SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 31 de maio de 2012

ERA UMA VEZ NO SERTÃO (Crônica)


                                           Rangel Alves da Costa*


Era uma vez no sertão uma terra ainda em formação, apenas descampado e desolamento, sem que o olho de Deus por ali repousasse e desse uma destinação.
E o Criador achou por bem que o chão seria tomado de aridez, com um sol bem forte espalhando calor sobre tudo e uma lua bonita tornando menos entristecido o anoitecer adentro.
Há quem reclame dessa opção, achando que deveria ser mais clemente e não deixando o sol maior sempre desacompanhado do sombreado das nuvens, sem nimbos carregados no horizonte e de quase nenhum chuvarar para aplacar a sequidão.
Mas com a medida divina não se discute. Se deu tanto sol, tanta estiagem, tanta terra esturricada, tanta planta já morrendo sem vingar, tanto padecimento e tanta pobreza, é porque deixaria por ali outras características diferentes em outros povos e lugares.
Fez o sertanejo um forte acima de tudo; disse que não haveria em outro lugar um luar tão bonito como aquele brilha no sertão; permitiu que nascesse uma raça cabocla cheia de orgulho, de fé e de esperança, um povo mais rico que todo mundo, pois ninguém faz render mais frutos apenas com o grão que semeará um dia.
Deu ao homem a força para a vida, para os desafios, para o trabalho; entregou a cada um seu rosário de oração, pois sabia que povo nenhum tem maior devoção, que clama por Deus na alegria e na incerteza, na precisão e na fartura, e por isso mesmo vive contente porque sabe que um pai não abandona o filho.
Permitiu que o sangue do sertanejo fosse diferenciado, mais autêntico, mais vivaz, tomado de encorajamento e preparado para jamais fugir da luta. Desse sangue vermelho e fervente de sol é que surgem nas suas veias tantos caminhos que percorre para fazer valer sua sina de valentia.
Não se quebra, não se curva; igual a catingueira do mato, resseca com sua imponência desnutrida e magricela, mas sempre pronto para enfrentar os desafios que a vida trouxer. Por isso mesmo é bicho de noite e de dia, é santo e excomungado, é cangaceiro e heroi, é Lampião e Padre Cícero, é Jesuíno Brilhante e Antônio Conselheiro, é procissão e tocaia armada.
Depois de criar a terra e fazer o homem, dando a um o nome sertão e ao outro o de sobrevivente, fez com que um não vivesse sem o outro e que até se misturassem num só. Daí que quando ouvir falar em sertão também estará o homem, quando ouvir da catingueira lembrará do sertanejo, pensar em seca e desolamento imaginará a triste figura em meio ao seu tempo.
A uns deu o trabalho na terra, o coivarar, o limpar o cercado para esperar a plantação de um dia, a sina de caçador, de vaqueiro, de aboiador, de dono de pouca terra, de pai de família imensa, de homem que se contenta em não passar fome, se arranchar debaixo de sua casinha, olhar a barra do amanhecer para pensar em chuvarada.
A outros deu destino diferente, caminho e estrada, veredas cheias de espinhos, labirintos cheios de inimigos, vez que nascido para a luta armada, para o enfrentamento das injustiças ou simplesmente pela vontade maior de acompanhar, de fazer parte de um bando de cangaceiros comandado por um certo Lampião.
Mas permitiu também os contrastes e as aberrações, com muita gente com tanto e a grande maioria com quase nada, com coronéis donos de terras e de gente e pessoas sem nem serem de si mesmas, com exploradores e explorados, ainda que de sangue navegassem no mesmo riachinho, com aproveitadores da inocência de muitos, e com tantos de nefasta sabedoria para enlamear até o nome da terra.
Deu a moringa e o pote, a cabaça e a cumbuca, mostrou o riacho com água nas profundezas, disse que a mata tinha de tudo para sobreviver; espalhou nome bonito, tanto João, Maria, Antonio e Josefa; fez homem amigo de bicho e este até seu parente, pois ninguém espane o vira-lata pois ele tem o seu dono, é do menorzinho da família.
Deu a beleza da manhã sertaneja e o maravilhamento do entardecer, um sonho bonito de sonhar sempre, uma esperança divina, uma vida que é sempre dádiva e jamais sina. E deu ainda a coalhada, o cuscuz e a perna de preá assada, e também o café torrado pelas mãos calejadas de tempo.
E deu a cada um misterioso olhar que enxerga um irmão em qualquer desconhecido que chegue por lá. Que entre seu moço, venha tomar um cafezinho e prosear um tiquinho, pois a estrada ainda é longa e a amizade abre o caminho.


