SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

VÉSPERA DE CARNAVAL: VIAJAR, BRINCAR OU REPOUSAR?


Rangel Alves da Costa*


Carnaval é o evento mais festejado do calendário nacional. Não é por menos que as escolas de samba trabalham incansavelmente o ano inteiro à espera do momento mágico do desfile, e coisa rápida para a grandiosidade de cada agremiação. Por isso mesmo ter gente que respira carnaval durante todo o percurso do ano.
Contudo, a maioria é formada por profissionais dos barracões, por uma gente que vive disso e pra isso. Outra parte, principalmente aquela formada por pessoas das comunidades onde as escolas possuem seus berços, sente o coração pulsar mais forte neste período, e ainda mais quando defenderá na avenida o estandarte de sua escola.
Mas nem todos vivem nas capitais onde as escolas de samba comandam a folia carnavalesca. Espalhados pelos quatro cantos do país estão aqueles foliões de salão, de carnaval de rua, de blocos, de trios e cordões. Mas também tantos outros que nem suportam ouvir o ronco dos tambores.
Onde os trios elétricos passam arrastando multidões e as vozes vão ecoando os sucessos do momento, certamente há euforia parecida com aquela observada nos desfiles das escolas de samba, só que de forma mais espontânea e desorganizada. E forçadamente dança quem vai apenas apreciar.
Nas regiões interioranas, principalmente aquelas litorâneas onde as águas dos rios ou praias já garantem a diversão, basta que surjam alguns trinados ou um carro de mala aberta e com som potente para que tudo se torne em animação sem hora pra acabar. Pela justificação de ser carnaval, momento apropriado para brincar e se divertir, então a bebida e outras ingestões se tornam como máscaras dos foliões.
Mas quem não gosta de carnaval, não se sente bem nem ouvindo uma marchinha dos velhos tempos, o que deve fazer no período momesco? As opções são muitas, dependendo do gosto e dos objetivos de cada um.
Acaso a aversão seja simplesmente com relação aos festejos, outra coisa não resta a fazer senão aproveitar o período para agendar alguns afazeres pessoais, escolher alguns bons livros e filmes, dar adeus ao mundo lá fora e se manter de portas fechadas, no desejado enclausuramento.
Eis o momento apropriado para reencontrar um pouco consigo mesmo, dialogar intimamente, colocar em ordem aquilo que desde muito vem sendo procrastinado. E também a ocasião ideal para colocar no papel tramas e enredos engavetados na mente, tecer os poemas que permaneciam inacabados no livro do coração.
Mas se a opção de não participar do carnaval for de ordem espiritual ou religiosa, a busca por um bom retiro talvez seja o melhor caminho. As igrejas, grupos e comunidades religiosas geralmente organizam retiros em locais previamente destinados aos cantos, às palestras, às leituras, jogos e brincadeiras.
Acaso o desejo seja pelo silêncio, pelo real distanciamento do mundo lá fora, onde se possa desfrutar de cenários e paisagens ideais para a meditação e a reflexão, então não há nada mais convidativo que acampar. E talvez na beira de um rio ou lago, numa planície verdejante ou nalgum lugar onde seja possível ouvir os sons da natureza ao redor.
Sorte daqueles que podem viajar para pousadas em meio à natureza, que podem alugar casas em regiões serranas ou simplesmente sentir os encantos de um hotel fazenda. Contudo, há os que se contentam em apenas ter os dias de descanso na própria residência, e de vez em quando experimentando uma bebida para aliviar o calor.
Como não sou folião nem viajo, estou sem beber e desde muito que não danço sequer uma valsa, quase não mudo minha rotina. Mas minha vontade é de subir na mais alta das montanhas e lá em cima, no silêncio das horas e na paz das alturas, simplesmente esquecer que o mundo existe.
Mas ter a certeza que Deus existe e que está ali. E com ele conversar até quarta-feira de cinzas. E trazer a sua presença e a sua palavra para mais próximas de minha vida.


Poeta e cronista
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Felicidade (Poesia)


Felicidade


Venho de longe
cansado e faminto
suado e sedento
ferido de espinhos
lanhado por pedras
um tanto mais velho
de corpo alquebrado
e olhar cansado

mas cheguei aqui
e estou aqui
e a estrada passada
está entristecida
pelos que ficaram
mas eu consegui
e estou aqui
e como sou feliz!


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 537


Rangel Alves da Costa*


“Imensa a colheita no único grão semeado...”.
“O mais belo livro é aquele escrito pelo próprio leitor...”.
“Chama de fogueira é poesia ardente...”.
“O entardecer depende do sentimento...”.
“Uma andorinha só fez um verão e outras estações...”.
“Porque são os cabelos dela que esvoaçam no coqueiral...”.
“Cor morena de jambo misterioso...”.
“Pedir ao pombo correio que leia a carta...”.
“Versos que começam sorrindo e depois lacrimejam...”.
“Sentir saudade no rio dos olhos...”.
“Não seguir mais porque já foi além...”.
“Um trem solitário chegando à solitária estação...”.
“Um adeus sem palavras e sem lenço de adeus...”.
“No meio da noite e o sol do desejo...”.
“A arte de amar esquecida num livro fechado...”.
“Peixe que desesperadamente se entrega ao anzol...”.
“Tanta sede diante da moringa vazia...”.
“A ignorância em crer que tudo sabe...”.
“A última prestação do amor daqui a três meses...”.
“Sonhos também servem para acordar...”.
“A janela entreaberta beija o vento na boca...”.
“Um silêncio tão profundo que ninguém ouvia o silêncio...”.
“Estender a mão. E não pedir...”.
“Os sábios estão todos em silêncio...”.
“A dúvida no meio da travessia...”.
“Pés acostumados com espinhos e flores...”.
“Um bilhete debaixo do cesto de frutas...”.
“O mesmo lago para os cisnes branco e negro...”.
“Esperar mil anos pela batida na porta...”.
“Água da fonte se bebe com o olhar...”.
“Grande a distância entre a boca e o beijo...”.
“Dei uma caixa de cores ao outono...”.
“O corpo é mapa de infinito tesouro...”.
“Vento de varal assobia macio...”.
“Uma vela acesa num barco solitário...”.
“Ali vem o tempo soprado pelo vento...”.
“Um canto de passarinho na memória...”.
“Dar vontade de correr ao recordar a infância...”.
“Farol que ilumina sua própria lágrima...”.
“Um poema de amor tão frágil na folha de outono...”.
“Para sempre... Foi o que restou escrito no diário...”.
“Tinha asas, mas preferiu os espinhos do chão...”.
“Uma canção tão triste que a brisa chora...”.
“Aves agourentas espreitando o desamor...”.
“Eis que a história nunca termina...”.
“Acordar para construir o amanhã...”.
“E viver para construir o futuro...”.
“E o tempo que resta não basta para viver...”.
“Por isso a vida é tão curta...”.
“Por mais que amanhãs sejam construídos...”.


