SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 31 de agosto de 2011

AOS OLHOS DO TEMPO (Crônica)

AOS OLHOS DO TEMPO

                             Rangel Alves da Costa*


O tempo tem olhos, tem. E os olhos do tempo, mesmo cansados ou rebrilhados pelas idas e vindas do próprio tempo, vão enxergando o que vem surgindo e o que vai sumindo, testemunham silenciosamente para, um dia qualquer, servir como espelho para quem quiser conhecer o passado, ou até mesmo o ontem.
E foi aos olhos do tempo que um dia, num passado distante, verdadeiros desbravadores das caatingas sertanejas, deixando os seus currais na beira do rio e avançando na mata virgem, incomodando a bicharada nativa, abrindo picadas no facão cortante, com os corpos cheios de valentias, esperanças e principalmente espinhos, foram fundando uma nova civilização: a civilização sertaneja.
Vencendo os perigos da mataria, a sede imposta pelas secas de sempre, o que norteava agora seus destinos era se situar na terra, avistar os mais vistosos descampados para fincar tronco e palha, erguer rústicas moradias e dizer que a vida agora seria de construção. Mulher não estava ao lado, a família mandaria buscar depois, o grande ou pequeno criatório, continuando lá nos currais na beirada do Velho Chico, seria tangido depois.
Depois de se erguer a tapera, encobri-la com folhagem resistente, e já ter feito o reconhecimento ao redor da possível existência de um pequeno veio de água, um riachinho, uma lagoa ou qualquer olho d’água pra matar a sede, o passo seguinte seria fazer o cercado, ali ao redor mesmo, que serviria de curral para os bichos. As pastagens estavam adiante e por todo lugar, até onde os olhos enxergassem e delimitassem como propriedade sua.
Por mais que o civilizador daquelas brenhas fosse homem de posses em outros lugares, tivesse riquezas noutras regiões, ali tinha que aceitar ser apenas uma pessoa qualquer procurando sobreviver, formar o cenário ideal para transpor até o lugar família e bens. Era uma nova existência que procurava construir. Desse modo, se ajeitando como podia quando dos desvãos e intempéries da natureza, ele reinventava a vida, como se o homem da idade do progresso regredisse ao estágio da pedra.
Parede de barro mais tarde, com dois ou três vãos, mas desde já o chão batido e esburacado, a poeira e o pó se espalhando por todo lugar; ali dois troncos servindo de banco, acolá dois troncos mais fortes fincados no chão para suportar a rede de dormir estendida logo ao entardecer. Panelas velhas, cacarecos, candeeiros, pratos de alumínio ou plástico, mochilas e sacos amarrados no alto dos cantos com a comida que existisse.
O naco de fumo, o cigarro de palha, a garrafa de aguardente para desinventar a saudade na solidão. Muitas vezes era pior, pois um gole a mais e as lágrimas começavam a correr pelos olhos, o coração apertava de doer demais, a boca trêmula dizia um verso cantando. Maria, minha Maria, aonde anda você?...
Na maioria das vezes era somente na natureza que encontrava o alimento que tanto precisava para sobreviver. Cabeça-de-frade retirada a pele espinhenta rende um fruto macio, adocicado e embranquecido; preá, nambu, codorna, peba, tatu e outras caças, havia de fartura naquele tempo; os umbuzeiros alimentavam os bichos e quem chegasse, araticunzeiro, araçaizeiro, jabuticabeira. Uma festa. E mais tarde o milho, o feijão, a melancia, a mandioca, a macaxeira, o maxixe, o quiabo. Água da cacimba, do tanque, do riachinho, do vasilhame com a benção juntada das goteiras em épocas de chuvaradas. 
Só tinha um problema. Para a vegetação nativa, formada principalmente pelas catingueiras, umburanas, facheiros, mandacarus, xiquexiques, croatá, velame a empestear, e muitas outras espécies que se juntavam na mataria, as constantes estiagens não era problema algum. Contudo, para o homem que precisava sobreviver ali era muito diferente. Consequentemente, por vezes a terra esturricava de não nascer nem erva daninha. Não adianta plantar nada, não adiantava limpar o mato e espalhar semente. A cor da paisagem, cinzenta e triste, já dizia que a seca estava mesmo de acabar com tudo.
Mas quando as chuvas caíam, tão fortes e tempestuosas que eram, a casa inteira molhava. Zunindo a ventania lá fora, as plantas dançavam ao sabor da molhação divina. E que festa na natureza, por debaixo das moitas, embaixo das pedras, nas tocas e grutas onde os bichos se escondiam. E com as chuvas aquele bafo subindo da terra, aquele cheiro forte de terra molhada significando renascimento, esperança, uma nova vida até a próxima seca chegar novamente.
E de repente, nesse vai e vem de um tempo que parecia eternidade, de um lado a outro do sertão as vilas já brotavam e famílias e mais famílias se achegavam para dar continuidade à nova civilização que surgia. Grande parte da terra já tinha o seu dono, as cercas já dividiam as propriedades. Uns mais ricos, outros mais pobres; uns com mais criatório, outros com mais plantação; uns com mais valentia e outros na paz do seu dia-a-dia.
E noutro dia o sertão deixou de ser apenas um lugar para se tornar povoação, cidade, centro urbano com destino próprio. Mas o homem continuou o mesmo por muito mais tempo, continuou sendo realmente acima de tudo um forte. Até que um dia disseram que era feio ser chamado de matuto, caipira e sertanejo, e muitos guardaram seus chapeus de couro, rolós de couro cru, alpercatas e gibões, embornais e alforjes de caçador e se tornaram simplesmente em pobres e miseráveis. Mesmo enriquecidos, mas tão pobres e miseráveis.



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Idas e vindas (Poesia)

Idas e vindas



Ah, sim, minha alma dói
tudo em mim atormenta
desde que pisei em espinhos
desde que a chuva e o sol
foram guaridas pelos caminhos
desde que saí ao entardecer
pela estrada procurando você
desde que encontrei o bilhete
com palavras de falsete
dizendo que se quissesse fosse
partisse para mostrar que ama
como se tudo fogo sem chama
como o que um dia construído
tão fácil assim ser destruído
e depois me pedir que vá
seguir para encontrar e provar
que ama demais na humilhação
mas atendi seu pedido senhora
por isso estou voltando agora
cheio de tormentos pelo corpo
mas feliz e imensamente feliz
porque encontrei o que quis
você tão cheia de imposições
que não pude de volta carregar
e deixei sua vida e tudo por lá.



Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 16 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 16

                                         Rangel Alves da Costa*


O advogado ouviu bem a pergunta da estagiária, e tão bem que um terrível sentimento de culpa se apossava do seu corpo inteiro. Ainda diante da pintura, não enxergava mais paisagem alguma, pincelada nenhuma, nada de concepção artística, mas apenas a imagem daqueles dois rapazes jogados numa imunda e desumana penitenciária por culpa, máxima culpa, sua.
De repente a pintura a óleo havia se transformado numa imagem dramática, dolorosa, bárbara, atroz, inconcebível para quem estivesse do lado de cá dos muros. Mas que coisa terrível, seres humanos jogados ali feito bichos, espalhados pelos cantos em meio a doenças, sujeira, podridões, e eles também tão podres, tão ratos, tão baratas, tão vermes, tão esgotos, tão imundícies. Não mais marginais, não mais animais enjaulados, não mais apenados, mas tão-somente condenados à desvida, à desvalia, à completa desumanização. Pessoas não eram, seres humanos com nome e sobrenome, famílias, filhos, esperanças, sonhos, não eram mais de jeito nenhum. Sim, uns ratos, uns cachorros doentes, umas feras leprosas, uns restos de porcarias, de repelências, umas faces nojentas, feias, asquerosas, sedentas de tudo, principalmente de liberdade. Sim, uns trapos andantes, uns fantasmas falantes, uns mortos-vivos esperando a morte total, plena, consciente, porque o inferno muitas vezes é preferível à prisão. Sim, uns olhares distantes, uns olhares carentes, uns olhares cegos, uns olhares que não enxergam mais nada porque muitas vezes têm os olhos recobertos pelo lenço da injustiça. Sim, umas mãos ossudas, uns braços trêmulos riscando no chão palavras que talvez não pudessem dizer pessoalmente nunca mais: João, Maria, Estefânia, Luizinho, Joca, Zezinho, minha mãe, meu pai, meu filho, minha família, minha esposa, minha namorada, minha vida. E depois desenham uma porta se abrindo, uma cancela se abrindo, um muro sendo derrubado, um portão totalmente livre para quem quisesse passar, e depois uma estrada, um sol bem bonito, uma lua bem cheia, um rio, um passarinho voando, uma nuvem, uma bola subindo no ar, um olho, uma boca aberta, um sorriso, por fim rabiscam uma casa e escrevem na porta “voltei”. Quantos sonhos jamais realizados, quantas esperanças impossíveis, quantas crenças no irrealizável, pois tudo isso não é permitido se fazer ali, senão lutar para continuar sobrevivendo até o dia que entrarem para as estatísticas dos apenados mortos ou quando gritarem chamando os seus nomes e dizendo que vão apanhar suas coisas que já vão sair, que vão obter a liberdade, que voltarão ao mundo que por enquanto, ou infinitamente, não será mais aquele de antes. Os ex-presidiários não têm mais mundo, mas um submundo, imundo, profundo demais para continuarem fugindo da eterna culpa. Até porque ex-presidiários não são mais pessoas comuns, não são mais pessoas humanas, não são mais nada, apenas aqueles que fizeram isso ou aquilo, apenas aqueles que mataram, roubaram ou estupraram, apenas aqueles que acabaram de sair da penitenciária, apenas aqueles criminosos, apenas aquelas pessoas perigosas que não são mais úteis para viver em sociedade, para terem novas oportunidades na vida, apenas os detentos, os ex-detentos, apenas aqueles aos quais não se deve mais confiar de jeito nenhum. Mas enquanto estão enjaulados, por trás dos muros da vergonha, são simplesmente bichos sobre os aterros da maior miséria humana, que é uma penitenciária. E de repente enxergou Paulo, viu Jozué, mas meu Deus, o que fizeram com os dois que mais parecem restos horrendos vagando?
Dr. Auto Valente naquele momento via isso tudo retratado na pintura, como se as cores do artista famoso ganhassem tons de total enegrecimento, num fundo de tristeza e solidão arrebatadoras, tudo emoldurado pelas mãos ardilosas daqueles que fazem da justiça um desvio de finalidade e meio de propagar o injusto, o desumano, o contrário aos mais elementares princípios que resguardam os direitos humanos. E naquele momento se sentia também pintor, responsável por ardilosamente permitir que aqueles dois inocentes figurassem naquela paisagem tão sombria.
Olhando o advogado permanecendo ali em pé, demorando demais para responder às suas indagações, Carmen levantou e, ainda por trás do birô, perguntou se ele estava bem. Ouviu uma voz estremecida dizendo que sim, que não se preocupasse não que ele estava muito bem, somente um tanto tomado de emoção pelas lembranças que aquela paisagem lhe causava. Logicamente mentiu para disfarçar, e nem teria cabimento que os outros ao menos imaginassem o quanto havia andando sobre brasas três minutos atrás. Ainda na mesma posição, pediu por gentileza que ela repetisse a pergunta.
Então Carmen não se fez de rogada: “Tinha simplesmente perguntado se o senhor já havia conduzido qualquer processo, na defesa de cliente, com falta de ética profissional, negligência ou mesmo omissão ou ainda descaso com os procedimentos”.
A pergunta teve que ser feita duas vezes para que ganhasse tempo e buscasse uma resposta menos mentirosa. Não poderia jamais confessar que já havia errado tanto, conduzido propositalmente clientes à derrota, atuado sem qualquer senso de ética ou moral. Não abria mão de carregar consigo a certeza de que muitas coisas, talvez a maioria, os outros não precisavam saber. Naquele caso não seria diferente. Então, virando-se e olhando bem no fundo dos olhos da moça, falou:
“Minha cara, excelente pergunta e com resposta que qualquer um poderia dar, mas vou falar a verdade contigo. Acredite no que vou dizer como se acredita na própria vida, na própria existência. Errar é humano, você bem sabe e enquanto pessoas vivemos errando aqui e ali, a torto e a direito. Pessoalmente sou uma das pessoas que mais erra no mundo, confesso sem nenhum problema. Sou vaidoso demais, egoísta, até egocêntrico, perfeccionista em demais, muitas vezes desmedidamente orgulhoso. Sou também ciumento, possessivo, agressivo demais na defesa daquilo que é meu. Mas por outro lado, acredite, sou anjo de candura, preocupado demais com o próximo, amigo pra o que der e vier. Contudo, enquanto profissional, também acredite porque é a mais pura verdade o que vou dizer, jamais cometi um só deslize com qualquer cliente meu. Quando sou contratado explico a situação, as dificuldades do processo, as possibilidades de vitória e de derrota, exatamente para que mais tarde não possam dizer que enganei, que disse que faria uma coisa e não fiz, que garanti vitória e veio um revés. No aspecto profissional procuro ter o máximo de correção e de zelo, como você já deve ter percebido, atuando sempre com o máximo de ética, responsabilidade e respeito ao cliente e procurando ainda, acima de tudo, que a lídima justiça seja sempre feita”.
Olhando também nos seus olhos, se esforçando o máximo para não explodir de raiva, gritando por dentro um monte de coisas, ela simplesmente disse que estava agradecida pela resposta inteligente, e que acreditava que ele, profissionalmente, fosse assim mesmo. Contudo, se o advogado tivesse o dom de ouvi-la no seu silêncio certamente ouviria: “Seu mentiroso, salafrário, vil, desprezível...”.

                                                 continua...






