu a cena com as duas vacas estiradas no chão em meio a poças de sangue. Com os chuviscos da manhã, o sangue havia se espalhado um pouco mais e misturado ao esterco produzia um cheiro fresco desagradável.
Mais desagradável ainda era o quadro desumano ali produzido pelas mãos da maldade: duas inocentes vidas animais pagando o preço da covardia, mortalmente perfuradas em várias partes do corpo. As focinheiras que estavam presas nas suas cabeças foram colocadas para sufocar os berros enquanto eram atacadas.
Dessa vez nem cogitou em prestar queixa nem avisar à policia sobre o ocorrido. Mas, como havia acontecido da outra vez, avisou aos moradores ao redor sobre o fato e permitiu que, se quisessem, aproveitassem toda aquela carne dos dois animais. E mais uma vez não deu para tanta gente querendo qualquer pedaço de carne.
Enquanto as pessoas cortavam os animais e distribuíam entre si a carne ali mesmo no curral, Lucas foi chamado na sua porta por dois policiais numa viatura da delegacia, acompanhados por mais duas pessoas dizendo-se da vigilância sanitária municipal e exigindo que mostrasse qualquer documento que lhe dava permissão para abater animais no próprio curral e não no matadouro municipal. Se não mostrasse no mesmo instante a tal documentação estaria configurado o crime de abate clandestino de animais, constatando-se o flagrante sobre o caso e passível de prisão.
No mesmo instante os policiais perguntaram se podiam dar voz de prisão em flagrante a Lucas e conduzi-lo algemado para a delegacia. Quando os fiscais, sorridentes e festivos, acenaram a cabeça afirmativamente, dizendo que sim, que poderiam, prendê-lo e os homens deram um passo em sua direção para atender às ordens, ao olharem nos seus olhos começaram a chorar convulsivamente. Retirando-se do local e afastando-se para os lados da casa, choravam de fazer as pessoas no curral ouvirem os prantos e se dirigirem até ali para saber do que se tratava.
Desconfiados e com medo daquelas pessoas sujas de sangue dos animais, os fiscais entraram rapidamente na viatura policial, totalmente atordoados e amedrontados, mas não sem antes forçar que os dois chorões entrassem na parte traseira do veículo, empreendendo depois uma desesperada fuga.
Os moradores não entenderam nada daquilo, apenas ficaram gargalhando com tripas e buchos nas mãos. Lucas achou melhor não comentar nada. Somente pediu que terminassem logo aquela divisão e limpassem a sujeira.


continua...




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domingo, 29 de agosto de 2010

COISAS QUE SÓ O PENSAMENTO DIZ (Crônica)

COISAS QUE SÓ O PENSAMENTO DIZ

Rangel Alves da Costa*


Os olhos veem, o coração sente e a boca fecha, a voz emudece, nenhuma palavra sequer. Quando deveria expressar o que os olhos viram e o coração sentiu, o silêncio é quem grita e somente o pensamento diz tudo ao seu modo. E não há verdade maior do que a do pensamento. As pessoas mentem, pensamento não. Tudo que nele se mostra tem a feição da realidade.
Para agradar, por conveniência ou pura mentira, as pessoas mentem, dissimulam, transformando os fatos e as coisas naquilo que bem desejam e entendem. Às vezes é sempre útil agir assim para não criar situações constrangedoras ou não ferir o outro, cuja realidade certamente lhe cai melhor com a conotação irreal.
Contudo, outras vezes a deturpação surge não para amenizar, para arrefecer a situação difícil, mas sim para tentar aniquilar o outro. É a mentira deslavada, a maquinação desumana que surge para dizer que algo é ou existe naquilo que não haveria nenhuma possibilidade de ser. Afirmando a existência daquilo que não existe, cabe ao vento espalhar o absurdo e à desacreditada vítima recolher ventanias para defender-se das injustiças.
Nesse contexto, somente o pensamento não pode ser acusado de nada. Contra si jamais poderá recair a suspeita de ter mentido ou inventado, espalhado injúrias, calúnias ou difamações, e simplesmente porque ele é incapaz de criar inverdades ou semear aleivosias ou falsidades. Se há alguma coisa acima de qualquer suspeita, santificado e puro, nascido e criado na mais pura inocência, esta é o pensamento. E por que tal constatação?
Ora, como já afirmado, simplesmente porque a verdade nas e das coisas surge primeiro no pensamento. Assim que os olhos veem, as sensações são imediatamente transmitidas ao pensamento, que traduz e dá imediato significado àquilo que foi visto. E depois de traduzido, de ser fixado como determinada realidade, adquirido um conceito e uma aparência, nada nessa vida poderá transformar a verdade fixada na mente.
Mesmo que surjam outras realidades envolvendo aquela coisa ou objeto, ainda assim prevalecerá a primeira constatação sobre aquilo. Com isto, há que se dizer que as situações se modificam, mas o pensamento não, que fixa tudo para traduzir quando quiser. Daí que a mentira surge exatamente quando o que é dito não expressa a realidade que está na mente. A pessoa sabe da verdade, contudo trai o seu pensamento segundo os seus interesses.
Não vejo nada de mal quando, para agradar, o rapaz passa pela mocinha feia suspirando de amores e diz que naquela manhã ele está mais bela do que nunca, que é encantadora e que está com a feição das flores em jardim de primavera. Que a professora chegue para a mãe do aluno e diga que ele sempre foi um dos mais inteligentes da sala, mas que ultimamente parece que vem esquecendo de fazer as lições. Que o eleitor diga a cada candidato que passa que vota nele, pois jamais viu uma pessoa tão honesta e trabalhadora.
Como se vê, tudo mentira, pois a mocinha é feia, o aluno nunca demonstrou inteligência e o candidato nunca prestou pra nada, mas ainda assim a pessoa achou mais útil mentir para ser agradável. E mentiu porque foi de encontro aos conceitos fixados no pensamento. Falar a verdade iria causar um transtorno desnecessário, muito diferente do que quando se inverte a situação meramente para prejudicar. Retirando um exemplo das situações citadas, seria o caso de afirmar que a mocinha se aproveita da beleza que tem para dar em cima de todo homem que passa, seja casado ou não.
Assim, existem coisas que somente o pensamento diz, e tem esse poder porque a boca é traiçoeira demais em quase tudo que se expressa. Melhor assim, porque os pecados vão se acumulando e ninguém precisa saber o que propõe o pensamento quando vê uma mulher nova, bonita e carinhosa, daquelas que deixa o homem gemendo sem sentir dor, como diriam Otacílio Batista e Zé Ramalho.



