SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 31 de maio de 2010

A VOZ DA MONTANHA (Crônica)

A VOZ DA MONTANHA

Rangel Alves da Costa*


De repente, lá no alto da montanha, primeiro chegou uma ventania avassaladora, derrubando e desfolhando árvores, espalhando pelos ares e levando para bem longe galhos e folhas secas que já estavam impedindo o surgimento de novas espécies. Depois nuvens escurecidas apareceram por instantes, até se ouvir um forte barulho de trovões. Minutos após, tudo se acalmou novamente, na brisa, no azul e na paisagem encantadora lá em cima da montanha. Foi então que se ouviu uma voz, surgida bem no ponto mais alto e logo espalhada feito eco pelas proximidades e distâncias.
Você ouviu aquela voz, parecendo ter vindo lá de cima da montanha? Alguém ouviu o que ouvi, algo parecido com uma voz que veio do topo daquela montanha? Que palavras estranhas foram estas que acabamos de ouvir, todos ouviram bem e sabem de onde foram pronunciadas? Que foram palavras não restam dúvidas, mas alguém pode repetir o que verdadeiramente ouviu? E um misto de certeza e dúvida se instalou entre todos.
O padre veio correndo de dentro da igreja para o meio da praça, de olhos voltados para a montanha e se benzendo sem parar, dizia: São os sinais, são os sinais da profecia, pois a montanha um dia deveria falar e dizer que... Mas o que foi mesmo que ela disse? A beata num segundo já estava ao lado do sacerdote, também se benzendo e de rosário na mão, procurando reforçar as suas palavras: Louvado por Deus louvado, que o Santíssimo nos proteja, porque quando esta voz chegasse dizendo que... Dizendo o que mesmo seu padre? Também queria saber sua intrometida, respondeu o sacerdote, levando as duas mãos ao peito num gesto de oração.
De norte a sul da cidade foram acorrendo pessoas para o centro da praça, formando uma pequena multidão onde já estavam em orações o padre e sua fiel discípula. Outra beata chegou carregando um crucifixo na mão e falando bem alto: Estava escrito que essa voz viria, que essa montanha falaria, que do seu cume se ouviria que... se ouviria que..., Mas se ouviria o que mesmo meu Deus? Mas deixa pra lá, porque estava escrito que essa voz viria... E Maria das Neves, uma prendada e afamada fofoqueira, aproveitando o momento propício para soltar das suas, foi logo dizendo: O padre acabou de dizer e a beata confirmou que aquela voz que se ouviu não foi bem uma voz, foi um grito e um grito de raiva vindo do alto da montanha, e esse grito bem alto era dizendo que... Era dizendo que chegou o apocalipse, o juízo final, e agora é que vamos ver quem tem pecado pra vender...
Aí sim, ouviu-se um grito do padre: Você enlouqueceu mulher de pouca fé, traidora dos preceitos divinos, enxerida da vida alheia, fofoqueira, pois acreditem que não dissemos uma só palavra neste sentido. O que acho, e talvez a beata Pureza ache também, é que aquela voz, calma e doce, queria anunciar que... Que vocês todos vão pra suas casas procurar o que fazer, vão trabalhar, vão orar para pedir perdão a Deus pelos tantos pecados cometidos, pois somente assim poderão aliviar as suas dores se aquela voz disse o que realmente estou pensando...
Está pensando o que seu padre? Diga, diga. E se fez o maior barulho no meio da praça. Como não arranjou outro jeito, o padre Santinho achou melhor convidar todos os presentes para discutir essa questão dentro da igreja. Até achou isso uma boa saída, pois somente assim poderia reunir os fiéis que há muito haviam desaparecido, o problema é que não sabia bem o que iria dizer, o que poderia explicar convincentemente sobre o que estava pensando. Nem ele mesmo sabia direito o que estava pensando.
No momento em que todos rumavam para a igreja, eis que surge correndo um menino, já demonstrando cansaço e parecendo ter algo muito importante a dizer. Calma meu filho, de onde vem assim nessa correria toda, descanse um pouco e depois fale. O que tens a dizer com tanta pressa? É que seu padre, eu estava lá no alto da montanha caçando passarinhos e ouvi uma voz estranha, e essa voz disse...
Diga, diga, gritava o povo. E o menino falou: Disse que o mundo precisa ficar mais em silêncio, fazer silenciar o barulho das guerras e das violências, e que os homens precisam ouvir mais antes de acharem que tiveram a certeza do que ouviram, pois somente assim poderão ouvir e entender a voz do Senhor.




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Onde o amor está (Poesia)

Onde o amor está


Se há saudade do amor
é porque um dia
ele esteve aqui
amou e partiu

Se há lembrança do amor
é porque no passado
ele foi presença
e decidiu amar

Se há ainda o amor
é porque agora
quando está distante
foi descoberto seu valor

Se há tanta certeza
é porque o amor
mentiu que ia partir
e se escondeu no coração.


Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 1

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 1

Rangel Alves da Costa*



A Bíblia Sagrada estava aberta em cima da mesinha do quarto já escurecido pelo avanço do entardecer. O vento que entrava pela janela agitava as folhas do livro sagrado, deixando incerto o local onde havia sido lido pela última vez. No canto do quarto, colocado no chão, um resto de vela ainda aceso, mas já irradiando suas últimas chamas. A porta estava entreaberta, e quem saiu dele talvez voltasse logo, ou não, mais tarde ou nunca mais.
Mas o que se podia ler naquele momento nas páginas inconstantes da bíblia? Antes que o vento soprasse mais uma vez, se verificaria o que se segue, no percurso próprio de um Evangelho, pois aberta naquele instante logo no início de uma mensagem de boas novas, que é o próprio evangelho, com suas lições de alegria, fé, dor e sofrimento:
Muitos quiseram deixar escrito nas páginas da história os feitos empreendidos na vida. A maioria buscando preservar somente as grandes realizações, aquilo que foi visto pelos demais como construções positivas e que trouxeram satisfação pessoal e atiçaram as vaidades próprias dos seres humanos.
Somente uma pequena parcela se contentou em mostrar suas realizações no contexto das contradições, das perdas e ganhos, nos seus aspectos positivos e negativos. E um destes indivíduos, que jamais procurou esconder nada do que era, do que fez, do que faz e do que tem como esperança chama-se Lucas. E esta é a história de Lucas, ou a história do mundo que abraçou Lucas, segundo o seu próprio testemunho.
Nos tempos passados, num tempo em que os homens eram felizes, houve um humilde artesão por nome de Erasto, sertanejo e de família pobre, que sustentava sua família com a feitura artesanal de celas, estribos, arreios, alpercatas, gibões, chapéus, enfim, tudo aquilo que era possível fazer com o couro curtido de animais. Cada peça produzida, individual e prazerosamente, infelizmente era vendida por um valor muito abaixo do que realmente merecia. Mas tinha de ser assim, pois havia a mulher e os filhos para criar.
Sua mulher, descendente da família mais antiga do lugar, chamava-se Isaura. Mesmo com as marcas impostas ao corpo e ao rosto pela vida dura, ora lavando roupas, ora prestando serviços domésticos para outras famílias, ou ainda cuidando do pequeno roçado e dos poucos animais que possuíam, sem falar nos filhos que davam um trabalho danado, era uma sertaneja bonita e altiva, mulher de encantos que tanto alegravam o coração do esposo.
Ambos eram justos diante de Deus e observavam irrepreensivelmente todos os mandamentos e preceitos do Senhor. O respeito às coisas sagradas, a fé incontida e a veneração às palavras e aos ensinamentos do Senhor tornavam aquela humilde moradia num lugar sempre cheio de alegria e esperanças, mesmo que as adversidades estivessem à espreita esperando o momento oportuno para desestabilizar a felicidade. Não conseguiria pois eles viviam sob o manto divino, tinham certeza disso. E para agradecer essa proteção eram sempre fiéis às lições do seu Deus.
Tinham dois filhos, o menorzinho, que era Lucas, e a mais velha, chamada Lúcia. Para que seus filhos crescessem com saúde, felicidade, paz e distantes das más influências das realidades ao redor, assim que podia, e sem ter dia nem hora certa para isso, Isaura ia até a igreja do lugar onde moravam para fazer orações, reverenciar o seu Deus e pedir proteção e paz para todos, não só os de casa, mas também para todos da comunidade e pela vida afora. Acendia uma vela, assegurava continuar seguindo fielmente os mandamentos divinos e as lições cristãs e prometia voltar assim que pudesse, cada vez mais cheia de alegria e fé. Quando podia o seu esposo lhe acompanhava. Nas missas dominicais os dois eram presenças garantidas.
Alguns anos se passaram, com os dois filhos já crescidos, um belo rapaz e uma linda moça, os pais já envelhecidos temiam ter de partir sem a certeza de que aquelas duas vidas estavam realmente prontas para enfrentar o mundo sozinhas. Lições não lhes faltaram, o próprio mundo, através dos outros, estava de páginas abertas para ser lido. Tinham a certeza de haverem feito o possível e o melhor, mas, enfim, havia sempre o temor de que aquelas duas crianças – ainda viam os seus filhos adultos como crianças – tomassem outros rumos que não por aqueles caminhos tantas vezes ensinados.
Numa tarde, enquanto Isaura acendia uma vela em cima da mesinha que servia como verdadeiro altar da família, pois lá estavam a bíblia e a imagem de Cristo crucificado, apareceu-lhe então um anjo do Senhor, em pé, à direita da mesinha. Vendo-o, Isaura ficou perturbada, e o temor assaltou-a. Mas o anjo disse-lhe: Não temas, mulher de grande fé e bom coração, porque tenho um recado para você e seu esposo. Brevemente vocês partirão e é preciso que a mesma devoção que vocês sempre demonstraram ter os seus filhos continuem tendo, para que este lar continue sempre abençoado por Deus.


continua...




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domingo, 30 de maio de 2010

Brincadeira (Poesia)

Brincadeira


Sem saber o que era
o menino soprou
e o amor subiu, viajou
e pelo ar
sem saber o que era
o vento esvoaçou
e o amor voou, espalhou
e pelo espaço
sem saber o que era
a nuvem acolheu
e o amor choveu, desabou
e no meio da rua
sem saber o que era
o coração da menina molhou
e se encheu de amor
e amou, encharcou
agora sabendo o que era
esse tal de amor
que é brinquedo de se brincar
com o coração sorrindo.



Rangel Alves da Costa

COMO SEREMOS LEMBRADOS AMANHÃ? (Crônica)

COMO SEREMOS LEMBRADOS AMANHÃ?