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terça-feira, 30 de agosto de 2011

SANGUE ESCORRENDO NO SOL (Crônica)

SANGUE ESCORRENDO NO SOL

                                  Rangel Alves da Costa*


Por ser testemunha de todas as guerras no sertão, todas as batalhas cangaceiras no seu solo, todas as vinditas pela terra no seu chão, todas as lutas pela sobrevivência no seu leito árido de espinho e massapê, o sol sertanejo se encheu um dia e ainda transborda sangue cheirando a suor.
Desde muito tempo que o chão sertanejo vem sendo constantemente demarcado nos seus limites através de sangrentas disputas. Num passado mais distante, onde o coronel latifundiário expandia suas posses a todo custo, aquele vizinho que fosse empecilho à sua sede de ter sempre mais estava marcado para morrer. Ou cedia ou não tinha saída.
Urubus e outros animais carniceiros velaram muitos corpos que jaziam esquecidos nas beiras das estradas, nos confins da mataria, embaixo das catingueiras, dos cedros, dos umbuzeiros, mortos de tocaias, na falsidade, na mais abjeta covardia. Pequenas cruzes de garranchos indicavam as inúmeras mortes ao desalento, vidas que deixavam para trás viúvas empobrecidas e filhos sem nenhum destino.
A fama de um sertão violento correu mundo. Até hoje o citadino olha com reserva para o sertanejo, sempre enxergando nele resquícios de um tempo de rixas, vinganças, juras de morte, perseguições, desentendimentos baratos que causavam tragédias. Nada disso mudou muito, pois a violência persiste desenfreada. Só que antes a lide sangrenta era coisa séria, com evidente motivação para toda tragédia que houvesse.
Ao lado das contendas envolvendo a honra das famílias, as lutas pelo poder político e outros poderes, bem como as inimizades construídas desde outras gerações, também se viam a violência barata, as brigas e mortes motivadas por embriaguez, disputa de vizinhos, histórias passionais, desavenças que começavam numa troca de tapas e terminava na bala. Ainda assim muito diferente do que se vê hoje em dia, quando a discórdia e a inimizade pautam a maioria das relações entre conterrâneos.
O sangue então jorrado não é mais na vermelhidão abjeta das tocaias e emboscadas, mas numa covardia igualmente abominável, que é da violência importada dos grandes centros urbanos. As dores, os sofrimentos, as mortes matadas e as mortes em vida causadas pelas drogas, pelas armas potentes utilizadas nos roubos a propriedades, nos assaltos à luz do dia, no medo espalhado por todo lugar. E não há violência maior do que um sertanejo viver de porta fechada, tremendo lá dentro, por medo do inimigo que pode chegar a qualquer instante.
Se hoje o sangue que jorra na terra sertaneja é fruto da covardia, noutros tempos pode-se afirmar que havia honra até em matar. Os pistoleiros, jagunços, capangas ou homens do coronel, do político ou do latifundiário não saíam por aí atirando em qualquer um, saqueando casas e propriedades, destruindo tudo que encontrasse pela frente. Como naqueles tempos os poderosos viviam cercados de inimigos do mesmo quilate, geralmente seus cabras serviam como escudo e proteção quando, aí sim, se entregavam numa sagacidade sanguinária desmedida.
Rios e mais rios de sangue encharcaram o sertão quando o cangaço se espalhou pelos quatro cantos e fez suas vítimas. Primeiramente com os bandos primitivos de audazes homens do seu tempo como Jesuíno Brilhante e Antonio Silvino, e depois na voracidade e disposição de Lampião e seu bando. No cangaço residia a violência justificada, a luta com claros objetivos, mas também exacerbadas perseguições que vitimavam jovens e inocentes.
No auge do cangaceirismo, lá pelos idos de 1930, tanto os cabras do Capitão Virgulino como a polícia que vivia em seu encalço espalharam um terror desmedido, fazendo todos os tipos de vítimas não só entre contendores, mas principalmente em meio à população sertaneja. Nas cidades, lugarejos, fazendas e descampados o medo rondava dia e noite, os gritos cortavam os silêncios amedrontados assim que tomavam conhecimento da aproximação tanto dos cangaceiros como da volante.
Assim, na terra árida que se pisa hoje sonhando que ali brotará alguma coisa, algum alimento, algum flor nordestina, num tempo remoto tudo foi palco de guerras infindáveis. Em cada canto e cada coito, em cada moita fechada e por trás dos pés de pau, a morte rondava faceira, fria, já assassina sem apertar o gatilho. Mas não somente isso, não somente quando a bala varava a vítima, mas também nos lanhões rasgando os corpos dos que corriam desesperados, nos rostos cortados pelos espinhos e galhos, no corpo inteiro marcado por uma vida cheirando a sangue.
Disso tudo só se salvou a história. Mas da violência barata de hoje, num banditismo covarde escondido por trás de bandeiras modernas, nem a história, que mais tarde cuida de relembrar o que grandiosamente existiu, guardará em si uma recordação sequer de tamanha vileza e abjeção. Contudo, a violência injustificada é a que mais doi, mesmo que amanhã uma dor maior faça esquecer tudo



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Bela bela (Poesia)

Bela bela



Não sei mais
qual é o teu nome
como eu te chamava
como eu gritava
pois os meus olhos
calaram as palavras
calaram toda voz
e somente sei
o que somente vejo
bela bela

e tão bela és
nesta sublime feição
neste meigo olhar
neste faceiro caminhar
neste espelho de corpo
a beleza a espelhar
que até toda beleza
da beleza da vida
te ama e diz
o quanto és
bela bela.


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 15 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 15