Poeta e cronista
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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A TERRA SERGIPANA NA OBRA AMADIANA


Rangel Alves da Costa*


Grande parte da obra do eternamente genial Jorge Amado é tecida num misto de inventividade e memorialismo. Foge ao conceito de ficção porque são perceptíveis relatos de vivência do autor como pano de fundo para tramas inteligentemente elaboradas. Passo a passo recorre à sua própria vivência, bem como de seus familiares e lugares conhecidos, para dar maior realismo à sua escrita.
A experiência pessoal de Jorge Amado, desde o menino grapiúna ao moço viajante pelos recônditos nordestinos, é toda transcrita nos seus livros. Dentro da invencionice do escritor há sempre o próprio autor transcrevendo suas memórias. E por isso mesmo situa tanto sua obra no seu berço de nascimento, a região cacaueira da Bahia, como situa retratos sergipanos ora como personagens ora como cenários.
Ora, Jorge nunca negou suas raízes sergipanas nem seu amor por estes caminhos desde que se refugiou por algum tempo na casa de seus avôs na região de Itaporanga. E mais tarde alargaria seu passo para outras localidades, e também aquelas de dunas ribeirinhas que mais tarde seriam recordadas em livros como Tieta do Agreste. Daí as fiéis descrições de paisagens, logradouros aracajuanos e interioranos, bem como acerca dos famosos cabarés citados em suas obras.
Na obra amadiana, Sergipe primeiro surge como história, e também como história permanece na ficção. Seu pai, o Coronel João Amado, era um sergipano arribado pras bandas cacaueiras do sul da Bahia, montando fazenda num mundo de tocaias entre Ilhéus e Itabuna. O autor nasceu no distrito de Ferradas, em Itabuna, mas passou toda a infância em Ilhéus. Contudo, aos treze anos fugiu de um internato e veio parar na casa de sua família paterna em Itaporanga.
O primeiro casamento de Jorge Amado se deu no município de Estância, em 1933, com Matilde Garcia Rosa. Aliás, a região estanciana era costumeiramente visitada pelo escritor, onde tinha muitos parentes e também como forma de fugir às perseguições políticas. Conforme Luiz Antônio Barreto, “Em Estância Jorge Amado viveu capítulos singulares de sua vida, que jamais esqueceu. O seu coração batia no ritmo estanciano do casario colonial, do Hotel Vitória, da Papelaria Modelo, da Sociedade Monsenhor Silveira, e deixou, em cada um dos amigos e conhecidos, uma imagem amiga, doce, irreverente algumas vezes, mas sempre acomodada no bucolismo da paisagem” (Jorge Amado em Estância -  www.infonet.com.br/luisantoniobarreto/ler.asp?id=67674).
Por isso mesmo não é mero exercício de romancista quando Jorge Amado tanto situa Sergipe na sua obra. O faz como transcrevendo um diário de campo, rebuscando vivências, colhendo as memórias de suas andanças em terras sergipanas. É como se um mapa estivesse à sua mesa de escritor e ele avistando os percursos e rememorando ou recriando os fatos.
Em “O menino grapiúna”, diz que “Os vagabundos ainda demorariam a fazer parte de meu universo, do meu cotidiano. Com eles comecei a tratar quando, aos treze anos, fugi do internato dos jesuítas e atravessei o sertão para chegar a Sergipe, à casa de meu avô”. Em “Cacau” relata acerca de uma fábrica mantida por seu pai na antiga capital de Sergipe: “A cidade subia pelas ladeiras e parava lá em cima, bem junto ao imenso convento. Olhando do alto, via-se a fábrica, ao pé do monte pelo qual se enroscava a cidade”. “Talvez não fosse bela a velha São Cristovão, ex-capital do Estado, mas era pitoresca, pejada de casas coloniais, um silêncio de fim de mundo, as igrejas e os conventos a abafarem a alegria das quinhentas operárias que fiavam na fábrica de tecidos”.
Tereza  Batista nasceu nas margens do Rio Real, nos limites da Bahia e de Sergipe. Cita Jorge Amado que “A badalada estréia de Tereza Batista no cabaré Paris Alegre, situado no Vaticano, na área do cais de Aracaju, no país de Sergipe Del-Rey, teve de ser adiada por alguns dias”. “Nos quatro cantos da Praça Fausto Cardoso, onde se eleva o Palácio do Governo, tabuletas coloridas anunciam para muito em breve no salão do Paris Alegre a Fulgurante Imperatriz do Samba”. E prossegue: “No cabaré Paris Alegre a juventude doirada de Aracaju se diverte a preços razoáveis”. Em Aracaju também o Café e Bar Egito e cabarés: Torre Eiffel, Miramar, La Garçonne, Ouro Fino.
Faz ainda muitas referências a Estância, a Boquim, a Mangue Seco, dentre outras localidades. Com relação a Estância, sintetiza: “formosa e doce terra, couto ideal de amigações, cidade única para nela se viver um grande amor...”. E Tieta, de “Tieta do Agreste”, reinava igual cabra afoita desde menina pelas dunas de Mangue Seco, às margens Rio Real, na divisa da Bahia com Sergipe.
Natário da Fonseca, temido capanga, e depois capitão, de “Tocaia Grande”, se tornou poderoso nas terras cacaueiras depois que matou um comerciante numa casa de putas de Propriá.  De Lagarto era a rapariga novinha apelidada de Zezinha do Butiá. E “Não escapou nenhum dos jagunços do coronel Elias, pistoleiros de renome, trazidos do sertão de Sergipe d’El Rey, terra de valentes”.
E muito de Sergipe eternizou Jorge Amado, e o fez na mesma medida do acolhimento recebido quando precisava descansar, conhecer pessoas simples e cativantes, escrever, refugiar-se da intolerância política, larguear suas raízes nas terras d’El Rey.