Rangel Alves da Costa*


As fotografias antigas que ilustram os livros de história, revistas e jornais, causam especial interesse porque refletem um tempo passado com suas características próprias, seus modismos, aspectos da vida cotidiana, paisagens que estão totalmente modificadas ou não existem mais, mas principalmente as pessoas com suas feições refletindo as características do seu tempo.
Debret retratou em aquarelas importantes aspectos da vida colonial, sobressaindo-se nas suas gravuras a vida dos escravos, as negras vendendo quitutes e doces e os cenários do cotidiano na corte. A mesma preocupação teve Rugendas com os sobrados, mocambos e paisagens. Posteriormente, quando as primeiras fotografias surgiram, é fácil observar as famílias ricas sendo retratadas em frente às suas construções suntuosas. Bigodes extensos, chapéus de todos os tipos, cartolas e fraques, vestidos longos importados da França para as madames, menininhos com roupas de marinheiro, menininhas com miniaturas das roupas das mães. O luxo em tudo, na residência, no mobiliário, no jeito de vestir e no porte aristocrático da família. Tudo isso é muito bonito de se ver, porém muito estranho diante do que se observa hoje em dia.
Debret e Rugendas retrataram com fidelidade artística aquele momento da história e que, naquele contexto, ainda não era história, era realidade. Do mesmo modo ocorre com as fotografias dos tempos antigos que os livros trazem para mostrar como eram aquelas realidades. Assim, ao ver o ontem retratado, a pessoa de hoje sempre ficará com a ideia de que tudo era muito diferente, desnecessário ser daquele modo, cafona, ultrapassado. A sensação que se tem é de certa esquisitice nas faces e no vestir das pessoas.
Muitos começam até a dizer que nos outros tempos a vida deveria ser insuportável com tanto conservadorismo e aquela seriedade em tudo que está retratado. Isto porque está havendo um confronto com o hoje e com a premissa de que o correto, o certo e o ideal é o que está sendo construído agora, usado, vestido e tido como padrão. Esquecem, todavia, que esse era o mesmo pensamento de ontem, comparativamente a um tempo mais anterior. As pessoas de ontem, que são vistas com estranheza hoje, também viam com estranheza os mais antigos. É um processo onde o presente será irremediavelmente negado no futuro.
Luz del Fuego causou verdadeiro impacto com o seu nudismo ao lado de sua inseparável cobra enrolada no seu corpo na Ilha do Sol. Era uma sem-vergonhice no século passado. Mulher de chapéu enfeitado e fumando cigarro com piteira era moda e das mais chiques; homens trajando terno de linho branco no cotidiano dos centros urbanos era mais que normal, tendo ainda o chapéu, a bengala ou o guarda-chuva. Quantas roupas, enfeites e geringonças usavam os nobres da corte? E as madames, com peças e mais peças que acabavam sempre deixando mais rechonchudas? Sabe-se lá quantas camadas de pó e outros cosméticos cobriam os rostos enrugados das velhas senhoras nas suas mansões? Havia um jeito próprio de ser elegante, de forma até exagerada, o que não tira o caráter de normalidade para cada época.
Aliás, houve um tempo que era normal andar nu e hoje em dia é crime.Quantos olhos já tentaram enxergar o rosto todo encoberto por véu da mocinha rica? A fotografia de Einstein com a língua estirada pra fora era para ser de ontem ou de hoje? Por que a cena de castração no filme Império dos Sentidos causou tanto impacto? Quantas fotografias de velhos cientistas alguém já viu sem que eles estivessem usando lunetas? Atualmente, se alguém tirar uma fotografia usando fraque, gravata borboleta e cartola todo mundo vai dizer que ou é fotografia artística ou o indivíduo enlouqueceu. Se as fotografias cheirassem, certamente que o odor da brilhantina se espalharia pelos retratos mais antigos; e os pós dos talcos formariam verdadeiras nuvens. Hoje a moda é ser básico, simples. Mas qual a razão de se afirmar isto?
Simplesmente porque vivemos um tempo e cada tempo representa um contexto com suas validades próprias. Os instantâneos de hoje significam aquilo que o indivíduo quer afirmar como sendo o máximo, vez que pela concepção do presente nada poderá superar esse instante. E logo se imagina que é impensável que, mesmo como todas as revoluções comportamentais que possam haver, nada poderá ser muito diferente do que é hoje, vez que o homem atingiu seu ápice de criatividade. Mas quem viver verá que, como parte de um processo histórico, muito do que é feito hoje será negado amanhã e o outro que viverá adiante construirá o seu tempo com a mesma certeza que estamos hoje.
Verdade é que seremos lembrados amanhã pelo que fizermos hoje. As fotografias e filmes que restarão como testemunhos dirão apenas sobre aparências, reflexos comportamentais e circunstâncias. Melhor seria que não restassem retratos de meninos abandonados, de misérias por todos os lados e nem de pessoas fingindo sorrir. Melhor seriam ações que fizessem com que as pessoas de amanhã, de depois e depois, pudessem dizer que fomos muito mais do que retratos amarelados e envelhecidos.




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SER SERTÃO: DA ARTE DA MORTE – Final

SER SERTÃO: DA ARTE DA MORTE – Final

Rangel Alves da Costa*


No dia anterior à sua morte, no seu íntimo sensível, compassivo, sentimental e afetuoso, o velho havia sorrido e chorado. Nunca lhe havia despertado tantas sensações como nesse dia. A cidade estava em festa. Três dias de missas, batizados, casamentos, vaquejada, forrós de pé-de-serra e bailes nos clubes. Em todo lugar uma comemoração, vitrola tocando e bebidas feito água de bica. E tudo estava apenas começando.
Sorriu em ver o povo animado, brincando, passeando, tomando cerveja e cachaça. Sorriu com o caminhar trôpego das mocinhas, cujo tamanho das botas fazia que ficassem parecendo sariemas, aves das canelas longas e finas. Não deu para não sorrir quando uma passou toda desajeitada, com uma bota apertada num pé e a outra na mão. Sorriu quando deu a ventania e levantou a saia de muita gente. Teve uma que tinha esquecido de vestir a roupa de baixo. Quando uma beata desmaiou por causa disso, foi então que ele sorriu ainda mais.
Mas o velho chorou. Chorou quando soube que duas famílias não puderam batizar os filhinhos porque não tinham dinheiro para pagar o batismo, nem elas nem os padrinhos, e por isso mesmo o padre deu ordens para que nem aparecessem na igreja. Chorou quando soube que este mesmo padre havia quebrado a imagem de um santo na cabeça de um fiel, só porque este foi pedir para que os sinos da igreja anunciassem a morte de sua avó. Dia de festa não é dia de morrer, disse o padre, e como o homem insistiu levou uma "santãozada" na moleira.
O velho chorou ainda quando um grupo de mocinhas, das mais ricas e insuportáveis da cidade, ao deparar-se com uma jovem humilde, vinda de um povoado e vestida na melhor roupinha, começou a desfazer desta com palavras revoltantes e gestos desmedidos e deseducados. E quando esta jovem chorou, foi aí que ele chorou ainda mais.
Como não era de dormir cedo, ficou por ali, sentado num banco da praça, esperando a meia noite chegar e voltar para casa. E foi o que fez. Morava sozinho, um pouco afastado do centro. Chegando em casa, comeu o pão, bebeu o café, pitou o rapé e deitou. Pensou no que havia visto e ouvido; pensou naquelas palavras que um dia haveriam de ser ditas; pensou no povo em festa, nos que pensam que a vida é somente uma festa, no que acontece quando a luz apaga; pensou e pensou, e adormeceu. E morreu...
Logo cedo o seu amiguinho foi levar o leite. O menino chamou; muitas vezes repetiu o chamado, e nada. Voltou para casa e foi avisar ao pai. Momentos depois a porta era forçada e aberta. Lá dentro, no único quarto, num colchão estendido no chão, o velho parecia dormir feliz. Parecia...
Uma cota entre amigos fez com que um rústico caixão pudesse ser comprado. A vizinha de frente providenciou umas velas; o vizinho do lado trouxe uma cruz com a imagem do Senhor; a vizinha do outro lado arranjou umas flores. Tudo foi colocado no seu devido lugar. No íntimo dos mortos, se é que o desvanecido semblante pudesse agradecer, o velho parecia grato. Mas se pudesse falar, e para alguém quisesse dizer obrigado, não encontraria ali mais uma só pessoa. Um por um todos foram saindo, alegando sempre outros compromissos. Afinal ainda era dia de festa. O último a sair deixou a porta aberta. Na varanda da casinha somente o velho, o silêncio e a solidão.
Porta aberta, vento vivo e apressado, uivos e vozes de folhas e galhos arremessados.
Porta batendo, velas acesas, vento soprando, velas apagadas.
Porta fechada. Lá dentro a escuridão, o silêncio e a solidão. A morte.
Ninguém precisa de uma mão que reabra a porta, se a morte tanto faz e a festa é o que importa.



FIM




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sábado, 29 de maio de 2010

AO NORTE DO CORPO (Crônica)

AO NORTE DO CORPO

Rangel Alves da Costa*


Dependendo da situação de quem enxerga ou se enxerga, o norte do corpo é a região mais densamente povoada, com maiores atrativos e potencialidades e também aquela que mais apresenta interesse de exploração e principalmente desejo.
A partir das intenções do olhar, o norte do corpo pode ser simplesmente belo, de compleição física adequada ao possuidor, com proporções e estruturas que indiquem a normalidade, ou não, dessa parte da anatomia humana. Por outro lado, no olhar ávido, lânguido, desejoso, nesse norte de curvas e contornos reside todo o desejo sexual, toda a vontade de possuí-lo, todo o surgimento de uma série de sonhos, fantasias, intenções voluptuosas, tesão, sede avassaladora de tê-lo para múltiplas satisfações sexuais. Neste aspecto, o norte do corpo é região que precisa ser explorada para a obtenção de prazeres.
Ao norte do corpo há sempre uma lição que o outro quer sempre sentir, ver, conviver, aprender, acostumar e ter cada vez mais, fazendo do seu uso e abuso uma forma de posse, de propriedade e domínio. Muitas vezes, pessoas querem fazer do norte do outro algo que esteja sempre a seu bel-prazer, para ter contente assim que desejar. Nestas condições, um corpo que é tido como latifúndio e submetido ao jogo do explorador, por baixo do pano se deixa seduzir por possuidores e retirantes que vão, sem que o outro saiba, usufruindo furtivamente e sempre do que o senhor pensa que é só dele.
Esse norte do corpo é como livro que precisa ser aberto para aprender e sentir seus conceitos. Nunca houve e nem haverá analfabeto diante das lições do norte do corpo; poderá, sim, existir aqueles mais ou menos experientes, que são mais ou menos capacitados para a exploração dos conceitos, que são catedráticos no tema ou passageiros de primeira viagem. E surgirão então, biologicamente e com as derivações que cada um possa dar, as definições de corpo, sexo, prazer, orgasmo, enfim, um conteúdo adulto que há muito perdeu sua indicação como faixa etária de iniciação.
Mas é no contexto geográfico que as lições do norte do corpo mais apresentam interesse de aprendizagem, despertando em cada um a inexplicável capacidade pela exploração, manipulação e adequação de uso. Assim, antes de tudo se vê a paisagem, sendo as nádegas elevações num relevo de planície macia e apropriada para o semear e cultivar; sendo as coxas, pernas e pés os caminhos que todos querem percorrer tateando até chegar ao ponto mais buscado, que é o órgão sexual. De feição geográfica indefinida, os contornos sempre misteriosos do órgão sexual se adequarão sempre às intenções do explorador ou aventureiro.
Essa região ao norte do corpo quase sempre é de grande capacidade de exploração, mas sua intensidade de uso depende muito do seu proprietário. Em alguns casos, continua como uma região inóspita, praticamente abandonada, sem que qualquer estranho já tenha colocado as mãos ali; outras vezes é de acesso exclusivo ao dono do próprio corpo e a algum ou alguns visitantes escolhidos; e em outras situações é quase um destino turístico, de caminhos e portas abertas, onde cada um pode chegar e explorar ao seu modo e desejo, pagando uma pequena taxa de manutenção ou simplesmente de acesso livre e gratuito.
Quando o acesso ao norte do corpo ocorre nesta última condição, ou seja, de modo livre e sem restrições de uso, tal fato pode gerar danosas consequencias. O grande número de visitantes, a exploração pela simples exploração do destino, a má educação, a falta de higiene e o descuido, aliados à falta de manutenção adequada, acabam gerando a perda da qualidade do corpo, surgimento de doenças infecto-contagiosas e até a morte do dono e usuários.
Mas há mistérios nesse norte do corpo que ninguém consegue explicar: não há um só corpo que não tenha um norte que não desperte interesse em alguém. Seja magrinho, gordinho, moreno, lourinho, mais feio ou menos feio, bonito ou simplesmente atraente, sempre haverá um olhar que começa a desejar e um outro corpo com um outro norte que começa a pedir, até isso se transformar em realização, concretizada no ato sexual.
Como se chama esse norte do corpo? A boca não diz, muitas vezes nem tem tempo de dizer, mas os olhos sabem muito bem a que paraíso quer chegar.




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Vício (Poesia)

Vício


Estou tristemente triste
com a redundância da vida
que me deixa ficar
solitariamente só

Pleonástica é minha solidão
porque sozinho e só
não consigo viver a vida
nem amar do amor

Inundo as palavras sim
repito com o mesmo sentido
exagero em redundância ou pleonasmo
para não gritar um grito.



