SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 30 de abril de 2020

QUANDO AS MÃOS ESTÃO VAZIAS



*Rangel Alves da Costa


A estrada da vida é entremeada de chão florido e terreno espinhento. Caminhar por ela significa vencer os obstáculos para completar o ciclo da existência. Contudo, dependendo da situação de cada pessoa, a estrada se torna menos difícil pelos acompanhantes que se juntam ao passo, pela ajuda a cada necessidade, pelo que lhe é colocado à disposição para que prossiga sem maiores problemas.
As pessoas ricas, influentes, poderosas e possuidoras de status político e social, nunca estão sozinhas na estrada nem caminham próximo aos buracos, espinhos e armadilhas. O sol não as aflige porque sempre haverá alguém com um guarda-sol para proteger, e assim também com a chuva. Não sentem sede nem fome, quando o cansaço chega logo surge um bom lugar para descanso.
Tais pessoas, praticamente conduzidas por outras pessoas, sempre estarão próximas à sombra e água fresca, ao que de menos pesaroso possa existir na estrada. Muitas delas sequer caminham ou fazem qualquer esforço, pois não faltarão aqueles que lhes arrastem nos ombros. Os outros cansam, suam, sofrem e se estropiam para que os seus endeusados prossigam sorridentes e cheios de felicidade.
A sorte da estrada é uma só: poder, dinheiro, influência. Eis as chaves da caminhada. Quem conta com a dádiva econômica, política ou de status, certamente nem perceberá se está caminhando sobre flores ou pontas de pedras, pois praticamente flutua. Nada lhe aflige, nada lhe ameaça, nada lhe causa perigo ou temor. O próprio poder é protetor, mas quem lhe serve de escudo e proteção é sempre aquele que lhe deve submissão ou que espera qualquer tipo de reconhecimento.
Mas nem sempre ocorre assim, nem sempre a pessoa consegue trilhar toda a estrada da vida à sombra do que possui. O mundo dá muitas voltas, e basta que o afortunado perca prestígio e poder, se veja sem a riqueza de antes ou ameaçado de viver como um ser comum, então se torna muito diferente. A estrada de flores dará lugar ao chão de terra batida, e mais adiante os espinhos poderão surpreender a cada curva.
Sem poder, sem dinheiro, sem influência, sem status, caminhando apenas como um ser comum, dificilmente chegará alguém para lhe matar a sede, saciar sua fome ou oferecer uma cadeira para descansar. Na lei dos comuns, cada um deverá vencer segundo suas próprias forças. E que não se imagine que o prestígio de outrora possa servir para qualquer coisa, pois o momento exige mostrar o que tem e não o que teve.
Então surge a imagem daquela pessoa poderosa que sempre caminhou acompanhada por um verdadeiro séquito de aduladores. Quanto mais poder mais pessoas ao redor, e todas servindo, acarinhando, numa bajulação de envergonhar os outros caminhantes. Mas bastou que o poder fraquejasse, que sua influência diminuísse e já não pudesse mais ser tido como mandachuva, para que a procissão fosse ficando esvaziada cada vez mais. E com a dissipação total do poder surge apenas a solidão como companhia.
Acaso continuasse poderoso, certamente que a procissão de bajuladores pisaria em brasas e espinhos, seguiria aonde ele fosse. Mas a situação agora é muito diferente. Não tem mais nada nem a ser desejado nem a oferecer, não é senão uma pessoa que caminha sem olhar para trás para não recordar o passado faustoso. E solitário vai seguindo porque ninguém se arrisca a acompanhar quem nada tem a oferecer como reconhecimento.
Assim ocorre na vida inteira e em diversas situações. A perda de prestígio e de poder tende a ser acompanhada de uma terrível solidão. Todos parecem sumir de repente. E no instante mais difícil, quando após a jornada chega o instante de pisar no deserto, então é que se sente quanto dói a areia ardente do abandono. Noutros tempos, tudo um oásis, mas agora somente a poeira, a tempestade, a solidão.
Quem quiser se manter no sombreado, sempre acompanhado e bajulado, que cuide de se manter no poder, na riqueza, com influência. É assim que funciona perante muitos. Não há solidão materialista, não há desprezo capitalista. Tudo é uma questão de impor ao outro uma condição de subserviência tal que nuvens sejam estendidas aos pés.
Do contrário, quando o tanto ter se transforma em pouco ou nada ter, a voracidade da solidão e do desprezo se revelará de forma assustadora. Mas não adianta relembrar os tempos de fartura para que os amigos apareçam. Estes não existirão mais. Contudo, aqueles outros, aqueles mesmos que sempre foram sinceros e fiéis a vida inteira, mas foram relegados pela cegueira da bonança, jamais estarão distantes.
Estes, além de não deixar que o amigo pise sozinho em espinhos, se manterão na postura de fiéis companheiros ainda que mais tarde, acaso a ilusão da fartura ressurja, sejam novamente esquecidos.


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Lá no meu sertão...


Lindo Sertão!



Querer (Poesia)



Querer


A tua boca
onde ela está?
o teu corpo
onde ele está?
o teu sexo
onde estará?

o que eu perdi
quero encontrar
se não está aqui
vou procurar

e você
e você aonde está?
estou aqui
venha me amar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – espantos



*Rangel Alves da Costa


Ouvi a minha voz sem eu falar. Vi minha feição sem ao menos me avistar. Ouvi meu próprio brado sem jamais gritar. Atravessei a ponte sem jamais passar. Fui pela estrada sem nunca caminhar. Trilhei o céu azul sem jamais voar. Rodei pelo salão sem nunca dançar. Bailei em meio a chuva sem pingo me molhar. Adormecido eu viajei sem sequer sonhar. Marinheiro eu fui sem jamais ter mar. Senti lábio no meu sem jamais beijar. Enchi os olhos d’água sem nunca chorar. Meu coração se alegrou sem jamais pulsar. Eu vi uma estrela sem ter um luar. Esperei a esperança sem desesperançar. Bebi do veneno sem me envenenar. Mas do doce do amor veio o açucarar. E um verso poético ponho-me a dedilhar. E trago a solidão em suave embriagar.