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POÇO REDONDO: ASPECTOS SOBRE O REFÚGIO DO SOL (Décima primeira viagem)

POÇO REDONDO: ASPECTOS SOBRE O REFÚGIO DO SOL (Décima primeira viagem)

Rangel Alves da Costa*


Há cerca de vinte anos atrás muitos latifúndios se estendiam pelas terras poço-redondenses. Imensas fazendas, poucos proprietários, e somente algumas se encontravam no conceito que se dá atualmente a terras produtivas. A Lei n.º 8.629/93 (Lei da Reforma Agrária), em seu artigo 6º, estabelece que se considera “terra produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente”.
Os proprietários das grandes fazendas geralmente eram pessoas de fora, de outras cidades e outros estados. Na sua maioria políticos e empresários, chegavam ao sertão com suas malas cheias de dinheiro e iam adquirindo cinco, seis ou mais pequenas propriedades vizinhas e de repente já estavam formados mais alguns latifúndios.
Improdutivos porque adquiriam as terras muito mais como investimento do que propriamente para criar rebanhos, empreender grandes cultivos ou desenvolver projetos agropecuários. Apenas alguns desses proprietários, geralmente moradores nos arredores da região se preocupavam em dar uma finalidade mais lucrativa e imediata às suas terras.
Assim, ao lado dos latifúndios sem serventia, improdutivos no conceito governamental, existiam aqueles onde existiam muitos rebanhos nas suas pastagens, plantações de palma, capim, milho, feijão e outros cultivos. Nestes, a sede da fazenda ficava fechada durante a semana e só abria suas portas quando o proprietário e seus familiares iam descansar. Quem tomava conta de tudo era o vaqueiro, o gerente, o morador, sempre auxiliado por outras pessoas.
Ao redor da casa grande ficavam as residências dos moradores, muitas vezes muito pobres diante daquela vastidão de terras e riquezas. Pessoas simples, humildes, às quatro da manhã já estavam prontas para o batente. Por sua vez, muitos eram outros latifúndios onde os proprietários dificilmente apareciam, deixando toda a responsabilidade no gerenciamento do lugar nas mãos de pessoas da região e de sua inteira confiança. Quer dizer, a propriedade era tida quase como coisa de menor importância.
Esta era a feição existente nos latifúndios, produtivos ou improdutivos. Contudo, não se deve esquecer que as terras poço-redondenses, até pelas vastidões que possuem, acolhiam e ainda acolhem inúmeras propriedades de médio e pequeno porte. Consideradas como de médio porte são aquelas onde o proprietário, residente ou não no próprio terreno, cria vacas, bois, cavalos e outros animais.
Quando possui rebanho leiteiro e as estiagens permitem, sobrevivem do que o gado produz, bem como das colheitas do milho e do feijão e, em muito menor quantidade, do algodão, da melancia e da abóbora. A sede da fazenda está lá, muitas vezes iluminada, ao lado do curral, de mais uma ou duas residências e de muita esperança para que a seca prometida para aquele ano não venha tão impiedosa.
Contudo, o aspecto mais marcante e mais bonito de se ver são as pequenas propriedades que, se ainda não engolidas pelo latifúndio ao lado, representam a cara e o coração do sertão. Os próprios sertanejos denominam essas propriedades de "meu terreno", "meu cercado", "meu sítio", "minha chácara", "meu pedacinho de terra".
Representam a maior riqueza da pobreza, o alento de ainda poder dizer que tem onde colocar o reduzido ou nenhum rebanho, onde crie solto seu cavalo, jumento ou jegue; onde se esforce para alimentar um ou dois porcos, algumas galinhas ciscadeiras, o velho e bom cachorro. Cabrito e bode às vezes têm, mas é difícil. O que não pode faltar é a casa de construção simples, levantada na ripa e no barro, ou a pequena moradia de alvenaria. É bom quando tem um pequeno telheiro, uma pequena área para estender uma rede ou assentar o velho banco de madeira.
Assim, ao passar pelos caminhos de Poço Redondo e avistar a casinha, o barraquinho ao lado para guardar a colheita, a sela, o gibão, os arreios, as sementes de milho e feijão engarrafadas, um monte de trelhas e pedaços de vida, ali estará a autêntica residência sertaneja. E lá dentro, no interior da casinha, meu Deus, não dá nem pra dizer como é. Entre lá e procure prosear com Maria e João.
Eles são tímidos, começam a falar de cabeça baixa, envergonhados, como se as palavras fossem riquezas que tivessem que dividir com o estranho, mas depois tudo desanda e todos estarão sorrindo, até mesmo quando falarem sobre as dificuldades que passam. Aceite a xícara de café feito na hora, aceite também a amizade sincera. Ofereça um biscoito ao Zequinha e Lurdinha. Talvez eles só tenham isso para comer nesse dia.
Entretanto, a realidade dos grandes latifúndios nas terras de Poço Redondo aos poucos foi cedendo lugar a uma outra e muito diferente realidade. E isto começou a ocorrer há cerca de uns vinte anos atrás, assim que os movimentos sociais e a igreja católica começaram a se organizar reivindicando as terras improdutivas para serem destinadas àqueles que precisavam nela trabalhar para sobreviver. Assim, como já vinha ocorrendo no sul e em outras regiões do país, o destino agrário do município começou a ser totalmente transformado.
A primeira e mais importante luta dos trabalhadores, no contexto do município de Poço Redondo, para ter a posse da terra improdutiva e torná-la importante meio de sobrevivência e subsistência, ocorreu na fazenda Barra da Onça, um imenso e improdutivo latifúndio de propriedade de Antonio Leite de Souza, mais conhecido como Toinho Leite, um riquíssimo proprietário de terras da região de Ribeirópolis.
A Barra da Onça era quase um nada diante do que possuía Toinho Leite. Rico demais, nunca produziu na sua propriedade de Poço Redondo e nem adotava um regime de parceria, onde trabalhadores sem terra pudesse produzir ali e garantir seu sustento. Tudo era quase totalmente mato, cobra e cobiça. Um com tanto e tantos outros sem nada, como costumavam dizer na região. Até que um dia tiveram a ideia de invadir aquelas terras e, após muitas e intensas lutas, os persitentes trabalhadores conseguiram ver seus direitos reconhecidos pelo governo federal, através do Incra.
Organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST, em setembro de 1985 dezenas de famílias ocuparam as terras da Barra da Onça. Essa ocupação teve ainda o apoio da Pastoral da Terra e sindicatos. Contudo, não foi pacífica tal ocupação, como lembra o professor Eliano Sérgio ("Um Balanço da luta pela terra em Sergipe: 1985-2005"):
"Nesse ano, ocupantes da fazenda Barra da Onça, no município de Poço Redondo, foram expulsos violentamente da terra por mais de uma vez, tiveram seus barracos derrubados e suas principais lideranças (Guido e Rubens) foram presas e torturadas pela polícia do município de Nossa Senhora da Glória, para onde foram levadas" (http://www.fundaj.gov.br/geral/observanordeste/eliano.pdf).
Vencendo todas as dificuldades, atualmente a Barra da Onça é exemplo de assentamento que deu certo em todos os sentidos, constituindo-se atualmente num importante núcleo de beneficiamento de leite, com laticínios instalados e sensível melhoria de vida para as classes trabalhadoras. Dessa primeira luta vitoriosa, muitas outras passaram a ser empreendidas pelo MST em Poço Redondo.
As lutas dos trabalhadores, entretanto, sempre foram marcadas pela resistência tanto dos latifundiários, como pela polícia e pela justiça. Os conflitos sempre foram muitos e intensos. Analisando tais aspectos perante a região onde se localiza Poço Redondo, assim sintetiza o professor Eliano Sérgio no texto já referido:
"Em agosto de 2005, contabilizavam-se 130 conflitos/acampamentos (...). A maioria dos conflitos estava localizada na região semi-árida, justamente numa região onde há problemas climáticos (secas periódicas), terras com baixa fertilidade natural, muito distante dos principais mercados, dotadas de infra-estrutura física e de serviços precárias, entre outros. Na minha opinião, a região menos indicada para se priorizar as ocupações, com o que parece não concordar o MST, pois, de 1995 para cá, o semi-árido tem sido o locus por excelência de sua atuação.
No período 1995/1999, 37% das ocupações feitas em Sergipe estavam concentrados em 6 municípios do semi-árido, sendo Poço Redondo e Canindé do São Francisco os que apresentavam o maior número dos conflitos sociais agrários, com cinco ocupações cada. Essa porcentagem subiu para 40,8%, em agosto de 2005, tendo os municípios de Poço Redondo, com 21 conflitos, Canindé do São Francisco, com 12, Nossa Senhora da Glória, com nove, e Monte Alegre de Sergipe, com sete, como os principais concentradores das áreas de conflitos.
Por outro lado, o número de trabalhadores rurais que se encontravam acampados em agosto de 2005, da ordem de 10.323 famílias, representava quase o dobro das 6.329 famílias assentadas pelo INCRA em Sergipe, nos últimos 20 anos".
Verdade é que o município de Poço Redondo concentra o maior número de famílias assentadas e o maior número de pessoas oriundas das ocupações empreendidas pelo MST. A título de exemplificação, até 2001 o município contava com 18 propriedades desapropriadas para fins de reforma agrária. No que diz respeito ao total de hectares desapropriados e número de famílias assentadas, nesse mesmo período, era de 28.216 hectares e 1.571 famílias. Hoje, em 2010, tais números estão muito acrescidos.
Por todos os recantos do município, beirando as estradas, o que mais se vê são acampamentos do MST. Quanto mais as terras são próximas do São Francisco mais despertam interesse. Como sintetizou bem um dos líderes do Movimento no município, "o que não falta é acampamento do MST e outras organizações dissidentes à beira das estradas nas vizinhanças, destino de muitos rapazes por ali. O sonho da lona faz sentido. As famílias que foram assentadas nos últimos dez anos em áreas próximas ao rio São Francisco, que banha a região, são consideradas "ricas" diante da paisagem dominada pela pobreza absoluta".
Convém destacar que as lideranças do MST em Poço Redondo, designadas pela coordenação nacional ou formadas pelos próprios jovens das comunidades assentadas, muitas vezes não se contentam em restringir suas atuações apenas no contexto da luta pela terra e no asseguramento dos direitos dos assentados, enveredando também no mundo político-partidário. Foi o que ocorreu, por exemplo, com Roberto Araújo, um dos coordenadores do movimento na região, que já foi candidato a vereador e a prefeito, sendo atualmente o vice-prefeito, eleito juntamente com Frei Enoque.
Verdade é que nesse passo e compasso, os movimentos sociais de luta pela terra conseguiram transformar a realidade agrária no município. Atualmente não existem mais latifúndios improdutivos, pois todos já foram ocupados pelos trabalhadores rurais sem terra. Os que se dizem produtivos, continuam em longas batalhas judiciais para terem seus direitos de manutenção reconhecidos. Até mesmo médias propriedades tornaram-se alvo do MST, o que torna a propriedade de qualquer fazenda algo temeroso e inseguro.
Diante desse quadro, muitos proprietários, antes mesmo de encontrarem suas terras invadidas ao amanhecer do dia, procuram o Incra em busca de uma rentável negociação para que haja desapropriação. Como o processo é lento e cheio de trâmites burocráticos, muitos donos são expulsos de suas terras e ficam aguardando anos a fio pelo recebimento das indenizações, sempre pagas segundo os contestados valores reconhecidos pelo Incra. Não é demais afirmar que muitos morrem sem receber um tostão.
De qualquer modo, as ocupações continuam em Poço Redondo e os assentamentos se espalham pelos quatro cantos. Eis alguns desses assentamentos: Barra da Onça, Queimada Grande, Lagoa das Areias, Pioneira, Guia, São Luiz, Cajueiro, Jacaré-Curituba e Pedrinhas, dentre muitos outros.
Os assentamentos recebem, dentre outras entidades, assessoria do Centro Dom José Brandão de Castro, que tem tido uma atuação importante, seja no processo de mobilização e organização dos camponeses e sem-terra, seja como mediadores entre eles e o Estado.