Rangel Alves da Costa

SER SERTÃO: DA ARTE DA MORTE - I

SER SERTÃO: DA ARTE DA MORTE - I

Rangel Alves da Costa*


O sertão eterno, eterniza-se. O que foi e o que será repousará como exemplo e grandiosidade na memória da história. A aridez da terra e dos homens não ferirá jamais aqueles que realmente souberem compreender as entranhas, linhas e traçados do sofrimento. Cada verdade aprendida, assimilada, visualizando-se o contexto do homem perante o seu meio, será uma lição sertaneja que o tempo não conseguirá apagar.
O bem e o mal, que tanto espaço disputaram nas distâncias áridas de suas terras, num eterno faiscar de fogo e sangue, serão como páginas que cada um escolherá aquela que merece ser lida. Como o entendimento de um todo não será possível observando-se somente isto ou aquilo, será preciso abrir as trincheiras da guerra e as porteiras da paz, deparando-se com o vermelho dor jorrado das mortes infindas, com o grão plantado e a comida na mesa, com as secas insistentes e chuvas relutantes, com o sofrimento e a alegria, com a força que sabe lutar e vencer e com a esperança, a esperança e sempre a esperança, acima de tudo. Assim são as faces do sertão, e assim ele se fez, ofício divino, porém forjado pela mão do homem.
O véu das flores ainda tremula com a brisa que sopra na insônia dos descampados e dos centros urbanos. Fantasmas de flores de sangue dizem não mais assustar, pois em seu lugar surgiram outros jardins sedentos e de espinhos perfurantes nos pés descalços daqueles que continuam a vagar pelo lugar em busca de amedrontar a fome. Estes não são espectros, são sobreviventes. Sem o véu nas flores será fácil compreender que tudo pouco mudou, simplesmente trocou de nome. Não será erro ver um bem-me-quer e confundi-la com um malmequer. Begônia de ontem, calêndula de hoje.
Sem o véu de sol escaldante a confundir semblantes, o homem descobrirá verdades e se descobrirá. O homem que veio e o que ficou; o homem que se foi, e o que está e o que nascerá; o que pensa que vive quando nem sobrevive, vegeta; o que mostra o retrato fiel das purezas e das impurezas, e é ouvido mas nem sempre acreditado. No sertão tudo é o homem. Cada um que morre tudo deixa de ser tão sertão. Mas todas essas palavras, amarguradamente pensadas para serem ditas, por efeito do destino ninguém mais as ouvirá, pois o velho morreu.
"Eis o pior mal, no meio de tudo o que se realiza debaixo do sol: que haja para todos um mesmo destino. Por isso, o espírito dos homens transborda de malícia, e a loucura habita no seu coração. Os vivos sabem que hão de morrer, mas a os mortos nada mais sabem, nem mais nenhuma recompensa terão; pois da sua memória nada restará. Os amores dos mortos, os seus ódios, e as suas invejas desapareceram com eles; e nunca mais terão parte alguma em tudo aquilo que acontece debaixo do Sol. Por isso, segue o teu caminho – come o pão com alegria, e bebe o teu vinho com coração alegre, porque a Deus agradam as tuas obras". E o livro de Eclesiastes estava aberto para o velho...


continua...




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sexta-feira, 28 de maio de 2010

CHEIRINHO BOM DE CAFÉ E DE CIDADEZINHA (Crônica)

CHEIRINHO BOM DE CAFÉ E DE CIDADEZINHA

Rangel Alves da Costa*


Que a vida sertaneja, ao menos para os de mais idade, é muito diferente do que a vida da capital, da cidade grande, parece não haver dúvidas. Nas cidadezinhas interioranas ainda se respira um ar de familiaridade, de amizade e de compartilhamento entre todos que há muito deixou de existir nos centros urbanos desenvolvidos. São pequenas coisas, pequenas nuances cotidianas que fazem toda a diferença.
Olhar matuto, vida matuta, povo matuto. Diferentemente de ser um desprestígio ou discriminação, é uma valorização a um povo que graças a Deus só se preocupa com as realidades desumanas do mundo porque ouvem dizer, porque a televisão mostra, porque não tem jeito mesmo. Melhor seria a felicidade sendo construída junto com o cheiro do café caseiro, batido no pilão na hora, espalhando aroma e sabor pelos quintais e tomando as ruas; tomar banho na biqueira da casa quando chove, colher a fruta fresquinha no quintal, bebericar do leite ainda quentinho do peito da vaca, debulhar feijão de corda verdinho para mais tarde comer com a carne de carneiro que o vizinho matou naquela manhã. Sim, sertão, cidadezinha, qualquer cidadezinha do interior...
Maria passou com um feixe de lenha na cabeça; Joana oferece à vizinha cinco preás fresquinhos dos muitos que o seu filho Tião pegou na armadilha colocada na capoeira na noite anterior; Seu Manoel estendeu em frente de casa para secar todo o feijão que conseguiu colher no roçado; Lurdes faz uma panela de barro no quintal e Joãozinho aproveita e se enlameia todo para esculpir um boizinho; as três beatas passam de casa em casa com a imagem do santo pedindo ajuda para a novena que será realizada no fim de semana. Seu Antero, já velhinho, morreu e meio mundo de gente passou a noite velando o corpo entoando rezas próprias para a ocasião e tomando cachaça. Souberam que a filha de Totonha pariu naquela mesma noite. No interior é assim, mesmo na morte, há vida...
Quando o sol começa a se por, nos pequenos sítios, fazendas e pequenas propriedades, é hora de chiqueirar o gado, retornar pra casa depois do dia de trabalho cansativo, levar o pequeno rebanho para o riachinho ou para a beirada do poço que ainda tem um restinho de água, armar a rede na varanda, mandar varrer o salãozinho porque um amigo sanfoneiro disse que passaria por ali ao anoitecer. Certamente que os vizinhos virão assim que ouvirem o fole tocar e a festança estará garantida até o dia amanhecer. Tem cachaça limpa e fumo de rolo, tem menina bonita sibite e tem muito cabra de olho, tem namoro pelos cantos e outros que vão se esconder pelas moitas. E tem a lua, e tem a lua, e o que dizer do luar sertanejo?...
Nas ruas da cidadezinha, assim que o entardecer sinaliza a diminuição da quentura, o refrescar do calor, e as nuvens meio avermelhadas ficam bonitas lá em cima e o vento começa a soprar mais rapidamente e refrescante, as comadres, amigas, vizinhas e quem for chegando, começam a abrir as portas, colocar cadeiras pelas calçadas e começar um proseado gostoso demais. Tem calçada que vixe Maria, o que não se sabe se inventa, se fala sobre tudo e principalmente da vida dos outros. Noutras estão pessoas olhando a natureza ao redor, as pessoas que passam, as novidades que chegam.
Nessas calçadas sertanejas, quando a hora do dia é mais bonita, o velho Quelé se assenta no banquinho e começa a preparar o cigarro de palha; Jeroma estende sua mesinha para vender arroz doce, mingau e mungunzá, já Filipa, mais na frente, tem pra vender cocada, bala de mel, quebra-queixo, canjica e pamonha. Mas em muitas dessas calçadas se avista também pessoas solitárias, senhoras idosas sentadas nas suas cadeiras de balanço fazendo tricô, remendando uma roupa, com os olhos nas distâncias da saudade, com o coração apertado, com as lembranças remoendo seus pensamentos de muitas lembranças. A solidão também é sertaneja, e doi e arde...
Os meninos correm só de calção por ali; duas garotinhas brincam com suas bonecas de pano; Zezinho achou de trazer sua fazenda bem pra frente da casa e começa a brincar com o seu rebanho de pontas. Drummond pega da pena e escreve: Casas entre bananeiras/ mulheres entre laranjeiras/ pomar amor cantar./ Um homem vai devagar./ Um cachorro vai devagar./ Um burro vai devagar./ Devagar... as janelas olham./ Eta vida besta, meu Deus.
Êta vidinha besta, meu Deus, maravilhosamente besta, meu Deus!



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Poema corpo (Poesia)

Poema corpo


Não vou escrever
um poema de amor pra você
vou colocar você num poema
e amar

Desenhei com palavras
o teu corpo nu
ouvi o coração e rimei
deitei você na folha
e beijei

A métrica do toque e do prazer
quando se une ao motivo do querer
esquece a rima e os sentidos
e se entrega a desconexas palavras
de repente tornadas gemidos

Só tenho medo meu amor
que esse poema lindo
nesse corpo livro
seja um dia visto e lido
por outras pessoas.



Rangel Alves da Costa

SER SERTÃO: DA ARTE DA REVOLTA – VI

SER SERTÃO: DA ARTE DA REVOLTA – VI

Rangel Alves da Costa*


É inegável, porém, que boa parte dos trabalhadores teve seus olhos abertos para enxergar, mesmo que turvamente, as tantas injustiças e desigualdades sociais. Quando seus filhos choram pedindo alimento, estão prestes a sucumbir por falta de papa de farinha ou de fubá de milho; quando ficam com o pé na cova por falta de cuidados médicos e de remédios; quando não vão estudar porque a escola é longe demais e lá não é servido nenhum tipo de merenda, tudo isso passou a ser encarado como um problema social, com culpados nas esferas de poder e que podem e devem ser apontados.
Não se fala mais que as coisas acontecem porque Deus quis assim ou porque isso ou aquilo era desejo do Criador, mas sim que a culpa é do prefeito, do governador ou do presidente. A raiva, o ódio e a palavra firme do sertanejo não mais calam e consentem. Não aceitam mais, por exemplo, que as desgraças tanto vistas nas secas sejam tidas simplesmente como causas naturais, porque a natureza é assim mesmo. E o homem, que tanto dinheiro tem pra combater as secas, por que não faz nada?
Como dito, apenas uma parte dos sertanejos passaram a pensar assim, como gente e não como eternos medrosos e submissos. Estes encaram a vida como a medonha deve ser encarada. Outros não, pois muitos parecem que até gostam de viver se rastejando nos pés das autoridades, pedindo esmolas pra tudo e tendo que aceitar todas as injustiças como um fardo próprio do sertanejo, e que por isso mesmo terão que carregar calados.
De certo, as coisas vão mudando, mas muito pouco. Ninguém parece querer tirar o sertão de sua sina. As coisas mais absurdas continuam acontecendo sem que ninguém diga ou faça nada. Nesse contexto, só pra citar outro exemplo, se o filho do pobre não morre mirradinho logo quando criança, mais tarde certamente vai comer o pão que o diabo amassou, pois sem perspectivas de viver com dignidade, trabalhando e fazendo valer sua força sertaneja. Infelizmente vai viver, com todos os efeitos e consequencias, pelos caminhos da marginalização social degradante e suicida, sem que possa, ao menos, ter qualquer ajuda para sair dos muitos e muitos abismos.
Como a marginalização é fruto do próprio sistema, e este lava suas mãos para o que der e vier, descompromissando-se com a razão humana da sobrevivência digna, uma classe de excedentes e excluídos passa a viver no sertão como se este fosse um palco de grande capital. Daí a prostituição infantil a se alastrar desenfreadamente, miseráveis a dividir calçadas para pedir esmolas, traficantes de drogas surgindo que ninguém sabe de onde e usuários que todo mundo sabe de vem, roubos e furtos cada vez mais crescentes, bandidos amedrontando e tirando o sossego das famílias, uma tal de moda e um tal de modismo que só trazem consequencias ruins, enfim, todos os males de uma civilização arbitrariamente repousando onde o futuro não sabe se terá chances de alçar voo.
Divina comédia humana, diria o observador distante. Impiedosa tragédia humana, ensinaria o sertanejo.


Depois de tanto falar e dizer, confirmar e se exaltar, o velho acrescentou que não retornaria mais ao assunto. Segundo ele, não tinha jeito mesmo. O que não tem remédio, remediado está. E depois saiu...

continua...




