Rangel Alves da
Costa*
Logicamente
que nem todos foram degredados da memória quando já falecidos ou ainda em vida.
Dependendo da propensão histórica e cultural de cada povo, muitos daqueles personagens
da saga lampiônica ainda continuam relembrados, e até festejados, perante o que
historicamente representaram. Mas não posso falar desse contexto geral, pois
não conheço a representatividade que cada um toma na vida de seus conterrâneos.
Por isso
mesmo me volto apenas para o microcosmo poço-redondense, na abordagem feita
acerca do tratamento dispensado àqueles sertanejos oriundos do bando ou dos
arredores de Lampião, e que eram filhos de Poço Redondo, município fincado nas
bandas sergipanas do sertão do São Francisco. A mesma povoação sertaneja onde a
28 de julho de 38, na Gruta do Angico, Lampião flamejou pela última vez.
Segundo a doutrina da morte, contrariando àquela da eternidade.
Como
citado, enquanto povoação - para não se cometer o erro de regionalizar o
arruado sertanejo -, Poço Redondo cedeu mais de duas dezenas de filhos seus ao
bando do Capitão, bem como coiteiros e outros habitantes que tiveram uma
relação de bastante aproximação com o mundo cangaceiro de então. Pelo grande
número de meninos e meninas, rapazotes e mocinhas que enveredaram pelas veredas
hostis, o mínimo que se esperava é que estes fossem mais reconhecidos pelos
seus feitos.
Não
significa que todos tenham de festejar a memória de um ex-cangaceiro,
reverenciá-lo em pedestal ou mitificá-lo a ponto de lhe imputar poderes
inexistentes, mas também não se deve, de forma gratuita, alijá-lo da história
municipal. Queira ou não, aceite ou não, o retrato de cada um já está
devidamente exposto na parede da história. Ademais, e sem medo de errar, afirmo
que Poço Redondo só é reconhecido mundialmente pelo que o cangaço significou na
sua vida.
Mas tudo insiste
em acontecer diferente naquele lugar. Mesmo o evento maior do cangaço tendo
acontecido nas terras da povoação, nas barrancas do Velho Chico, coisa de
apenas alguns quilômetros da sede até lá, pouca importância se dá à Gruta de
Angico, à história cangaceira, aos seus filhos que no passado estiveram nos
palcos das batalhas sangrentas sertões adentro. Quer dizer, aprenderam a
história dos outros, dos acontecidos muito distantes, mas não procuraram
valorizar a própria história, aquela vivenciada nos seus quadrantes.
Se não
fosse a persistência de Alcino, por ele mesmo intitulado “O Caipira de Poço
Redondo”, que insistente e fervorosamente mostrou para o mundo o percurso da
saga cangaceira na região e desencavou do esquecimento a própria história do
município, certamente que até hoje quase nada se conhecia sobre Zé de Julião, o
Cajazeira no bando de Lampião, nem sobre Adília, Sila, Enedina, o coiteiro Mané
Félix e tantos outros. Isto no contexto de Poço Redondo, pois outros autores já
haviam cuidado de tais personagens em seus livros. Parece contraditório, mas
assim mesmo aconteceu.
Ora, é de
se imaginar como pode acontecer que pessoas como Adília e Mané Félix, até
alguns anos atrás vivendo na cidade ou nos arredores, tivessem suas presenças
praticamente ignoradas. Quase ninguém reconhecia os seus feitos, mostrava ódio
ou a devida valorização, se importava com nada que a eles dissesse respeito. Adília,
a mulher de Canário, talvez fosse vista apenas como aquela senhora alta, magra,
morena trigueira, de cabelo desgastado e escorrido, que morava ao lado da
cidade, lá no Alto de João Paulo.
Esta
morena trigueira, de rosto fino e olhar perdido noutros tempos, era de uma
simplicidade impressionante. Como de vez em quando a encontrava em minha casa,
proseando cozinha adentro com minha mãe, comecei a ter grande afeição por
aquela senhora. Meninote, ela brincava comigo, me colocava no colo, fazia
cafunés enquanto contava histórias. Não as cangaceiras, logicamente, mas do
papa-figo, do bicho-papão e outros bichos amedrontadores da infância.
E lá ia eu
atravessando o riachinho na sua companhia, em direção à sua moradia no Alto, no
outro lado do Riacho Jacaré. Estrada de chão, ela na frente e eu lançando o
olhar pelos descampados ao redor, avistando um ou outro passarinho. Ainda
existiam passarinhos naqueles caminhos. Lembro como se fosse hoje, e doce e
cativante memória, chegando diante da casa velha, de barro batido, sem nenhum
conforto digno para uma grande sertaneja, e contando com muitos filhos, todos
já adultos. Mas vivia praticamente sozinha.