continua...




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EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 90

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 90

Rangel Alves da Costa*


Tempos difíceis para Lucas. Aquelas duas mortes, cada uma sentida a seu modo, abalaram demais seu espírito. Seria muito difícil não poder contar mais com a amizade, as palavras e as lições do Padre Josefo. Estava entristecido também pelo que havia acontecido com Ester, que no seu pensamento merecia destino melhor. Muito jovem a mocinha e com um futuro talvez brilhante, não poderia ter se deixado levar pelas ambições mundanas. Mas a vida estava cheia desses exemplos cruéis.
Se ao menos pudesse continuar contando com a presença dos meninos ali, tudo seria amenizado, seria diferente, a dor e a angústia talvez fossem embora mais rapidamente. Mas não, era como se tudo aos pouco fosse sumindo ao seu redor, lhe abandonando completamente, tornando-o uma ilha cercado de flores do mal por todos os lados. Até quando essa situação continuaria, até quando suportaria ser tentado pelo abandono e pela solidão? Cristo suportou no deserto porque assim estava escrito. Mas ele, pobre mortal, até quando suportaria? Indagava-se Lucas.
Os tempos estavam realmente difíceis. Dia e noite se desdobrava em muitos afazeres. Num instante estava alfabetizando jovens e adultos; noutro já estava acompanhando as oficinas de trabalhos artesanais; mais tarde teria que ir atrás de instrutores disso ou daquilo; as obras do novo barracão também exigiam atenção. Mas ele estava praticamente sozinho. O dinheiro rareava e tudo estava na dependência da ajuda do seu cunhado, esposo de sua irmã Lúcia.
Eram poucas as pessoas que chegavam ali para ajudar nas tarefas. Compreendia tal situação até mesmo porque conhecia das limitações daquela gente. Muitas vezes, a boa vontade de alguns já superava muitas dificuldades e levantava os ânimos. Mas estava realmente difícil.
Não estava mais recebendo ajuda financeira de ninguém da cidade. Não aceitava um tostão sequer dos políticos e os comerciantes deixaram de colaborar. Já havia enviado mais de vinte projetos para entidades governamentais e instituições privadas, mas tudo ainda continuava em fase de análise técnica. Era uma burocracia que aos poucos parecia querer minar as esperanças.
No barracão, muitas eram as pessoas que perguntavam pelos meninos. A resposta era quase sempre uma só: "Os meninos precisam pensar neles primeiro, para depois poderem ajudar aqui quando tiverem tempo disponível. Pedi que se voltassem mais para os seus estudos, para ficarem mais com os seus pais e os seus livros. Também precisam brincar, aproveitar essa fase maravilhosa na vida. Mas com certeza logo logo eles estarão de volta, podem acreditar".
E só Deus sabe o quanto doía estar repetindo isso. As pessoas nem imaginavam os motivos de não poderem estar ali. Às vezes até que tinha vontade de dizer a verdade, de contar tudo àquelas pessoas que se mostravam tão preocupadas e saudosas deles, mas depois deixava pra lá, até mesmo porque sabia que o fato logo chegaria ao conhecimento do prefeito e este poderia querer penalizar quem já vivia continuamente na submissão, que eram os pais dos meninos.
O que as pessoas não sabiam e nem podiam ficar sabendo é que os meninos constantemente estavam por ali meio às escondidas, organizando as coisas nos bastidores. Mais fácil de encontrá-los era quando anoitecia, pois a cada dia um grupo se dirigia até o local para fazer a limpeza do barracão, da praça da cruz e dos arredores. Mas tudo era muito rápido, de modo que estranhos não percebessem aquelas visitas corriqueiras.
Mas os olhos da maldade já tinham visto, já tinham percebido as constantes movimentações, já haviam procurado o mandante para relatar o que os meninos continuavam fazendo. As consequencias só viriam depois.
Dias difíceis Lucas. Quando o sol começava a se por e um amarelado triste se formava por trás das nuvens, instantes estes em que os sentimentos parecem aflorar mais fortemente, fazia de tudo para não desesperar. Muitas vezes sentado num dos banquinhos da praça da cruz, quase sempre de bíblia na mão, olhava para o horizonte adiante e chorava o seu cálice de lágrima por dentro e bebia num só gole a sede de gritar bem alto e dizer que o sol se esconde, mas nunca vai embora, que o homem que não deixa ser conquistado nunca será vencido.
Mas os tempos eram difíceis para Lucas. A bíblia aberta em Isaías 27,10 não deixava mentir: "... porque a cidade forte é agora uma solidão, uma morada abandonada como o deserto. Aí vêm pastar os bois e aí pernoitam e comem os seus ramos".


continua...