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quarta-feira, 29 de abril de 2020

DESTINO DA FLOR, SEGUNDO O HOMEM



*Rangel Alves da Costa


Um jardim. Ali uma flor. Mais adiante uma mão. Nada disso, contudo, possui importância. A flor é apenas flor. A mão é apenas mão. O dom da transformação, contudo, estará naquilo que o dono da mão desejar perante a flor.
A mão não possui impulso próprio, não tem desejo, não possui escolha, não age por escolha própria. Tudo depende da mente, do comando cerebral para que seja direcionada. É, pois, em obediência à mente que ela segura a caneta, apanha a folha caída, abre a janela, leva o lenço aos olhos. Desse modo, a mão permanece inerte até que seja despertada a uma utilidade.
A flor nasce para viver os seus dias, a sua estação. Acaso brotada em algum lugar distante, viverá a beleza de seus dias sem que chegue alguém para sentir seu perfume e se encantar com a formosura e perfeição de suas pétalas. Mas se em jardim ou nas proximidades dos caminhos, certamente que pouco tempo terá na planta, vez que logo será levada com galho e tudo para as mais diversas destinações.
A mão inerte, estática, sem que seja despertada pela mente, acaba tendo muito a ver com a flor nascida e permanecida na sua planta. A mão permanece em repouso até ser chamada, a flor permanece em descanso até que seja avistada por alguém. Mas a partir daí, do instante em que mão e flor saem do repouso, tudo começa a se transformar. Diferente da flor, que continuará sendo flor até secar e morrer, a mão ora terá singeleza ora se arvorará da rudeza.
Contudo, o destino da flor ao ser avistada passa a ser o destino que a mão que a recolhe pretenda dar. Como a mão não age sozinha, muito dependerá do sentimento da pessoa que a comanda para que ela tenha ou não uma digna destinação. E qual o destino da flor ao ser recolhida, ao ser arrancada da planta? Muitos. Desde o recolhimento do galho para em seguida ser jogada ao chão à sua utilização como expressão mais sublime de amor.
A mão recolhe a flor e somente a pessoa sabe o que fará dali em diante. Pessoas existem que dão mais importância aos espinhos às pétalas coloridas e perfumadas. Pessoas existem que preferem a poesia da flor ali mesmo na planta, permanecendo no jardim. Pessoas existem que a separa do galho para colocar na lapela ou nos cabelos. Outros a levam para casa e inventa um jardim num copo de água.
Muita gente junta flor com flor e faz um buquê. O poeta recolhe a florzinha e sai caminhando em busca de versos apaixonados. O enamorado escolhe a mais bela flor e sai correndo até a casa da bem amada para depositá-la no umbral da janela. O entristecido recolhe qualquer flor e vai deixá-la ao lado de uma fotografia de alguém que só deixou saudades. E o jardineiro se põe a chorar todas as vezes que não encontra mais flores para conversar.
Fato é que as pessoas geralmente não dão a devida importância às flores. Dificilmente alguém olha para uma flor e nela avista a beleza da vida, a poesia da natureza, a sublime e perfumada força da criação. São poucos que entendem a sua simbologia, o amor nela expressado, a primazia da vida em cada pétala que se abre em meio à sequidão. São muitos os que arrancam flores e deixam pelos caminhos, que pisam em pétalas como se estivessem destruindo espinhos.
Por isso mesmo é que à mão deveria ser dado o direito de agir por impulso próprio diante de cada flor. Não toda mão humana, aquela da guerra, da violência, da atrocidade, da chibata e do açoite, mas a mão verdadeira humana, humanitária, poética, amorosa, sensível, cuidadosa, da paz. À mão sentimento, à mão pulsante, à mão coração, eis a mão que não precisaria obedecer a ninguém para estar diante da flor.
A mão diante da flor talvez fosse o olhar romântico diante da paisagem ao entardecer, apenas apreciando sem nada modificar. Ou carinhosamente a recolhesse para colocá-la em cima da escrivaninha enquanto tece versos e depois enviá-la junto ao poema para a pessoa amada. Ou simplesmente tê-la diante do olhar como inspiração para a vida. Também imaginando que um dia ela estará por cima de suas mãos na hora da despedida.


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Lá no meu sertão...


Garanta o seu!



Paisagem (Poesia)



Paisagem


No horizonte
há um sol
há um monte
há uma nuvem
e um avoante

depois da janela
há um jardim
uma moça bela
um casebre
e uma cancela

e eu
eu estou aqui
mas meu olhar
voeja por ali
querendo avistar
o que ainda não vi.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – Mariazinha



*Rangel Alves da Costa


Mariazinha parece com Maria, que parece com Joana, que se afeiçoa a Bastiana. Ou a Marta, a Clemência, a Lurdes, a Paula, a Sônia, a Gorete. Não precisa um nome específico, pois todas Mariazinhas no seu dia a dia e no seu percurso de vida. Tantos caminhos desiguais, tantas alegrias e dores diferentes, mas no mesmo compasso da existência. Uma mulher, mulheres, de raças e feições diferentes, de pele tingida de cores diferentes, de vivências e sobrevivências em meios diferentes. Um só nome em todas: mulher. No barraco ela está, mas também no casarão. Vestido de chita ela está, mas também pode usar roupa de grife. Chinelo aos pedaços, pés descalços, ou nas alturas do salto alto. São todas mulheres. Contudo, há uma feição mais pujante e mais autêntica numa Mariazinha que vive num mundo bem além do urbano capitalizado, que se faz presente num meio onde ainda é possível sentir o aguerrimento labutador feminino. Nas entranhas de um mundo distante e empobrecido, no contexto de um mundo esquecido e solitário, eis que ela grita seu nome desde, ou mesmo antes, do primeiro cantar do galo. Mariazinha é tudo, é todas. Mariazinha é mulher e mundo.