                                         Rangel Alves da Costa*


Dr. Auto procurou atender à curiosidade do amigo informando que Carmen Lúcia era apenas uma mocinha que estava no escritório atuando ao mesmo tempo como secretária e estagiária, vez que não demoraria a se formar em direito. Explicou que era uma boa e honesta pessoa e que quanto a ela não se preocupasse de jeito nenhum.
Com os olhos brilhando, agora visivelmente nervoso, o deputado retrucou:
“Lá vem você novamente com sua meninice, homem de Deus. Parece criança, parece não entender que a gente não deve confiar nem no próprio travesseiro, em nós mesmos, em nada. Perece que você está esquecendo que o que fez com aqueles dois pobres rapazes e com suas mães foi uma coisa nojenta, abjeta, uma sem-vergonhice sem tamanho, pois mentiu o tempo todo que estava fazendo a defesa correta deles, se esforçando de corpo e alma para livrá-los da prisão, quando, na verdade, estava iludindo, falseando, plantando as sementes da condenação. E ela, como pessoa inteligente e futura advogada, basta botar os olhos naqueles processos e verá que você não fez praticamente nada do que poderia fazer, foi omisso nos procedimentos, nos remédios jurídicos que os casos exigiam, perdeu prazos, esculhambou com tudo. Verdade é que isso não saiu barato, pelo contrário, pois até o carro você já trocou, já tá com um novinho em folha, e graças ao empresário pai da mocinha e ao salafrário do Alfredinho Trinta Por Cento. Mas certamente você guardou a cópia daqueles processos no cofre particular, não foi?”.
E o Dr. Auto, agora também nervoso, tentou argumentar: “Mas deputado, trata-se de uma menina séria demais, que jamais tencionaria ao menos em comentar nada daquilo...”.
Então, inesperadamente o deputado falou o que o causídico não gostaria de ouvir de jeito nenhum:
“Você vai ter de despedir essa mocinha. Procure uma justa causa e demita ela imediatamente. Não, não, pois assim seria o fim da picada, pois se ela já tiver inteirada sobre as maracutaias vai dar com a língua nos dentes, vai dizer às mães, pode até espalhar na imprensa e então será o nosso fim. Como vou ter morte certa, primeiro mando dar um jeito em você, seu desprecavido. Deixe essa mocinha, essa tal de Carmen Lúcia comigo que vou pensar o que fazer com ela”.
“Mas deputado, o senhor não está pensando em?...”, indagou o advogado, levantando aflito. E o deputado Serapião Procópio não respondeu mais nada, apenas colocou o terno, ajeitou a gravata e saiu sem se despedir nem olhar pra trás.
O advogado conhecia esse estranho temperamento do parlamentar e deixou pra lá, apenas pegou sua pasta e decidiu voltar ao escritório. Entrou no seu ambiente de trabalho, quase já hora do almoço, mas a mocinha continuava ali, mantendo sua costumeira pontualidade. Dessa vez não se dirigiu diretamente à sua sala, como costumava fazer e de lá chamá-la para dar ordens ou pedir alguma coisa. Resolveu cumprimentá-la e arrastar uma cadeira e sentar ali mesmo próximo ao birô, defronte a ela.
Ao sentar, percebeu que ela cuidava nuns rascunhos, transpondo alguns escritos avulsos para sua agenda. Após retornar os cumprimentos, silenciosamente esperou que o patrão falasse alguma coisa. Era muito estranho ele estar ali, sentado diante dela, fato que raramente acontecia. E quando acontecia era sempre para reclamar da vida, da solidão que sentia, da falta que fazia uma boa esposa. Ela entendia muito bem o significado disso e sempre respondia que mais cedo ou mais tarde ele encontraria a mulher ideal. Nesse aspecto sabia se defender muito bem.
Com ele continuando ali sentando, repentinamente ela pensou num monte de coisas, mas resolveu esperar. Se fosse falar alguma coisa naquele momento certamente perguntaria por que ele havia feito aquilo com os rapazes e suas mães, por que tinha mentido tanto o tempo todo e principalmente por que ele estava ajudando também a condenar aqueles dois inocentes. Tais pensamentos lhe encheram de rancor, de profundo enraivecimento, porém fazendo tudo para não demonstrar que não suportava mais nem olhar na cara dele.
Mas, enfim, o causídico falou primeiro:
“Carmen, a essa altura do curso certamente você já estudou ética profissional, não foi? Você acha que o advogado, enquanto profissional, deve seguir os preceitos éticos e morais a todo custo?”.
Ela gostou da pergunta e imediatamente se perguntou se ele de certa forma não estaria se martirizando pelas suas indesculpáveis condutas, mas esperou para ver o que viria depois. “Desculpe Dr. Auto, mas por que essa pergunta?”. E ele prosseguiu:
“Quando eu ainda estava na universidade os professores falavam da importância dos brocardos jurídicos, das expressões próprias do mundo jurídico, da importância da filosofia, da arte e da retórica no direito e consequentemente na vida do advogado. Mas falavam principalmente na importância da ética na vida do operador do direito, pois segundo o professor o profissional que não tem tiver comportamento ético não preservará sua moral, será desacreditado e não demorará a ser rejeitado pela sociedade. O comportamento ético correto dura para ser percebido, mas tudo que for antiético se espalha como cinzas ao vento.  A ética, segundo ele, é o verdadeiro patamar onde se assenta o fazer do profissional, pois a nobreza na conduta é o próprio reflexo da moral da pessoa...”.
Continuava achando interessante demais, e por isso mesmo interrompeu para colocar mais chama naquela fogueira:
“Existe uma classe de advogados que realmente age contrariamente a qualquer senso ético, de toda conduta ética, de qualquer aspecto moral, e são muitos que existem por aí. Mais do que eu o senhor sabe muito bem que se fosse possível certos tipos de advogados trabalhavam para os dois lados, negociavam informações para partes adversas, enlameavam completamente o direito. Agem erroneamente não só com os clientes, mas também com os processos. Mas por outro lado existem outros advogados, como o senhor por exemplo, que são altamente corretos, conduzem os processos com responsabilidade e por isso mesmo são tão confiados pelos cliente, não é isso mesmo?”.
Certamente que ele sentiu íntima e dolorosamente tais observações. Levantou e se dirigiu até a parede, ficou de costas para ela observando as paisagens numa pintura e disse: “É isso mesmo Carmen, é isso mesmo. O advogado que não tem ética não deve exercer esse mister tão importante, pois se trata, muitas vezes, da vida e da liberdade das pessoas, dos seus bens e da sua honra. Pelo visto você aprendeu muito bem o que é ética. Será uma excelente advogada se continuar pensando assim”.
Com ele ainda de costas, Carmen aproveitou para fazer um questionamento que o faria repensar muito sobre suas ações. E perguntou: “O senhor jamais conduziu qualquer processo com falta de ética profissional, desrespeito aos clientes ou descaso com os procedimentos, não foi mesmo Dr. Auto?”.

                                                     continua...






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segunda-feira, 29 de agosto de 2011

CORAÇÃOZINHO AFLITO (Crônica)