Poeta e cronista
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Tempo de varais (Poesia)


Tempo de varais

O vento soprava
as roupas dançavam
tardes de jamais
dias de varais

minha mãe cantando
levando toalha e fronha
para estender no varal
e logo bandeiras brancas
tremulavam pelas tardes
enxugando os tempos idos
deixando tantas saudades

uma cadeira de balanço
uma vida tão tranquila
meninos com bola a correr
e aquelas roupas secando
até chegar o vendaval
o menino chutando torto
e acertando o varal

mas o vento soprava
as roupas se balançavam
lenços molhados demais
com saudades dos varais.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 536


Rangel Alves da Costa*


“Cansei dos formalismos da vida...”.
“Quero comer com a mão...”.
“Deixar escorrer pelo canto da boca...”.
“Mastigar com a avidez dos famintos...”.
“Rejeitar cristais e talheres...”.
“Taças e guardanapos...”.
“Quero comer em pé...”.
“Em prato de estanho...”.
“Pelos cantos ou quintais...”.
“Deitado na rede...”.
“Debaixo do pé de pau...”.
“É que cansei das regras e etiquetas...”.
“Das frescuras impostas...”.
“Quero andar descalço...”.
“Entrar e sair sem pedir licença...”.
“Tomar banho nu debaixo da chuva...”.
“Correr pelos descampados...”.
“Conversar com passarinhos...”.
“Conversar sozinho...”.
“Gritar bem alto no meio do tempo...”.
“Beber água na caneca...”.
“Colher fruta no pomar...”.
“Não dar satisfação a ninguém...”.
“Eis que me cansei das burocracias...”.
“Dos papéis e assinaturas...”.
“Dos trâmites e das esperas...”.
“Da gravata e da frieza...”.
“Do asfalto e da buzina...”.
“De tudo isso cansei...”.
“Quero uma lua bonita...”.
“Um sol ao amanhecer...”.
“Um canto de galo no quintal...”.
“Café quebrado em pilão...”.
“Cuscuz de milho ralado...”.
“Manteiga da terra e ovos de capoeira...”.
“Bolo de milho e de macaxeira...”.
“Eis que já basta...”.
“Já basta de reverências...”.
“De meritíssimos e excelências...”.
“De códigos e procurações...”.
“De despachos e sentenças...”.
“De prazos e prescrições...”.
“Adeus prédios e fóruns...”.
“Quero agora viver...”.
“Preciso agora viver...”.
“Numa casinha distante...”.
“Em meio ao silêncio e a mataria...”.
“Junto aos bichos do mato...”.
“Esperando apenas...”.
“A chuva chegar...”.
“Para semear os meus sonhos...”.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A ÁRVORE DO SILÊNCIO