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quinta-feira, 27 de maio de 2010

SENTIMENTO DO ESPELHO (Crônica)

SENTIMENTO DO ESPELHO

Rangel Alves da Costa*


A mocinha bonita tinha pendurado no quarto um espelho antigo, desses que de tanto refletir por anos e anos o rosto de sua dona vai, mesmo sem querer, perdendo sua cor, turvando, apresentando pequenas manchas, que depois dificultam enxergar com nitidez as feições, a beleza ou os múltiplos sentimentos que lhe são expostos para adivinhação ou confirmação.
Não é fácil ser espelho sem que a película que reflete não possua conhecimentos da psicologia, não for analista comportamental, se não for amigo e conselheiro, forte o suficiente para suportar os impactos das situações nos rostos que lhe são apresentados cotidianamente, pois os espelhos também têm sentimentos e como tal sentem por dentro aquilo que está refletindo.
Um dia a mocinha dona do espelho resolveu trocá-lo, mandar colocar um vidro espelhado novo naquela moldura antiga e que ela preservava como se fosse um precioso objeto de herança. Mais de três gerações de familiares já haviam se espelhado nos vidros com aquela mesma moldura de madeira, toda cuidadosamente talhada à mão. Não seria agora, principalmente ela que tinha tanto apego ao passado, que abandonaria num canto qualquer aquela preciosa ornamentação.
Um dia antes de levar o espelho até a vidraçaria, quando já era noite e estava prestes a deitar, ficou em frente ao seu cúmplice de sentimentos, já quase sem ter reflexos suficientes, e sem querer abriu a boca e dele se despediu, dizendo que muito obrigado por todos aqueles anos que havia refletido sua face e, mais do que qualquer pessoa, compreendendo seus momentos alegres e tristes, os instantes em que irradiava pura beleza e outros onde a solidão deixava o rosto entristecido e feio.
Bastou isso e o espelho silenciosamente ouviu e ficou ainda mais opaco, como se fosse partir a qualquer instante, morrer ao amanhecer, deixar de espelhar para sempre. A mocinha ajeitou o cabelo, retirou a maquiagem, fez um gesto de beijar o espelho, deitou e dormiu. Mas o espelho não. Abatido, melancólico e cheio de angústias, não conseguiu fechar os olhos a noite inteira, chorando convulsivamente diante da notícia que havia recebido. Se tivesse outro espelho lhe espelhando diria que nunca foi refletida tanta dor e agonia como naquela noite, na meia luz do quarto. A única testemunha daquilo tudo dormia e sonhava com um espelho novo.
Assim que acordou, a mocinha não se mirou no espelho como de costume. Depois de caminhar pelo quarto, de repente se aproximou dele já com alguns jornais e uma bolsa grande bolsa nas mãos. Vai ser agora, pensou o espelho aflito. Mas quando ela se encaminhou para junto dele e estendeu a mão para retirá-lo da parede, ele não suportou o instante e resolveu falar, ao menos se despedir, daquele rosto bonito que viu crescer, de todos aqueles sentimentos que aprendeu compartilhar e, como ela, também já havia se alegrado e sofrido muito.
"Espere só um instante, minha menina. Fiquei em silêncio esses anos todinhos somente lhe apreciando, refletindo junto contigo todos os seus bons e maus momentos. Quantas vezes me alegrei somente em te ver feliz e sorridente, bela com uma flor, coisas que aos meus olhos e ao meu coração enchiam e ainda enchem de felicidade, mesmo que este seja o instante de minha despedida. Compreendo bem os motivos que fazem com que pretenda preservar a moldura e trocar o meu vidro, onde estou, onde vivo, onde passei esses longos anos refletindo seus antepassados e agora você. Sei que estou velho, amarelado, se cor e sem brilho, que já não reflito como realmente gostaria de se ver todos os dias. Compreendo tudo isso minha menina, pois há um tempo de despedida para tudo na vida. Só peço uma coisa, só imploro que se aproxime bem pertinho de mim e veja como você está triste. Não queria te espelhar assim pela última vez, mas você está triste. Basta esse olhar, esse último olhar de nossa despedida e depois pode fazer dos meus restos o que quiser. Adeus, minha menina, e que o novo espelho te deixe ainda mais bela!".
E a mocinha, surpreendida por aquelas palavras, caiu em prantos, ficou triste e feia. E quando quis refazer suas feições no seu velho e querido espelho teve outra surpresa: não havia mais nenhuma luz no espelho, como se o seu resto de luz tivesse sumido. Restava somente o vidro nu, molhado e turvo, que ela limpou carinhosamente e levou para vidraçaria, não para colocar um vidro espelhado novo, mas a sua mais bela fotografia.




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Amor ainda (Poesia)

Amor ainda


Porque ainda amo
creio no amor e chamo
e todos olharam
desconfiaram
repugnaram
desacreditaram
se afastaram
se espantaram
se alarmaram
só porque ainda amo

E tão estranho
incompreensível e desumano
que se tornou o amor
o que é amar
que o amor que tinha
e que era tanto
se transformou em pranto
por não ter mais ninguém
para amar.


Rangel Alves da Costa

SER SERTÃO: DA ARTE DA REVOLTA – V

SER SERTÃO: DA ARTE DA REVOLTA – V

Rangel Alves da Costa*



Em meio ao caos e ao descaso, o que alenta e fortalece a luta contra a continuada exploração é o despertar da consciência crítica que surge como uma verdadeira luz em determinadas classes sociais. Determinados setores, formados por agentes que como ninguém conhece a marginalização de um povo na própria pele, partem para a luta organizada, e apesar de todas as mortes não esmorecem, não se entregam e partem sem cessar contra a exclusão social. Digo da exclusão vista pelos olhos e sentida na pele, como ferida braba, e não essa exclusão enfeitada dos discursos dos políticos. E, afinal de contas, esse povo engravatado e afeito à roubalheira sabe lá o que é exclusão social, seu real significado? Palavras, nada mais que palavras.
Quero repetir uma coisa, dizia o velho: Quando falo na sociedade organizada, falo de coisa séria, de gente que realmente se organiza com seriedade para resolver um grãozinho nas montanhas de problemas sociais que existem, desde o sul até aqui perto de nós, nas brenhas desse sertão de meu Deus. Por isso é que repito que essa classe de gente que forma o comando dos sem terra, o tal do MST, e até muitos daqueles que entram no meio com a carinha de excluído, na verdade não vale o que o gato enterra, não vale nada, não tem serventia alguma para o sertanejo que age com seriedade. Somente para gente como eles, que vai entrando no que é dos outros, diz que é pra plantar e depois vai negociar o pedaço de terra que recebe. Quando continua na terra se tornam uns parasitas, vivendo das esmolas dos governantes, roubando cargas de caminhões e deixando rastros de tudo que é ruim por onde pisam. Esse povo deve ter muita sorte mesmo, pois vá um da gente colocar uma bainha sem faca na cintura pra ver se não vai preso? Eles não, pois invadem os prédios públicos, esculhambam com tudo e ainda saem pelas ruas de armas em punho que ninguém diz nada. É por isso que esse país será sempre visto como carente de seriedade. O país que não se faz respeitar não quer que ninguém o respeite. Isso é um absurdo, mas eles continuam fazendo do que fazem e o governo mandando dinheiro, continuam armados e ameaçando a todos e o governo mandando dinheiro pra eles... É um verdadeiro absurdo.
Mais uma vez acharam por bem fazer com que o velho parasse um pouco com sua narrativa, pois com a raiva que estava poderia ter um pirapaqui a qualquer instante. Acendeu o cachimbo, baforou um pouco e continua na sua peleja verbal.
Muitas vezes, querendo alcançar o poder subindo pelo rabo da miséria do povo, certos partidos políticos, principalmente os que não estão no poder, arvoram-se no direito de possuir o elixir contra todos os males e nos palanques da vida vivem a vomitar promessas para iludir os desatentos e os despossuídos de senso crítico. Ora, todos sabem que enquanto o poder não é alcançado esses partidos torcem e fazem questão de jamais encontrar um prato de um pobre cheio de comida, um salário que dê para viver com dignidade, um pedaço de terra sendo plantado por um trabalhador para a subsistência de sua família.
Não querem o bem porque não vivem sem o mal para criticar, para dizer que somente eles podem trazer dignidade para as classes desfavorecidas. Esquecem, entretanto, de aprender as lições tantas vezes ensinadas por setores que se organizam e conseguem minimizar o sofrimento de muitos através de estratégias que priorizam verdadeiramente o homem, o ser humano perante suas necessidades, e não o eleitor em potencial. Como agem, mostram-se realmente partidos: uma parte pra mim e a outra também. O tolo não come do bolo. E precisa dizer o nome do tolo nessa história toda?...
Contudo, o que doi mais é sentir que muitos trabalhadores são usados por partidos políticos, até por sindicatos que dizem em suas defesas, em nome de uma causa nobre, quando a finalidade maior, todos sabem, é a de alienar politicamente para tirar dividendos eleitorais e até financeiros. E isto é maquinação das mais conhecidas.
Estrategicamente, quadros ou integrantes dos partidos são enviados para o interior; são detectadas as mais pobres situações de pobreza, podemos dizer assim; são feitas reuniões, um trabalho exaustivo de induzimento na mente dos trabalhadores; e quando estes ficam desarmados de quaisquer argumentos, lhes são entregues outras armas para que façam tudo aquilo que os partidos desejam. E então começam a falar mal da pobreza, criticar a pobreza gerada nos outros, mas não procuram resolver, e parece até que esquecem, da sua própria pobreza.


continua...




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quarta-feira, 26 de maio de 2010

SIRICUTICO E SIRICUTACA (Crônica)

SIRICUTICO E SIRICUTACA

Rangel Alves da Costa*


Jamais existiu em todo o reino animal, no imenso e variado grupo das aves, dentre todas as espécies de passarinhos, um casal mais bonito, mais enamorado, mais cúmplice, mais unido, mais amante, mais feliz, mais tudo, do que o par maravilhoso formado pelo Siricutico e pela Siricutaca.
Parentes próximos – e até primos -, mesmo essa linhagem familiar, essa genética correndo pelas veias, nunca impediu que sempre se mostrassem a própria personificação do amor no reino dos passarinhos, dos voadores, daqueles que fazem dos ninhos moradias de felicidade.
Não eram pequeninos como o beija-flor ou grandes como a avestruz, nem eram de penas tão enfeitadas como o pavão, mas eram simplesmente lindos. Os cantos, os gorjeados, os trinados e as melodias, cada uma para uma situação diferente na vida passarinha, como o acasalamento, a satisfação, a saudade e a angústia, eram famosos e por demais comentados por todas as florestas, matarias e arbustos.
Siricutaca e Siricutico moravam bem no alto de um jatobá, num ninho construído na convergência de galhos e um pouco escondido pelas folhagens. O ninho, bem maior do que os outros por ali espalhados, porque construído para abrigar família, era todo feito de gravetos, palha fina, fios de cabelos, linhas, penas de outras aves e tendo por base um pouco de barro para proporcionar maior firmeza e sustentação.
Siricutaca ficava a maior parte do tempo dentro do ninho ou arredores. Orgulhosa de sua penugem num misto de marrom, vermelho e negro, com porção embranquecida próxima aos olhos, permanecia o maior tempo ajeitando o ninho, cantando, colhendo alimentos nas proximidades e preparando o leito para o retorno do seu amor. Ainda não tinha filhos, mas num cantinho do ninho estavam alguns pequeninos ovos que logo logo se transformariam em vidas passarinhas. A primeira fêmea iria se chamar Siricuta e o primeiro macho receberia o nome de Siricuto. Tudo combinado com um pai extremamente feliz.
Siricutico saía do ninho logo cedinho e permanecia distante deste por um bom tempo, mas de duas em duas horas era certo dar uma passadinha pelo seu lar, para rever seu amor, procurar saber como andavam os ovos, trazer alimentos e verificar se algum passarinho enxerido estava passeando ao redor. Ademais, sabia que gaviões malvados gostam de atacar os ninhos quando menos se espera. Somente ao entardecer, quando o sol se avermelhava muito para depois sumir, é que ele retornava para permanecer no se lar durante o restante do dia até a manhã seguinte.
Quando Siricutico voltava todo contente, convidava sua Siricutica para passearem por outros galhos e ficar apreciando a natureza ao redor, cantando bem alto e felizes. Muitos outros passarinhos vinham juntar-se a eles e formavam uma verdadeira orquestra de cantos, para alegria e contentamento de homens, bichos e plantas. Mas numa tardinha, assim que chegaram num galho bem alto da árvore, sentiram que naquele instante não poderiam cantar e ficaram entristecidos e temerosos pelo que viram adiante, se formando nas nuvens negras que se aproximavam ruidosamente.
Tudo escureceu num instante, trovões estridentes começaram a ser ouvidos e relâmpagos cortavam os céus; aquilo que caía não era chuva, mais parecendo um dique que se arrebenta das nuvens e vai caindo tudo de vez, molhando e destruindo tudo que encontra pela frente. Não tiveram nem tempo de entrar no ninho para se abrigarem, quando viram os ovos despencando e gravetos sendo arremessados por todos os lados. A moradia estava totalmente desfeita e quando Siricutico procurou enxergar Siricutaca ao seu lado, nada encontrou, a não ser uma imagem triste de penas que iam sendo levadas pela ventania numa velocidade imensa. De repente não pode enxergar mais nada, cheio de dor e angústia, completamente perdido na noite de temporal avassalador.
Um ano se passou desse lamentável episódio. Siricutico nem parece mais o passarinho de antes. Entristeceu, envelheceu, recolheu-se na solidão dos que fazem tudo para encontrar qualquer motivo para a felicidade e não conseguem mais qualquer alento. E a única coisa que ainda consegue trazer um pouco de vivacidade ao seu coração de pássaro ferido é quando começa a ouvir, todo entardecer, lá no galho bem alto, o canto do seu amor que não mais está ali.




