SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 31 de julho de 2013

A PEDRA, O GRÃO, O PÓ... E A VENTANIA (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Tudo, mas tudo mesmo, pode ser resumido nestes três elementos: pedra, grão e pó. E a ventania levando o pó para dizer que a pedra, por maior rochedo que tivesse sido, de repente pouca valia terá no destino.
A pedra representa a força, o poder, a dureza, a firmeza. A pedra é sólida, segura, forte. Do mesmo modo é o ser humano nas suas normais capacidades de existência. Tão firme que parece inquebrantável.
O grão, ou a pedra que é quebrada ou partida em pedaços menores, representa a fragilidade, a fraqueza, a inconsistência, a desestabilidade. O grão, fruto daquilo que já foi rochedo, demonstra bem a validade daquela famosa frase: Tudo que é sólido se desmancha no ar.
Igualmente a pedra, de repente o ser humano começa a se fragilizar, a perder sua força e potência, a sentir diminuída sua solidez, para se transformar apenas em pedaços dentro de um mesmo ser. Passa a sentir mais de perto o coração, a mente, o organismo.
O pó, a poeira ou a partícula, representa o resto do resto do resto. O grão, com o passar do tempo, vai se consumindo de tal modo que logo começa a se esfacelar, a perder o resto de suas forças, a não ter forças para manter sobre si aquilo que lhe permite existir. E então será apenas pó.
O ser humano caminha pelo mesmo percurso, eis que possui esse mesmo destino da pedra ao pó. A frase bíblica deixa induvidoso: Tu és pó e ao pó há de retornar. O rochedo, a pedra intacta, nada mais é que um acúmulo de pó sedimentado. Bem assim o homem, um acúmulo de grãos que se diluirão.
O homem é pedra, é forte, é impávido, e tudo suporta nesta condição. Mas o tempo vai corroendo o rochedo, a idade vai desabando a rocha, e não demora muito para que uma junção de pedras frágeis tome o seu corpo. E a corrosão da pedra leva ao desgaste de tudo, até que o que resta do corpo se transforme em pó.
O pó, pois, é a metáfora de muito que há na vida: o resto, o nada, o adeus, a fragilidade absoluta, a partida, o voo forçado, a despedida, a morte, a submissão ao querer daquilo que nenhum valor havia sido dado noutros tempos, quando ainda era rochedo: a ventania.
A ventania, neste percurso da pedra ao grão, passa a significar a força oculta, a energia do relegado, o que se manteve em silêncio até o momento do grito. A pedra pouca importância dava à sua existência, mas ela, a ventania, continuava passando e sentindo sua aspereza.
A pedra, certamente por se achar indestrutível, nem percebia que a ventania levava minúsculos grãos toda vez que por ali passava. Ao ser quebrada, repartida, fragilizada, sentiu que a ventania se transformava em poeira depois de cada passagem. E  que o tempo se encarregaria de entregar ao seu sopro aquilo que restou de cada grão.
Urge indagar: quem é mais forte, quem tem mais poder, quem é mais consistente, será o rochedo ou a ventania? Ou de outra forma perguntar: a pedra bruta não é infinitamente mais presente e poderosa que o vento? Alguém poderia dizer que a pedra possui existência, enquanto a ventania é apenas aparentemente percebida.
Neste caso, logicamente que a pedra seria muito mais forte e poderosa que qualquer ventania ou vendaval. Ainda que a força do vento chegue destruidora e vá arrastando a pedra para longe, ainda assim esta terá a mesma força e aparência onde for deixada.
Contudo, ouso afirmar que as forças e as fragilidades são iguais. Nem a pedra supera a ventania nem a ventania se sobrepõe ao rochedo. E é muito simples explicar. A ventania some no horizonte e num caminho que não haverá mais volta, e levando consigo o último pó daquilo que um dia foi rochedo.
E ali também o pó do homem. Não aquele que jaz sob a terra, assim transformado de seu rochedo, mas como metáfora de sua extrema fragilidade, de sua força de pluma em meio a todas as forças. Principalmente as forças do tempo, da idade, dos limites da vida.
E também o frágil peso do ser diante da Criação. Pois tudo infinitamente pó. Tudo eternamente na poeira do que passou. E tudo passa, tudo se transforma, do tudo ao nada.


Poeta e cronista
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A folha (Poesia)


A folha


Parece uma eternidade
mas desde minha infância
que permaneço à janela
esperando a folha de outono
e sua página amarelada
para escrever um poema
ou um bilhete de amor
e deixar que o vento leve
até outra janela adiante
que fica logo na esquina
onde meu amor espera
também desde a eternidade
minha confissão apaixonada

se amanhã a folha não vier
se amanhã a poesia morrer
se amanhã o vento passar
não sei se a nuvem suportará
o peso da minha angústia
esvoaçando triste pelo ar
uma folha que jaz sem amar.



Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 331


Rangel Alves da Costa*


“A mão trêmula...”.
“Vergonha de não saber escrever...”.
“Mas uma saudade danada...”.
“Uma aflição tormentosa...”.
“Coisa de amargar por dentro...”.
“E fazer lacrimejar...”.
“Então pega pena e papel...”.
“Senta-se à mesa tosca...”.
“E soluçando, com entristecimento danado...”.
“Começa a escrever a cartinha...”.
“Cartinha ou bilhete...”.
“Não sabe dizer bem o que é...”.
“Só sabe que são palavras...”.
“As mais verdadeiras...”.
“E todas saídas do coração...”.
“Então vai...”.
“Então rabisca...”.
“Então prossegue...”.
“Essas mal traçadas linhas...”.
“É só pra dizer que eu estou...”.
“Morrendo de saudades...”.
“Com recordação que me faz chorar...”.
“Em tempo de não suportar tanto sofrimento...”.
“Rezo todo dia para chegar logo...”.
“O momento de viajar...”.
“De chegar logo aí pertinho de você...”.
“Olhar bem nos olhos...”.
“Abraçar bem forte...”.
“E dizer um monte de coisas...”.
“Que venho guardando comigo...”.
“Agora não posso dizer não...”.
“Se eu disser perde a graça e o encanto...”.
“Mas vou adiantar apenas umas coisinhas...”.
“Coisas simples...”.
“Assim como lhe amo demais...”.
“Não consigo viver sem você...”.
“Não consigo mais...”.
“Não, isso não posso dizer não...”.
“Precisa que seja juntinho...”.
“Mas a gente vai ter tempo demais pra isso tudo...”.
“Assim que eu chegar...”.
“Precisamos resolver logo umas coisas...”.
“Vou levar o anel de compromisso...”.
“Não é todo de ouro não...”.
“Mas é tão bonito...”.
“Vou levar também uma radiola...”.
“Pequenininha, mas bonita que só...”.
“E também aqueles compactos...”.
“Que você gosta tanto...”.
“Lembra daquela música?”.
“Tens a beleza da rosa...”.
“Uma das flores mais formosas...”.
“Tu és a flor do meu lindo jardim...”.
“E eu a quero só para mim...”.
“Começa assim a música...”.
“Vamos ouvir só nós dois...”.
“Bem juntinhos...”.
“E espero que seja logo...”.
“Mas vou encerrando essa cartinha...”.
“Porque sinto que vou chorar...”.
“E não quero molhar essa folha...”.
“Que vai ser levada no vento...”.