Rangel Alves da Costa*


Belíssima a assertiva de Artur Schopenhauer: Da árvore do silêncio pende seu fruto, a paz.
E a árvore do silêncio, tão bela e frondosa, pode ser avistada, tocada, sentida, em todo lugar. Desde o asfalto ao chão fecundo lá estará.
E também estará onde ninguém avista, onde somente o semeador conhece o seu lugar e a sua imponência. Tão imensa e visível, tão presente e invisível é a árvore do silêncio.
Não precisa de arvoredo ou pomar, floresta ou mata fechada. Não requer distância do homem para estar protegida. E não morre com o tempo, pois eterna é a árvore do silêncio.
Aliás, a árvore do silêncio não nasce senão da raiz do desejo de cada indivíduo, não cresce senão na mente e não frutifica senão em galhos invisíveis. Mas pressupõe sempre o silêncio para florescer, para dar seus frutos.
E dessa árvore, presença silenciosa ao redor do indivíduo, a paz vai brotando como fruto mais desejado. Fruto doce é o da paz, e talvez o único que possa saciar a fome do mundo.
O mundo, o homem, a vida, as relações, os seres, a existência, as convivências, os amores e os ódios, as intrigas e os entendimentos, tudo necessita de paz. E o fruto da paz não será colhido enquanto não surgir o silêncio que possibilite a reflexão.
Quando o filósofo afirma que da árvore do silêncio pende o fruto da paz, outra coisa não faz senão afirmar que somente o silêncio possibilita ao homem colher a calma e tranquilidade necessárias para refletir acerca dos caminhos que levem à paz.
Ora, a paz citada não é apenas aquela envolvendo quietude, tranquilidade, placidez, sossego, serenidade. Envolve muito mais, eis que a paz referida por Schopenhauer é também aquela fruto de um estado mental e espiritual que leva ao homem o poder da reflexão, da meditação.
A reflexão e a meditação seriam as sementes que germinariam a paz. Ora, a paz não é pensada em meio à guerra, à balbúrdia, às gritarias e desassossegos. O encontro com a paz exige silêncio, concentração, imaginação.
Fácil compreender o porquê de o silêncio frutificar. É no silêncio que o pensamento se aperfeiçoa, que a mente se torna produtiva, surgem as ideias, as boas noções, os caminhos e as possibilidades se tornam mais nítidas.
É no silêncio que o homem encontra consigo mesmo, que alarga sua visão acerca da realidade, que adentra profundamente naquilo que em outra situação seria apenas aparente. Basta que o silêncio paire, que calem as vozes da incompreensão, e o homem estará apto a ser uma voz espiritual diante do mundo.
Que se tomem como exemplos as grandes criações ou invenções humanas, ou mesmo os estudos que produziram descobertas consideráveis. Em tais situações apenas o diálogo do homem com o seu objeto, de forma silenciosa e produtiva, de modo que apenas a aparência da intencionalidade tivesse voz.
Impossível imaginar Mozart ou Bach criando sua música em meio a algazarras. Difícil conceber Einstein debruçado sobre sua teoria em meio a vozes e gritarias. A poesia, a escrita, a pintura, a arte em si, exige um mínimo de silêncio para encontrar sua própria voz.
Que se imagine Schopenhauer subindo à montanha para encontrar o silêncio tão necessário à meditação filosófica. Mesmo tecendo acerca de pessimismos e dores do mundo, não deixa de reconhecer que somente o silêncio possibilita o aprofundamento em tais questões.
Veja-se, por exemplo, o sino da igreja. Ouvir o seu badalar em silêncio provoca um diálogo espiritual de indescritível intensidade. E até dá para ouvir a canção da brisa do entardecer quando o silêncio envolve tudo ao redor.
Sim, na árvore do silêncio a paz. E um canto de pássaro que jamais será ouvido por aqueles que não são nem de silêncio nem de paz.


Poeta e cronista
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Destino (Poesia)


Destino


Pulei no escuro
coração inseguro

no fio do medo
tateei sem segredo

a brasa nos pés
proa sem convés

adiante um cais
terra firme jamais

assim o amor
alegria e pavor

mas quero amar
toda fúria enfrentar

preciso amar
seja em terra ou mar

o amor é você
tudo mais esquecer.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 535


Rangel Alves da Costa*


“É noite...”.
“Tarde da noite...”.
“Noite chuvosa...”.
“De silêncio...”.
“E grito...”.
“Na alma...”.
“No vazio...”.
“Na solidão...”.
“Lua escondida...”.
“Nuvem tão próxima...”.
“Quase tempestade...”.
“E vendaval na alma...”.
“No vazio...”.
“Na solidão...”.
“Talvez uma bebida...”.
“Depois de tantas...”.
“A canção adormeceu...”.
“A noite egoísta...”.
“Tudo tão seu...”.
“E abro a janela...”.
“Caminho sem passos...”.
“Não sei se molhado...”.
“Não sei se chorando...”.
“Não sei se lágrimas...”.
“Ou saudade...”.
“Saudade sim...”.
“Nunca mais saudade...”.
“Mas veio tai forte...”.
“Que tudo vendaval...”.
“Tudo temporal...”.
“Tudo tempestade...”.
“Talvez nem esteja chovendo...”.
“Talvez a noite seja de lua...”.
“Ou mesmo de sol...”.
“Talvez nenhuma chuva...”.
“Apenas noite e sua luz...”.
“Mas não dentro de mim...”.
“Não no que me encobre...”.
“E inunda...”.
“E me faz naufragar...”.
“Sem mar...”.
“Mas não tenho sono...”.
“Não tenho poesia...”.
“Não tenho mais vinho...”.
“Não tenho cigarro...”.
“E talvez precise...”.
“Apenas de solidão...”.
“E do seu retrato...”.
“E nele um sol...”.
“Cheio de esperança...”.
“E de amanhã...”.


Poeta e cronista
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terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