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Lições e caminhos (Poesia)

Lições e caminhos


Queremos ser um dia
o que não seremos nunca
porque queremos amor
e nunca soubemos amar

Queremos ter um dia
o que será impossível ter
porque é impossível ter tudo
se não nos contentamos com nada

Queremos saber um dia
o que já sabemos demais
e todas as lições e sofrimentos
não ensinaram aprender

Queremos amar um dia
o que jamais sentiremos
porque temos somente a paixão
e pensamos que construímos amor

Queremos aprender um dia
e talvez consigamos
se reconhecermos que os erros
são as primeiras lições.


Rangel Alves da Costa

SER SERTÃO: DA ARTE DA REVOLTA – IV

SER SERTÃO: DA ARTE DA REVOLTA – IV

Rangel Alves da Costa*


Falar sobre Lampião naquelas redondezas era motivo pra muita curiosidade. Existiam muitos admiradores do lendário Rei do Cangaço, amantes de sua história e principalmente de suas façanhas, por ali mesmo, naquelas proximidades de mandacarus e xiquexiques. Outros ainda viam a imagem do capitão das caatingas com certas reservas, ora reconhecendo justiça nas suas proezas, ora maculando a sua imagem como verdadeiro malfeitor.
No seu íntimo, sem pretender fazer disso um endeusamento, o velho achava que a verdadeira história do sertão não seria tão grandiosa sem que algum dia tivesse existido pessoas como Padre Cícero, Antonio Conselheiro e Lampião. O capitão Virgulino era tão necessário no sertão como o sol e a chuva, sem os quais não se poderia imaginar a existência desse mundo cheio de encanto e fascínio, mas também de dor e sofrimento.
Tinha prazer em falar sobre Lampião e por isso mesmo cuidou logo de dar prosseguimento ao seu proseado. E disse:
Nascido em Vila Bela, hoje Serra Talhada, no sertão pernambucano, pertencia a uma família de lavradores e pequenos criadores. Como era usual numa região assolada pelas encrencas, ciúmes e ambição, sua família foi confrontada por outra, de um coronel, gerando um conflito que culminou com a morte de seu pai pela polícia, em 1920.
Dizem que por causa disso e extremamente revoltado e ansioso por vingança, Lampião chamou seus irmãos mais velhos e disse que já que haviam perdido tudo, agora restava somente matar ou morrer. A partir daí tomou o rumo do cangaço, trilhando os estados nordestinos, fazendo justiça com as próprias mãos, saqueando cidades e fazendas e lutando contra a polícia, ou volantes, como eram chamados os perseguidores dos cangaceiros.
Depois de muito lutar contra o sistema, e muitas vezes pactuar com esse mesmo sistema em busca de proteção; desiludido com o jogo de interesses do sertanejo, cansado e traído, muitas vezes traído, Lampião foi morto em junho de 1938, mais precisamente no dia 28 de junho de 1938, na gruta do angico, nas beiragens do Velho Chico, no atual município sergipano de Poço Redondo. Com ele foram também massacrados sua companheira Maria Bonita e mais nove cangaceiros. Contudo, se tal fato marca o fim do cangaço, não se pode dizer o mesmo daquilo que lhe deu origem, que foi o latifúndio, a ambição desenfreada dos poderosos e a miséria sombreando uma classe trabalhadora cada vez mais explorada.
Na verdade, no nordeste não se pode dizer que foi o fim disto ou daquilo. O que desaparece retorna com outra roupagem, com jeito novo para o muito antigo. O latifúndio, que nunca deixou de existir, transformou-se na empresa agropecuária, seja produtiva ou improdutiva; o coronel, que deu uma cachimbada no visual e nos modos de tratamento, é visto agora como o empresário ou político rico, que sai pelos interiores comprando pequenas propriedades por preço de banana e cercando-se de levas de trabalhadores cruelmente explorados.
Mas não é só isso, tem mais. O mandonismo, que tanto encurralou e encabrestou submissos eleitores, converteu-se num deslavado e repugnante assistencialismo, num manuseio da miséria para os mesmos fins eleitoreiros; e o povo em si, a vítima eterna de estruturas sociais que afrontam os mais dignos sensos de humanidade, transfigurou-se agora numa inconsciente, e até conscientemente, massa de manobra, num me bata que eu fico sorrindo, me chute que eu gosto de ser bola, de ser brinquedo.
Há alguns anos atrás começaram a pregar que os latifúndios nordestinos estavam com os dias contados, prestes a serem derrubados suas cercas e seus arames, e tudo porque estava chegando, como uma verdadeira onda vermelha, o tal do MST, que dizem ser Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Chegaram sim, vieram com tudo, foram invadindo, botando pra correr de suas terras muitos latifundiários, mas só isso. Quero que algum dentre vocês que estão aqui nessa praça me diga o que esse movimento fez de bom, útil ou produtivo até hoje, a não ser invadir o que é dos outros, matar os rebanhos, destruir plantações e depois lotear as terras que serão vendidas em seguida ou trocadas por motos, carros velhos ou bugigangas? Sem falar na insegurança, no medo, em tudo que é ruim que parte desses falsos sem terras trazem para o sertão. Sem terra uma ova, sem vergonha, sem respeito aos direitos dos outros, sem nenhum caráter, e fazendo da politicagem um meio de assegurar cadeira na varanda do poder.
O velho se mostrava enraivecido, revoltado, a tempo de explodir. Providenciaram um gole d'água, que ele prontamente tomou para se acalmar, recobrar o fôlego e prosseguir.


continua...




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terça-feira, 25 de maio de 2010

TRÊS FILHAS DO SOL

TRÊS FILHAS DO SOL

Rangel Alves da Costa*


A genética da natureza possui seus mistérios que não cabe ao homem descrever senão através de suposições refutáveis. Sua hereditariedade então, caracterizada que é pelos mais estranhos elementos que nascem do mesmo grão trazido um dia pelo vento. Com os astros ocorre a mesma coisa, com o agravante de que ninguém sabe o que possa vir lá de cima.
Assim, os mais velhos contam que num dia de chuva o sol deu à luz três lindas filhas: Solícita, Solitária e Solteira. Se a maternidade é indiscutível, a paternidade gerou e ainda continua ocasionando grandes controvérsias, vez que é do conhecimento de todos os astronautas, astrofísicos, astrólogos e vizinhos do espaço que o sol sempre teve uma vida sexual permissiva, obscena e despudorada, saindo com qualquer um que quisesse experimentar do seu calor durante o dia ou esquentar sua fornalha de prazeres durante a noite.
Nesse contexto de sexualidade intensamente aflorada e sem mais exigências para experimentar do prazer da entrega e do receber é que o sol engravidou, gerou suas três lindas filhas, cada uma mais linda que a outra e com personalidades diferenciadas no jeito de ser, viver e sentir a vida. Quem visse cada uma em lugar diferente diria que se tratava da mesma beleza luminosa, mas bastava se aproximar um pouco mais para sentir algumas diferenças comportamentais essenciais.
Solícita era muito parecida com a mãe, parecendo ter sempre uma fornalha dentro dela e desde cedo se envolvendo com uma turma sem rumo certo no espaço, como as estrelas cadentes, os cometas embriagados e os asteróides rebeldes. Dava um trabalhão infinito à mãe, pois sempre fugia dos afazeres de sua idade para se misturar com a chuva, estar zanzando sem destino com a ventania e até ser vista nas situações mais inusitadas com as tempestades, as geadas e as tormentas. Terminou uma paquera com um trovão porque disse que ele era muito barulhento nas horas dos encontros íntimos, e o mesmo se deu com um relâmpago, acusado de ser rápido demais, cumprindo precocemente aquilo que deveria durar mais tempo. Contam as más línguas que foi vista em pleno anoitecer saindo escondida com um raio de lua. Mais uma afronta à sua mãe, que nunca se deu bem com a família desse outro ser luminoso das noites.
Solteira era de uma meiguice só, com seus cabelos louros que esvoaçavam pelos ares, seu sorriso sempre aberto e sempre demonstrando querer arranjar um namorado. Tinha a imerecida fama de ser namoradeira e antes fosse assim, para não se sentir com ares de rejeitada que sempre afligia seu coraçãozinho ardente. Não se sabe bem os motivos, mas mesmo com tanta beleza e expressividade no andar e no vestir, Solteira não segurava namorado mais que dois dias, temendo sempre que mais tarde cumprisse a sina presente no seu próprio nome: solteira, solteirona, titia. Derramava-se em lágrimas só de pensar nessa possibilidade, quando o seu maior prazer era se entregar de vez até mesmo a qualquer satélite artificial.
A terceira filha do sol atendia pelo nome de Solidão. Era a mais bonita, a mais bela e a mais doce de todas, com seus olhos tristes e negros, rosto angelical, cabelos prateados que se espalhavam pelos quatro cantos do mundo. Cresceu praticamente sozinha, num lugar bonito chamado Pântano, que depois passou a ser chamado de São Carlos do Pântano. Tinha esse nome porque estava sempre úmido pelas lágrimas que Solidão derramava na sua tristeza infinita, na sua intensa busca por algo que parecia perdido. Por mais que quisessem alegrar seu coração, não tinha jeito para demonstrar ser mais do que realmente era: um olhar triste que se estendia pelo entardecer querendo encontrar algo perdido no espaço. E certa vez quase sorri quando alguém a avistou e disse: linda lagoa de águas limpas que reflete em seus olhos a cor prateada, resultante da mistura do azul celeste com o brilho dos raios solares.
A mãe das três lindas filhas continua por aí aprontando das suas, brilhando demais quando está enraivecida e se escondendo de vez em quando para fazer não sei o quê. Solícita desde ontem que está de namorado novo; Solteira fez promessa para arrumar namorado; e Solidão parece que se encantou com o entardecer. Só pode ser, pois não para de olhar o horizonte com os seus olhos tristes.




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Último canto (Poesia)

Último canto


É um canto que ouço
é um canto que sinto
é um canto que invade
e não é de cantiga não
não é de sereia
não é de viola
nem de violão
é cantiga que assopra
que vem da folhagem
que vem da voragem
no vento zunindo
no eco insistindo
em cantar a cantiga
que não sei se é não
pois todo canto que ouço
tem uma saudade
vem de uma lembrança
fala sobre solidão
diz do amor que não é
é lamento de coração
mas essa cantiga que chega
num acorde e se vai
só pode ser o gemido
de um peito esquecido
que na morte se esvai.