CORAÇÃOZINHO AFLITO

                             Rangel Alves da Costa*


Tia moça velha, solteirona, um tanto desesperançada de cheiro e dengo, muitas vezes se torna um problema sério quando a sobrinha procura conselhos amorosos. A dita, coitada, sempre cheia de mágoas e revoltas porque chegou àquela idade sem cheiro de suor de homem a seu lado, dificilmente expressa as coisas boas que a mocinha tanto deseja ouvir.
Então a mocinha chegava saltitante e dizia que ele, o paquera da escola, havia sorrido, soprado um beijo nos lábios e piscado levemente um olho na sua direção.
Sempre se abanando por causa do calor que lhe era peculiar quando ouvia falar de homem, a solteirona dizia que aquele era o tipo de rapaz que não prestava, pois o verdadeiro enamorado não olha assim nem faz gestos obscenos, mas escreve lindos madrigais e manda-os entregar acompanhados de flores ainda orvalhadas.
E a mocinha chegava correndo, cansada, com o rosto completamente vermelho de satisfação e nervosismo, e procurava a tia estendida com olhares pecaminosos na janela e perguntava se era feio uma menina aceitar de presente uma maçã do amor enviada por um pretendente.
A solteirona se voltava para a sobrinha, ia logo abrindo o abanador florido, e respirando profundamente e caminhando de um lado a outro da sala, quase não respondeu, levando a mão aos olhos para colher uma lágrima. E com a boca trêmula disse que nunca aceitasse, sob hipótese alguma, maçã do amor oferecida por rapaz. Isto porque um dia ela aceitou uma, gostou, e foi como tivesse mordido a maçã do pecado e do abandono.
Outro dia a mocinha chegou em casa todo feliz e perguntou se ela gostava de poesias de amor, pois havia acabado de receber três folhas repletas de lindos versos, mas uma pena que abaixo não tinha o nome de quem escreveu especialmente para ela, mas apenas dizendo que tinham sido escritas por um jovem apaixonado.
Quando ouviu falar em poesias, e de amor, a coitada da solteirona entristeceu ainda mais, ficou ruborizada e abriu mais a janela por causa do calor repentinamente insuportável, que lhe subia pelas pernas e ia parar nas bochechas do rosto. Ao passar o olho na primeira folha disse logo que era uma afronta aos sentimentos de uma mulher um jovem enviar quadrinhas e trovas rimando amor com dor e sabor com dissabor. De jeito nenhum, não leria de jeito nenhum, e que ela somente o agradecesse quando soubesse escrever versos inspirados em Shakespeare ou, no mínimo, Vinícius e Florbela.
Mais uma vez ela chegou correndo, se tremendo toda, com os laços do cabelo desfeitos e a roupa disforme, correndo em direção à velha titia que suspirava e chorava olhando um álbum de fotografias que guardava escondido. E foi logo perguntado à boa mulher se ela deveria aceitar conversar com ele durante o recreio, embaixo da figueira do pátio, pois o jovem havia mandando implorar esse rápido encontro.
Jogando rapidamente o álbum por debaixo das coisas e enxugando rapidamente os olhos molhados, ela fingiu que cantava e depois pediu à sobrinha que repetisse a pergunta. Assim que ouviu foi logo dizendo que se esse rapazinho fosse pessoa com boas intenções não andava propondo encontros às escondidas, mas primeiro viria ali na sua casa, falar com seus pais, e perguntar se podia olhar amorosamente para sua filha.
A mocinha não suportou mais ouvir tantas imposições, tantos lengalengas, tantas objeções. Jogou o caderno e os livros em cima da mesa e disse que já estava cheia daquilo tudo, de querer ser boa e agradável, de respeitar a opinião da tia, e esta dizer que tudo que dissesse respeito a amor, a namoro, a encontro, a paquera, era feio, era pecado, era coisa do outro mundo, que nada era assim nem assado. E disse mais que até parecia que ela nunca tinha namorado.
Disse isso e voltou atrás no mesmo instante, pois lembrou que sua tia continuava solteira porque talvez houvesse sido sempre rejeitada pelos rapazes. Aproximou-se dela e deu-lhe um forte abraço, pedindo perdão se lhe havia magoado. Chorando de se acabar, a pobre mulher pegou a sobrinha pelo braço e a levou até a janela.
Passou um passarinho voando e ela disse à mocinha que quem deveria pedir perdão pelas palavras sempre duras era ela, pois igual aquela pequena ave que já seguia adiante, o seu tempo de sonhar talvez não passasse mais diante daquela janela. Mas ela não, que naquela idade era como a brisa do entardecer, cujo coraçãozinho aflito tinha razão de querer logo ser ventania.



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Ser poeta (Poesia)

Ser poeta



Poeta
que se diz poeta
apenas diz
não sente a dor
nem o amor
da poesia

poeta
que se faz poeta
apenas faz
a ilusão do outro
não é iludido
na poesia

poeta
que vive poeta
apenas vive
não sobrevive
da poesia
que não é sua

poeta
um dia poeta
sempre profeta
do inexplicável
mistério do amor
que virá no verso
jamais escrito.


Rangel Alves da Costa
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NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 14 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 14

                                         Rangel Alves da Costa*


Ainda que reconhecidamente inocentes, menos na deliberação absurda da polícia e do magistrado e da promotoria daquela vara criminal, sobre as condenações de Jozué e Paulo o advogado não tinha nenhuma dúvida. Não demoraria muito e seriam encaminhados à penitenciária apropriada aos apenados em regime inicialmente fechado, principalmente porque não teriam o direito de apelar em liberdade.
Mas nem apelação haveria, sabia também o Dr. Auto Valente. Bastava esperar o trânsito em julgado das sentenças, os autos serem enviados ao juízo de execução e pronto. Seria somente considerada a detratação perante os dois, ou seja, o tempo em que permaneceram presos seria computado para efeito de diminuição da penas totais impostas.
Serem transferidos da casa de passagem, como se denominava o presídio para aqueles que ainda não haviam sido condenados definitivamente, era só uma questão de dias. A sorte dos dois já estava lançada, e o causídico não havia ainda noticiado às duas mães sobre essa real possibilidade para não deixá-las ainda mais agoniadas. Perder as duas mulheres era também perder preciosos votos.
Contudo, o que estranhava naquele momento era ouvir o deputado dizer que não continuaria bancando os recursos de apelação, ou mesmo recursos especiais futuramente, para os dois porque não podia contrariar amigos poderosos. Por mais que ao longo do processo procurasse saber os reais motivos de tanto ódio daqueles poderosos para com as duas pobres vítimas nunca havia conseguido. O nobre deputado sempre fugia do assunto quando perguntado. Mas aquele era o momento ideal, então perguntou:
“Deputado Serapião, dessa feita o nobre parlamentar decidiu de vez optar pela burguesia não votante em detrimento da pobreza votante, não foi isso mesmo? Essas pessoas que tanto odeiam os dois rapazes devem ter motivos suficientes para buscar, a todo custo, uma punição como tal, eivada de covardia, de astuciosidade, da mais infame injustiça. São apenas dois pobres rapazes, sendo um, o Jozué, um coitado que sustentava a vida trabalhando de servente de pedreiro, e o outro, o Paulo, tão somente um estudante sonhador, de família também pobre. E por que esse ódio todo dessas pessoas contra dois inocentes, duas pessoas que verdadeiramente nunca fizeram mal a ninguém?”.
O deputado olhou nos olhos do causídico por algum tempo, depois acendeu mais charuto e começou a falar:
“Vou ser rápido, não tenho mais tempo, já disse. Na verdade não estou muito bem por dentro do caso não, e sei principalmente pelo que os amigos relataram, mas também sei que não se deve confiar no que dizem. Sobre esse Paulo, você sabe muito bem que a família daquele juíz e daquele empresário é muito metida a rica, a besta, a cheia de não-me-toque. Agora você imagine se iam aceitar que a sobrinha do magistrado, filho do empresário, fosse namorar com um pobre, com um reles estudante, que nem bicicleta tem, que dirá carro. Esse povo nojento olha tudo Dr. Auto, e essa burguesia é nojenta demais, não lembra do passado lambendo prato nem pedindo tostão a quem tivesse. Então o resto você já sabe, mandaram armar a cocó pro rapaz, contrataram uns policiais corruptos e jogaram droga e fruto de roubo pra cima dele. Conseguiram o que queriam, porque graças ao nobre advogado ele nunca conseguiu provar que era inocente...”.
“Isso é vergonhoso deputado, causa nojo só em ouvir”, disse o causídico, interrompendo o outro por um instante, mas este continuou.
“Causa nojo é verdade, mas é desse prato que a gente come e se lambuza. Mas com relação ao outro, ao tal de Jozué, a situação é ainda mais absurda. Não sei por que digo isso já que você sabe tudo. Mas a verdade é que eu não posso falhar com o Alfredinho Trinta Por Cento, como chamam o safado do agiota milionário. E veja como são as coisas, pois um homem tão rico, que vive agiotando a torto e a direito, cobrando trinta por cento no baixo, não soube criar o filho único que tem e deu para o que deu, pois metido no meio do que não presta, traficando drogas, roubando com violência, praticando todo tipo de absurdo. E vai que o pai ainda acoberta uma coisa dessas. E acoberta tanto que arranjou esse inocente do Paulo para ser preso no lugar do filho, que também se chama Paulo. E depois forjaram documentos, pintaram e bordaram para que o safado continuasse solto e o outro preso no seu lugar. Qualquer outro advogado, mesmo de porta de cadeia, já tinha provado rapidamente se tratar de um inocente, de pessoa que nada deve à justiça, mas foi melhor assim, pois ninguém sabe o dia de amanhã e tenho certeza que Alfredinho me empresta quanto eu quiser a cinco por cento...”.
“Mas então, deputado, o senhor fez um acordo tanto com a família que cismou em prejudicar Paulo como com esse pai que quer estraçalhar com Jozué para falsear a defesa até sair as sentenças condenatórias, não foi isso mesmo?”, perguntou Dr. Auto, achando deveras surpreendente a narrativa do parlamentar.
“Isso mesmo, meu caríssimo, fiz minha parte garantindo a continuidade daqueles votinhos e ao mesmo tempo atendi aos anseios dos amigos poderosos. É uma questão de sobrevivência política, entende? Ajudei a eles através da sua vergonhosa defesa, mas eles também se ajudaram investindo alto tanto na propina paga à polícia como aos demais interessados. E não se esqueça também que tem a força do juiz que é tio da mocinha, a que gostava do Paulo. Juiz com juiz se entende, um presta favor ao outro e tá tudo resolvido. Agora não há mais nada a fazer, pois você fez certo em dizer às duas mães que já estava fora do caso, que se precisassem tinham que retornar aqui. Certamente elas virão, as receberei de braços abertos e direi que não se preocupem que a defesa está garantida, até Brasília se preciso for. Mas logicamente que será tudo mentira, pois você não vai mexer nem uma palha em favor dos dois. Deus me livre do juiz, do empresário e do Alfredinho saberem que falseie com eles. Tudo, menos isso. Preciso do povo, mas gosto muito mais das facilidades dos poderosos. Sou assim, não posso negar, mas jogue a primeira pedra apenas um que esteja aqui dentro dessa assembleia...”.
O advogado ouviu tudo isso sem grandes surpresas e já ia levantando quando o parlamentar falou mais uma vez:
“Amanhã mesmo passe aqui para receber parte do seu pagamento. O restante só quando os outros me molharem a mão, o danado é que tô com ela coçando que não para. O resto tudo bem, não é? Tem certeza que ninguém ficou sabendo da enrolação na defesa dos dois, não é mesmo?”.
E imediatamente o outro respondeu que não, que somente a secretária, a futura advogada Carmen Lúcia sabia de parte da história. Ao ouvir isso, o deputado sentiu no peito uma ligeira preocupação. E rapidamente pensou secretária, quase advogada, e não gostou nada do que concluiu. Os outros, os seus amigos, também não gostariam de saber disso não. Então levantou a cabeça e perguntou:
“Quem é essa Carmen Lúcia?”.