Poeta e cronista
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terça-feira, 30 de julho de 2013

VOCÊ É UMA ILHA? (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Afirmam que toda ilha é uma ponta visível de uma montanha submersa. O ser humano enquanto ilha, seria o quanto ele se deixa aparente perante o mundo ao redor.
Richard Bach fez Fernão Capelo Gaivota voar sobre a ilha de nossas incertezas e frágeis sentimentos para mostrar que é preciso voar em busca de outras terras mais firmes.
J. M. Simmel já afirmou, literariamente, que ninguém é uma ilha. Afirmo diferente. Todo ser humano está propenso a estar ou ser isolado, um ilhéu.
O limite que cada um se põe é também o limite de sua ilha. Ninguém vai além daquilo que não tenha um cais de chegada e acolhida. E toda ilha possui sua margem de chegada.
Toda ilha distante, desconhecida, guarda em si um mistério. E não é muito diferente da situação do ser humano cercado por todos os lados.
Mas também ilha distante de tudo aquilo que a cerca. E igualmente ao ser humano que se coloca em redoma, num invólucro em si mesmo, para não ser alcançado.
Assim, duas possibilidades de ser ilha. Uma ínsula distantemente perdido num ponto qualquer, ou uma porção que se afasta cada vez mais daquilo que está ao redor.
Uma ilha de si para si e outra de fora para dentro; uma que não deseja ser visitada ou alcançada, e a outra esquecida pela dificuldade de se ter acesso.
Dizem que existe outro tipo de ilha. E esta no limite da água e da terra firme, com um passo dentro outro fora, bem ao modo daquele que se torna ilhéu por instantes.
Dependendo da situação, basta seguir o caminho das águas, ser ilha de si mesmo, ou preferir a terra firme para ser ilha diante das outras pessoas.
Às vezes me vejo tomado de temores em me transformar em ilha. Uma ilha cercada de mim mesmo por todos os lados.
E você, teme ser ilha ou vive em terra firme demais para pensar na solidão das distâncias azuis?
Ou você é realmente uma ilha e tudo faz para construir um barquinho de lua e flor e retornar para além do cais?
Talvez sua ilha seja existente e imensa, porém continua submersa esperando somente o instante em que você pretenda ser avistado como algo difícil de ser alcançado.
Ilhas existem que basta um só nado para serem alcançadas. Mas permanecem solitárias porque as águas ao redor são profundas demais para serem vencidas.
O barco nem sempre consegue chegar à ilha, o voo da gaivota nem sempre repousa na ilha, nem as ondas quebram na ilha. Como a pessoa, a ilha pode ser apenas miragem.
Se ainda não sou, certamente serei ilha. Todo ser humano é ou ainda será ilha. Não há como fugir de ser uma ínsula cercada pela solidão daqueles dias futuros.
O tempo, a idade, a caminhada, tudo sempre leva à beira do cais. O barco de partida não leva a nenhum outro lugar que não à ilha. Há uma ilha chamada velhice.
Mas não há que temer ou não a ilha. Você pode estar caminhando por ela e nem perceber. Somente quando tudo se afasta, vai ficando distante, chega a compreensão.  
Ser ilha, ou não, não é o problema. No céu da ínsula pode ter gaivotas, coqueirais podem estar espalhados ao redor, há uma rede e água fresca.
Ou mesmo que seja diferente, mais áspera e entristecida. Não se avista nada além do perdido olhar, as águas parecem adormecidas e solenemente tristes.
Tanto faz. A ilha não está na ilha senão em você mesmo, em mim e em cada um. A ínsula jamais estará distante do continente se não nos conhecemos como náufragos.
A ilha que chama o náufrago é aquela aonde não se chega através das águas. A terra firme vai minando as forças, formando abismo, inundações.
Não naufraga aquele cujas forças vão além das águas das desesperanças, das premeditadas angústias, dos sofrimentos trazidos para o convívio.
E saiba: é bem melhor ser uma pequena ilha a um continente. A ilha se reconhece; enquanto continente vai muito além de qualquer desejo de retornar.


Poeta e cronista
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Canto de amor (Poesia)


Canto de amor


Eis que o amor expressa
muito além de tudo
muito além da nudez
muito além do sexo
muito além do prazer
porque o amor é mais
muito além desse ter

nudez sem amor é corpo
sexo sem amor é troca
prazer sem amor é grão
sem amor o amor é nada
em tudo esse fingimento
face de outro sentimento
pensando  que o gostar
seja expressão de amar

eis que o amor que ama
é fogo oculto no coração
e no outro se faz chama
uma alegria na fiel doação.



Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 330


Rangel Alves da Costa*


“Num mundo de desvalia e desamor...”.
“De passagens e esquecimentos...”.
“Difícil falar em amor...”.
“O tal amor existe sim...”.
“Mas não o amor verdadeiro...”.
“E quase sempre aquele...”.
“Que ama apenas o momento...”.
“Ama apenas o corpo...”.
“Ama apenas o sexo...”.
“Ama apenas o gozo...”.
“Ama apenas virar de lado...”.
“E depois partir...”.
“Depois esquecer...”.
“Eis o espelho do mundo...”.
“Das grandes lições esquecidas...”.
“Das futilidades e nulidades...”.
“Dos absurdos e incoerências...”.
“E pensar que alguns...”.
“São tidos e chamados de loucos...”.
“Apenas e simplesmente por que...”.
“Rabiscam poemas pensando em alguém...”.
“Roubam a flor no jardim para entregar a alguém...”.
“Fazem serestas e serenatas...”.
“Oferecem frutas maduras ao amanhecer...”.
“Jogam um bilhetinho pela janela...”.
“Olham sem vícios e sem maldades...”.
“Avistam sem taras e sem transtornos...”.
“Enxergam com a pureza dos sentimentos...”.
“E fazem conhecer o que sentem...”.
“Não negam as esperanças tantas...”.
“Vivem sonhando em dia beijar...”.
“Abraçar, sentir, compartilhar...”.
“Ter a simples presença como essencial...”.
“Sentir o perfume e aroma...”.
“Declamar um verso de amor...”.
“E não se contentar com tanto amor no verso...”.
“E repetir mil vezes...”.
“Te amo, te amo, te amo...”.
“E mais ainda...”.
“Te amo, te amo, te amo...”.
“E repetiria pela eternidade...”.
“Pois incansável o amor...”.
“Até que da união...”.
“O destino conserve a aliança...”.
“Num pacto de vida e morte...”.
“Mas que jamais morrerá...”.
“No sentimento que preserva...”.
“A felicidade de viver o amor...”.
“Mesmo já não vivenciado em dois...”.
“Mas bastando um para expressar...”.
“O quanto inseparável é o sentir...”.
“Amado eternamente...”.
“E com a certeza...”.
“Que um dia estará de partida...”.
“Para o reencontro...”.
“E a comunhão eterna...”.
“Quando nem a morte...”.
“Jamais os separará...”.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 29 de julho de 2013

RUA DOS VAQUEIROS (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Coisa do progresso, da falta de responsabilidade com a história municipal, de descaso com suas raízes mais profundas, mas a verdade é que a juventude de minha querida Poço Redondo sequer sabe onde fica a Rua dos Vaqueiros. Mas os jovens não podem ser culpados por aquilo que não chegou a conhecer com esse nome.
Na verdade, ninguém realmente sabe qual a atual denominação da principal avenida da cidade, aquela que é seu portal de entrada e que segue até a Praça da Matriz, e em cujo percurso estão o fórum, a prefeitura municipal, o prédio da previdência social, escolas, órgãos estaduais, agência bancária e lojas. Além, logicamente, de muitas moradias de lado a outro.
Talvez achassem feio um logradouro municipal chamado Rua dos Vaqueiros e acabaram transformando aquela via num lugar sem nome. E sem nome porque já colocaram tantos nomes que hoje ninguém sabe mais como realmente deve ser identificada. Para se ter uma ideia, já foi Rua dos Vaqueiros, Rua de Baixo, Avenida 31 de Março, Avenida Poço Redondo e dizem que hoje se chama Avenida Alcino Alves Costa.
Por mais que fosse justa a homenagem prestada a Alcino, vez que ex-morador da avenida, adquirente do prédio da prefeitura quando administrador municipal e um dos filhos mais ilustres do município, o tributo à sua memória deveria ser feito em outro lugar ou de outra forma. Ora, depois de tantas denominações, dificilmente alguém vai lembrar que ali agora é Avenida Alcino Alves Costa. Igualmente fizeram quando mudaram o nome para Avenida Poço Redondo. Só chamavam de Rua de Baixo ou de Avenida 31 de Março. E muitos continuam chamando assim. Impossível mudar.
Ademais, aquela via sempre foi diferente, difícil de entendê-la. Chamavam de Rua de Baixo quando se situa na parte mais elevada da cidade. E a Rua de Cima fica lá embaixo, na direção do riachinho. Dá pra entender? E de rua foi elevada, num passe de mágica, à condição de avenida. Bastou que um canteiro fosse construído numa de suas extremidades e logo foi alçada a tal condição. Mas, repito, continua como Rua de Baixo para a maioria dos habitantes.
Contudo, jamais deveria ter deixado de ser Rua dos Vaqueiros, e pelo simples fato de que ali era uma rua de vaqueiros mesmo, com moradores que não faziam outra coisa que não montar em cavalo para pegar boi brabo, tanger boiadas sertão adentro, cavalgar debaixo do sol e da lua no ofício da vaqueirama. Homens encourados, cabras destemidos, chegavam todos lanhados, cansados, sangrando, mas sem deixar trabalho pela metade nem para outro dia.
Vaqueiros de nomeada, de fama, de reconhecimento por todo o sertão. Ali na rua moravam Mané Cante, Abdias, Tião de Sinhá e tantos outros. Lado a lado, casa a casa com sertanejos da roça, do trabalho na terra e com o gado, como pequeno ou mediano proprietário, gente como Bastião Joaquim, Mané Joaquim, Neguinho, Né Cirilo, Ireno, Liberato. Tudo sertanejo de raiz e garrancho.
Mané Cante foi o maior vaqueiro da região, sendo Abdias o mais famoso. E sua fama se deve principalmente ao fato de ser o ajudante-mor, o comandante dos outros vaqueiros no célebre roubo das urnas praticado por Zé de Julião, então candidato a prefeito. Revoltado com a situação de injustiça imposta ao amigo ex-cangaceiro, Abdias arregimentou a vaqueirama amiga e juntos, montados nos melhores cavalos, invadiram seções eleitorais na sede municipal e no povoado Bonsucesso.
Ainda alcancei, tempos depois, e com imenso prazer sertanejo, grande parte dessa turma em cotidiana reunião no barzinho pertencente a Né Cirilo, o Pai Né (meu tio, esposo de Dona Tila), ali mesmo na avenida, ou Rua dos Vaqueiros. Era encontro regado a aguardente com casca de pau, a umbu verdoso, perna de preá assada ou qualquer coisa que servisse para diminuir a ardência do angico, da umburana, da lasca de raiz apurada. Era uma talagada e um causo de sarapantar.
Era um prazer indescritível ver chegar vaqueiros da estirpe de Chico de Celina e outros sertanejos cheirando a terra como Messias de Zé Vicente, Humberto, João Paulo, Rivaldo, Galego, Manezinho, Mané Vítor e tantos outros Vítor. Até a matriarca, a velha e fogosa Alzira, de vez em quando aparecia para molhar o bico. Mulher sem igual, líder maior de uma família que nasceu para o pífano e para o leilão apimentado com forró pé-de-serra.
A maioria dos grandes vaqueiros já partiu noutra jornada. Tange boiada entre as estrelas no sertão lá do céu. Mas a fama ficou e o reconhecimento deveria também ficar. Por isso que aquela via, seja rua ou avenida, sempre será deles, dos vaqueiros. E não há nada mais sublime do que uma cidade que preserva e reconhece o valor daqueles que foram tão importantes na sua formação.
Ademais, o velho vaqueiro não é só aquele que um dia zelou pelo gado, mas também todo aquele que abriu a porteira para Poço Redondo passar e encontrar seu destino. Daí que merecia muito mais, mas ao menos que deixem uma rua como recordação e homenagem: Rua dos Vaqueiros.