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domingo, 26 de abril de 2020

SERTÕES, ROÇAS E VIDAS



*Rangel Alves da Costa


No passado sertanejo, de canto a outro a mataria fechada tomava conta de tudo. Depois, com o povoamento, muita mata foi derrubada para que os roçados permitissem a plantação. O plantio garante a sobrevivência de muita gente. Daí que as roças ainda fazem parte da paisagem logo depois da cidade.
Roças que se estendem pelas beiradas das estradas, cortando veredas, adentrando a caatinga. Roças maiores, roças menores, casinhas, casebres, casas de tijolo e barro, currais, chiqueiros, terreiros de galinhas, pastagens para a sobrevivência dos bichos.
As roças, ou o viver em propriedades interioranas - ou mesmo em fazendas, como costumeiramente se chama -, possuem um cheiro próprio. Não só o cheiro de mato, da terra sertão, mas um aroma tão próprio quanto suas paisagens. Cheiro de bicho misturado ao estrume. Cheiro de curral e de boi berrando.
Também o cheiro do barrufo subindo após a primeira chuva forte caída. Cheiro de sequidão, de fogaréu tomando tudo, alastrando calor e mormaço pelas suas distâncias. Mas também o cheiro da panela no fogo e o que o de comer de cada dia passa a exalar. E que cheiro de amanhecer: o perfume bom do mato em flor.
A roça tem cheiro de tudo de bom. Mas só quem vive na roça ou nela possui cancela ou porteira de entrada, para reconhecer cada cheiro. O café não apenas o café cheirando, o cuscuz no é apenas o cuscuz cheirando, a tripa na banha de porco não é apenas a tripa na banha de porco cheirando. Há uma magia em cada aroma que só sabe sentir aquele que com a roça convive.
Mas a roça é mesmo um mundo estranho. E muito estranho mesmo ao forasteiro ou desconhecido. Falando com o bicho, há que se imaginar que o roceiro malucou de vez. A senhorinha falando com a planta, logo se diz que está abilolada, ruim da cabeça. E o que dizer quando o menino vai logo cedinho despejar leite do peito da vaca no seu pratinho de estanho com farinha seca?
A paisagem da roça sempre traduz o clima da região. Às vezes, tudo é avistado vicejando, verdejante, numa moldura que tanta alegria causa aos olhos e ao coração. Noutras vezes, apenas a terra esturricada, as plantas entristecidas, os bichos magros gemendo suas fomes e sedes.
Mas não há como desejar que tudo de repente se transforme. O sertão é assim mesmo. Algum tempo de chuva e até muitos anos sem cair sequer um pingo d’água. E tudo isso fica bem demonstrado na feição de cada roça e até de seu humilde e singelo habitante. A feição sertaneja vai se modificando segundo o tempo lá fora e mais adiante.
Ora, o homem da roça, ainda que viva num mundo que tanta ama, vive entremeado de alegrias e sofrimentos. Entristece demais quando a seca aperta e sequer sabe o que fazer para dar água e alimentar seu rebanho. Mas também um sorridente e cheio de contentamento se a invernada foi boa e o seu mundo retomou o verdor molhado.
De qualquer modo, relembrar a roça é trazer à memória o cesto de palma, a porteira rangendo do curral, os estrumes tomando os solados, os berros e os mugidos, o voo dos passarinhos ao entardecer. Recordar a roça é rebuscar o sabor do leite quente tirado do peito da vaca naquele momento e derramado em prato de estanho já com tiquinho de farinha.
Recordar a roça é ter na memória o mandacaru, o xiquexique, a palma, a jurubeba. É relembrar as veredas espinhentas, as estradas empoeiradas, os caminhos que vão se encurvando e se espalhando. É em pensamento avistar a tem-tem guardiã, a galinha ciscando pelo quintal, o cachorro correndo por dentro dos tufos de mato.
Recordar a roça é sentir o cheiro do cuscuz ralado ainda no escurecido alvorecer. É se envolver pelo aroma do café torrado e peneirado em quintal, então fumegando por cima do fogão de lenha. É ouvir o chiado da banha de porco na frigideira e o cheiro forte da tripa de porco, do toucinho, do bucho, do pedaço de carne de sol.
Recordar a roça é mesmo na distância ouvir o vaqueiro cuidando de seu rebanho, vaqueirando seu bicho de pasto e curral, ecoando seus aboios e toadas para alegria das vastidões. É avistar o suor da luta, o cansaço do animal, a roupa vaqueira sendo pendurada pelos cantos da casa. O gibão, a perneira, a sela, o estribo, tudo.
Contudo, verdadeiramente recordar o sertão é jamais desapartar de seus clarões do dia ou da noite. Ter a lua grande, bonita, imensa, de dourado brilhoso, espalhando seus fulgores e canções pelas noites tão singelas e cativantes. Mas também o sol raivoso, voraz, cheio de queimor e abrasamento. E entre as duas luzes, a brandura do amanhecer e do entardecer. Em momentos assim, as roças e os sertões se transformam totalmente. Tornam-se apenas poesias.


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Lá no meu sertão...


O LIVRO MAIS ESPERADO DO ANO!