                                                       continua...





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domingo, 28 de agosto de 2011

MEMORIAL DE TIZIU (Crônica)

MEMORIAL DE TIZIU

                                    Rangel Alves da Costa*


Graças a Deus esses homens que contam, recontam e inventam histórias esqueceram de mim. Graças ao meu bom anjo sertanejo que em nenhuma dessas páginas de livros que tratam sobre o cangaço e o Capitão Lampião fala em meu nome, diz que eu estava lá na beira do rio naquela triste manhã da carnificina.
Mas eu estava lá sim, estava na Gruta do Angico sim senhor, e tanto estava que ainda na noite anterior do acontecido, no dia 27 de julho, lembro muito bem, noite de lua bonita, bem vistosa no negrume sertanejo, passei a ter maus pressentimentos, como se uma coisa me dissesse que estavam aprontando alguma coisa contra a gente do outro lado do rio.
Hoje sei que não estava errado não, pois realmente os homens da volante alagoana já estavam planejando o que fazer ainda no dia anterior. Eu já vinha ouvindo umas conversas que os macacos podiam mesmo estar por ali, por perto, no encalço do bando do Capitão. O problema é que se Lampião, ainda que com tanto disse-me-disse, com informações dos coiteiros, insistia em continuar no lugar, então não havia o que se fazer.
Achei muito estranho quando já noitinha fechada Lampião pegou Maria Bonita pelo braço e foram sentar em cima de um lajedo grande, uma pedra imensa que dava certinho em direção ao rio São Francisco mais adiante. Não olhava diretamente não, mas pelo canto do olho percebia que conversavam entristecidamente, como se os namorados do sertão sangrento estivessem temendo ser separados pela força do inimigo.
Depois andaram dizendo que Maria até chorou nesse momento, implorando para que se arribassem dali naquele mesmo instante, pois temia que não tivessem mais a noite seguinte para admirar a lua por cima das catingueiras. Coisa de destino marcado, mas quem ouvia sua companheira em tudo, daquela vez relutou, disse que estavam seguros ali e que brevemente procurariam um lugar para descansar em paz e deixar aquela vida de correria de um lado pra outro e de tanto sofrimento.
Vi quando voltaram da pedra e foram em direção à gruta, uma abertura na pedra que mal dava para os dois estirados. Fiquei por ali ao redor, um pouco mais adiante sentado numa pedrinha pequena. Ninguém podia acender fogueira pra não dar sinal da presença do bando ali, cantoria só se fosse muito baixa, sanfona quase silenciosa. Diferentemente de outras noites de tanta animação e conversas, aquela noite se mostrava muito diferente das demais. Noite noite mesmo, noite fechada, triste, angustiosa, desesperadamente amedrontadora. Era a noite da despedida, a noite antecedendo a morte, a noite sem dia seguinte.
Cangaceiro animado chegou perto de mim e disse que estava angustiado demais, que não via a hora dessa noite passar voando; cangaceiro otimista sentou ali pertinho e disse que não via a hora de deixar aquela vida desassossegada, recomeçar a vida, voltar pra família; cangaceiro realista sentou mais adiante e disse que do jeito que estavam de corpo aberto, quase num descampado de beira de rio, na hora que a polícia quisesse acabava com tudo. Eu disse ao amigo que não dissesse isso não, que tivesse fé em Deus. Mas eu sabia que ele tinha razão. E como teve.
Naquela noite, afastei uns gravetos do chão espinhento, estirei o meu corpo no chão, fiz de uma pedra um travesseiro, mas não consegui fechar o olho um instante sequer. De cinco em cinco minutos eu me erguia um pouco e olhava para as águas do rio, para o meio do rio e mais adiante, na escuridão do outro lado, que era para ver se enxergava alguma coisa que pudesse atacar o bando.
Numa dessas vezes vi uma luzinha fraquinha ao longe, coisa que me deixou cismado, mas fiz de conta que estava vendo demais. Só fiz deitar a cabeça na pedra e me ergui novamente, passando a mão pelos olhos, tentando enxergar melhor. Duas luzinhas agora, contei, e mais pra cá da margem do outro lado do rio, já dentro das águas, já seguindo em nossa direção. Levantei devagarzinho e fui me arrastando até atrás de uma pedra já descambando para a descida do rio. Estava tudo escuro demais, com lua escondida e apenas um pássaro agourento piando seus sinistros sinais. Mas não consegui avistar mais nada.
Não consegui avistar mais nada porque a volante alagoana já havia desembarcado, já estava subindo as barrancas pelos lados laterais da gruta e cercando tudo. Se ficaram alguns homens num ponto de desembarque mais próximo onde a gente estava, também não vi nem sinal. Com as embarcações escondidas pela noite, bastava que a polícia tomasse suas posições e esperasse a madrugada abrir, o tempo clarear mais, os cangaceiros aparecerem, para começarem a atirar.
Mas ainda abaixado por trás da pedra, não demorou muito e percebi algo que não pude acreditar. Vi vultos subindo esgueirados, sombras se escondendo por trás das moitas e então não tive dúvida que o bando já estava cercado. Venerando sempre a figura de Lampião e sua bem amada, só pensei neles quando confirmei tanto aperreio ao redor. De onde estava sai me arrastando feito lagartixa, me lanhando todo de espinho e pedra, procurando um jeito de chegar até a gruta e avisar aos dois. Nem pensei em gritar, em fazer barulho, em alertar os amigos. E talvez tivesse sido o meu erro, agora confesso.
Estirado no chão e me arrastando, quando já estava perto de chegar onde eles estavam, assustado levantei a cabeça e vi Maria Bonita passando adiante, com um vasilhame na mão, em direção ao rio. Falei baixinho Maria, Maria, mas ela não ouviu e seguiu em frente. Foi nesse momento que gritei, porém o grito não foi ouvido porque a saraivada de balas urrou mais alto.
No atropelo que sucedeu, Lampião quase passa por cima de mim em direção ao corpo de sua amada morta. E outros tiros, estrondosos disparos, gritos, alucinações, um mundo se transformando em terror e sangue. Cangaceiros retrucavam, atiravam para todos os lados, procuravam se proteger, eram atingidos pelas balas cortantes, caíam feridos de morte. Lampião jazia com a arma na mão, a mesma mão que se estendia por cima do corpo de sua Maria.
Não sei como sobrevivi para relatar isso agora. Depois soube que além do casal, mais nove cangaceiros morreram ali no Angico, naquela gruta que enterrava de vez o verdadeiro cangaço. Sorte minha e de muitos outros por ter conseguido voar no bico do gavião e sair daquele lugar. Cortando no peito tudo que havia pela frente, deixando no corpo as marcas da desesperada fuga, ainda assim muitos conseguiram sobreviver. Mas a vida não tinha sentido. Somente viver sob as ordens do capitão fazia sentido.
Na fuga não sei onde fui parar. Até hoje, tantos anos depois nem sei bem onde estou. Também ninguém deve saber tudo soube o meu passando. Só lembro de uma coisa e disso não esqueço não, que é o meu nome no bando de Lampião. O meu verdadeiro nome já esqueci, mas Tiziu não esqueço não.