RECEITA PARA TRISTEZA LIGHT


Rangel Alves da Costa*


A tristeza é da essencialidade humana. É sentimento expressando situações dolorosas ou meros dissabores no percurso existencial. Lembranças, recordações, todo que existe no baú dos acontecidos, de repente pode ressurgir de forma melancólica e angustiante. Tudo provoca a temida tristeza.
Do mesmo modo, as consequências desfavoráveis na trajetória da vida. A perda de um ente querido, um adeus inesperado, um amor desfeito, o indesejado que insiste em acontecer; enfim, uma soma de situações que abalam profundamente o ânimo e o espírito. E que tristeza provocam!
Mas a tristeza não deve ser vista de modo assim tão destrutivo, aterrador. Indubitavelmente provoca estados indesejados, parecendo querer abrir um fosso aos pés da pessoa e fazendo com que muitos pensem até em soluções extremadas. Contudo, ela pode muito bem ser domada de modo a se tornar suportável e até positiva.
E assim porque a tristeza é também um encontro da pessoa consigo mesma, através do afloramento de uma consciência mais realista das situações de vida. E talvez seja neste aspecto que se diferencia da alegria, eis que esta tem o dom de maquiar a realidade, tornando as situações quase como aparências.
A tristeza não encobre nem se distancia de nada, surge nítida, concreta, como um retrato daquilo que causa a consternação. É tão verdadeira quanto o fato que a motiva. E talvez o seu grande mérito seja ser sentimento que não admite aparência, que não admite ser fantasiada. Mas por isso mesmo a possibilidade de ser domada, contida, dominada e transformada.
E transformada em tristeza light, ou seja, tornada leve, aceitável, possível de ser tranquilamente vivenciada. Desse modo, a tristeza light seria o sentimento aflitivo se transformando em sentimento aceitável por possibilitar um diálogo mais intimista da pessoa consigo mesma. Ora, não há momento mais apropriado para o reencontro interior que aquele onde o indivíduo se sente solitário e triste.
E de várias maneiras as durezas do instante podem virar o jogo em favor daquele que se predispõe a vivenciar a tristeza de modo amigável. Fundamental que se utilize a própria tristeza como arma para combater suas nefastas consequências. Depois se torna fácil perceber o quanto proveitoso pode ser o seu experimento.
Nesse passo, a tristeza pela morte de alguém, por exemplo, deve ser enfrentada com a realidade da vida. Basta não fugir à realidade e será de fácil percepção que ninguém pode fugir da inevitabilidade da partida. Por mais que seja doloroso, angustiante, ainda assim fato que mais cedo ou mais tarde acontecerá.
Em situações de perdas profundamente dolorosas, logicamente que não será possível repentina transformação das pesarosas circunstâncias. A tristeza é inevitável. Contudo, será sempre possível compreender o fato dentro de uma lógica que não signifique o fim do mundo. A partir do instante que se proporcione à morte uma visão na normalidade da vida, então o dilaceramento será refreado e a aceitabilidade cuidará de confortar o coração.
O divórcio, o fim do namoro, a briga de casais, as encrencas amorosas, os ciúmes doentios, tudo isso pode ser causa de tristezas profundas. Tem gente que diz que vai se jogar do oitavo andar, outros juram de morte o ex-amor, outros simplesmente se entregam ao mortal enclausuramento. Mas por que, se o amor nunca é fim e sempre será possibilidade de recomeço, ainda que com outra pessoa?
As tristezas amorosas têm o dom de cegar, de tirar completamente a razão daquele que se sente traído ou rejeitado. E é por isso mesmo que doem tanto, que maltratam e machucam tanto. Mas basta que a pessoa procure refletir sem remorsos ou paixões e compreenderá que nada surge ao acaso, que tudo possui uma razão de ser. E da reflexão será possível encontrar outras causas da separação e todas as culpas que permaneciam escondidas. Tal percepção certamente fortalecerá o espírito para a necessária volta por cima.
A saudade é o exemplo maior de como a tristeza pode ser light. Basta sentir que a distância só dói em quem ama e então tudo será suportado. De qualquer modo, nenhuma tristeza é coisa do outro mundo ou bicho de sete cabeças. E basta uma cabeça para transformar o outro mundo num mundo possível que se deseje.


Poeta e cronista
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Amor, o que sei


Amor, o que sei


Um dia, ainda criança
quis saber o que era o amor
imaginei como fruta de pomar
como uma mordida em araçá
como tudo de bom que havia

noutro dia, depois de criança
quis experimentar o amor
imaginei a mesa e sobremesa
lábio molhado de framboesa
cálice derramando na boca

mas hoje sei que o amor
é apenas o prazer da alma
um alimento bom no coração
e que deseja ser repartido
mas nunca saciado pela paixão.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 534


Rangel Alves da Costa*


“Ali uma estrada...”.
“Um caminho, uma curva...”.
“Flores e espinhos em todo caminhar...”.
“Mas hei de partir, não posso ficar...”.
“Não há mais galo cantando o alvorecer...”.
“Não há mais sino tocando na igrejinha...”.
“O bicho não berra mais adiante...”.
“Manhã sem sol...”.
“Apenas a solidão dos dias...”.
“Por isso abrirei cancela...”.
“Levando a roupa do corpo...”.
“Sei que logo partirei por ali...”.
“Ali uma estrada...”.
“Um caminho, uma curva...”.
“Flores e espinhos em todo caminhar...”.
“Mas hei de partir, não posso ficar...”.
“Não mais escrevo versos...”.
“Não sinto encantamento com a paisagem...”.
“A fruta encontrada é só uma fruta...”.
“Um pássaro é apenas um pássaro...”.
“Tudo é aquilo que apenas é...”.
“Nada desperta os sentimentos...”.
“O que era belo perdeu sua feição...”.
“E somente a tristeza vem fazer companhia...”.
“Tardes de angústia e noites de aflição...”.
“Por isso vou partir...”.
“Fechar porta e janela e seguir por aí...”.
“Ali uma estrada...”.
“Um caminho, uma curva...”.
“Flores e espinhos em todo caminhar...”.
“Mas hei de partir, não posso ficar...”.
“Calou a canção da brisa...”.
“Nenhum perfume se espalha pelo ar...”.
“As rosas regadas estão ressequidas...”.
“Retratos e bilhetes rasgados...”.
“Um fogo sem chama e sem brasa...”.
“Meu silêncio está mais profundo...”.
“Minha voz estancou de vez...”.
“Sequer o grito ecoa no ar...”.
“Impossível viver assim...”.
“Calendário sem nada acontecer...”.
“Por isso tenho de partir...”.
“Colocar pé no chão e sumir...”.
“Ali uma estrada...”.
“Um caminho, uma curva...”.
“Flores e espinhos em todo caminhar...”.
“Mas hei de partir, não posso ficar...”.
“Talvez retorne um dia...”.
“Não sei do amanhã nem do que virá...”.
“Tudo tanta incerteza...”.
“Na certeza que não posso ficar...”.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