Perdi você (Poesia)



Perdi você


Em você
eu quis além
do que podia ter
ter mais amor
e além do amor
tudo em você

tudo em você
tudo meu
e tudo a ser
sua noite
e alvorecer
o céu da boca
mar de prazer

apaixonei
e quis além
do meu merecer
ceguei no amor
fiz de fel o prazer
e agora sei
perdi você.

Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – canção do olhar



*Rangel Alves da Costa


Os olhos cantam, ecoam uma bela canção. Certamente que nos deparamos com cenas horripilantes, com situações devastadores, com imagens dolorosas, com instantes arrepiantes. E disso não podemos fugir. Mas nossos olhos não presenciam apenas as dores e os sofrimentos do mundo. Nossos olhos não apenas avistam o sangue, a brutalidade, o grito de dor. Nossos olhos também encontram a poesia, a beleza, a meiguice, a singeleza. Mas muito do que o olhar encontra depende da pessoa que quer avistar. No sentimento está o espelho do bem. Na sensação está o despertar para o belo. No desejo de o melhor encontrar, então os olhos devem procurar o que realmente posso representar um bem à alma, ao espírito, ao coração. O que são flores, horizontes, janelas, manhãs, entardeceres, ondas chegando e partindo, coqueirais ao sabor do vento, barcos singrando as distâncias azuis? Nada para muitos. Mas tudo para alguns. E os olhos agradecerão os instantes de paz e de fortalecimento.


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quinta-feira, 23 de abril de 2020

“POR QUE NÃO EXPERIMENTA CANTAR?”



*Rangel Alves da Costa


“Por que não experimenta cantar?”, perguntou o passarinho preso perante o seu dono entristecido Uma imagem, do tipo charge no Facebook, me chamou atenção.
Nela, um homem entristecido diante das grades de sua janela, amargando as tristezas e a solidão do isolamento, é perguntado pelo passarinho que está logo atrás aprisionado numa gaiola: “Por que não experimenta cantar?”.
O passarinho também poderia perguntar: “Acha que canto por felicidade ou pra passar o tempo, ou por que minha tristeza é tão grande que me ponho a cantar para aliviar as angústias e desilusões?”.
“Por que não solta a voz e reinventa um sozinho ao invés de ficar todo entristecido perante as grades da janela? Olhe aqui, olhe pra trás e veja que não é apenas você que está diante de grades”.
“Então, já que está assim entristecido, nada melhor que tentar um longo e belo canto. Muitas vezes, mesmo sabendo de minha situação de prisioneiro, você vem aqui me pedindo, e até exigindo que eu cante. Então por que não experimenta cantar?”.
Diálogos possíveis a partir de uma imagem. Uma imagem que é uma metáfora de tão contundente. É como se o passarinho quisesse dizer muito mais: “É boa a sensação de estar se sentindo como um prisioneiro dentro de uma gaiola?”
“Estar atrás de uma grade, sem poder ter a liberdade de sair e fazer o que quiser, causa tamanho entristecimento? E você já imaginou como eu me sinto aqui aprisionado nessa gaiola?”
“Quando eu canto, então você acha que estou alegre, que me sinto bem dentro da gaiola, que me traz contentamento estando preso. Então também procure cantar diante da grade de sua janela, quem sabe assim irão imaginar que você está muito feliz!”.
Contudo, eu diria mais. Diria que somente nos instantes de tristeza e de dor, de necessária reclusão e falta de uma porta aberta para o mundo da liberdade, o ser humano passa a meditar sobre o que poderia fazer diante de outra situação.
Mas deveria refletir muito mais acerca da importância de se estar livre e do que fazer com a liberdade que lhe é concedida como atributo humano. E não só deixar o pássaro livre para voar e viver o seu mundo na natureza, mas igualmente permitir que as liberdades dos outros sejam respeitadas, que se dê a importância exata ao que o outro merece ter.
E também usar da liberdade futura para o bem maior de si mesmo e de todos. É que - e quase sempre - não há canção saindo da voz que faça alegrar um coração perverso ou pesaroso. Preciso será que se permita primeiro a alegria interior, através da liberdade de consciência.
Todo canto será bem-vindo e bem ouvido. Contudo, um canto com asas de liberdade, de paz e contentamento.


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Lá no meu sertão...


Sertão de amigos...



Chuva leve (Poesia)



Chuva leve


Chuva leve
chuvisco suave
como o viver
que é tão breve

um pingar ligeiro
quase chuviscar
como o viver
assim passageiro

mas encha
faz tudo molhado
e faz transbordar
a vida que abarca.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – coração da noite



*Rangel Alves da Costa


A noite tem coração. Não foi poeta que me disse, mas eu sei que a noite tem coração. Ora, se os sentimentos extravasam, se as sensibilidades se alastram, se os desejos se afogueiam, se as pulsações são incontidas, então não há que duvidar: a noite tem coração. Também é noite que os amores chamam amores, que as vontades se transformam em buscas, que as volúpias se transformam em gozos, que as chamas faíscam e os fogaréus abrasam. Tudo na noite. E uma noite que possui um poder assim, uma gesta de fazer o lobo uivar debaixo da lua e o amante pular proibidas janelas, certamente que em si contém uma força misteriosa. Há, na noite, um verdadeiro ressuscitar, uma explosão de renascimento. As cinzas novamente queimam, as águas voltam a correr, as veias ardem e a pele chamusca. E na lua, lá no alto em véu, aquele olhar a dizer para a noite: Eu daqui vejo tudo!


