SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 17 de maio de 2010

MENINO CAÇADOR DE PASSARINHOS (Crônica)

MENINO CAÇADOR DE PASSARINHOS

Rangel Alves da Costa*


Até poucos anos atrás, quando a vegetação sertaneja ainda continuava resistindo aos avanços do homem com sua sede de destruição e ainda era possível ver grandes extensões de matarias de todas as espécies e tamanhos, com bichos correndo por todos os cantos e passarinhos voejando por cima dos paus, pousando de galho em galho, e denunciando sua abundância nos tantos ninhos e nos cantos e chilreados ouvidos por dentre as folhagens, era possível afirmar que a mão de Deus ainda não tinha sido tirada do lugar.
Zezé morava praticamente no meio do mato, ou quando pouco beirando as catingueiras, baraúnas, umbuzeiros, aroeiras, cedros, araçaizeiros, plantas frutíferas e nativas de se alegrar as vistas. E o sertão era assim, também com o seu lado bonito, cheio de vida e dos seus habitantes abrigados nas moitas, nos buracos, nas tocas, ninhos e voando de pau em pau. Preás, cágados, cotias, lebres, sariemas, jaçanãs, nambus, codornas, rolinhas e tudo o mais que corria, mordia, se escondia, cantava e piava. E Zezé ali perto deles, numa amizade de quem mora no mesmo lugar.
Em certas ocasiões a natureza ficava toda feia e pelada, as árvores e plantas morriam, os bichos arribavam para outros lugares, os pássaros voavam em busca da gota d'água. Era a seca que chegava e enfeiava tudo, transformando a natureza numa tristeza só. E Zezé também ficava mais triste e mais feio, mais apreensivo e mais faminto. Tudo isso porque Zezé era pobre, muito pobre.
A família de Zezé era tão pobre que se não fosse os alimentos proporcionados pela natureza dificilmente conseguiria sobreviver. Era pouca gente, somente ele, seus pais e mais um casalzinho de irmãos ainda menores do que ele. Se o tempo desse, comiam do milho, do feijão, da fava, da melancia, da abóbora e do quiabo que plantavam. Mas vejam só, plantar isso tudo num verdadeiro quintal, pois a terra que possuíam não dava mais de cem metros de lado a lado, e isso com a tapera e o quintal no meio! Que latifúndio e tanta fartura quando era tempo bom, de chuva, de plantação e colheita. E aí passavam uns tempos sem fome, até que a seca se abatesse novamente. E seca no sertão só tempo certo para chegar e nunca para acabar.
Quando a barriga começava a reclamar e os seus pais se viam aperreados por não ter nada para dar aos filhos, Zezé não pensava nem duas vezes e entrava por dentro da mata de baleadeira na mão e ia caçar passarinhos para matar e levar para casa, torrar no resto da banha de porco ou assar no fogão de lenha. Passarinho assado era muito bom, todos comiam com satisfação, pena que nem vinte rolinhas davam metade de um frango. É tudo miudinho, magrinho, que só dá mesmo para enganar a fome.
Zezé já conhecia os locais e os pés de plantas onde as rolinhas eram mais fáceis de ser encontradas. Chegava por ali silenciosamente, ia se escondendo, se abaixando pelas moitas, até enxergar os passarinhos em posição de acerto e então era só estender a baleadeira com as mãos, colocar a pedrinha na ponta da borracha, mirar e atirar. Tinha tiro certeiro e só tinha o trabalho de ir até lá pegar a rolinha ainda se debatendo no chão, muitas vezes sangrando e dando os últimos pios. Colocava o passarinho no saquinho pendurado na cintura e seguia pra outro lugar. Quando dava sorte, os matos estavam verdejantes, conseguia derrubar numa tarde cerca de vinte passarinhos.
Porém um dia Zezé começou a perceber que a sua caça estava sumindo cada vez mais. A seca chegou, a comida faltava e ele precisa mais que nunca daquelas rolinhas na alimentação. E toda vez que saía para caçar ficava mais triste por não encontrar mais o seu alimento pelos galhos das árvores. Passava quase o dia inteirinho e não conseguia matar nada, derrubar uma rolinha sequer com a sua baleadeira agora quase sem uso. Numa tarde, após tanto andar, esperar nas moitas e não conseguir nada, Zezé começou a chorar embaixo de um pé de pau. E foi quando uma rolinha, talvez a última que ainda estava por ali, repousando no galho bem acima dele, deu um pio e quando ele levantou os olhos molhados para olhar, ela falou:
"Não chore não Zezé. Eu lhe conheço já faz muito tempo e conheço sua aflição. As outras rolinhas também estavam com fome e foram embora, voaram sem destino para outro lugar, mas eu fiquei aqui porque sabia que você ia precisar de mim, precisava matar algum passarinho para dar ao seu irmãozinho que vive chorando de fome. Por isso estou aqui, já estou velha e quero lhe ajudar. Vá Zezé, segure essa baleadeira e atire em mim. Vá Zezé, faça isso que não me importo não...".
E Zezé decidiu nunca mais matar passarinho. Naquele momento, totalmente surpreendido, só soube perguntar a ela se queria morar com ele. Ela aceitou e disse que tivesse calma que dali a dois dias cairia uma trovoada no sertão e a safra daquele ano seria a maior de todas. E Zezé deu o passarinho de presente ao irmãozinho, que parou de chorar e ficou todo contente.




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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