Rangel Alves da Costa

SER SERTÃO: DA ARTE DA REVOLTA – III

SER SERTÃO: DA ARTE DA REVOLTA – III

Rangel Alves da Costa*


Nas cidades, muitas vezes, a miséria não é tão visível quanto nas lonjuras das pequenas fazendas, nos terreninhos de quarteirão, nos cercados e nos casebres. Houve um tempo em que a miséria, este estado lastimoso de não ter, de submeter-se às necessidades básicas, nem se comparava com outro tipo de marginalização, que era ter de entregar o que possuía, sob ameaça de morte, ao vizinho latifundiário que media os novos alcances de suas terras pela mira dos rifles da jagunçada.
Não foram poucos os casos de famílias inteiras serem dizimadas, que vizinhos, por uma rixa ou desavença qualquer passaram a se odiar de fogo a sangue e duelaram até não restar sobreviventes; que os que escaparam com vida foram guiados pelo ódio e pela sede bárbara de vingança, aumentando desforras e vinditas em outras paragens, tornando-se verdadeiramente bandidos, juntando-se aos bandos de cangaceiros, seguindo pelas trincheiras sertanejas a nivelar uma lei pendente só para um lado.
Dessa lei pendente para o lado do mais forte foi que surgiram revoltas, cujo exemplo mais acabado foi o cangaço, ao menos nesse contexto sertanejo. A situação difícil vivida pela população nordestina, principalmente pelos desmandos impostos pelos coronéis, estes mandantes de tudo e de todos, foi fato gerador de indignações que faziam ferver o sangue já escaldante do matuto dessas brenhas de caatinga e bicho indomado.
O nordeste, cenário árido e hostil, entre os anos de 1870 a 1940 viu ainda alastrar-se sobre suas terras uma legião de descontentes com a falta de perspectivas dignas de vida. Humilhados e submetidos à dominação dos prepotentes coronéis, entregues à fome, à miséria e às truculências que sempre terminavam com sangue jorrado, não viram outra saída senão somar-se aos grupos de cangaceiros existentes que, dentre outros propósitos, municiavam-se para empreender vinganças, principalmente atacando as fazendas dos coronéis inimigos dos seus amigos e protetores e espalhando o terror entre certos grupos de latifundiários. Alguns latifundiários, pois existiam aqueles que reconheciam os propósitos dos chefes cangaceiros e cooperavam no que estivesse na sua esfera.
De qualquer forma, os poderosos eram os alvos principais dos cangaceiros. Contudo, a revolta desmedida, acrescida à própria rudeza da maioria dos integrantes dos bandos, foi fazendo com que as desforras e represálias se tornassem cegas, sendo direcionadas a qualquer um que fosse visto como inimigo. Desse modo, o que nasceu como forma de vingança, de combate à miséria e tentativa de transformação social, transformou-se, em muitos casos, num instrumento sádico de violência. Esta floresceu na sua maior intensidade, porém contra inimigos do mesmo quilate e mesmos propósitos de crueldade, mas não contra criancinhas e velhinhas indefesas, como muito se assevera no ouvi-dizer do folclore cangaceiro sertanejo.
Os esconderijos, as grutas, os mandacarus, facheiros e xiquexiques do sertão revoltoso, forma muito mais do que testemunhas e cúmplices para os diversos magotes de rebeldes primitivos. Acolhendo os irmãos de sol, foram marcos e leitos para os bandos apressados e cansados. Como esses bandos eram conhecidos pelos nomes dos seus chefes, primeiro surgiu o de João Calango; depois apareceu o de Jesuíno Brilhante, que era uma espécie de Robin Hood sertanejo, muito adorado pelos mais humildes; já por volta do início do século passado foi a vez do bando de Antonio Silvino, conhecido também como o governador do sertão; contudo, somente anos mais tarde é que surgiria o principal bando de cangaceiros, chefiado por Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião, o rei do cangaço.
Como todos sabem, o destino, configurando-se num meio inóspito e de difícil sobrevivência, tece redes de submissão que deixa o ser humano quase que sem saída, ou humilha-se covardemente ou rebela-se encorajadamente. A maior parte dos revoltosos dos bandos surgidos foi gerada nessa teia de aranha chamada coronel. Deu no que deu. E com Lampião não poderia ser diferente.


continua...




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segunda-feira, 24 de maio de 2010

INSÍGNIAS, BRASÕES E VAIDADES (Crônica)

INSÍGNIAS, BRASÕES E VAIDADES

Rangel Alves da Costa*


Não sou pessoa como você, que só tem um nome e sobrenome e que não será nenhum grão na poeira dos tempos, porque não tem linhagem, estirpe, sangue dos fortes, reconhecimento na ilustre casa da história.
Quando muito, talvez você só tenha RG, CPF, CTPS, uma foto 3X4, xerox da Certidão de Nascimento, um endereço e nem sequer uma recomendação de alguém que lhe conheça. É triste, mas você não passa de um número nas estatísticas que indicam o subdesenvolvimento. Talvez você só exista porque está vivo, mas com certeza não tem amigos e muito menos proteção de alguém no poder. Ah!, se você for eleitor terá sua importância reconhecida num breve instante.
Enquanto você pensa que é alguém, eu fico aqui na torre do meu castelo imaginando que existem pessoas como você, e esta imagem abjeta me faz sorrir. Não sei bem se é castelo, fortaleza, fortificação ou residência senhorial, mas tenho certeza de que somente a torre onde gosto de ficar para apreciar as paisagens verdes e azuis, os vinhedos e os trigais, as fontes e os lagos, é infinitamente maior do que o casebre onde se esconde e ainda diz que é casa. Em casa moram os meus serviçais, com muitas dependências, quartos, lareiras e solares, e não isso que você chama de endereço.
Dessa torre onde estou, ínfima dependência dessa moradia construída na pedra da mais alta nobreza, e que foi herança de um povo de grandes feitos, posso ver adiante terras e mais terras que, após deixarem de servir aos propósitos para produzir riquezas, certamente servirão para você plantar um pé de feijão ou de milho, levantar sobre um seu pedaço uma casinha de barro, colocar quatro estacas ao redor e dizer que é feliz. Eu, que deveria jurar que tenho de tudo, juro que ainda não tenho nada e não terei até subjugar e colocar aos meus pés o próprio horizonte. E não se apresse em dizer que esse quadrado de terra é seu, pois logo logo só terá sete palmos e algum punhado de areia por cima.
Não sei nem quero saber se você tem família, pais, parentes, conhecidos com esse mesmo sangue de vermelho aguado que tanto se arvoram de ter. É costume de vocês falarem dos familiares que já se foram afirmando que alguém era um grande lavrador, um reconhecido servente, um peão exemplar. Reles serviços de uma vidinha, apenas isto, e certamente incomparável com o baronato, com o ducado, com o principado, com a realeza que distinguem os meus. Almirante de esquadra e norte, grão-mestre da grande loja, sumo sacerdote, senhores do comércio de todas os portos e todos os mares, eis de onde venho e enobrece ainda mais o meu sangue verdadeiramente azul.
Você deve ser um desses João, Pedro ou José que dizem tanto ter por aí, num mundo que felizmente não conheço e nem quero colocar os meus pés macios. Minha carruagem se sujaria naquelas ruas imundas; aquelas mãos nojentas não serviriam para carregar minha liteira. O meu nome, que prefiro que você não pronuncie, é composto e possui mais de mil letras, em muitos sobrenomes que confirmam a minha linhagem, a minha estirpe, a minha honra e o meu sangue. Não é genética nem hereditariedade, é nobreza, realeza, tudo na maior pureza, a própria perfeição do ser humano sobre a terra.
Ouvi falar que deram a você um certificado de conclusão de curso de alfabetização. Não sei o que é isso nem quero saber. Nesse momento estou pensando em mandar construir uma nova ala no castelo somente para colocar meus troféus, minhas insígnias, meus símbolos de realeza, meus pergaminhos e minhas armas e brasões. Para você que não sabe, insígnias são minhas coroas, meus colares, meus selos e distintivos, todos simbolizando a minha importância nesse mundo fútil. Brasões são os símbolos contendo o cetro, o ramo de oliveira e o canhão, como característicos de uma família que venceu todas as lutas e batalhas. Há mais de vinte anos os historiadores trabalham na heráldica familiar e ainda não conseguiram enumerar nem a metade dos nossos símbolos de força e poder.
E agora pergunto: quem é você, quem você pensa que é? Não vou sair dessa torre enquanto não descobrir quem você é, como age, como vive nas dificuldades, como realmente é. Duvido que seja feliz, pois a nenhum pobre é dado o direito de ter felicidade, mas se o for, se assim mesmo consegue dormir tranquilo e amar, consegue viver normalmente e sorrir, consegue tirar da tristeza toda a alegria da vida, preciso urgentemente saber quem você é, para te procurar e fazer um acordo: Dou-te minha riqueza, minhas insígnias e brasões para ter a tua felicidade. Só não dou meu sangue porque sangue azul não existe e não vale nada.




Advogado e poeta
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Lua (Poesia)

Lua


Ontem foi noite de lua
de lua bonita
de lua bem cheia
de lua que grita
de lua cantante
de lua mistério
no cais do amante

Te vi deusa das águas
passeando na praia
cantando na noite
dançando na areia
toda molhada de lua
parecendo sereia
de lua bem cheia

Nesse cais, nesse mar
hoje o canto é de dor
onde está minha lua
onde está meu amor?


Rangel Alves da Costa

SER SERTÃO: DA ARTE DA REVOLTA – II

SER SERTÃO: DA ARTE DA REVOLTA – II

Rangel Alves da Costa*



O velho havia pedido silêncio e atenção de todos, mas ele mesmo de vez em quando interrompia seu relato para cumprimentar os amigos que chegavam, iam ficando por ali, matutando, até se inteirarem do que estava se passando e sendo explicado. E o velho continuava seu proseado e dizia:
Se por um lado a pecuária foi fator de suma importância para o povoamento da região sertaneja, por outro lado fez surgir o latifúndio, que constituiu-se no primeiro elemento ensejador da exploração e da desigualdade social no sertão. O latifúndio, caracterizado como uma grande propriedade, geralmente improdutiva na sua maior extensão, e pertencente a um só dono, também conhecido como latifundiário, coronel ou coisa parecida, tornou-se, e continua como tal, responsável por uma série de problemas que afetam direta e profundamente a vida no campo e nas cidades.
Dizem que esses movimentos rurais que surgiram vão combater tudo isso, mas duvido da seriedade dos seus comandantes e de muitos que fingem não ter terras para trabalhar. Estes, muitas vezes, querem tomar tudo à força, desrespeitando o direito de propriedade, o próprio Estado e a justiça. É lamentável, mas isso vem ocorrendo. Só quando verificarem que esses movimentos não passam de enganação, de meio pra pegar dinheiro e alimentação fácil do governo, é quando poderão dar um basta nessa festa vermelha. Mas isso é muito difícil de acontecer, principalmente quando os tais vermelhos têm cadeira cativa no poder.
Mas continuando: As grandes extensões de terras nas mãos de uma minoria dominante não significou, ao menos para a maior parte desta, prova de enriquecimento próprio e muito menos para as localidades onde se estendiam os latifúndios, pois as propriedades, sendo improdutivas ou inaproveitadas, muitas vezes serviam somente para conferir ao possuidor um determinado status ou privilégios junto àqueles que realmente tornaram-se senhores do sertão por muito tempo, que foram os cantados e decantados coronéis.
No entanto, quando se sabe que a conquista ou ampliação das propriedades também foi feito através de processos que envolveram mortes e expulsões dos pequenos proprietários, numa esteira de atrocidades que assolou o sertão, torna-se mais fácil compreender o significado político do latifúndio. Este era a demonstração de poder que, dependendo da força de arregimentação de iguais e da fama de destemor ou crueldade espalhada, passava a significar dominação.
A dominação de pessoas como se fossem bichos; a retirada à força de trabalhadores de suas terras, jogando-os no êxodo da marginalidade; o apagar de quaisquer perspectivas justas de vida e de realização, bem como a desagregação de uma sociedade ainda em formação, tudo isto, perante a ação nefasta do coronel e do latifundiário, tornou o sertão dividido em duas classes que se completam e se justificam: pobres e revoltados.
O que configura a pobreza é a insuficiência de bens provenientes da natureza e do trabalho para satisfazer as necessidades de sobrevivência. No sertão, surgiu da antítese da ganância e dos privilégios de que desfrutavam os ricos, passando depois a ser vista como uma consequencia da má administração do Estado, que continua privilegiando uma classe política que não tem nenhum compromisso com o que realmente afeta negativamente a vida do sertanejo.
Pela força e coragem, pobreza nunca esteve nos planos do dito caipira. Contudo, o próprio sistema sempre colocou os homens do sertão em duas classes fundamentais com interesses opostos. De um lado estão os trabalhadores que só têm a força de trabalho para vender em troca de uma esmola chamada salário. Do outro lado os ricos, os latifundiários, os apadrinhados do sistema que exploram, submetem, usam e abusam dos trabalhadores. Antes contratavam, pagavam qualquer dinheiro ao jagunço para matar, como relação de trabalho. Com o passar do tempo eles mesmo matam com o salário que pagam.
A pobreza se estabeleceu na sua maior força e crueldade e jamais pôde romper com a dependência que lhe deu origem. A marginalização espalhou-se pelos campos e pelas cidades, nos lugares mais distantes e até no quintal dos ricos. Foram surgindo contingentes de vagabundos, entregues à desfavorável sorte a que estavam submetidos. Desse modo, em linha de crescimento vertiginoso, a miserabilidade aumentava, condenando sem dó nem piedade a maioria da população sertaneja a uma existência desprezível e humilhante, configurando-se num verdadeiro sobejo social. Falar-se em sobrevivência, somente por milagre, pela fé, que foi o único alimento que jamais se fez ausente no corpo sempre carente desse povo.


continua...