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segunda-feira, 20 de abril de 2020

O SERTÃO ENTRE CHUVISCOS E PINGOS D’ÁGUA



*Rangel Alves da Costa


De vez em quando, as noites se mostram chuvosas no sertão sergipano. Pouca chuva, mas alguma chuva, e fato sempre desejado pelo sertanejo. Qualquer pingo d’água é tido como dádiva sagrada.
Chuvas inconstantes, em verdade, mas caindo em pingos grossos de quando em vez. Também não de forma generalizada, mas apenas aqui e acolá, enchendo uma ou outra barragem. O alento, contudo, uma esperança boa no coração sertanejo.
Ao alvorecer tudo ainda está molhado, chuviscando de vez em quando. O tempo mais frio, mais preguiçoso, com pessoas recolhidas aos seus lares até um pouco mais tarde. Dormem um pouco mais, demoram-se mais para irem à luta.
Como costuma acontecer, chuvisco ao anoitecer e amanhecer são apenas ocasionais no sertão. O sol sempre bate à porta após o amanhecer. E chega volumoso, já aquecido, já ameaçador para o homem, mas principalmente para a terra e o bicho.
Dessa vez, contudo, a clareira não foi aberta. O dia amanheceu entre o chuvisco e o nublado. Quando o chuviscamento cessou o véu das nuvens continuou. Nada de sair o sol e de tempo aberto. Dessa vez, o sol esquecido de aparecer.
No sertão, o tempo nublado, como que nevoento, como que mais escurecido, acaba produzindo um retrato de mais singela poesia. Poesia escrita no ar, tracejada nas nuvens, versejante pelos arredores e horizontes. Nada parece existir de verdade, senão aquela plangência leve e lenta pelo ar.
Um tempo esmaecido, outonal, de cores ocres, ainda que não seja na estação da revoada das flores e folhas. Um retrato acinzentado, tingido na cor de uma leve melancolia. Sim, as cores do tempo chamam a outras visões sobre o instante.
Pelas estradas, onde as craibeiras já florescem seus reluzentes dourados, o esmaecimento do dia junto ao amarelado acaba produzindo paisagens saudades, ternas e entristecidas. Tudo muito belo, mas de uma beleza de versos tristes.
Os pássaros chegam em voo lento, sem cantigas ou madrigais. Os ninhos não piam como de costume. Os bichos do mato permanecem em suas tocas, os calangos sobem nas pedras tentando avistar uma nesga de sol. As estradas nuas, as ruas nuas, um quase silêncio.
No mundo acostumado pelo sol escaldante, pela luz encalorada por todo lugar, olhar para as distâncias e tudo avistar noutro semblante, certamente que causa estranheza na alma. E que se imagine o dia inteiro assim. Dia que se prolonga na sonolência e na pausa de tudo.
Como dito, desde a primeira alva do dia - e assim pelo dia inteiro - apenas o tempo nublado por todo o sertão. Os matos parecendo inertes, os bichos mais recolhidos, as pessoas mais silenciosas, tudo mais entorpecido.
E em muitas pessoas a propensão às saudades, às melancias, às nostalgias, às saudades. Ora, sem dúvida que paisagens se mostram tão aflitivas que acabam escavando no mais profundo do baú das recordações. Abrir as janelas sem sol, sem queimores e esvoaçamento, é chamar para si as saudades.
E aquela brisa mansa chegando e passando. A leve ventania cantando e indo embora. As portas fechadas, as janelas fechadas, ruas de poucas pessoas que apenas passam, e quase sem alegria. Apenas o nublado em tudo. Mas um menino corre atrás de uma bola. Aquela falta de sol lhe anima.
Certamente que muitos ficam desejosos que as nuvens acima logo se transformem em chuvaradas. Templo nublado é sempre esperançoso, é sempre uma promessa de a qualquer instante a chuvarada cair. Olhares se voltam ao alto. De vez em quando uma mão lança mão de um rosário. A prece esperançosa de chuva.
Uma aflição terrível também. O sertanejo logo começa a sonhar, a planejar, a querer que a chuva logo aconteça. Na chuva sua vida, sua sobrevivência, sua existência. E não só o homem, pois a terra também se remexe em suas entranhas e pede. E implora que chova logo.
Pelos rincões mais adiante, nas vastidões sertanejas, o mesmo semblante esmaecido. Por onde os olhos avistam e os passos imaginam chegar, o mesmo quadro anuviado. Nem faz sol nem chove, não cai pingo d’água nem o braseiro toma logo conta de tudo. Apenas as promessas das nuvens em pêndulo agonizante.
Pelas estradas além, e até nas lonjuras, a mesma paisagem, a mesma cor, a mesma situação. Talvez o sertão inteiro assim, nublado, anuviado. Nos percursos, trilhando as margens com suas casinholas, suas matarias, seus bichos e seus habitantes, sempre a mesma poesia enternecida.
No sertão, um tempo assim não se pode definir de outra forma senão através do poético. Uma poesia mista de alegria e tristeza. Alegria sim, pois porta aberta para a chegada da chuva. Porém, de tristeza também.
Uma tristeza diferente, sem dor, sem agonia, sem aflição. Uma tristeza de saudade, apenas. Mas não saudade de pessoa, daqueles que deram adeus ou de qualquer outra situação de partida. Apenas a tristeza saudosa trazida pelo olhar perante a paisagem nublada.


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Lá no meu sertão...


"O João de Barro pra ser feliz como eu..."



A casa (Poesia)



A casa


Pela porta aberta
do coração
ela entrou

era casa triste
solitária
vazia

mas logo florida
alegre
feliz

uma casa
de jardim e flor
de amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – pingos de chuva



*Rangel Alves da Costa


Não quero entristecer. Não quero apertar meu olhar nem soluçar na melancolia. Mas chove e na chuva é difícil demais de não sofrer. E se chove na noite, como agora chove, o entristecimento redobra como açoite de tempestade. Lá fora, os pingos caindo e mil motivos para o sofrimento, para a aflição, para a angústia. Um mistério, uma verdade. A gente está até alegre, contente e feliz, mas se começa a chover e de dentro de casa a vidraça começa a embaçar, a escorrer os pingos da chuva, então tudo aprece desandar. Em cada pingo uma recordação, uma imagem, um desejo de ter alguém. Nostalgia de beijos, de abraços, de afagos e de carinhos. Até que lentamente caminhamos e desenhamos um coração na vidraça. Um coração molhado, encharcado de amor e saudade.