Poeta e cronista
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Lembrança do sertão (Poesia)


Lembrança do sertão


O sol veio na noite
na lembrança do sertão
depois do entardecer
o fogo vermelho na nuvem
parece aquele por do sol
derretendo o resto do dia
para trazer um luarar
que desce além da serra
e vai espalhando na noite
mistério dourado e fantasia
para encher de alegria
o olhar terno de desejo
e dar um possível alento
ao povo e seu sofrimento
assim chega minha noite
trazendo tantas lembrança
dos caminhos sertanejos
e seus encantados dias
entrecortando a estrada
com as dores e as agonias.



Rangel Alves da Costa


PALAVRAS SILENCIOSAS – 329


Rangel Alves da Costa*


“A vida é percurso e seus momentos...”.
“Desde o nascimento à morte...”.
“Desde a criança à velhice mais velha...”.
“Criança que chora...”.
“Que balança no berço...”.
“Que angelicalmente adormece...”.
“O alimento no peito...”.
“O mingau, a papinha...”.
“E os esvoaçamentos...”.
“Querendo crescer...”.
“E depois o menino...”.
“A beleza da inocência...”.
“A diversão e a brincadeira...”.
“O jogo de esconder...”.
“A bolha azul de sabão...”.
“O carrinho de plástico...”.
“A bola chutada em vidraça...”.
“Tanto mundo a viver...”.
“E chega o adolescente...”.
“Querendo ser gente grande...”.
“Já fazendo planos...”.
“Procurando reinventar a vida...”.
“Com suas experiências...”.
“Suas alegrias e seus dilemas...”.
“Os primeiros encontros...”.
“Os primeiros amores...”.
“A poesia rabiscada...”.
“Uma fértil paixão no coração...”.
“Arriscar demais...”.
“E perigosamente arriscar...”.
“Pois chega o adulto...”.
“Pedindo passagem a tudo...”.
“Querendo ser demais...”.
“E fazer muito mais...”.
“Dono do mundo e da vida...”.
“Mas refreado nos planos...”.
“Pelas dificuldades surgidas...”.
“Tem de mostrar responsabilidade...”.
“Tem de trabalhar...”.
“Tem de se mostrar o melhor...”.
“Tem de vencer todas as lutas...”.
“E também vencer o cansaço...”.
“Cuidar da família...”.
“Planejar a velhice...”.
“Com medo que ela não venha...”.
“Mas ela não tarda a chegar...”.
“Já traz consigo o cansaço dos anos...”.
“As revoltas e indignações...”.
“Mas também a experiência e a sabedoria...”.
“E a certeza que nesse tempo...”.
“Um tempo de outono e folha seca...”.
“Logo virá a ventania...”.
“Aquele inevitável sopro...”.
“Que inesperadamente chega...”.
“Para deixar o jardim desfolhado...”.
“E o pomar sem vida...”.
“Na vida que se vai...”.
“Para cumprir o Eclesiastes...”.
“Pois há um tempo para tudo...”.
“Tempo de nascer...”.
“E tempo de morrer...”.


Poeta e cronista
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domingo, 28 de julho de 2013

ONDE SOU IMPORTANTE (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


É em Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, ou simplesmente Poço Redondo, onde sou verdadeiramente importante. Não porque eu seja diferente de qualquer pessoa, seja mais respeitado que qualquer cidadão. Pelo contrário. Minha importância está na igualdade com todo mundo.
Porque sou igual a todo e qualquer conterrâneo é que me sinto no direito de ser reconhecido e respeitado, ser visto e valorizado. Porque também respeito e valorizo. Daí o reconhecimento de minha importância diante daqueles que não se diferenciam uns dos outros. Queiram ou não, são todos iguais. Desejemos ou não, somos em tudo semelhantes.
Porque somos o espelho do espelho do espelho. Reflexo que vem de outros tempos e que nos faz com a mesma feição. Apenas a moldura parece ter outra aparência para um retrato que é sempre o mesmo. E colocado na parede única desse imenso sertão.
Sou filho do mesmo sol e da mesma lua; prole da mesma distância e da mesma imensidão; gênese do mesmo destino dado por Deus aos outros que vieram antes ou depois de mim. Por isso sou eu, sou todos e cada um. E não há condição social que possa fazer distinção entre aqueles que vieram do mesmo cordão umbilical da terra sertaneja.
E a igualdade em tudo. Filhos da mesma terra, nascidos no mesmo berço árido do sertão, aprendendo a caminhar pelo mesmo chão. Pele curtida do mesmo sol, sangue fervente da mesma seca, esperança própria de qualquer sertanejo. E mais: Irmãos de mesmo destino, pois tudo que há na - e com - a terra é ressentido igualmente pelos seus filhos.
Tenho uma gravata e também um chapéu de couro; tenho um sapato e uma chinela de cortar chão; tenho uma agenda, mas também tenho um embornal de caçador e um cantil de matar a sede. E o que não tenho, possuo no meu conterrâneo, pois nele o que lhe é próprio e também de todos. Assim, o que sou é pelo que somos, e o tudo que somos está em cada um e todos nós.
Por isso sou tão importante. E sou ainda mais importante porque possuo reinado e coroa. Não troco minha cabeça-de-frade pelo cetro mais reluzente; não troco meu rincão de nascimento pelo castelo encantado; não troco minha condição sertaneja por qualquer paraíso artificial. Porque sou importante e feliz demais para me deixar viver além do que sou e daquilo que tenho.
Alguém duvida dessa importância? Haverá importância, reconhecimento e valorização maiores que sentir que a sua terra lhe abraça, a sua natureza abriga, o seu povo acolhe com palavra e afeto? Haverá maior satisfação que estar entre a família e o irmão? Tudo isso transmite uma importância tamanha que nos sentimos escolhidos a reinar sobre a terra.
Triste daquele que se amesquinha diante da grandiosidade; pobre daquele que lamenta o tanto ter como se pouco ou nada tivesse; frágil espírito imaginar que está ou vive esquecido quando seu coração clama por gritar de prazer pelo reconhecimento da vida. E tal tristeza, pobreza ou fragilidade não há naquele que se reconhece importante pelo que é, e sem ter de inventar o que não é para ser feliz.
Meu sobrenome está em tantos sobrenomes espalhados por todo lugar. Desde o Poço de Cima ao Poço de Baixo, pelos seus quadrantes e fronteiras. Alves que também é Marques, Cirilo, Florêncio, Sousa, Firmino, Santos, Rosa, Gomes. Costa que também é Santana, Vieira, Góis, Brito, Félix, Vítor, Saturnino. E todos os nomes e sobrenomes sertanejos.
Cito um trecho de um belíssimo poema de Fernando Pessoa (sob heterônimo de Alberto Caeiro) que expressa essa medida que temos perante o que somos. Diz:
“Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo.../ Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer/ Porque eu sou do tamanho do que vejo/ E não do tamanho da minha altura...”.
E como somos imensos!