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Desses mistérios do amor (Poesia)

Desses mistérios do amor



Maior mistério do amor
mas se estou com você
bem pertinho de você
beijando e abraçando
me bate imensa saudade
e sinto tanta saudade
que grito seu nome
beijo sua fotografia
escrevo um poema
na blusa e pelo corpo
enxugo minha tristeza
nos seus cabelos
canto uma música
bonita que lembra você
abraço o seu corpo todo
toco em cada parte
e se confirmo a certeza
que ali está você
tenho vontade de chamar
você e ir atrás de você
para ter a certeza
que nunca mais
vou ter tanta saudade
de você ao meu lado.


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 13 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 13

                                         Rangel Alves da Costa*


O instigante assunto parece que havia dado fôlego à velha raposa da política e dos meandros das maracatuias nos órgãos de poder e de julgamento. Agora em pé para expor melhor o seu pensamento ao advogado, caminhava de um lado a outro com o copo na mão, parecendo mais estar na varanda de sua mansão do que mesmo num gabinete de assembleia legislativa.
“Ora, meu bom amigo, como já dizia o dramaturgo inglês, há muito mais mistérios entre o céu e a terra do que imagina nossa vã filosofia. E seguindo os passos de Shakespeare, diria que há muito mais aberrações, safadezas e corrupções nesse mundo ou nesse verdadeiro Olimpo onde refestelam os donos do poder, do que suponhe a mais arguta imaginação. É safadeza pra todo lado meu amigo, é uma corrupção desenfreada que não acaba mais. Não conheço um só homem público, uma autoridade governamental ou judiciária que já não tenha seu lugar garantido no tacho fervente dos pecadores...”.
Disso o advogado também tinha pleno conhecimento, mas não por conviver nos gabinetes da maioria desse tipo de gente, mas pelas conversas que ouvia e o deixava de cabelo em pé, ainda que tivesse poucos na cabeça. Então perguntou ao parlamentar se ele poderia apontar um órgão específico onde essas facetas eram mais evidentes.
“Em todos os órgãos, em todos os gabinetes, sem sobrar nenhum que sirva de exemplo de honestidade e credibilidade. Verdade é que em alguns setores existem homens sérios, de grande credibilidade e confiança, mas o problema é o metiê, é o meio, que faz corromper o inocente, o que busca a todo custo se preservar. Em determinados setores, ou o cabra se torna corrupto, safado ou qualquer coisa pior, ou não tem espaço, é logo colocado pra escanteio, se não acontecer coisa pior. Vou só citar um exemplo. Pra pessoa entrar na polícia e tentar preservar sua honestidade, seu lado humanitário, sua compreensão do ser humano comum como alguém que merece respeito e que não tenha de olhar todo mundo como bandido, dá um trabalho danado. Todo mundo sabe que expressiva parte dos que fazem a polícia gosta de um subornozinho, de uma maracutaia, de um negocinho por fora para favorecer esse ou aquele. Todo mundo tá cansado de saber da festa corruptora que é a polícia, basta abrir os jornais e atentar para as manchetes escandalosas. Enquanto mil peixes grandes pagam propina por isso ou aquilo, de vez em quando um miserável é preso, feito boi de piranha, porque quis entregar pouco na mão do policial. E vá um besta dos próprios quadros e diga que não quer participar dessas artimanhas e facilidades, que diga que vai denunciar as práticas corruptas existentes, para ver o que acontece com ele. Daí, meu amigo, muitas vezes ou se entra no jogo do meio ou se transforma em absolutamente nada. E como eu já disse, se não acontecer o pior...”.
“Mas o pior o que, deputado?”, perguntou o causídico.
“Deixe pra lá que você não é menino. Mas hoje eu tô com a peste, com a gota serena mesmo, por isso que vou dizer uma coisa que há muito tempo me vem coçando a língua. Pelo que eu vou dizer você vai saber até que ponto chega a seriedade das instituições nesse país que é um verdadeiro descalabro. Pois bem, você sabe muito bem dessa história que lá em Brasília, tanto no senado como na câmara existem parlamentares que chegam lá em nome do povo, mas uma vez com as chaves nas mãos começam a fazer tudo diferente e se tornam defensores de grupos poderosos, de determinados setores, não é mesmo? Por isso se fala tanto em bancada dos evangélicos, da bola, do agronegócio, do bingo e um monte de outras coisas, e tudo recebendo verdadeiras fortunas. Agora pasme você, nobre advogado, que andei sabendo que o mesmo acontece no judiciário, nos tribunais, onde dizem existir um grupo que privilegia empresários, outro que privilegia fazendeiros, outro que está preparado para defender os interesses dos governos estadual e municipal e até um exclusivamente reservado para julgar ilegal todas as graves que os servidores públicos façam. Isso é só um exemplo, pois outros grupos se espalham por lá e garanto que nenhum serve para defender os interesses das classes oprimidas e verdadeiramente injustiçadas...”.
“Mas deputado, se não fosse assim muita gente graúda ia pra prisão, a sociedade burguesa ia ficar desestabilizada, e logo essa classe que é muitíssima amiga desse povo de caneta na mão. Ora, esses homens que julgam também são humanos, têm suas fraquezas e por mais que entendam de lei nunca esquecem daquele ditado dizendo que água mole em pedra dura tanto bate até que fura. O senhor bem sabe que todo mundo gosta de ser agradado, ver reconhecido o seu mérito de amigo que corta e recorta a lei para julgar em favor do amigo. Isso é muito normal, o que ocorre muitas vezes são alguns absurdos, principalmente quando todo mundo sabe que há juiz e desembargador que explícita e vergonhosamente não julgam o caso, mas o advogado que está assinando a contenda ou uma das partes envolvidas. Conheço advogados que dão sorte demais, pois suas peças e seus recursos só caem nas mãos de determinados julgadores. Por isso é que esses advogados cobram os olhos da cara dos seus clientes e afirmam logo que vão conseguir o pretendido, pois parte dos honorários já tem endereço certo...”.
O Deputado Serapião gostou do que ouviu, estava contente porque o advogado estava corroborando com o seu pensamento, cujas considerações só poderiam vir à tona desse modo se fosse ali entre quatro paredes. Não se podia negar que o próprio fazia parte dessa lavra de gente ruim, desonesta e corrupta. Ele sabia muito bem disso e não negava aos seus amigos mais próximos, como o Dr. Auto. Em seguida olhou o relógio e disse ao causídico:
“Conversamos demais e ainda não dissemos nem o começo, principalmente porque a coisa fede e fede muito, é carniça pura. Mas sei que você veio aqui por outro motivo, pois então se apresse em me dizer o que é que já estou atrasado pra roubalheira”.
“É sobre o caso daqueles dois rapazes, filhos de Dona Leontina e Dona Glorita...”. Rapidamente o deputado lembrou para dizer:
“Ah, pobres e inocentes rapazes que infelizmente vão ter que comer o pão que o diabo amassou lá na penitenciária. Digo infelizmente porque não posso fazer mais nada, não posso contrariar alguns poderosos amigos que têm interesse em deixá-los com o destino cruelmente selado”.