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sábado, 18 de abril de 2020

A IMPORTÂNCIA DE TUDO



*Rangel Alves da Costa


Coisas existem que são tidas com pouca ou quase nenhuma importância. Quando se refere à pobreza, à carência, ao viver na humildade. Mesmo que se aviste, pouca importância será dada. Assim acontece.
E acontece porque a maioria das pessoas se contenta apenas com o exterior do que com as realidades interiores. E acaso o exterior já seja de pouca atratividade, então nem se dará o trabalho de percorrer um pouco mais aqueles caminhos.
Em local distante, à beira de estrada, entre os tufos de mato, depois da malhada, em local singelo e sublime: uma casinha.
Casinha humilde, simples, de barro, do visgo antigo, da argila lançada aos tufos sobre as ripas. Sua aparência não nega, pois uma casinha de barro mesmo.
Mas será que apenas uma casinha de barro, ripa de pau, cipó da mata, terra e visgo, tudo juntado para ser um lar no passado?
Aparentemente, apenas uma casinha, mas será que sua feição nada representa além de sua velha idade, de seu barro e portas sumindo, de sua sensação de desalento e abandono?
Ao seguir pela estrada, ao passar adiante, certamente se avistará apenas a casinha ao relento dos dias e dias noites, num tanto faz de continuar existindo.
Mas será que é sempre assim ou o olhar deve procurar a vida, seja do passado ou presente, quem dali jamais saiu em sua memória?
A verdade é que seja casarão ou casinha, em suas paredes, dependências e fachadas, sempre haverá uma história que precisa ser conhecida.
Por que foi ali construída, quem morou na casinha, por que foram abrindo a porta e saindo e saindo, deixando tudo à voracidade do tempo que a tudo vence, destrói e sepulta?
Apenas uma casinha, mas talvez uma história grandiosa na sua existência, talvez de tamanha importância no passado que até o tempo se acabrunha em ir derrubando o seu barro.
Por isso, nada existe que não possua alguma importância, significado e história. Tudo tem algo a ser contado sobre sua existência.
E assim com a casinha e com as pessoas. Muitos imaginam que pessoas humildes são como casinhas abandonadas e que, por isso mesmo, sequer merecem atenção, mas não é assim não.
Eis que somos casinha de barro. E muitas vezes, até mesmo depois de no passado termos sidos casa de paredes suntuosas e endereços conhecidos.
O tempo transforma o belo, definha o que se mostra imponente, leva ao chão o que se sentia como duradouro demais.
Somos casinha e seremos casinha de barro acaso desejemos o prolongamento no tempo, viver muitos anos. Mais tarde virá a certeza que o barro está despencando, caindo.
Não adianta querer que tudo permaneça irretocável. Também não adianta fugir da casinha já envelhecida porque a nova é mais confortável.
Tudo é importante demais, tudo deve ser respeitado, admirado e valorizado: na casinha e nas pessoas.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


Pensar a vida, pensar em tudo...



Uma saudade (Poesia)



Uma saudade


Uma saudade
em noite de lua
em céu estrelado
em vento soprando
em janela aberta
e olhos molhados

e sentir o abraço
e sentir o beijo
e sentir a pele
o calor do corpo
de tudo lembrar
sentindo saudade.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – palavras de agora



*Rangel Alves da Costa


Poderia ter anel no dedo e caneta dourada. Poderia ter cartão de visita e um olhar de distância. Poderia usar apenas sapato macio e gravata importada. Não é difícil ser mais o enfeite do que o conteúdo. Não é difícil esconder o que é para ser diferente. Até que tudo se mostre na realidade, sem ilusões, sem fingimentos, sem falsidades. A água gelada acaba e a mesa esvazia. Disso não há que duvidar. Ninguém tem tudo o tempo todo nem na quantidade que deseja ter. Um dia não encontra sequer uma moeda quando seja deseja apenas qualquer tostão. E o mais doloroso é não ter amigos, não ter palavra de alento, não ter uma mão estendida quando se deseja apenas a presença. Oh ensinamento tão verdadeiro: Vaidade das vaidades, tudo é vaidade! Desdenhar do outro é chamar para si a solidão. A soberba é castelo de areia em ventania. As máscaras caem e em seu lugar não fica face alguma: existem pessoas sem faces, sem olhos, sem sorrisos, sem nada que tenha algum proveito. Existem pessoas sem coração! Existem pessoas que abrem a porta e caminham apenas para negar a vida. Nada presta, principalmente as pessoas que prestam. Estas derramam lixeiras, arrancam flores, cospem em jardins. Estas dizem não até a si mesmas. Estas vão tecendo a vida do próximo em fios de maldade, da mentira e da falsidade. Enquanto isso, no logo ali escondido, passos e olhos que timidamente aparecem. Passos e olhos de pessoas humildes, carentes, discriminadas, mas que são e vivem de forma encantadora. Vivem para si, para o respeito, para a cordialidade. Na parede de barro apenas um retrato sagrado, descendo do prego uma fita abençoada, na mesinha um jarro de flores velhas de plástico. Um tamborete, uma moringa, um pote em cima da trempe e um alguidar. Uma vida de barro, quase. Mas que grandeza no coração, quanta humanidade no coração, quanta fé e com palavras no olhar dizendo: Eis a vida, e essa que tenho a viver, e vivo!


Escritor
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quinta-feira, 16 de abril de 2020

SILÊNCIO, SILÊNCIO...