FILOSOFIA DOS CONCEITOS


Rangel Alves da Costa*


Sendo também a filosofia um modo de buscar o conhecimento acerca do visível e do imaginado, logicamente que deve abranger o entendimento da existência dos seres e fenômenos a partir da ideia conceitual que se tem sobre estes. Por consequência, os conceitos, definições e significados também prevalecem no âmbito da filosofia.
Ora, assim porque a primeira ideia que se tem sobre algo surge de sua percepção e posterior denominação. Mesmo que nem tudo possa ser percebido, nada existe sem que possa ser denominado e a partir daí conhecido como tal. Contudo, muitas situações existem onde permanece apenas o conceito e a ideia sem um conhecimento plausível sobre sua aparência, dimensão e real existência.
Um primeiro exemplo: eternidade. Tem-se como eternidade aquilo que é imorredouro, que jamais perecerá, de existência permanente. Entretanto, tem-se apenas o conceito sem qualquer possibilidade de comprovação. E simplesmente porque eternidade não passa de uma ideia, de pressuposto que algo jamais pereça. Abstrata, a ideia de eternidade nada mais é que uma possibilidade apenas mental.
No âmbito da filosofia, o eterno se distancia como o próprio pensamento, de forma idealizada, mas tomada de abstrações, e assim porque não é possível conhecer sua existência, se algo possa ser asseverado como de duração infinita. Desse modo, nada mais resta a fazer que não imaginar a eternidade como aquilo que permanece até que a ideia de sua existência desapareça. E dessa forma o eterno não mais existirá.
Um segundo exemplo: amor. Que de início se diga que jamais foi possível chegar a uma definição ao menos aproximada da amplitude do que envolve o amor enquanto sentimento. Todas as definições tendem a situá-lo no contexto do romantismo, da afeição, da feição humanista e da religiosidade. Mas jamais foi proposto um conceito definitivo e abrangente sobre o amor, e assim porque impossível fazê-lo.
O amor ganha contornos mais definidos na ideia que mesmo numa possível definição. É tão difícil definir o amor quanto a sua verdade. Tem-se apenas como um sentimento de apego pessoal, de afeição, de gostar, de querer. Ou ainda como algo que faz bem ao espírito, anima a alma, alegra o coração, tornando a pessoa intimamente interligada ao que é amado. Mas não há uma certeza nem uma extensão desse sentimento, de modo a dizer que o amor pode ser reconhecido porque atendeu aos pressupostos da alma. Quais, senão situações muitas vezes apenas passageiras?
Outro exemplo: infinito. O que é mesmo infinito? Há comprovação que algo não tenha fim, cuja distância vá para além da eternidade? Mas é usual que se encontre respostas dizendo que infinito é aquilo que não tem início nem fim, que não tem limites nem medidas, que vai sempre além de todo pensamento. Logo se vê, entretanto, que não passam de respostas abstratas, apenas conceituais, sem qualquer fundamentação ou de possível comprovação. Seria apenas retórico afirmar sobre a infinitude de algo, vez que confronta com o próprio conceito de fim. Ademais, é mais fácil compreender e comprovar que tudo tem um fim.
Mais um exemplo: solidão. Insistem em afirmar que solidão é a condição de quem está sozinho, retirado da realidade ao redor, em completo isolamento. Mas isolado do que e de quem, vez que ninguém pode deixar de ter algo a seu lado? Ainda que numa bolha ou redoma não estaria sozinho, vez que acompanhado e ao redor do próprio invólucro. Ademais, sempre com a mente buscando e rebuscando pessoas e acontecimentos, tomada de presenças que jamais permitiriam pensar em completa solidão.
Os exemplos seriam muitos. Saudade, gratidão, tristeza, alegria, morte, ressurreição. Todos conceitos abrangentes e quase sempre abstratos, principalmente quando a confirmação mental não pode ser comprovada na realidade. Mas cabe ao pensamento filosófico indagar sobre suas reais existências, ou não.


Poeta e cronista
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Quatro versos e uma saudade (Poesia)


Quatro versos e uma saudade


Nesse lugar tão distante
de manhãs sem natureza
meu passo é de errante
em tudo uma só tristeza

abro o baú do passado
reencontro o meu sertão
e com olhar lacrimejado
bate diferente o coração

quem dera os seus caminhos
seu sol e sua lua tão belos
flor de cacto e seus espinhos
cantos passarinheiros singelos

mas a cancela está fechada
sinto o asfalto e a buzina
quero tanto aquela estrada
mas a cidade é triste sina.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 533


Rangel Alves da Costa*


“A vida é livro e lição...”.
“A palavra se transforma segundo quem ouve...”.
“Nada é segredo para quem não dá qualquer importância...”.
“No clarão da lua, a tempestade nos olhos...”.
“Depois do beijo e um mar imenso para navegar...”.
“Eis que a solidão chama ao sofrimento...”.
“Mas eis que a solidão também é alegria da nostalgia...”.
“Um fruto maduro ao amanhecer...”.
“E o desejo de ter um pomar noutro corpo...”.
“Prometer jamais sofrer...”.
“Ao menos enquanto lembrar a promessa...”.
“Pretender mudar as cores do arco-íris...”.
“Mas que o faça quando estiver com alegria...”.
“Tudo tão diferente do que se imaginou ao contrário...”.
“Eis que no verso ao reverso...”.
“Um espelho refletindo o que não existe daquele jeito...”.
“Talvez somente os sonhos sejam reais...”.
“Ninguém acredita no que encontra na realidade...”.
“O homem é descrente de si mesmo e de seu poder...”.
“Sabe que é mais frágil que ele mesmo...”.
“E os muros derrubados continuam em pé...”.
“Há que primeiro destronar o rei...”.
“A soberania não se destrói derrubando paredes...”.
“Cabe ao homem repensar suas ações...”.
“Ou as ações repensar o homem...”.
“Arrogâncias e prepotências...”.
“Autoritarismos e brutalidades...”.
“Mas tudo escondendo a fragilidade...”.
“A covarde insignificância de quem assim age...”.
“Se em ouro se transformasse...”.
“Se em diamantes repousassem os seus restos...”.
“Se sobre o seu nada cintilassem brilhantes...”.
“Mas nada...”.
“Ao morrer transforma-se apenas no nada...”.
“Que já é sem imaginar que seja...”.
“Que tempos, que costumes...”.
“O homem nunca compreende seu lugar na terra...”.
“O significado de sua existência...”.
“O seu merecimento de estar vivendo...”.
“E pensa que o seu pó é dourado...”.
“Que seu nada é o tudo...”.
“E quando percebe a insignificância que é...”.
“Desanca suas raivas e psicoses nos mais fracos...”.
“Nas pessoas mais simples e humildes...”.
“Naqueles que querem apenas viver...”.
“E viver sem as pedras no caminho...”.
“Pedras da incompreensão, do preconceito...”.
“Da discriminação e da submissão...”.
“Daí que chegará um tempo...”.
“Talvez no Juízo Final...”.
“Mesmo daqui a mil anos...”.
“Que ainda se ouvirá o grito de muitos...”.
“Muitos que vivem agora...”.