Poeta e cronista
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A flor do amor (Poesia)


A flor do amor


A flor
ali uma flor
reconheço ao longe
a feição da flor
e sinto o aroma
perfume e essência
e até os espinhos
na haste da flor

aprendi no amor
a reconhecer a vida
sentir imenso prazer
ter a felicidade
sem necessariamente
estar amando
porque um dia amei
e conheço bem
seu lindo buquê.


Rangel Alves da Costa


PALAVRAS SILENCIOSAS – 328


Rangel Alves da Costa*


“Um dia aprendi...”.
“Uma receita de tristeza boa...”.
“Isso mesmo, tristeza boa...”.
“Que é aquela tristeza...”.
“Que dói sem machucar...”.
“Entristece, mas não dilacera...”.
“Atormenta, mas não faz sangrar...”.
“Ainda hoje guardo no caderninho...”.
“Bem escondidinho...”.
“Que é para entristecer um pouquinho...”.
“Quando eu tiver vontade...”.
“Quando eu quiser fugir da falsa alegria...”.
“E do contentamento sem razão de ser...”.
“Quer aprender?”
“Mas antes tenho a dizer...”.
“Que ela só pode ser usada em momentos especiais...”.
“Assim como ao entardecer...”.
“Quando estiver chovendo...”.
“Quando a brisa estiver segredando...”.
“Quando a solidão visitar...”.
“Quando tudo estiver silencioso...”.
“Tudo com aquela aparência...”.
“Sombria e nebulosa...”.
“De O Morro dos Ventos Uivantes...”.
“Quer aprender assim mesmo?”.
“Então anote aí...”.
“Coloque uma música clássica na vitrola...”.
“Som baixinho, quase um diálogo das folhas...”.
“Quase como um barco lentamente singrando...”.
“Abra a janela...”.
“Mire o entardecer...”.
“Ou sinta a chuva caindo...”.
“Ouça a voz do silêncio...”.
“Os murmúrios e sussurros...”.
“Feche os olhos, sinta-se em viagem...”.
“Pouse, repouse ao lado do ninho...”.
“Você é quase um passarinho...”.
“Porém solitário e triste...”.
“Sinta que o seu coração aperta...”.
“Seus olhos marejam...”.
“Mas ainda assim...”.
“Você tem forças...”.
“Para olhar a fotografia...”.
“Para reler o bilhete...”.
“Para sentir o perfume num lenço guardado...”.
“Para lembrar a feição...”.
“Lembrar-se do último beijo...”.
“Do último adeus...”.
“E do trem partindo...”.
“E o trem apitando, fumaçando...”.
“E sumindo ao longe...”.
“E você de lenço à mão...”.
“Sem saber o que fazer...”.
“E tudo será tanta saudade...”.
“Tanta vontade de um reencontro...”.
“Para confessar o verdadeiro amor...”.
“E a noite avança...”.
“A tristeza avança...”.
“Então cuidado...”.
“Pois esqueci o que a receita diz...”.
“Para voltar à realidade...”.