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domingo, 23 de maio de 2010

O ALTAR DO PERFUME (Crônica)

O ALTAR DO PERFUME

Rangel Alves da Costa*


A Bíblia, ao tratar da fragrância exalada pelo incenso, diz que sua fumaça se levanta no altar do perfume: "Ora, exercendo Zacarias diante de Deus as funções de sacerdote, na ordem da sua classe, coube-lhe por sorte, segundo o costume em uso entre os sacerdotes, entrar no santuário do Senhor e aí oferecer o incenso. Todo o povo estava de fora, à hora da oferenda do incenso. Apareceu-lhe então um anjo do Senhor, em pé, à direita do altar do perfume" (Lc, 8,11). No altar do perfume, pela manhã e à noite se queimavam perfumes sagrados. E tais perfumes eram incensos, agradando os ambientes sagrados e fazendo da sua fumaça uma comunicação com o divino.
Em outras passagens bíblicas é possível se observar o exalar desse perfume, tanto em oblações (oferendas), como em outros sacrifícios e em ritualizações, com o incenso sendo queimado nas cerimônias de adoração a Deus, pois a sua fumaça perfumada subia aos céus para o agrado e reconhecimento do amor pela divindade dos povos na terra. Consubstanciava-se, no incenso, a pureza dos elementos e que era o própria purificação divina.
"Entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se, o adoraram; e, abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra" (Mt, 2,11), "Azeite de lâmpada, bálsamo para o óleo de unção e para o incenso aromático" (Ex, 25,6), “Farás também de madeira de acácia um altar para queimar incenso" (Ex, 30,1), "Sobre ele Aarão queimará incenso aromático, todas as manhãs, ao preparar as lâmpadas" (Ex, 30,7), "E ao por do sol, quando as acender. Assim será queimado o incenso diante do Senhor perpetuamente, por todas as gerações" (Ex, 30,8), "A mesa com todos os apetrechos, o candelabro com os utensílios, o altar do incenso" (Ex, 30,27), " O Senhor disse a Moisés: “Arranja essências aromáticas: resina, âmbar, gálbano aromático e incenso puro em partes iguais" (Ex, 30,34), " Prepararás um incenso perfumado, composto segundo a arte da perfumaria, bem dosado, puro e santo" (Ex, 30,35), " o altar do incenso e seus varais; o óleo de unção e o incenso aromático; a cortina da porta de entrada da morada" (Ex, 35,15), "E queimou sobre ele o incenso aromático, assim como o Senhor havia ordenado a Moisés" (Ex, 40,27), "Dela o sacerdote queimará como memorial uma parte dos grãos moídos e do azeite, além de todo o incenso. É uma oferta queimada para o Senhor" (Lev, 2,16).
Tenho uma igreja em minha vida e todos os dias ritualizo minha fé também através da queima de incensos. Primeiro no altar da minha inabalável fé em Deus, que é no coração, e depois no altar onde tenho a minha a Bíblia, o meu oratório antigo e os mistérios da crença que estão por ali espalhados.
Num incensário bonito, verdadeiro turíbulo, novo mas parecendo uma peça muito antiga representando uma torre, feito de metal de um amarelo envelhecido, com motivos bonitos ornados à mão, faço a madeira de jasmim, mirra, sândalo, manjericão, madeira do oriente e outros aromas, entrar em combustão e quando a ponta está em brasa coloco dentro desse ojeto litúrgico e recubro novamente, para em seguida ficar mirando por alguns instantes a fumaça que vai saindo pelas aberturas e se espalhando pelo ar para ir ao encontro de Deus, e dizer sempre da minha fé e do meu eterno amor.
E como é bom ver e sentir aquela fumaça envolvendo o ambiente, criando uma força mística, dando um novo sentido ao espírito, fazendo respirar no perfume que se exala a paz, a leveza da alma e um misterioso encontro com mistérios divinos. Muitas vezes é como se viajasse pelos templos antigos e seus rituais, pelos corredores e salões dos monastérios e abadias, ao redor das pesadas mesas com religiosos escrevendo letra por letra a religiosidade do mundo, tendo sempre ao lado uma vela acesa e incensos queimando.
O incenso, disposto diariamente no meu altar perfumado, não objetiva somente o meio para transportar no fumo que vai se alastrando os desejos, pensamentos, orações e mensagens para o mundo celestial, para relaxar, embriagar o espírito de paz, purificar o ambiente e a alma. Não. Vejo no ritual do incenso mistérios que aproximam da divindade, no seu perfume o contato com o divino e no ambiente purificado que se forma ao redor a igreja que tanto preciso para continuar manifestando minha fé em Deus.




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Destino do poema (Poesia)

Destino do poema


O destino do poema
era o mesmo destino da vida
consumir e viver da palavra
se não fosse o amor
para mudar seu destino

E não mais amanheceu
e não mais anoiteceu
e não mais lutou
e não mais temeu
e não mais permaneceu
e não mais morreu

Tendo o destino do amor
o poema intensamente se deu
pensou que era o outro
e no outro sobreviveu
até que a palavra paixão
o poema enlouqueceu.


Rangel Alves da Costa

SER SERTÃO: DA ARTE DA REVOLTA - I

SER SERTÃO: DA ARTE DA REVOLTA - I

Rangel Alves da Costa*


O velho achava bonito, apreciava pela novidade e não duvidava do quanto importantes eram os modernos meios de comunicação, tais como o computador, o telefone celular, o fax e tudo mais, mas não possuía nenhum destes, nem mesmo televisão e telefone residencial, somente um radinho de pilha, desses de bolso mesmo. Não tinha porque não podia adquirir, comprar nada que ameaçasse ter todo santo dia o pãozinho com o leite. A feirinha era coisa pouca, quase nada.
Comprar fiado nem pensar, nunca quis cair numa besteira dessas, principalmente porque sabia que certa vez um conhecido teve que vender uma casa, com móveis e tudo, só porque não teve dinheiro pra pagar as prestações de uma televisão que a mulher encegueirou de ter. Ou ele comprava a dita televisão ou ela fechava o balaio; e realmente fez greve do bem bom e ele, coitado, aperreado, com vontade de se esfregar, teve que se endividar.
Não pôde pagar o carnê e a dívida foi aumentando até chegar a um dinheirão. Então o dono da loja, que era um velho conhecido seu, colocou na justiça e o juiz mandou que ele pagasse tudo, com juros e correção, e mais um tal de honorários, em dois dias. O homem só faltou correr doido, mas no fim de tudo perdeu a casa que tinha, com tudo que tinha dentro – até a maldita televisão -, e uns dias depois a mulher, que achou melhor assistir televisão em outra freguesia e nos braços de outro.
Assim, o velho fugia de débito, do compromisso de ter de pagar certinho todo mês. O que recebia como aposentado era tão pouco que não podia se dar ao luxo de nada. Mas um radinho de pilha sim, este não tinha jeito de não ter. Era o seu eterno companheiro, de quem ouvia as palavras quando estava sozinho, falando baixinho ali no bolso da camisa, porém ligado somente nas horas dos noticiários, das entrevistas políticas, das informações sobre as novidades pelo mundo afora. Fato novo, notícia nova era do que mais gostava, mesmo que já não se surpreendesse com mais nada. Estão dando nome novo para o que sempre aconteceu, mas já vi coisas bem piores, era o que sempre repetia.
Num desses dias de sol a pino, que de tão quente estala ovos nas pedras do calçamento, o velho estava com alguns amigos sentados embaixo de uma árvore na praça principal, protegidos por uma sombra calorenta e ouvindo o noticiário no pequeno rádio. Este, numa das notícias, informava que mais uma vez havia sido constatado por estudiosos que o subdesenvolvimento é o maior indicador mundial para o crescimento da... De repente, num impulso, o velho desligou o rádio indignado, corando de raiva. E foi logo esbravejando:
"Ora, quando se quer fato novo vem este dizer o que todo mundo já sabe, que o subdesenvolvimento é pai e mãe da fome, da miséria, do aumento da marginalidade, e que ninguém faz nada com seriedade para mudar a situação. Tudo política, tudo arranjo de política e só. Os tais estudiosos certamente pesquisaram apenas países africanos, aqueles onde as crianças já nascem sem pais e com os dias contados para morrer de fome, mas que venham aqui e pesquisem pra ver só uma coisa. É uma África ajeitada, com outro nome; foi e é uma trincheira de guerra em tempos de paz; é o desenho do fim do mundo. Muita gente pensa que não, mas existe fim de mundo sim, e todo dia tem um fim de mundo em cada lar que amanhece e anoitece na maior miséria do mundo...".
Estava exaltado, revoltado. Acalmado pelos amigos, sentou, ficou meditando por uns instantes mas logo resolveu que tinha de fazer alguns comentários, tecer algumas considerações sobre o subdesenvolvimento e as formas de violência que isto pode gerar no sertão nordestino. Pediu licença para não ser interrompido e iniciou suas explicações.
O sertão, nos seus primeiros passos de povoamento, não foi alicerçado no cimento da penúria e da pobreza, muito pelo contrário. A riqueza de sua esplendorosa vegetação, a força das águas dos rios e seus afluentes e a chama de uma vastidão de terras sem donos, foram nortes e ancoradouros para aventureiros e sonhadores, que se já não ricos materialmente, tinham a riqueza maior que é a vontade de vencer mudando pedras de lugar. Assim, povoou-se rico porque criadores do litoral penetraram no seu interior, através do Rio São Francisco ou "Rio dos Currais", como também é denominado, dentre tantas outras denominações. A partir dessas primeiras penetrações, estabeleceram inúmeras fazendas nas suas margens. Tudo isto lá em meados do século XVII. Um tempão já faz...


continua...