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sábado, 28 de agosto de 2010

SUBIR E CHUTAR A ESCADA (E quando for descer?) (Crônica)

SUBIR E CHUTAR A ESCADA (E quando for descer?)

Rangel Alves da Costa*


Pensando bem, o mundo apresenta situações muito simples que se tornam instigantes se houver um olhar mais aprofundado em cada realidade presenciada. Como exemplo basta lembrar a existência das seguintes situações: pessoas que subiram tanto que vivem quase nas nuvens, pessoas que vivem tentando subir em qualquer coisa e pessoas que se contentam com a firmeza do chão.
As mesmas situações poderiam ser vistas de outra maneira: pessoas que estão lá em cima e nem lembram que existem pessoas embaixo, pessoas que vivem olhando pra cima e se descuidam do existente embaixo e pessoas que estão embaixo e que por isso mesmo conseguem ver ao redor, lá no alto e tudo.
Incrível é a vida, incríveis são as pessoas que pensam que vivem nessa vida. Digo que pensam porque suponho não ser admissível pessoas conscientes não atentarem para o fato de que viver com humildade, respeitando os outros, vendo o próximo como aquele que amanhã poderá lhe estender a mão, nada mais é do que viver no substrato da essencialidade da vida: viver em comunhão porque o verbo da vida somente se conjuga na primeira pessoa do plural.
Pessoas existem que o senso de ser ser humano há muito que se perdeu. Mesmo que tenham tido formação familiar, ao colocarem os olhos diante da possibilidade de se ter tudo a todo custo esquecem num instante as velhas e sempre essenciais lições: viver com dignidade e amar ao próximo como a si mesmo! E esquecem ou não querem lembrar das lições porque não mais lhes interessa o próximo, senão para que esse próximo seja seu escravo, seu submisso, sua vítima.
Certamente se negarão a lembrar o que seja respeito, perdão, convivência, diálogo, amizade, união, ajuda, reconhecimento. Nem de longe lembrarão o que seja amor. O amor que cultivam é somente ao poder, ao lucro, à riqueza, à ganância, aos bens materiais. Felicidade é acumular bens, ser feliz é conviver com os bens. As outras pessoas não existem!
Estes conhecem muito bem o que seja impor aos olhos dos humildes suas riquezas, pois são vaidosos; o que seja colocar seus interesses acima de tudo e contra todos, pois são egoístas; o que seja agir com autoritarismo e arrogância, pois são prepotentes; o que seja tratar os outros com crueldade e brutalidade, pois são desumanos; o que seja desejar o pior para os outros, pois são maldosos; o que seja ver no outro sempre um inimigo, pois são covardes; o que seja ser infiel consigo mesmo e com os mandamentos divinos, pois são pecadores.
Pessoas desse tipo não medem esforços para subir na vida. Para alcançar o topo da glória, do poder e da riqueza, primeiro deixam de enxergar quem está ao seu lado e é seu igual, depois fazem dos mais humildes um meio para subir cada vez mais alto, e numa última instância buscam se firmar no ponto mais alto da glória vergonhosamente conseguida e procuram esquecer que quem está lá embaixo algum dia existiu. Conseguiram o que quiseram, mesmo subindo pela escada do ombro dos outros, agora o mundo é somente deles.
Esquecem, porém, que a vida não perdoa quem transgride seus princípios e chama para saldar o débito todo aquele que vive na soberba fazendo-se de esquecido. Quando chegar o tempo das ilusões se acabarem, de não restar mais nada do que se pensou ter construído, surge a necessidade de retornar ao chão para tentar recomeçar.
E os olhos que não enxergavam o passado, que não avistavam mais quem se esforçou para que tenha subido ali, vão ter que mirar o que não desejam. A face vai implorar, gritar, pedir por tudo na vida que alguém coloque uma escada para que possa descer do pedestal.
Ocorre que o tempo corrói a madeira da escada dos impuros que um dia têm que descer, fazer o caminho de volta. E como não há mais escada, não há mais ombro, não há mais degrau, o homem vai caindo em queda livre. E estendido no chão, vai ser ainda menor do que aquele que um dia humilhou.