                                                    continua...






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sábado, 27 de agosto de 2011

TODA VEZ QUE CHOVE (Crônica)

TODA VEZ QUE CHOVE

                                         Rangel Alves da Costa*


Toda vez que chove me sinto de novo menino, molecote traquino, querendo a roupa tirar, pela rua me jogar e fazer da chuva um brinquedo, dançar na água sem medo de dizer que ser criança é meu maior segredo.
Toda vez que chove já fui ao mato buscar lenha, já caminhei por toda brenha, com medo da tempestade que se desenha e logo minha mãe venha, dizendo que da fome me abstenha porque não catei por desdenha.
Toda vez que chove me arrepio inteirinho, pingo cai e sou sozinho, pensando no meu cantinho se é bom ter saudade, ou se é uma maldade todo esse desvão que invade o corpo no desalento, do amor nem mais um alento, do querer nada mais me contento.
Toda vez que chove molho mais que goteira, sou um rio sem fronteira, um mar de maré sem beira, uma agonia molhada, uma lagoa na estrada, tanta lágrima desalmada que nem sei o que fazer, se nadar pra não morrer ou navegar pra ter você.
Toda vez que chove penso na menina com frio, pensou no seu arrepio, e quem dera se acaricio, toco e amacio, levando a ela calor, fazendo que sinta o sabor do menino ser cobertor, tirando do medo o pavor, molhando com a chuva do amor.
Toda vez que chove fico temeroso e entristeço, de repente desapareço e me vejo noutro endereço, salvando a família da enchente, ajudando toda gente, que quando chove é quem mais sente, um sentir de perder o que tem e na dor que vai além, até o que não tem também.
Toda vez que chove vejo minha mãe rezar, muitas vezes ajoelhar, de lado a lado andar vendo tudo apavorada, sombria um tanto calada, com feição meio afetada daquilo que não entendo nada, pois não conheço o mistério desse raio que é tão sério, dessa luz que cai sem critério.
Toda vez que chove começo a duvidar se quem escorre mais é a chuva ou o meu chorar, se quem mais transborda é o meu semblante ou o rio adiante, se quem mais inunda é a minha alma de dor profunda ou o mar por todo lugar e em tudo que afunda.
Toda vez que chove lembro-me dela, vejo ela ali na minha janela, quando a chamava de minha donzela e enfeitava os cabelos com a flor mais bela, dizendo que pulasse aquela cancela e viesse para o amor da vida singela.
Toda vez que chove sinto que tudo vai se renovar, a sujeira lá fora logo vai passar, cairão das paredes esse maquiar, as cores voltarão a brilhar, praças e canteiros no seu verdejar, as ruas vão se encharcar, num banho para se enfeitar e mais tarde, quando sol chegar, você tão bela passar.
Toda vez que chove ouço o menino vizinho chorar, sei que tem goteira, tem muito pingar, sei quem não tem telha, tem muito luar, sei que tudo desaba sem nada a aparar, e na pouca parede só restará a casa no chão quando a trovoada chegar.
Toda vez que chove lembro-me dos que estão se molhando, lembro da roupa enxuta no corpo dobrando, dos olhos nublados nada mais avistando, procurando abrigo e nada encontrando, querendo correr e cada vez mais ficando.
Toda vez que chove e adormeço pelo acalanto da chuva cantando, cada pingo me encontra sonhando e cada lufada logo vai me afastando, para um mar azul e vou navegando em direção ao porto que me vê chegando, em direção à mão adiante acenando e mostrando logo que vá retornando, pois a manhã vem chegando e preciso lavrar a terra pra ir semeando.
Toda vez que chove abro meu armário e pego meu rosário, lembro de sermões e de mil orações, faço silêncio e grito na montanha, alguém ouve essa voz estranha e fala comigo porque é amigo, diz que vá abrir a porta e cuidar da horta, alimentar de vida a esperança morta.
Toda vez que chove eu fico mais perto de Deus, me sinto mais filho, gosto mais dos meus, gosto mais de todos, gosto mais dos teus, me vejo mais crente, muito mais contente, fortalecido porque de repente, sem nenhum temor, sinto que a chuva é o som do Senhor.



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Uma poesia de amor (Poesia)

Uma poesia de amor



Escrevi uma poesia de amor
com estrofe, rima e métrica
cortei palavras e fiz a estética
mas tinha esquecido você...

escrevi uma poesia de amor
com dois dias e duas noites
sofrendo da inspiração os açoites
mas faltando me inspirar em você...

escrevi uma poesia de amor
depois de rasgar todas as poesias
depois de queimar todas as agonias
tudo que separava você...

escrevi uma poesia de amor
dizendo apenas te amo
te quero e por isso te chamo
e eis a mais bela poesia da vida.


Rangel Alves da Costa