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sábado, 22 de maio de 2010

RÉUS DA VIDA (Crônica)

RÉUS DA VIDA

Rangel Alves da Costa*


Ontem, sexta-feira, dia 21 de maio de 2010, viajei até a cidade de Pacatuba, na região norte de Sergipe, para fazer a defesa de um cliente que seria julgado pelo tribunal do júri daquela Comarca, acusado pela prática de homicídio qualificado, um crime doloso contra vida capitulado no art. 121, § 2º, II, do Código Penal. Fato ocorrido em 2004, com o réu respondendo aos termos do processo sempre em liberdade e desde àquela época sob a minha defesa, somente agora fora colocado diante do Conselho de Sentença, à vista dos jurados para ser condenado ou absolvido.
Assim que saí de Aracaju, logo cedinho, por volta das 6:30 h. e tomei a rodovia que levaria à sede do referido município, pelas estradas, observando tudo ao redor como sempre faço quando viajo pelos interiores, via as paisagens se modificando a cada novo quilômetro que ia separando os centros desenvolvidos dos lugares empobrecidos. Mesmo num cenário verdejante pelas chuvas recentes, o que enxergava eram construções de beira de estrada, pequenas fazendas, acampamentos do MST, pequenos povoados e casebres espalhados por todo lugar, todos caracterizados pelo lado mais triste da existência humana que é a pobreza.
Certamente que adentrando pelas muitas estradas que cortam a rodovia é fácil de encontrar grandes propriedades com plantações de cana-de-açúcar e produtos cítricos, além de outras com muitos rebanhos e muita produtividade agrícola. Porém, na média geral, observando-se o todo, o que se tem realmente é uma população cada vez mais empobrecida, de feições tristes pela situação de vida e sem apresentarem grandes expectativas de futuro mais promissor. Nessas localidades, o índice de desenvolvimento humano – IDH, certamente é baixíssimo, desumano mesmo.
Pois bem, já próximo ao município, onde a pobreza mostra-se ainda mais gritante, eu ficava imaginando as contradições existentes, principalmente nos aspectos referentes à justiça criminal que logo mostraria suas feições nos debates no júri e a justiça social, aquela justiça humana e que diz respeito ao direito do povo de viver com dignidade, ali assustadoramente inexistente. Quer dizer, iríamos discutir sobre um fato praticado por um cidadão daquela região sem ao menos citarmos, num instante sequer, que a prática delituosa não nasceu do ato do agente, mas também, e principalmente, do mundo em que nasceu e cresceu.
Ora, se o homem é produto do meio, o contexto de miserabilidade imposta pelos governantes predispôs o meu cliente a ter um dia uma conduta contrária à lei, esta mesma lei, agora de patamar constitucional, que diz que é crime deixar que as pessoas nasçam e cresçam entregues à própria sorte. Naquela região nunca se soube o que são direitos fundamentais do cidadão, muito menos o que é dignidade, integridade e tratamento isonômico nas relações sociais.
Quando da realização da sessão do júri, por mais incrível que possa parecer, a acusação da promotoria se voltou basicamente para tais aspectos. Pincelou a conduta criminosa do meu cliente, acentuou nas acusações, e isso e aquilo, pediu sua condenação, mas a sua principal tese de acusação foi a pobreza e a ignorância do povo.
E como fez isso? Ora, simplesmente disse, jogou na cara dos jurados – todos da comunidade – que eles mereciam viver naquela miséria, serem pobres como eram, ter os péssimos administradores que tinham porque não sabiam o que era senso de crítica e de escolha, eram analfabetos porque não sabiam reivindicar, eram nada porque assim queriam. E agora pasmem: Naquele momento eles teriam de mostrar que não eram assim como ele afirmou votando pela condenação do meu cliente.
Do meu lado, me desdobrei defendendo a tese da legítima defesa, principalmente no seu aspecto da legítima defesa putativa, que é aquela afirmando que é isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Busquei provar por todos os meios que o meu cliente deveria ser absolvido por ter praticado um fato que somente existiu porque o outro já vinha dando causa há muito tempo.
No instante da votação não deu outra. A maioria dos jurados entrou no jogo da promotoria, resolveu que naquele momento não seria mais pobre e ignorante, que sabia votar e ser cidadão e, por conseqüência, disse que o réu era realmente culpado e o condenou, com a pena mínima mas condenou. E fez isso porque pensou que assim traria a dignidade perdida, espantaria a pobreza enrustida e tudo passaria a ser maravilhoso na vida. Foram na onda do promotor sem saber que todos continuarão réus pela vida.
Ao menos o meu cliente vai recorrer em liberdade. Quanto à liberdade deles não sei...



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O livro (Poesia)

O livro


Esse sopro de vento
essas folhas que caem
se espalham pela varanda
repousam nos móveis
e acabam dentro dos livros
marcando a página
que não pude ler
para sonhar com você

Não lembro bem
mas a última página que li
e marquei com folha seca
dizia do poema de amor
que jamais foi lido
porque um dia esquecido
dentro de um livro
hoje velho e entristecido

O livro ainda está lá
posso sentir e enxergar
com a folha seca escondida
e um poema sufocado
que de tanto gritar
só restaram as letras dizendo
amor vem me amar.



Rangel Alves da Costa

SER SERTÃO: DA ARTE DE MENTIR – IV

SER SERTÃO: DA ARTE DE MENTIR – IV

Rangel Alves da Costa*


E o velho continuava lançando seu olhar verbal sobre a mentira e o seu contexto no sertão, fato que aliás não requeria nenhum esforço, e nem precisa dizer os motivos...
Com as cidades crescendo cada vez mais, com a juventude sendo intensivamente guiada pelas indecentes propostas televisivas, a mentira alcança o patamar do medo. É, acreditem, ao patamar do assombroso. E é o medo que faz as pessoas mentirem na tentativa de livrar as suas criações malcriadas. Assim, dizem que um certo pai, acostumado a ouvir mentiras e repassá-las adiante com muito mais veneno, ficou sem jeito quando alguém disse, mesmo afirmando não saber se era invencionice ou verdade, que ficou sabendo por outra pessoa que por ali haviam umas seis mocinhas de uns quinze anos, pouco mais ou pouco menos, e todas grávidas, buchudinhas daquelas que parecem que se fartaram do prato cheio.
Pouca vergonha, mas era essa a idade mesmo, cerca de quinze aninhos, mal saídas do fedor do mijo e já grávidas, acentuou a pessoa que contou. O pai falador da vida dos outros que só ele, aumentou a antena do ouvido, captou bem a novidade, baixou a cabeça e saiu pensativo. Mas quem será, quem será; se fosse uma ou duas seria fácil saber, mas umas seis; quem será, quem será...
Logo adiante, não só tinha solucionado o problema como sabia dos nomes das mocinhas. Não se sabe como lhe chegou a informação, mas verdade é que as pessoas quase sempre já sabem o que os outros fazem tudo para saber. Contudo, o número das mocinhas não era aquele não, era mais, pois a notícia repassada já falava em doze ou mais. De repente, pensou ele, não vai sobrar mais nenhuma mocinha nessa idade que não esteja grávida. O pior foi quando matutou, matutou e lhe veio à mente que uma de suas filhas estava exatamente nessa faixa etária. Será?...
Bem que tinha notado sua filha um pouco diferente nos últimos dias, com uns gostos estranhos e mais desconfiada do que nunca. Mas será, logo ela que teve uma educação tão exemplar, tão mimada que foi e ainda é? Mas se tiver grávida só pode ser culpa daquelas novelas que nada mais fazem do que ensinar safadezas, desestruturar as famílias, fazer com que as mocinhas percam sua inocência com tantas lições desavergonhadas. Será que ela era uma das tais? Fosse como fosse, já sabia o que fazer, pois nada melhor do que querer esconder um erro do que dizendo que todos os outros são errados também.
Assim, já que sua filha ia cair na língua do povo, que todas as filhas dos outros ficassem enlameadas também. Com esse pensamento maldoso saiu pelo lugar falando a um e a outro, como se não quisesse dizer nada disso, que soube que a filha de não sei quem e mais não sei quem estavam grávidas, e o maior absurdo era a pouca idade pra tanta sem-vergonhice. Nesse percurso, em pouco tempo quase toda menina de quinze anos estava na boca do povo. E o povo espalhava não só pelo prazer de dizer, mas principalmente para colocar todas juntas na fogueira onde a sua filha ou sobrinha também estivesse ardendo.
Contudo, esses mesmos pais quando chegavam em casa e mostravam-se totalmente desesperados, nem pensavam duas vezes, nem sequer procuravam ouvir as filhas e iam logo arriando o couro cru na maior crueldade. Muitas foram chamadas de prostitutas, vagabundas e tudo que é nome pejorativo, tiveram que fazer exames e não deu em nada. Outras parecem que gostaram de ser chamadas assim e...
O pai que havia começado aquele inferno todo agora se sentia satisfeito, plenamente realizado, ao menos era isso que pensava. Ao menos sua filha não havia decepcionado. Mas como a mentira tem perna curta, como o débito da maldade é pago com juros e correções aqui na terra mesmo, outro rapaz, tido e havido por todos como o maior mentiroso da cidade, encontrou esse pai sorridente, chamou-o ao lado e foi logos dizendo que mesmo que ele achasse que era mentira tinha de dizer que sua filha estava grávida sim. E mais, sabia quem era o culpado pelo bucho escondido da menina.
O agora desditoso pai, com a dor que se sente quando cai um rochedo no dedo mindinho, nem ouviu o restante das palavras do rapaz e saiu quase correndo pra casa. Tinha que saber daquela história direito, tinha que receber explicações, tinha que ter a certeza de estar criando uma desavergonhada em casa.
A esposa já sabia de tudo. E ele que tanto fez e tanto bordou tinha agora que suportar aquela verdade. Com a filha dos outros era bom, mas agora a coisa mudava de tom. Mudava de tom e de cor, pois o homem foi embranquecendo, como se não tivesse mais sangue, até tomar um amarelado de defunto. E caiu morto. Por isso mesmo é que dizem que no sertão até a mentira mata.


Mais calmo e sorridente, o velho prometeu que no próximo encontro iria falar sobre verdades, mesmo que fizessem doer àqueles que vivem na mentira. Começou a serenar e os amigos correram. O velho ficou porque sabia que aquilo não passava de mentira de chuva.



continua...



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sexta-feira, 21 de maio de 2010

QUERO AMAR AMOR (Crônica)

QUERO AMAR AMOR

Rangel Alves da Costa*


Se algum dia terei de amar, que essa entrega de corpo com paixão, desejo, realização, angústia, sofrimento e tudo o que houver dentro dele, seja um amar de amor, de modo que mais tarde meu pensamento envelhecido não vá se arrepender de não ter se doado ao extremo e ao estremecer.
Por que amar um pouquinho, impor talvez ao que se quer muito, negar o que o corpo quer ter, o coração sentir, a boca falar e um monte de gestos e sentimentos agindo na inocência dos apaixonados? Dói demais essa privação com tanto amor a dar e receber, com a certeza que o desejo aflora em sua plenitude e o medo de se entregar só faz querer esconder o que tudo mundo está enxergando.
É tudo muito pouco, o mínimo, quase nada, esse contentamento com o não ter. Se for possível ter, se é preciso ter, se é necessidade ter para uso próprio e a dois, então porque não buscar alcançar para alegrar o ser faminto e sem poder pedir, simplesmente porque o orgulho ou a vaidade querem ser mais do que o coração. Depois, mais tarde, pelas curvas distantes da estrada, a sombra boa da árvore ao entardecer será de solidão, da solidão de ontem, do ser que teve medo de viver.
Se quero amar amor é porque não quero amar namoro, frágil, fútil, pequeno, incompreensível e medroso. Se quero amar amor não quero nada passageiro, nenhum ficar ligeiro, nenhum ficar por uma noite e ver aflorar um primeiro grão e depois querer cultivar muito mais e não ter. Se quero amar amor não quero amar na distância, tecnologicamente amar, informaticamente sentir, computadorizadamente tocar, e num esquecimento qualquer deletar.
Se quero amar amor não quero a roupa do inverno encobrindo o que se tem que mostrar e explorar, não quero a tristeza das tardes de chuvas, o corpo preguiçoso pela morosidade da estação, os olhos cansados de ver somente horizontes sombrios, mas sim toda a fúria da natureza nos corpos que sabem sofrer com prazer. Se quero amar amor quero mais, muito mais que o olhar, que o beijo suave, que a carícia passageira, que o toque medroso, que a proximidade distante demais pela roupa que se toca e quer se jogada ao chão, para também amar.
Se quero amar amor quero amor e amar sem limites, barbaramente como amavam os hominídeos e no seu amor bruto e preciso nos fez estar aqui. Se quero amar amor é porque quero amar e amar. E haverá limites para quem quer amar demais? Se o limite do amor é a contínua satisfação de quem ama, que o amar se satisfaça segundo sua própria gula, volúpia, anseio, insatisfação. Esse amor famélico e esse amar de ter o que comer será mesa e disposta pelos deuses, apreciadas pelos deuses, porque eles bem sabem dos nutrientes da fruta do corpo/estação.
E se der sede e tudo o que ainda houver for somente o sangue fervente latejando nas veias, que a boca ávida o transforme em vinho, que será vinagre e depois água para saber. E depois do adormecer para o descanso de instantes, de dois segundos talvez, o pensamento do amor demais fará despertar novamente a vontade de amar amor, pois assim está escrito no livro do corpo dos que amam, dos que realmente querem amar.
Por enquanto irei aceitar um olhar e um beijo, mas antecipo que é muito pouco, pois...



Advogado e poeta
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