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POÇO REDONDO: ASPECTOS SOBRE O REFÚGIO DO SOL (Décima viagem)

POÇO REDONDO: ASPECTOS SOBRE O REFÚGIO DO SOL (Décima viagem)

Rangel Alves da Costa*


Ainda sobre o cangaço, na verdade esse fenômeno se transformou numa verdadeira família para muitos jovens poço-redondenses, como pôde ser observado nos relatos citados. Adolescentes, jovens mesmo, pois a maioria do seguiram Lampião e seu bando praticamente trocaram a cantiga de roda e o brinquedo de madeira pelas durezas das caatingas. Mesmo os de mais idade ainda não haviam alcançado um perfeito entendimento da opção de vida que fizeram.
Um destes rapazes, filho de família de muitas posses e bens no lugarejo e redondezas, mas atraído pelo "maravilhoso mundo do cangaço", resolveu entrar para o bando cangaceiro, levando consigo sua esposa, e só deixando aquela perigosa vida quando o seu Capitão Virgulino tombou no Angico, sinistro que também feriria de morte sua sempre amada Enedina.
Esse rapaz, saído praticamente destroçado pela experiência vivenciada nas tocaias e emboscadas, ainda assim alcançou as asas da Fênix sertaneja e renasceu de forma exuberante para se transformar no maior nome da história de Poço Redondo, num verdadeiro ícone da luta, da persistência e, porque não dizer, das muitas covardias que contra si foram lançadas. Falo de José Francisco de Nascimento, o Zé de Julião que o Poço Redondo ainda fez o seu devido reconhecimento.
Sobre esse "cabra da peste, que enche de orgulho até o mais raivoso mandacaru, escrevi um artigo relatando sua história, evidentemente sintetizando tudo aquilo que ele significou na história de Poço Redondo. Publicado no mesmo caderno onde o Jornal Cinform (Edição 962, de 17 a 23 de setembro de 2001) trata sobre a história do município, tem como título "Todas as vidas de um sertanejo". Mais tarde reescrevi tal artigo, acrescentando outras informações, e o intitulei "Zé de Julião: o cangaceiro e o homem", publicado nos sites Lampião Aceso e Café História. Eis o texto:
"Se é verdade que o homem nasceu não somente para passar pela história, mas sim para construí-la, a partir do significado de suas realizações, podemos conceber a vida desse sertanejo como personagem incomum, dentro de suas duas vidas nas brenhas áridas desse sertão de meu Deus: o cangaceiro e o homem. Eis Zé de Julião e todas as vidas de um sertanejo.
Não é nenhum assombro tudo de grandioso que se queira falar dele, pois na história dos grandes e destemidos homens nordestinos, certamente uma de suas páginas épicas retratará com orgulho a vida e os feitos corajosos de José Francisco do Nascimento, o Zé de Julião para os seus conterrâneos, ou ainda Cajazeira, nome de batismo no bando de Lampião.
Zé de Julião, nascido num Poço Redondo caracterizado pela pobreza e longas estiagens, teve melhor sorte que a grande maioria das crianças do lugar. Seus pais, Julião do Nascimento e Constância do Nascimento, eram fazendeiros, possuidores de muitas terras e rebanhos. Contudo, crescer em meio ao sertão rodeado de explorados e exploradores, soldados desumanos e jagunços atrevidos, certamente faria brotar no jovem um destino muito além do que ser simplesmente herdeiro das riquezas de seus pais.
Naqueles idos de 1928, ter qualquer coisa que se afeiçoasse a riqueza era também ter a certeza de involuntariamente submeter-se à exploração da volante e dos bandos cangaceiros. Ora, era sempre mais confiável garantir a vida doando dinheiro ou outros bens. Contudo, foram as contínuas explorações que fizeram com que o pai de Zé de Julião se mudasse para outra localidade. Mesmo casado com a sua Enedina, o rapaz segue o pai.
Entretanto, numa das vezes que jogava baralho com amigos é reconhecido por soldados da volante que, acostumados a tomar dinheiro fácil de seu pai, querem fazer o mesmo com ele. Isto o revolta profundamente; passou a ter profundo ódio por aquele tipo de gente. Porém, o fato mais marcante foi a decisão que tomou diante daquilo que tinha por absurdo: criou impulso e encorajamento para entrar no bando de Lampião, que vivia por aquelas redondezas. Com a decisão tomada, sua esposa Enedina resolve acompanhá-lo na perigosa aventura.
Ao ser aceito como integrante do bando do mais famoso e destemido dos cangaceiros, Zé de Julião é prontamente apelidado de Cajazeira; sua esposa continua com o mesmo nome, Enedina. Assim, integrado ao bando, logo começou a demonstrar ser um dos mais valentes e corajosos. A cada empreitada sertaneja que tomava curso o seu prestígio ia crescendo em meio aos demais.
Ao lado da esposa e fiel companheira na aridez das caatingas, fazia planos para conquistas maiores, vez que imbatíveis naquela guerra sertaneja. E talvez por isso isso mesmo jamais lhe passou pela cabeça o que viria a acontecer naquela sonolenta e triste manhã de 28 de julho de 1938, na Gruta do Angico, às margens do Velho Chico. Quando a volante comandada pelo Cabo João Bezerra atacou e matou Lampião e Maria Bonita e mais nove cangaceiros, sua querida Enedina prostrou-se como uma das vítimas. Desesperado, conseguiu romper o cerco e fugir.
O que restou do bando de Lampião ficou totalmente esfacelado, com alguns cangaceiros se entregando à polícia e a maior parte passando a viver em contínua fuga, buscando se esconder daquela realidade. Não havia a menor possibilidade de reagrupamento. O seu líder estava morto; o cangaço de verdade havia morrido também. E nesse contexto de tristeza e luta com o outro lado da realidade, o que faz Zé de Julião/Cajazeira é fugir, passando a viver na duvidosa proteção de alguns conhecidos da região.
Verdade é que vagueou por algum tempo pelo estado da Bahia até se abrandarem os ânimos das perseguições, retornando após para Poço Redondo. Era filho de lá, tinha família e amigos ali, assim não haveria destino melhor, pensou. Assim, tendo retornado ao seu berço sertanejo, casa-se com uma irmã de sua falecida esposa. Contudo, a paz tão ardorosamente esperada não chega, pois as perseguições policiais continuam. Como para cumprir seu destino de andante, abandonar o lugar seria a única solução para fugir das garras dos famigerados perseguidores.