*Rangel Alves da Costa


Calmaria de mar. Gaivotas em mudez de céus. Águas lentas, suaves, mansidões e azuis. O pensamento é ouvido na memória. Em instantes assim, escuta-se a voz interior. A brisa que passa canta. É fácil ouvir o seu canto.
Os horizontes se mostram em paisagens. Uma beleza tão apaixonante que não precisa de nenhum som para descrevê-la. Os olhos avistam e tudo dizem. O sentimento vai decifrando o que é poesia e o que é apenas realidade. Ora, é tudo silêncio.
Nada. Nenhuma voz. As folhas secas já não passam. O vento já não assobia. As vozes do tempo e da natureza parecem emudecidas. A boca providencialmente fechada. Nada caindo para cortar o silêncio e fazer barulho.
Que bom se de vez em quando assim acontecesse. O silêncio apenas, e a plenitude do silêncio, somente. Nada a dizer a si mesmo no momento. Nenhum sussurro, nenhum murmúrio. A voz sem voz e o grito maior do silêncio.
Assim mesmo, pois eis que de repente tudo silencia e alguém começa a imaginar o nada existente. No silêncio o nada, o vazio, o caos. E assim acredita por jamais ter ouvido ou sentido a sua palavra.
Sequer imagina que é do silêncio que nasce a voz, que surge a ideia, que o mundo se expressa, que a vida se mostra. É, pois, do silêncio que irrompe outro primoroso silêncio: aquele que necessita silenciar intimamente para ser ouvido.
É no silêncio que a prece ecoa às alturas, é no silêncio que o íntimo da alma procura sua razão de existir, que a pessoa se reconhece enquanto força que precisa se reconhecer muito mais. E por isso mesmo emudece para que outras vozes se soltem.
E uma verdade induvidosa: o silêncio é tão ou mais valoroso que a palavra. Mais que isto, há no silêncio um ato de comunicação tão intenso que se torna impossível não ouvir todos os gritos e ecos.
O silêncio é a voz íntima, interiorizada, num ato de comunicação da pessoa consigo mesmo. Mesmo sem a palavra dita, verbalmente expressada, há a voz que interage do ser para com o ser.
O silêncio é a confissão sem medo e sem demora. Em nenhum local ou instante da vida, o silêncio confessaria tudo o que tem vontade de dizer senão no próprio silêncio. Não há receio de palavras, apenas a voz no pensamento.
O silêncio nunca silencia. Mesmo que os espaços estejam calmos, plenos de quietude, sem nenhuma outra voz, ainda assim o silêncio vai busca no pensamento a palavra certa para o instante, num misto de confissão, de recordação e de simples ou profunda meditação.
É no silêncio que o grito ecoa mais alto e a voz brada seu uivo de lobo, mas apenas no próprio silêncio. Ora, vem a ideia, vem a memória, vem a nostalgia, e daí todo um arroubo que se traduz em gritos e brados.
Necessário que o ser humano silencie cada vez mais. O mundo já possui alardes e alaridos em demasia, a vida já possui algazarras e vozerios em demasia. E em instantes assim todo o silêncio se perde em espanto.
Necessário por que o homem tem que encontrar instantes para viver a si mesmo. Nenhum ser humano consegue viver sem ouvir suas próprias vozes interiores e com elas dialogar suas razões, suas aceitações e descontentamentos.
Necessário ainda que o homem silencie até que encontre sua outra voz. De nada vale apenas abrir a boca sem que a palavra surgida tenha valia. Nada adianta apenas falar se o expressado não possui sua razão de ser.
No silencia há o sopesamento do verbo, da expressão, daquilo que vai sair da boca enquanto palavra. Reflete-se no silêncio sobre o acerto do que vai dizer. Medita-se no silêncio sobre a validade e a necessidade do que irá expressar em palavras.
No silêncio há imagens, retratos, faces, feições. No silêncio há molduras, cores, sorrisos, aflições, angústias, tristezas. No silêncio há o som imaginário e tudo o que se deseje avistar. O silêncio permite o reencontro.
No silêncio da brisa, do vento, da aragem do entardecer, há muito além da palavra. Perante a brisa, a aragem e o entardecer, logo o pensamento vai encontrando suas asas e tomando os espaços para seguir nas distâncias.
Mas não precisa fechar a porta e a janela para que o silêncio chegue. Não será necessária a reclusão para que o silêncio se imponha. Longe da multidão e da voz, qualquer lugar serve ao silêncio, principalmente quando busca no seu cantinho um instante de paz.
Então silencie e fale. Você precisa ouvir a si mesmo.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Vem aí...


Mais forte ainda (Poesia)



Mais forte ainda


Nem perdi a esperança
nem desesperancei

mesmo a porta fechada
a janela abrirei

mesmo em dias sombrios
o meu sol eu terei

porque não perdi a esperança
nem desesperancei

ontem eu perdi o meu canto
mas mesmo assim eu voei

ontem eu já não tinha amor
mas tenho amor que guardei.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – ainda não sei nada não



*Rangel Alves da Costa


Fui catar um tiquim de história, um naco de coisa antiga, mas além do baú aberto com as relíquias do tempo, também encontrei a cerca, o arame, a porteira, a planta do mato, o arvoredo, o grão da terra, o verdoso acanhado e a sequidão. Encontrei o bicho, o mugido do animal, a palma pouca e o menino com enxada na mão. Encontrei um céu azulado e uma tem-tem voejando ao redor. Sigo assim, catando a escrita do chão, da paisagem, do homem e de seu mundo encantador. Comigo levo um embornal e um caderno aberto em minha memória. O que vejo, então escrevo no pensamento. E o que penso depois retrato em linhas tortas. E assim vou escrevendo a vida, indo ali e acolá, encontrando o conterrâneo sertanejo, ouvindo sua palavra nua, na gramática do sertão, para enfim ter a certeza que ainda não sei nada não. E quero tudo aprender, pois ainda não sei nada não.