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sábado, 27 de julho de 2013

OS ESQUECIDOS (MEMÓRIA E VIDA DEPOIS DO CANGAÇO) - V



Rangel Alves da Costa*


Logicamente que nem todos foram degredados da memória quando já falecidos ou ainda em vida. Dependendo da propensão histórica e cultural de cada povo, muitos daqueles personagens da saga lampiônica ainda continuam relembrados, e até festejados, perante o que historicamente representaram. Mas não posso falar desse contexto geral, pois não conheço a representatividade que cada um toma na vida de seus conterrâneos.
Por isso mesmo me volto apenas para o microcosmo poço-redondense, na abordagem feita acerca do tratamento dispensado àqueles sertanejos oriundos do bando ou dos arredores de Lampião, e que eram filhos de Poço Redondo, município fincado nas bandas sergipanas do sertão do São Francisco. A mesma povoação sertaneja onde a 28 de julho de 38, na Gruta do Angico, Lampião flamejou pela última vez. Segundo a doutrina da morte, contrariando àquela da eternidade.
Como citado, enquanto povoação - para não se cometer o erro de regionalizar o arruado sertanejo -, Poço Redondo cedeu mais de duas dezenas de filhos seus ao bando do Capitão, bem como coiteiros e outros habitantes que tiveram uma relação de bastante aproximação com o mundo cangaceiro de então. Pelo grande número de meninos e meninas, rapazotes e mocinhas que enveredaram pelas veredas hostis, o mínimo que se esperava é que estes fossem mais reconhecidos pelos seus feitos.
Não significa que todos tenham de festejar a memória de um ex-cangaceiro, reverenciá-lo em pedestal ou mitificá-lo a ponto de lhe imputar poderes inexistentes, mas também não se deve, de forma gratuita, alijá-lo da história municipal. Queira ou não, aceite ou não, o retrato de cada um já está devidamente exposto na parede da história. Ademais, e sem medo de errar, afirmo que Poço Redondo só é reconhecido mundialmente pelo que o cangaço significou na sua vida.
Mas tudo insiste em acontecer diferente naquele lugar. Mesmo o evento maior do cangaço tendo acontecido nas terras da povoação, nas barrancas do Velho Chico, coisa de apenas alguns quilômetros da sede até lá, pouca importância se dá à Gruta de Angico, à história cangaceira, aos seus filhos que no passado estiveram nos palcos das batalhas sangrentas sertões adentro. Quer dizer, aprenderam a história dos outros, dos acontecidos muito distantes, mas não procuraram valorizar a própria história, aquela vivenciada nos seus quadrantes.
Se não fosse a persistência de Alcino, por ele mesmo intitulado “O Caipira de Poço Redondo”, que insistente e fervorosamente mostrou para o mundo o percurso da saga cangaceira na região e desencavou do esquecimento a própria história do município, certamente que até hoje quase nada se conhecia sobre Zé de Julião, o Cajazeira no bando de Lampião, nem sobre Adília, Sila, Enedina, o coiteiro Mané Félix e tantos outros. Isto no contexto de Poço Redondo, pois outros autores já haviam cuidado de tais personagens em seus livros. Parece contraditório, mas assim mesmo aconteceu.
Ora, é de se imaginar como pode acontecer que pessoas como Adília e Mané Félix, até alguns anos atrás vivendo na cidade ou nos arredores, tivessem suas presenças praticamente ignoradas. Quase ninguém reconhecia os seus feitos, mostrava ódio ou a devida valorização, se importava com nada que a eles dissesse respeito. Adília, a mulher de Canário, talvez fosse vista apenas como aquela senhora alta, magra, morena trigueira, de cabelo desgastado e escorrido, que morava ao lado da cidade, lá no Alto de João Paulo.
Esta morena trigueira, de rosto fino e olhar perdido noutros tempos, era de uma simplicidade impressionante. Como de vez em quando a encontrava em minha casa, proseando cozinha adentro com minha mãe, comecei a ter grande afeição por aquela senhora. Meninote, ela brincava comigo, me colocava no colo, fazia cafunés enquanto contava histórias. Não as cangaceiras, logicamente, mas do papa-figo, do bicho-papão e outros bichos amedrontadores da infância.
E lá ia eu atravessando o riachinho na sua companhia, em direção à sua moradia no Alto, no outro lado do Riacho Jacaré. Estrada de chão, ela na frente e eu lançando o olhar pelos descampados ao redor, avistando um ou outro passarinho. Ainda existiam passarinhos naqueles caminhos. Lembro como se fosse hoje, e doce e cativante memória, chegando diante da casa velha, de barro batido, sem nenhum conforto digno para uma grande sertaneja, e contando com muitos filhos, todos já adultos. Mas vivia praticamente sozinha.
Ali passava tardes sob os seus cuidados, de vez em quando brincando com uma marca que ela possuía numa das pernas. Só depois fiquei sabendo da bala inimiga adentrando o osso e deixando a dolorosa recordação cangaceira. Um tiro, um balaço, um açoite flamejante saído de dentro do mato e acertando a perna em cheio. Por pouco não ficou aleijada. Mas a marca ainda estava lá, uma lembrança na pele e no osso dos tempos idos.
Enquanto gente desconhecida e pesquisadores vindos de muito distante chegavam para conhecê-la e entrevistá-la, os seus conterrâneos quase nenhuma importância lhe dedicavam. Mesmos os mais velhos, aqueles que conheciam toda a sua história, não procuravam nada dizer aos mais jovens sobre a vivência daquela então empobrecida mulher. E mais uma vez foi preciso que Alcino mostrasse ao povo a sua importância. Não somente isso, mas principalmente possibilitando uma sobrevivência com dignidade.
Com Sila aconteceu diferente. Como a ex-cangaceira e companheira do também cangaceiro Zé Sereno se bandeou para São Paulo após o fim das vinditas sangrentas, logo se livrou de cair no rápido esquecimento perante os seus. De família numerosa em Poço Redondo, também irmã dos ex-cangaceiros  Novo Tempo, Mergulhão e Marinheiro, ainda assim não estaria livre de ser relegada no seu passado. Foi arriscar a vida e o reconhecimento em terras distantes.
Na capital paulista se fez conhecida, fez fama de bordadeira e costureira, teceu grandes amizades com pesquisadores e escritores. De suas entrevistas nasceram livros, dentre os quais “Sila, uma cangaceira de Lampião”,  em parceria com Israel Orrico; “Gente de Lampião: Sila e Zé Sereno”, de Antonio Amaury Correa de Araújo; bem como  “Memórias de guerra e paz” e “Angico, eu sobrevivi”, estes assinados como Ilda Ribeiro de Souza.
Suas visitas à terra natal eram objeto de falatórios e curiosidades. Muito menos por se tratar de uma ex-cangaceira e muito mais pelo seu jeito de se apresentar aos conterrâneos. Sempre bem maquiada, cabelo pintado, com roupas bonitas e vistosas, preservando, em outros moldes, a vaidade que foi tão peculiar aos cangaceiros. Já Adília, que permaneceu nos quadrantes poço-redondenses lutando pela sobrevivência, se sentia bem com o que possuía pra vestir e dava graças a Deus por continuar vencendo as dificuldades.
Quem avistasse Sila e nada conhecesse sobre seu passado, nem de longe imaginaria ser uma ex-cangaceira, um dia vestida com roupa adornada de espinhos e perfumada pelo suor das correrias caatinga adentro. Desse modo, os comentários eram mais por curiosidade do que mesmo pelo que ela historicamente representava.
Ademais, corria a boca miúda que ela tinha o hábito de falar mais do que sabia, de inventar coisas que não havia vivenciado ou presenciado, num afã descomunal de ganhar muito mais representatividade no bando de Lampião. Foi também acusada de fazer afirmações contraditórias, dando constantes reviravoltas naquela realidade. Contudo, no contrapeso da história, ainda prefiro acreditar no que ela dizia, ainda que seja próprio de cada personagem colocar sobre si um pouco mais de dramaticidade.
Nas suas visitas a Poço Redondo, certamente que Sila procurava se avistar com Adília, ex-companheira nas lides cangaceiras. Outro dia assisti a um vídeo onde as duas proseavam, contavam causos daqueles tempos difíceis. Uma diferença impressionante entre as duas. Uma sertaneja e outra com feição sulista, ainda que de suas bocas saísse a mesma saga e os seus olhos ainda estivessem espelhando o sertão da catingueira, da refrega, da incerteza, da correria.
E nas duas os tempos difíceis de outrora. E tudo por amor não cangaço, que nem sabiam o que verdadeiramente significava, mas ao cangaceiro. Por amor a Zé Sereno (ainda que afirmasse ter sido raptada), por amor a Canário. Sila faleceu na capital paulista em 15 de fevereiro de 2005, aos 86 anos; enquanto Adília faleceu em Poço Redondo, no mês de março de 2002, aos 82 anos.