Seu destino, ao lado da esposa, agora é Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Por lá tinha também parentes e conhecidos, e por isso mesmo fixa residência sem maiores problemas. Porém, como sempre acontece com quem tem os pés enraizados na terra sertaneja, depois de alguns anos a saudade começou a rebentar-lhe o coração. Ficar seria por demais dolorido; retornar seria preciso. Ademais, tomou conhecimento que seu pai havia falecido, o que o deixa ainda mais transtornado e com pressa de voltar para casa. E foi isto que fez.
Já nas terras sergipanas, passa a residir numa fazenda herdada do pai. A situação parece bem diferente, mais calma e tranquila, e assim vai tecendo sua vida de amizade com todo mundo. Por consequência, vê sua influência política crescer fortemente na região. Registre-se que nessa época Poço Redondo ainda não tinha sido elevado à categoria de município, continuando a ser distrito de Porto da Folha.
Com o desmembramento de Poço Redondo em 1953 e as primeiras eleições municipais sendo marcadas para o dia 3 de outubro de 1954, o ex-cangaceiro lança-se como candidato a prefeito pelo PSD. Sua influência política havia crescido a tal ponto que ele mesmo imaginava que não haveria opositores. Se as forças políticas do novo município estavam unidas em torno de seu nome, logicamente que aquela eleição seria apenas um ato confirmatório.
Contudo, como sempre ocorre em política, ledo engano. Eis que surge um político de Porto da Folha, Artur Moreira de Sá, como candidato pelo PR, apoiado por alguns setores da comunidade poço-redondense e outros políticos da esfera estadual. Havia ainda um candidato pela UDN, mas a disputa polarizou-se mesmo foi entre Zé de Julião e Artur Moreira de Sá.
Chegado o dia da eleição, os dois candidatos dão como certa a vitória. Verdade é que o pleito mostrou a força paralela que os dois principais candidatos tinham, com uma disputa acirrada e sem se cogitar mais em apontar um favorito. E isso foi demonstrado quando as urnas foram abertas, pois o resultado final deu empate: 134 a 134. Todavia, sendo Artur Moreira de Sá mais velho do que Zé de Julião, o candidato pelo PR foi aclamado como vitorioso e nessa condição toma posse como primeiro prefeito de Poço Redondo.
Para Zé de Julião, a derrota foi totalmente inesperada, principalmente diante do cenário que há alguns meses havia previsto. Derrotado pelo fator idade, porém contaminado ainda pela febre da política. Assim, ao invés de ficar no seu canto esperando sua vez, procurou entrar logo em campo como se a próxima campanha estivesse se avizinhando. Como fruto dessa insistência, seu nome ficou cada vez mais fortalecido e parecia imbatível no pleito vindouro.
Tendo alcançado mais experiência, lançou-se novamente candidato a prefeito. Sabia que novos e desagradáveis fatos poderiam surgir a qualquer instante, como ocorreram na outra eleição, mas o que mais lhe preocupava era a possibilidade de que a eleição fosse fraudada para eleger, a qualquer custo, o candidato da UDN, Eliezer Santana. E não deu outra. Quem era seu eleitor assumido não poderia votar, pois não fizeram a entrega dos títulos, sob a alegação de que o alistamento tinha apresentado problemas; diversas outras dificuldades começaram a pontuar a situação. Até mesmo o judiciário buscava deliberadamente dificultar a vida do ex-cangaceiro. As manobras que foram sendo verificadas, todas elas eram no sentido de favorecer o candidato opositor. Tal situação indignou a maior parte da população e principalmente o candidato Zé de Julião. E foi nesse contexto que o tino cangaceiro tomou o lugar do político.
O que fazer então, se as ações fraudulentas estavam escancaradas e nenhuma autoridade séria havia para dar um basta naquela vergonha toda? Não tinha jeito; como o palco estava montado era derrota certa. Atinou e atinou e decidiu que se os seus eleitores, na sua grande maioria, estavam impedidos de participar do pleito, os correligionários do outro candidato também seriam impedidos. Mas como fazer isto? Só mesmo invadindo as seções eleitorais e roubando as urnas, concluiu.
Pensado, tramado e feito. No dia das elições, juntamente com alguns afamados vaqueiros do lugar, amigos de todas as horas, armados até os dentes, cavalgaram em tropel pelas seções eleitorais, roubando as urnas na sede do município e no povoado Bonsucesso. Aquilo não era mais obra de um candidato indignado, ferido na sua honra, mas sim do cangaceiro justiceiro Cajazeira.
Tamanha ousadia soa como uma bomba no meio político e na justiça eleitoral sergipana. Que atrevimento desse cangaceiro! Agora como vítima, o candidato opositor, Eliezer de Santana, tinha tudo nas mãos para ser declarado eleito. E assim foi proclamado como o segundo prefeito eleito de Poço Redondo. Era a segunda derrota consecutiva de Zé de Julião, porém muito mais para as artimanhas políticas do que para as urnas.
As ações perpetradas por Zé de Julião naquele dia de revolta sertaneja, lhe trouxeram duras consequências. Ora, se antes do acontecido as forças do Estado já depunham contra sua pessoa, principalmente pelo seu passado de cangaceiro, agora não teria saída. O cerco policial torna-se implacável. E assim foi preso e colocado em liberdade alguns meses depois. Mas sabia que, ao menos por algum tempo, não poderia continuar vivendo ali. Jogado pelas circunstâncias, é forçado a sair pelo mundo afora novamente, cumprindo mais uma vez sua sina de errante.
Nova Iguaçu é novamente seu rumo. Ao menos seria, se ao chegar em Salvador não resolvesse retornar. Não se sabe, de modo conclusivo, quais as circunstâncias, as intenções ou os motivos desse retorno. Suposições são as mais variadas, e se confirmadas estas, os motivos não seriam outros senão a vingança. Tinha motivações de sobre para tal. Sabe-se apenas que essa foi sua última aventura, pois na manhã de 19 de fevereiro de 1961 foi encontrado morto, assassinado, nas terras do seu Poço Redondo. A tragédia da Gruta do Angico, para ele, havia sido apenas adiada.
Quem sabia do seu retorno? Quem teria interesse na sua eliminação? Tudo pode ser entendido através da resposta a tais indagações. Quem sabe jamais disse a verdade; quem não tem certeza disse a verdade mas não foi acreditado. São as forças, as forças políticas, mas essa é uma outra e longa história, com muitas versões e contrastes, como é o próprio sertão".