Poeta e cronista
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domingo, 23 de fevereiro de 2014

O CHÃO DO MEU SERTÃO E O SAPATO DA RAINHA


Rangel Alves da Costa*


Sei não, mas se aquela rainha louca fizesse com a terra do meu sertão o mesmo que fez com aquele punhado de areia litorânea não conseguiria nem desembarcar em Portugal. Desastrada, de uma arrogância sem igual a atitude da mulher de D. João VI, Carlota Joaquina.
Atribui-se a ela a seguinte frase: “Não levo um grão de areia na sola de meus sapatos deste quinto dos infernos”. Há também indícios que tal comentário teria sido feito pela rainha ao desembarcar em Portugal. Mas de todo modo, a terra a qual ela se referia era a brasileira.
Besta ela se batesse com seu sapato na madeira do navio para maldizer a terra sofrida, porém abençoada e onde pisa o bravo sertanejo. Idiotice dela se quisesse afastar de sua sola o grão da luta, da persistência e da história. 
Assevera-se que a rainha renegou de vez o chão que tanto e carinhosamente a acolheu. Mas com o chão do meu sertão seria diferente. Terra árida, quente, muitas vezes massapê, outras vezes apenas grãos esfarelados esvoaçando pelas estradas, mas que merece ser respeitada e pisada com a decência dos justos.
Nem todos os pares de sapatos da rainha - e dizem que eram dezenas -, com seus luxos e adornos, valeriam mais que apenas um roló do homem da terra, que uma “aprecata” de couro cru, qualquer chinelo num misto de trancamento de couro e borracha crua. E besta ela se tentasse derrubar os carrapichos, os pequenos espinhos, o pó endurecido fincado nos contornos.
O sapato da rainha talvez só tivesse pisado em terra quando ela foi embarcar pra Portugal. Acostumado aos tapetes dos suntuosos salões, à maciez dos jardins soberanos, às caminhadas leves pelos arredores palacianos, certamente se espantaria com o que pudesse encontrar nas veredas, trilhas e matarias do meu sertão.
Juntando Carlota Joaquina, D. João, D. Pedro, toda família real, séquito e nobres, ainda assim não seria um reinado de suplantar o império sertanejo e sua fidalguia encourada, seus cavaleiros de sol e lua, sua nobreza de força e humildade. Nenhum brasão se faria mais imponente que a bandeira desfraldada nos braços do mandacaru.
Toda a nação portuguesa - e também a espanhola da qual a tresloucada rainha tinha origem - famosas pela usurpação das terras além-mar, jamais conseguiriam alcançar a pujança nordestina e o destemor de seus desbravadores sertões adentro. E fundar a nação que jamais se curvou diante de outra bandeira: a nação sertaneja!
Talvez a rainha mais tarde enlouquecida jamais tivesse ouvido falar do sertão nordestino. Mas se falou mal e menosprezou o solo limpo e molhado do litoral, a terra do lugar que dava sustentação à sua coroa, certamente que nem suportaria avistar o chão encrespado e escaldante do sertão.
Mas ainda assim haveria de respeitá-lo. E se muitas vidas a rainha tivesse e mais tarde soubesse quais os pés que por ali passaram, seguiram suas veredas e trilhas, certamente que haveria de se curvar em reverência.
O chão sertanejo, a terra árida e os carrascais espinhentos, abriram passagem para homens valentes, justiceiros sem igual, beatos e fanáticos, tropas encouradas e todos aqueles cujo destino era fixar moradia naquelas distâncias ensolaradas.
Terra sertaneja e chão de Lampião e todos os cangaceiros nas suas lutas inglórias. Veredas abertas por Antônio Conselheiro e seus seguidores, erguendo igrejinhas e rumando em direção ao templo maior de Canudos. Passagem de comboeiros, vaqueiros, bandeirantes sertanejos, trabalhadores de toda sina.
Um chão assim, com tais caminhantes, há de ser respeitado, dona rainha. Verdade é que vossa estropizia maldisse a terra litorânea da nação brasileira, mas se seus impróprios fossem dirigidos à terra da nação sertaneja, sei não.
Nas profundezas da mesma terra a sua insanidade seria remediada.


