AOS OLHOS DO TEMPO
Rangel Alves da Costa*
O tempo tem olhos, tem. E os olhos do tempo, mesmo cansados ou rebrilhados pelas idas e vindas do próprio tempo, vão enxergando o que vem surgindo e o que vai sumindo, testemunham silenciosamente para, um dia qualquer, servir como espelho para quem quiser conhecer o passado, ou até mesmo o ontem.
E foi aos olhos do tempo que um dia, num passado distante, verdadeiros desbravadores das caatingas sertanejas, deixando os seus currais na beira do rio e avançando na mata virgem, incomodando a bicharada nativa, abrindo picadas no facão cortante, com os corpos cheios de valentias, esperanças e principalmente espinhos, foram fundando uma nova civilização: a civilização sertaneja.
Vencendo os perigos da mataria, a sede imposta pelas secas de sempre, o que norteava agora seus destinos era se situar na terra, avistar os mais vistosos descampados para fincar tronco e palha, erguer rústicas moradias e dizer que a vida agora seria de construção. Mulher não estava ao lado, a família mandaria buscar depois, o grande ou pequeno criatório, continuando lá nos currais na beirada do Velho Chico, seria tangido depois.
Depois de se erguer a tapera, encobri-la com folhagem resistente, e já ter feito o reconhecimento ao redor da possível existência de um pequeno veio de água, um riachinho, uma lagoa ou qualquer olho d’água pra matar a sede, o passo seguinte seria fazer o cercado, ali ao redor mesmo, que serviria de curral para os bichos. As pastagens estavam adiante e por todo lugar, até onde os olhos enxergassem e delimitassem como propriedade sua.
Por mais que o civilizador daquelas brenhas fosse homem de posses em outros lugares, tivesse riquezas noutras regiões, ali tinha que aceitar ser apenas uma pessoa qualquer procurando sobreviver, formar o cenário ideal para transpor até o lugar família e bens. Era uma nova existência que procurava construir. Desse modo, se ajeitando como podia quando dos desvãos e intempéries da natureza, ele reinventava a vida, como se o homem da idade do progresso regredisse ao estágio da pedra.
Parede de barro mais tarde, com dois ou três vãos, mas desde já o chão batido e esburacado, a poeira e o pó se espalhando por todo lugar; ali dois troncos servindo de banco, acolá dois troncos mais fortes fincados no chão para suportar a rede de dormir estendida logo ao entardecer. Panelas velhas, cacarecos, candeeiros, pratos de alumínio ou plástico, mochilas e sacos amarrados no alto dos cantos com a comida que existisse.
O naco de fumo, o cigarro de palha, a garrafa de aguardente para desinventar a saudade na solidão. Muitas vezes era pior, pois um gole a mais e as lágrimas começavam a correr pelos olhos, o coração apertava de doer demais, a boca trêmula dizia um verso cantando. Maria, minha Maria, aonde anda você?...
Na maioria das vezes era somente na natureza que encontrava o alimento que tanto precisava para sobreviver. Cabeça-de-frade retirada a pele espinhenta rende um fruto macio, adocicado e embranquecido; preá, nambu, codorna, peba, tatu e outras caças, havia de fartura naquele tempo; os umbuzeiros alimentavam os bichos e quem chegasse, araticunzeiro, araçaizeiro, jabuticabeira. Uma festa. E mais tarde o milho, o feijão, a melancia, a mandioca, a macaxeira, o maxixe, o quiabo. Água da cacimba, do tanque, do riachinho, do vasilhame com a benção juntada das goteiras em épocas de chuvaradas.
Só tinha um problema. Para a vegetação nativa, formada principalmente pelas catingueiras, umburanas, facheiros, mandacarus, xiquexiques, croatá, velame a empestear, e muitas outras espécies que se juntavam na mataria, as constantes estiagens não era problema algum. Contudo, para o homem que precisava sobreviver ali era muito diferente. Consequentemente, por vezes a terra esturricava de não nascer nem erva daninha. Não adianta plantar nada, não adiantava limpar o mato e espalhar semente. A cor da paisagem, cinzenta e triste, já dizia que a seca estava mesmo de acabar com tudo.
Mas quando as chuvas caíam, tão fortes e tempestuosas que eram, a casa inteira molhava. Zunindo a ventania lá fora, as plantas dançavam ao sabor da molhação divina. E que festa na natureza, por debaixo das moitas, embaixo das pedras, nas tocas e grutas onde os bichos se escondiam. E com as chuvas aquele bafo subindo da terra, aquele cheiro forte de terra molhada significando renascimento, esperança, uma nova vida até a próxima seca chegar novamente.
E de repente, nesse vai e vem de um tempo que parecia eternidade, de um lado a outro do sertão as vilas já brotavam e famílias e mais famílias se achegavam para dar continuidade à nova civilização que surgia. Grande parte da terra já tinha o seu dono, as cercas já dividiam as propriedades. Uns mais ricos, outros mais pobres; uns com mais criatório, outros com mais plantação; uns com mais valentia e outros na paz do seu dia-a-dia.
E noutro dia o sertão deixou de ser apenas um lugar para se tornar povoação, cidade, centro urbano com destino próprio. Mas o homem continuou o mesmo por muito mais tempo, continuou sendo realmente acima de tudo um forte. Até que um dia disseram que era feio ser chamado de matuto, caipira e sertanejo, e muitos guardaram seus chapeus de couro, rolós de couro cru, alpercatas e gibões, embornais e alforjes de caçador e se tornaram simplesmente em pobres e miseráveis. Mesmo enriquecidos, mas tão pobres e miseráveis.
Poeta e cronista
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