Poeta e cronista
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Nosso caminho (Poesia)


Nosso caminho



Um retrato na memória
um olhar no meu espelho
uma saudade que é sua
um amor que será nosso
eis que a distância de agora
nada será se nosso passo
quiser caminhar um dia
até a metade do caminho
que cada um caminhou

a parte que cabe a cada um
se quiser o outro encontrar
uma distância inexistente
se é pelo amor o caminhar.



Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 327


Rangel Alves da Costa*


“Uma sede...”.
“Um pote...”.
“Uma enchente...”.
“Um bote...”.
“Uma porção...”.
“Um pacote...”.
“Uma criação...”.
“Um magote...”.
“Um retrato...”.
“Uma idade...”.
“Uma mentira...”.
“Uma verdade...”.
“Uma aleivosia...”.
“Uma sinceridade...”.
“Um abandono...”.
“Uma piedade...”.
“Uma ação...”.
“Uma desumanidade...”.
“Uma lembrança...”.
“Uma saudade...”.
“Um caminho...”.
“Uma estrada...”.
“Um destino...”.
“Uma jornada...”.
“Uma altura...”.
“Uma escada...”.
“Um presságio...”.
“Uma encruzilhada...”.
“Uma partida...”.
“Uma chegada...”.
“Um trovão...”.
“Uma invernada...”.
“Um encontro...”.
“Um abraço...”.
“Uma pressa...”.
“Um passo...”.
“Um nó...”.
“Um laço...”.
“Um colo...”.
“Um regaço...”.
“Um ferro...”.
“Um aço...”.
“Um nascer...”.
“Uma vida...”.
“Um adeus...”.
“Uma despedida...”.
“Uma porta...”.
“Uma saída...”.
“Um mar...”.
“Um navegar...”.
“Um olhar...”.
“Um chorar...”.
“Um vendaval...”.
“Uma naufragar...”.
“Uma luta...”.
“Um aportar...”.
“Um cais...”.
“Um retornar...”.
“Tudo vivido...”.
“E que viverá...”.


Poeta e cronista
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sexta-feira, 26 de julho de 2013