Escritor
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terça-feira, 14 de abril de 2020

TOCAIAS SERTÕES ADENTRO



*Rangel Alves da Costa


Um mundo de sangue e medo. Um mundo de fogo e grito. Um mundo de jararacas e cascavéis. Um mundo onde a vida valia menos que um tostão furado. Um mundo de covardias e de brutalidades. Um mundo de tocaias e emboscadas, de jagunços e bandidos. Um mundo que existiu tão assim.
Os livros de história ainda contam. Mas a mata ainda sente nas entranhas o chispado do fogo e os corpos tombando sem vida. Páginas tão dolorosas que certamente diminuem a grandeza de um sertão bravo e lutador. Mas tudo assim mesmo. Para o assento do homem na terra, muitos tiveram que tombar pela força do rifle e do mosquetão.
A mata fervilha. Em meio aos carrascais sertanejos, os bichos parecem conhecer aquelas botinas que lentamente cortam seu chão. Os bichos, talvez amedrontados, abrem passagem à outra fera: o matador.
Jagunço, assassino de paga, pistoleiro de mando, voraz matador, desalmado capanga, pistoleiro feroz, bandoleiro a sangue frio, a bestialidade em pessoa. Ou, para muitos, o pior dos cascavéis sertanejos: aquele que faz tocaia ou emboscada e faz do rifle sua arma de fim de tudo.
Os bichos tinham razão em temer a passagem do desalmado. Boa coisa ele não ia fazer. Caminhando assim por dentro do mato, como que rastejando sua presa, já de rifle à mão, certamente logo daria o bote certeiro. Mas contra quem daquela vez?
Qualquer um poderia ser vítima daquela sanha assassina. No mundo sertanejo, qualquer inimigo ou desafeto do patrão, do coronel ou do mandante, poderia ser derrubado pela cuspida certeira daquele desalmado cascavel.
Cascavel por que uma das peçonhentas mais temidas das caatingas, dos tufos de matos e das distâncias de mataria. Ao invés de balançar o chocalho do rabo antes do ataque feroz, aquele cascavel mirava sua vítima, ajeitava o cano da arma, firmava sua mão no gatilho, e lançava seu bote.
A cada bote dado um ser desvalido. A cada bote cuspido do rifle, da arma de língua de fogo, era como se não houvesse mais salvação para nada. Muitas vezes, bastava um tiro, um disparo apenas, e o baleado já caia estrebuchando. E em meio a uma poça de sangue, a espera somente das aves carnicentas.
Um mundo de cascavéis perigosos era aqueles sertões. Cascavéis empunhando armas tão poderosas quanto as iras lançadas pelos senhores do poder. Cascavéis a serviço do mal, da maldade, do cruel comprazimento em ceifar vidas pelas estradas, pelos escondidos, nas curvas dos caminhos, nas passagens costumeiras.
Cascáveis cuspindo fogo e abrasados até os dentes. Uma gente tão desumana que sequer queria saber a motivação daquele que iria morrer por meio de seu bote certeiro. Apenas tocaiar, apenas emboscar, apenas matar e pronto. O trabalho estava feito. A paga? Um vintém de nada.
Vintém de nada por que muitos dos jagunços, capangas e matadores, já viviam escravizados nas mãos de seus poderosos patrões ou coronéis sertanejos. Cometiam crimes, buscavam proteção nas varandas dos latifúndios, e então se tornavam como que objetos de mando. Bastava haver uma disputa ou desavença entre poderosos, ou mesmo entre um poderoso e um zé-ninguém, para que os cascavéis fossem chamados ao bote.
Na maioria das vezes, bater à porta do coronel e pedir abrigo e proteção era sentenciar seu destino. Dali não sairia mais de jeito nenhum. Passava a guardar segredos que jamais poderia revelar, e bastava pensar em sair para ser cuspido de fogo por outros cascavéis.
Uma escravização da morte, pois daí em diante serviriam apenas para apertar gatilhos, para cuspir fogo e cortar orelhas ou dedos como provas do serviço feito. Não havia outra sina: matar, matar e matar. Na tocaia, no escondido do mato, poderiam esperar horas ou dias, mas só retornavam depois da cuspida de fogo.
Jagunços, assassinos e cascavéis. Tudo numa só maldade. O homem bicho, o homem peçonhento, o homem sanguinário, o homem carregando consigo o veneno letal. Todo o veneno no rifle. Na ponta da arma aquele olhar traiçoeiro de cascavel, no cano da arma os dentes afiados da peçonhenta. E bastava o bote.
Assim a vida nos carrascais sertanejos, num chão manchado de sangue e envenenado por homens desalmados. Quando as peçonhentas furtivas se ajeitam entre os tufos à espera de vítima, ali a certeza de mais uma morte de tocaia que logo acontecerá. Ali o matador ajeitando a mira, o cascavel preparando o seu bote.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Ao lado de Dona Zefa da Guia


Em você (Poesia)



Em você


Até pensei que era sonho.
uma ilusão do coração
estando assim desiludido
em amargurada solidão
então o vento me soprou
de um amor bela canção

em você
o canto bom no coração
em você
a bela flor da estação
em você
mais que amor uma paixão

até pensei que era sonho
mas era amor a despertar
na noite fria fez calor
com o meu peito a pulsar
então beijei a sua boca
beijei estrelas e o luar

em você
essa paz em mim agora
em você
que foge o tempo e a hora
em você
o doce bom do amor amora

em você
e ser e ter
você.

Rangel Alves da Costa