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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Receita rápida de amor (Poesia)



Receita rápida de amor


A fome
fome de amar
um lenço
lenço de enxugar
os olhos
para não mais chorar
a disposição
para o prato preparar
os ingredientes
para nada faltar
seguir a receita
do saborear
e depois:

Um coração inteiro
um corpo saudável
mãos carinhosas
boca com palavras
língua úmida
pele suave
sexo perfeito
limpeza em tudo

modo de preparo:

tempere tudo
com sinceridade
com carinho
e muito amor
coloque tudo
dentro do outro
e espere ferver
até apaixonar.

Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (36)


                                                Rangel Alves da Costa*


As pessoas de bom coração que acorreram para se despedir do menino passaram a noite inteira e entraram madrugada adentro entoando os cantos de encomendação da inocente alma.
Quando a manhã surgiu numa amarelada tristeza, alguns, cerca de oito ou nove, ainda estavam ali velando a morte traiçoeira. Foram preparados cafés, servido bolachas e até aguardente apareceu por ali. Era costume agrestino que fosse assim.
Crisosta havia se mantido firme todo tempo, ainda que por dentro não se aguentasse. Quase não falava, não acompanhava os outros nas incelenças, geralmente caminhando pelo lado de fora da casa com os olhos cortando a noite e mirando a lua. Será que estava buscando respostas?
Depois das nove horas alguém falou que precisavam ultimar os preparativos para o enterro. Tinha de ser antes das dez porque o dia ainda seria de muito trabalho para os que estavam ali. Só restava mesmo conduzir o caixão até o local do sepultamento. Depois a vida haveria de continuar. E assim sempre acontece.
Logo cedinho dois homens se dirigiram até o seio da mata para abrir a cova. Decidiram que não haveria melhor jeito de homenageá-lo do que sepultando ali no meio do mato, debaixo da terra por onde tanto caminhava todos os dias nas suas caçadas, nas suas brincadeiras de pegar passarinho, nos seus passeios para ver se encontrava fruta do mato.
Menino traquina, caçador de preá e de passarinho, não perdia a oportunidade de colher o araticum que encontrasse, de encher a boca de araçás vermelhinhos ou amarelinhos, de se lambuzar debaixo dos umbuzeiros carregados. As frutas, os doces da natureza, sobrariam dali em diante.
Crisosta, acompanhada de quatro mulheres, seguiam atrás do caixão. Este era conduzido por quatro amigos das redondezas, aqueles mesmos que não haviam arredado o pé dali instante algum. E as mulheres agora entoavam cantos de caminhada ao último leito.

“Lá vai essa alma
Erguida do chão
No silêncio das horas
Tão grande aflição

Imensa aflição
É a sepultura
A terra mais fria
É a cobertura

Uma incelença
Que nos deu no paraíso
Adeus, irmão, adeus
Até o dia de juízo

Duas incelença
Caminhando pro céu
Tão menino na vida
No mundo ao léu”
E quando o cortejo já ia entrando na mata aconteceu algo realmente inexplicável. Passarinhos surgiram de todo canto, as galhagens secas começaram a farfalhar, as árvores ossudas pareciam tremer, o vento soprava diferente, muito mais agoniado.
Logo se espalharam os barulhos e murmúrios da mataria. Os bichos se aproximavam sem medo das pessoas, sem se importar com que estava por perto. Preás, tatus, pebas, seriemas, gato do mato, caititu. Juravam que avistavam cobras, outros diziam ter avistado sombras que pareciam de onça.
E ao chegar ao local do sepultamento, assim que o caixão desceu ao chão, urros, ganidos, silvos, berros, miados, todos os sons dos bichos tristemente ecoaram. Todo mundo chorava diante de tantos motivos de dor e da incompreensível beleza.
Olharam pra cima e avistaram as nuvens enegrecidas. Era ainda manhã, mas parecia chegando pleno anoitecer. E tudo num repente, até o instante em que a última pá de terra foi jogada na cova.
Continua... 