Ali
passava tardes sob os seus cuidados, de vez em quando brincando com uma marca
que ela possuía numa das pernas. Só depois fiquei sabendo da bala inimiga
adentrando o osso e deixando a dolorosa recordação cangaceira. Um tiro, um
balaço, um açoite flamejante saído de dentro do mato e acertando a perna em
cheio. Por pouco não ficou aleijada. Mas a marca ainda estava lá, uma lembrança
na pele e no osso dos tempos idos.
Enquanto
gente desconhecida e pesquisadores vindos de muito distante chegavam para
conhecê-la e entrevistá-la, os seus conterrâneos quase nenhuma importância lhe
dedicavam. Mesmos os mais velhos, aqueles que conheciam toda a sua história,
não procuravam nada dizer aos mais jovens sobre a vivência daquela então
empobrecida mulher. E mais uma vez foi preciso que Alcino mostrasse ao povo a
sua importância. Não somente isso, mas principalmente possibilitando uma
sobrevivência com dignidade.
Com Sila
aconteceu diferente. Como a ex-cangaceira e companheira do também cangaceiro Zé
Sereno se bandeou para São Paulo após o fim das vinditas sangrentas, logo se
livrou de cair no rápido esquecimento perante os seus. De família numerosa em
Poço Redondo, também irmã dos ex-cangaceiros
Novo Tempo, Mergulhão e Marinheiro, ainda assim não estaria livre de ser
relegada no seu passado. Foi arriscar a vida e o reconhecimento em terras
distantes.
Na capital
paulista se fez conhecida, fez fama de bordadeira e costureira, teceu grandes
amizades com pesquisadores e escritores. De suas entrevistas nasceram livros,
dentre os quais “Sila, uma cangaceira de Lampião”, em parceria com Israel Orrico; “Gente de
Lampião: Sila e Zé Sereno”, de Antonio Amaury Correa de Araújo; bem como “Memórias de guerra e paz” e “Angico, eu
sobrevivi”, estes assinados como Ilda Ribeiro de Souza.
Suas
visitas à terra natal eram objeto de falatórios e curiosidades. Muito menos por
se tratar de uma ex-cangaceira e muito mais pelo seu jeito de se apresentar aos
conterrâneos. Sempre bem maquiada, cabelo pintado, com roupas bonitas e
vistosas, preservando, em outros moldes, a vaidade que foi tão peculiar aos
cangaceiros. Já Adília, que permaneceu nos quadrantes poço-redondenses lutando
pela sobrevivência, se sentia bem com o que possuía pra vestir e dava graças a
Deus por continuar vencendo as dificuldades.
Quem
avistasse Sila e nada conhecesse sobre seu passado, nem de longe imaginaria ser
uma ex-cangaceira, um dia vestida com roupa adornada de espinhos e perfumada
pelo suor das correrias caatinga adentro. Desse modo, os comentários eram mais
por curiosidade do que mesmo pelo que ela historicamente representava.
Ademais,
corria a boca miúda que ela tinha o hábito de falar mais do que sabia, de
inventar coisas que não havia vivenciado ou presenciado, num afã descomunal de
ganhar muito mais representatividade no bando de Lampião. Foi também acusada de
fazer afirmações contraditórias, dando constantes reviravoltas naquela
realidade. Contudo, no contrapeso da história, ainda prefiro acreditar no que
ela dizia, ainda que seja próprio de cada personagem colocar sobre si um pouco
mais de dramaticidade.
Nas suas
visitas a Poço Redondo, certamente que Sila procurava se avistar com Adília,
ex-companheira nas lides cangaceiras. Outro dia assisti a um vídeo onde as duas
proseavam, contavam causos daqueles tempos difíceis. Uma diferença
impressionante entre as duas. Uma sertaneja e outra com feição sulista, ainda
que de suas bocas saísse a mesma saga e os seus olhos ainda estivessem
espelhando o sertão da catingueira, da refrega, da incerteza, da correria.
E nas duas
os tempos difíceis de outrora. E tudo por amor não cangaço, que nem sabiam o
que verdadeiramente significava, mas ao cangaceiro. Por amor a Zé Sereno (ainda
que afirmasse ter sido raptada), por amor a Canário. Sila faleceu na capital
paulista em 15 de fevereiro de 2005, aos 86 anos; enquanto Adília faleceu em
Poço Redondo, no mês de março de 2002, aos 82 anos.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com