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EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 89

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 89

Rangel Alves da Costa*


"Te amei demais ainda criança e quanto mais crescia mais amava. Naqueles momentos não sabia a intensidade do amor que sentia, pois essa medida somente se conhece quando vem a separação. Mas não nos separamos, fomos separados, fomos forçados a deixar de nos encontrar. Se naquele momento soubesse o quanto seria doloroso viver distante de ti, tudo teria feito para continuar ao teu lado, mesmo confrontando a minha família. Mas eu era muito jovem. Quando despertei para o erro já estava mais consciente e pensei que poderia repará-lo mais tarde e recuperar o tempo e o amor perdidos. Tudo isso porque achava que você me aceitaria de volta a qualquer instante que eu pretendesse voltar. Mas quando voltei aqui com a esperança de que ao encontrar-me você não resistiria um segundo, fiquei desencantada com o seu distanciamento, com a sua frieza para comigo e comecei a ter raiva e ciúmes do seu jeito de ser e da sua nova vida. E quando meu pai me propôs usá-lo para os seus objetivos políticos não tive dúvidas em aceitar. E aceitei com afinco porque ao demonstrar que não estava mais apaixonado você já era meu inimigo. E como inimiga procurei fingir que me sentia bem aqui e que era amiga dos meninos somente para tentar destruí-lo. E iria destruí-lo sim se alguém não tivesse trocado o frasco com o veneno..."
Ainda tomado de espanto com a situação e principalmente com essa revelação, Lucas perguntou em meios às palavras de Ester:
- Frasco com veneno?
"Sim, esse frasco aqui. A sua morte estava dentro desse frasco se não fosse a intercessão divina em seu favor". E um frasco surgiu suspenso no ar, levado por uma luz bem forte que falou e depois sumiu. Era o anjo protetor mostrando que estava presente.
Ao sentir a luz e ouvir as palavras do anjo, Ester ficou com as feições diferentes, quase sem nitidez, transformadas como num vulto, e a voz também mais fraca continuou falando com dificuldade:
"Quando você esteve doente e os meninos, aqueles idiotas, foram à minha procura pensando que eu viria até aqui para curá-lo nem sabiam que eu estava esperando a grande oportunidade de acabar com você de vez. E foi quando troquei o remédio pelo veneno e fiz com que engolisse até a última gota. Tinha certeza que ali teria sido o seu fim, mas não, o veneno ficou sem efeito e eu não sabia porque. Agora sei que foi essa coisa – e a luz brilhou novamente e Ester ficou quase sumindo – que impediu a sua morte. E então não sei suportei não ter conseguido meu intento e enlouqueci de vez..."
- Pagando pelo mal que cometeu – Disse Lucas, agora muito mais firme. E a réstia de Ester prosseguiu:
"A loucura me consumiu totalmente e não resisti. Enquanto Padre Josefo bebia o veneno misturado eu já não existia mais para essa vida, mas somente para..." – Ester tentava dizer as últimas palavras num esforço profundo, quase sem ser mais visível.
- Seja lá para onde for está perdoada Ester, que Deus tenha compaixão da sua alma e seja também benigno no seu julgamento. Só mais uma coisa, quem colocou veneno no vinho do Padre Josefo?
"Foi...". Mas Ester não conseguiu dizer mais nada e desapareceu de vez.
Após esses momentos inesperados e as tantas revelações surpreendentes, Lucas disse consigo mesmo que pensava que já havia passado por tudo nessa vida, mas não, pois a cada dia surgiam coisas daquele tipo para confirmar o ditado popular que diz ser a vida uma caixinha de surpresas. Abriu todas as portas e janelas da casa para entrar ar puro e acendeu uma vela em muitas intenções. Fez orações, leu a bíblia.
Contudo, as palavras de Ester com relação ao veneno que foi misturado ao vinho do Padre Josefo não lhe saíam da cabeça. Se ao menos ela tivesse tempo de dizer quem havia feito essa maldade. Nesses pensamentos, falou mais alto sem querer: "Quem terá colocado veneno naquele vinho e a mando de quem?". E novamente ouviu a voz do anjo:
"Não pense que terás todas as respostas no instante que quiser obtê-las. Não é fácil encontrar a verdade. Muitas vezes o silêncio é melhor do que perguntas e a observação é melhor do que a ação. Ademais, quando se trata da verdade ela sempre aparecerá, mais cedo ou mais tarde ela se mostra. Mas com respeito à morte do seu amigo nem precisará muito esperar pela verdade, pois tudo aquilo que já está imaginando é a mais pura verdade. Não cabe a você falar agora, faça valer o seu silêncio, mas já encontrou a verdade". Disse o anjo através de palavras sopradas no ar.
"Então o meu maior inimigo já começou a agir mortalmente. Será que pensa em fazer de mim a próxima vítima?".


continua...




Poeta e cronista
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