OS ESQUECIDOS (MEMÓRIA E VIDA DEPOIS DO CANGAÇO) - IV


Rangel Alves da Costa*


Não apenas Zé de Julião, mas muitos outros também permaneceram no esquecimento, e mesmo estando em plena convivência com os desmemoriados. Mané Félix foi um destes. Ex-coiteiro e dileto e confiado amigo do Capitão é um exemplo clássico de desconsideração a um passado tão dramático. E dramaticidade construída na vida tão perigosa que levava para servir ao mundo cangaceiro, ainda que não fizesse parte do grupo e fosse trabalho feito apenas quando o bando estava nas redondezas.
Contudo, representava o próprio cangaço com sua ação como fiel emissário, transportador de mantimentos, confidente e guardião de muitos segredos, principalmente da localização do coito. Daí que corria risco demais acaso se deparasse, numa daquelas veredas ou nas povoações, com a volante perseguidora. E era praxe da polícia torturar qualquer um que imaginasse ter ligação com os da caatinga. Assim fez com muita gente inocente e com muito coiteiro, chegando até a matar.
E certamente Mané Félix sentiu na pele esse temor. Ora, seria desonra maior não servir a contento seu amigo Capitão ou colocar em perigo aqueles de quem havia recebido máxima confiança. Porém fatos de nenhuma valia nos novos tempos. Ademais, era um simples ex-coiteiro e não podia esperar muito daqueles que ignoravam os próprios conterrâneos que fizeram parte do bando.
Talvez tivesse seu percurso ignorado até mesmo pelos moradores de mesma rua. E os mais velhos, que sabiam e não podiam negar aquela vida de durezas, simplesmente se faziam de deslembrados. Foi preciso que Alcino alçasse aquela figura humana ao panteão da história local para que suas façanhas fossem, enfim, conhecidas. Assim mesmo numa luta titânica para manter acesa a chama da história municipal, vez que quase sempre sem a almejada resposta.
Alcino sabia - e muitos outros pesquisadores souberam - das corajosas façanhas deste audaz e corajoso ribeirinho, morador nos tempos idos das redondezas da Gruta do Angico, e que cortava difíceis veredas, vencendo penhascos e brigando com espinhos, para que nada faltasse aos amigos cangaceiros. Porém, fama durante a luta, da refrega, das vinditas sertanejas, pois o passar dos anos o transformaria - pela ingratidão da falta de reconhecimento - apenas em mais um sertanejo, um velho e alquebrado sertanejo. E creio que não deveria ser assim.
Reconheço e também me culpabilizo. Reconheço e agora posso dizer num tom de lamentação, que bem poderia me fazer presença constante naquele coito de canto de rua, conversando, dialogando sobre a vida nos tempos idos. Admito, porém, que o estudo na cidade grande dolorosamente me afastou daquelas essenciais raízes sertanejas. Também, muito jovem, ainda não tinha herdado de meu pai o interesse pela instigante saga matuta. 
Mané Félix era muito amigo de meu pai, Alcino, e de vez em quando o encontrava na sala da frente de minha casa com o seu jeito calmo e humilde, nem de longe parecendo o rapazote cúmplice do cangaço e mensageiro a serviço “del-Rei”. Era outro homem, apenas um sertanejo. Mas também vivendo outra realidade. Bem diferente daquela em que vencia bote de cobra e ponta de pedra para entregar a munição ou a carne de bode ao bando refugiado adiante. De vez em quando atravessava o rio e seguia até Piranhas para adquirir mantimentos.
Nas vezes que eu o encontrava, logo percebia a lucidez daqueles que jamais esquecem um passado tão marcante, intrépido e perigoso. Se alguma tristeza o acometia, creio que não pelas aventuras passadas, e sim por haver se mudado de sua beira de rio, de seu Cajueiro, para a sede municipal e ali ficar distante daquele cenário e paisagens que tão bem conhecia, vereda a vereda, cada pedra e cada espinho. Mas tenho certeza que nenhuma mágoa guardava pelo descaso daqueles que o rodeavam.
Leio escritos dando conta que em outros lugares grandes homenagens são prestadas aos seus, reconhecidos ou não como heróis, mas pelo simples fato de terem feito parte do ciclo cangaceiro. Tanto faz que tenham sido do bando, coiteiro ou que estivessem do outro lado, na volante perseguidora. Eventos são realizados, biografias publicadas, os nomes preservados para a posteridade. E em Poço Redondo, a não ser por iniciativa de Alcino, nada disso jamais aconteceu.
Aliás, se não fosse Alcino até a história do município - como também da vizinha Canindé do São Francisco - estaria relegada ao esquecimento. Através de seus estudos e pesquisas, de suas investigações de campo e entrevistas, bem como de seus livros publicados, foi possível que as novas gerações tomassem conhecimento da saga de seu berço de nascimento, dos meandros políticos e da vida de alguns de seus filhos ilustres. E também através dele Poço Redondo passou a ter a devida valorização no contexto do cangaço.
A própria Gruta do Angico talvez seja o exemplo maior da desvalorização - ou até mesmo negação - do passado. Mesmo fincada nas terras do município, lugar de reconhecida e fundamental importância histórica, ainda assim é como se nem existisse no contexto da cultura e da história municipal. O famoso Poço Redondo de tantos cabras valentes, de refúgio e repouso para o Capitão, e também o seu leito de morte, acaba tendo importância apenas externa, nos livros, nos comentários.
Quem não tem nada que represente ou diga respeito ao cangaço, ainda assim induz uma forma de homenageá-lo, de cultuá-lo, tirar algum proveito turístico. Diferente do que ocorre com Poço Redondo, aonde a apatia histórica e cultural chega a ser repulsiva, vergonhosa. O sedento pesquisador que chegar por lá terá de se contentar em fotografar a pracinha Lampião. Um arremedo de homenagem. Até parece que Angico fica nas terras da vizinha Canindé ou no outro lado do rio, em Piranhas.
Quando administrador municipal (em três gestões), Alcino abriu os caminhos de Angico para os estudiosos e pesquisadores, tirou das brenhas matutas os personagens ainda viventes naquela região, procurou a todo custo viabilizar o local como destino turístico. Mas sempre foi impedido pela forte oposição que sempre fazia às lideranças políticas estaduais, principalmente os governantes. Daí não ter conseguido construir um museu ou mesmo um memorial da história sertaneja.
Contudo, depois dele, com suas pesquisas e seus livros, nada mais se fez. Do final da década de 80 para cá não se verificou uma só iniciativa da administração municipal no sentido de transformar a Gruta de Angico em cenário de destaque nacional, de valorizá-la, de torná-la um patrimônio de seu povo, de viabilizá-la na sua potencialidade turística. Ademais, são completamente estranhas à administração municipal as mínimas iniciativas de valorização daquele lugar historicamente tido como o último refúgio do bando de Lampião, pois ali chacinado junto com sua Maria Bonita e mais nove cangaceiros.
Continua...


Poeta e cronista
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Amor semeado (Poesia)


Amor semeado


Um olhar
uma flor
um beijo
um adeus
é tão triste
amar assim

quem dera
um grão
um chão
no coração
e semear
outro amar

quem dera
o brotar
o colher
a certeza
de ter a flor
do amor.



Rangel Alves da Costa


PALAVRAS SILENCIOSAS – 326


Rangel Alves da Costa*


“Tenho sorte na vida...”.
“É tão lindo o viver...”.
“Tenho a cor...”.
“Tenho a luz...”.
“Tenho o pão...”.
“Tenho o passo...”.
“Olho do lado e vejo o sofrer...”.
“A cegueira...”.
“A doença...”.
“A fome...”.
“O abandono...”.
“O tanto padecer...”.
“E tão diferente é o meu viver...”.
“Pois tenho a ciência...”.
“Tenho a sabedoria...”.
“Tenho escrita e leitura...”.
“Consciência e crítica...”.
“Digo não quando quero dizer...”.
“Faço o que quero fazer...”.
“Mas olho de lado e tão diferente...”.
“A submissão...”.
“As trevas na vida...”.
“O escravo sem corrente à mão...”.
“A ignorância imperando em tudo...”.
“Um povo tangido...”.
“Um povo levado ao curral...”.
“E tão diferente é o que posso fazer...”.
“Sou liberto...”.
“Posso sair e chegar...”.
“Sei escolher e também renegar...”.
“Respondo na mesma altura...”.
“Contraponho à mentira...”.
“E reafirmo a verdade...”.
“E tão diferente no que está ao meu lado...”.
“O resto, do resto, do resto...”.
“Humaniza vida sem humano ser...”.
“Pois submetido a toda injustiça...”.
“Sentenciado pela condição social...”.
“Mas sem voz, sem grito, sem nada...”.
“Prisioneiro de onde estiver...”.
“Um réu sem crime algum...”.
“Apenas pela vida, apenas pela cor...”.
“Apenas pela roupa, apenas...”.
“Mas não sei até onde...”.
“A liberdade me abraça...”.
“Até onde posso velar meu direito...”.
“Até me sinto seguro...”.
“De existir e pensar que existo...”.
“Pois me chegam ameaças veladas...”.
“Na rosa sumida na noite...”.
“No cachorro latindo de susto...”.
“Na porta aberta na calada da noite...”.
“No imposto e no tributo...”.
“No preço, no valor, na exorbitância...”.
“No pão, no café, no açúcar...”.
“Não sei mais o que sou...”.
“Ou se sou como o outro...”.
“Que pensei diferente...”.
“Mas que se apossa de mim...”.


Poeta e cronista
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