Poeta e cronista
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Cantiga de flor (Poesia)


Cantiga de flor


Uma flor sem nome
quero um nome para a flor
um nome que seja o seu
no seu nome o meu amor

ando tão entristecido
jardineiro em solidão
triste orvalho ressequido
sem versos no coração

mas cultivo flor tão bela
ainda sem nome a flor
minha linda cinderela
a primavera enfim chegou

então a flor sem nome
terá um nome de flor
um nome que seja o seu
no seu nome o meu amor.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 532


Rangel Alves da Costa*


“Uma tempestade causando arrepios...”.
“Tanto sofrimento por todo lugar...”.
“Olhos escondidos no meio da noite...”.
“Vento ventania...”.
“Em tudo a açoite...”.
“Vou arrumar a mala...”.
“Quero logo partir...”.
“Não tenho destino, mas quero seguir...”.
“Aqui é escuro demais pra viver...”.
“Acendo a luz se quero me esconder...”.
“Ali um labirinto medonho e negro...”.
“Dentro da parede uma voz me chamando...”.
“O silêncio é zumbido...”.
“O grito é gemido...”.
“De uma voz sem boca...”.
“Com palavra mais rouca...”.
“Deixe-me passar e seguir adiante...”.
“Solte minhas mãos que vou logo partir...”.
“Meus passos precisam seguir...”.
“Pra qualquer lugar...”.
“Bem longe daqui...”.
“Os monstros são muitos...”.
“E são apavorantes...”.
“Nunca avistados, mas tão conhecidos...”.
“Uma tal de saudade...”.
“Uma tal de tristeza...”.
“Uma tal de aflição...”.
“Uma tal de agonia...”.
“E também a dor...”.
“E também o sofrer...”.
“E pelos labirintos...”.
“Pelos cantos e paredes...”.
“Um rio de lágrimas...”.
“Um poema rasgado...”.
“Um retrato antigo...”.
“Um bilhete encardido...”.
“Um fio de cabelo...”.
“Um copo vazio...”.
“E tanto veneno se oferecendo tão doce...”.
“São monstros, pesadelos...”.
“Fantasmas e grilhões...”.
“Uma face no espelho...”.
“Uma voz me chamando...”.
“Um perfume no ar...”.
“Mas o que mais atormenta...”.
“Mais causa terror...”.
“É a boca vermelha...”.
“A pele em rubor...”.
“A presença constante...”.
“De quem foi meu amor...”.


Poeta e cronista
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sábado, 22 de fevereiro de 2014

A CASA SEM ESPELHOS


Rangel Alves da Costa*


De repente deu vontade de se olhar no espelho e percebeu que ali não havia mais nenhum. Olhou todas as paredes, vasculhou por todos os cantos e gavetas, procurou no armário do banheiro, mas nada de encontrar um só espelho.
E se assustou. Começou a pensar em quanto tempo já não se via, que não se olhava no espelho, e se tomou de espanto. Talvez um mês, um ano, alguns ou muitos anos. E como estaria agora, como seria sua feição naquele momento?
E começou a se preocupar. Levava as mãos ao rosto, aos cabelos, tentava a todo custo sentir as diferenças surgidas, imaginava coisas dolorosas, apavorantes. Passava a mão pelo rosto procurando rugas, no entorno dos olhos buscando marcas, no lábio procurando flacidez.
E chorou. O desespero era tamanho que até puxou alguns fios do cabelo para ver se estavam esbranquiçados. Nada diferente pôde perceber. Estendeu as mãos e percorreu a pele com os olhos, mirou o restante do corpo. Mas estava acostumada demais com a própria pele para sentir mudanças. Somente o espelho para dar as respostas.
Mas cadê os espelhos? Ao menos um, que fosse pequenino, embaçado na velha moldura, quebrado ou trincado, mas precisava de um espelho. Mas cadê, onde está o espelho? Somente em momentos tais, de total desespero, tanto se valoriza o poder do reflexo.
Pensou em sair correndo e perguntar ao primeiro que encontrasse como estaria a sua feição naquele momento, se ainda jovial, se alegre ou triste, já envelhecida e cheia de rugas, qualquer coisa. E tudo. Mas tinha medo da resposta.
Ah, quanta aflição! Precisava urgentemente saber como estava, reconhecer-se, reencontrar-se, conversar consigo mesma diante do espelho. Sempre ouvia dizer que o melhor amigo da pessoa, aquele que nunca mente nem omite nada, é o espelho ali pendurado no quarto ou no banheiro. Mas agora lhe faltava esse amigo verdadeiro.
O que fazer, então, se o momento exige esse reencontro, essa visão da pessoa consiga mesma? Danou-se a abrir gavetas, remexer em álbuns, em tudo que pudesse mostrar retratos e fotografias. E encontrou. Contudo, retratos antigos e seus sorrisos de criança, de adolescente, de mocinha. Mas foi pior.
Aqueles sorrisos retratados provocaram uma pergunta devastadora: e se eu já estiver totalmente diferente desses retratos, com olhos distantes e tristes, a pele marcada pelas dores da solidão e do sofrimento, apenas um espectro do que fui um dia?
E indagou ainda mais: e se de minha boca não surgir mais qualquer sorriso, de meus olhos não aparecer qualquer brilho, de meu rosto a negação do que fui um dia? Não podia avistar sua face escorrendo em pranto, seu aspecto sofrido e desesperador.
Gritou pedindo um espelho, implorando por um espelho. Mas estava sozinha, trancada, distante, solitária demais para ser ouvida. Então correu para a cozinha e colocou água numa bacia até transbordar. Depois tentou avistar-se no espelho d’água. Apenas as lágrimas caindo sobre a água e a sua feição distante e distorcida.
Que situação! E num instante já estava com o rosto mergulhado na bacia, talvez tentando tirar da face aquilo que não desejaria que um espelho refletisse. E ao erguer a cabeça, toda molhada, disse para si mesma que havia se enxergado de olhos fechados.
Em seguida se apressou até a janela. Quase não consegue abri-la depois de tanto tempo fechada. Mas abriu os dois lados e deixou que o sol entrasse com todo seu esplendor. Os olhos ardiam, mas manteve-os abertos num gesto desesperador.
E depois abriu os braços e sorrindo gritou: Sou bela, ainda sou tão bela. Veja como a luz do sol me reflete e diz que ainda sou tão bela. E um passarinho pousou no umbral da janela e ficou mirando a moça bela.
Sim. Não importava a idade nem as marcas do tempo no corpo e na feição. Ainda era tão bela. E ninguém pode negar o espelho da alma.


Poeta e cronista
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