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quarta-feira, 30 de maio de 2012

GRÃO (Crônica)


                                                           Rangel Alves da Costa*


Grão. Um grão feito um grão, um grão de qualquer coisa. Preciso de um grão.
Partícula, semente, glóbulo, germe, grânulo, qualquer coisa que seja grão, será o sinal da esperança lançado ao chão. Por isso mesmo preciso de um grão.
A terra se alarga, o chão se estende, tudo é vasto e amplo, vejo adiante a possibilidade de semear qualquer coisa. Mas falta-me o grão, dê-me um grão...
Não precisa que tenha celeiros, armazéns, silos, tonéis, depósitos de sementes, grande quantidade de grânulos que possam ser semeados e cultivados. Não. O grão que preciso está em outro lugar.
No olhar, na palavra, na face, no sorriso, no gesto, na mão, na mão estendida, no passo, na boa vontade, na intenção, no fazer, aí estará o grão. Pequenina semente, quase invisível sem os olhos do coração.
Grão no pingo de chuva, na ponta de sol, no orvalho da madrugada, na íris do olho, na piscada do olhar, na ponta do dedo, no sinal que ficou. Quase imperceptível, o grão está sempre presente diante daqueles que desejam encontrá-lo.
Um grão de sonho que de tão bom não se completou, de esperança que nunca se esvai nem irrompe em desilusão, de sabedoria maior que montanha, de fé iluminando a vida, de vontade como o primeiro passo pra tudo. Um grão de Deus, silenciosamente semeado e tão farto na colheita dos dias.
Porque a terra está fértil, molhada, adubada de esperanças e certeza dos melhores frutos, é que ali não cairá o grão da discórdia, do ódio, da intriga, da inveja, da falsidade, da calúnia, da violência, da brutalidade. A terra boa rejeita que caia sobre si o que nela é jogado por mãos que não sabem construir.
Não para semear, para cultivar no chão preparado nem para tentar colher qualquer fruto, mas nunca é demais ter guardado na garrafa da sabedoria, utilizando apenas como exemplo, o minúsculo grão do orgulho, da vaidade, do egoísmo. Tais virtudes só fazem mal quando semeadas com intenção negativa.
Também não haveria de se desprezar um grãozinho de solidão, de saudade, de recordação, de entristecimento, de aborrecimento, de angústia, de melancolia, de leve vazio. Um grãozinho apenas para a reflexão, para sentir no peito aquela vontadezinha de chorar um grãozinho de lágrima.
Quantos grãos não passam na ventania, não sendo levados pelas enxurradas, não caem junto às folhas de outono, não se acumulam no meio das estradas, não viajam embaixo dos pés pelos caminhos de todo dia? Quantos grãos dentro do olhar, dentro da boca, dentro do corpo, dentro da invisível impureza?
Um dia o meu castelo será erguido grão a grão. De grãos serão as portas e as janelas, os móveis e tudo que nele se assente. De grão será minha chave, também minha mão, que não aceitará entrar senão levando o resto dos grãos. Se não fosse o vento minha namorada também entraria ali, mas como o desamor transformou tudo em grão...
O castelo maior, mais protegido, mais impenetrável do mundo. Um rei em absoluta solidão e em busca de um grão de felicidade. E nesse poderoso reinado, nesse reino de castelo de grão dourado, só haverá temor da onda leve que vem subindo arrastando grão, da tempestade que cai sobre o grão, da ventania que leva o grão.
Por isso mesmo é que colho cada grão e guardo na palma da mão, depois engulo com água da chuva e deposito tudo no coração. Então vou construindo intimamente aquilo que ninguém é capaz de erguer com tijolos, cimento, pedra e ferro.
De grão em grão construo no coração um amor tão leve que sempre sai voando por aí, rumando noutra direção, onde você esteja, onde esteja um irmão. E depois retorna trazendo um grão de resposta, um sinal que vale a pena continuar nessa construção.



Poeta e cronista
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Imensa felicidade (Poesia)



Imensa felicidade


Para ter esse momento
essa imensa felicidade
fazendo sumir o tormento
trazendo amor de verdade
não fiz mágica nem magia
segredo chamado alegria

pintei o preto de branco
trouxe luz à escuridão
joguei fora as velharias
troquei o espelho da sala
abri janelas e portas
chamei a manhã e o sol
dancei debaixo da chuva
corri pelos descampados
brinquei de bola de gude
soltei pipa da montanha
cantei a música bonita
gritei para o passarinho
colhi um buquê de flores
presenteei a velha da esquina
visitei tanto lugar esquecido
tomei sorvete de graviola
comi algodão doce
risquei um castelo na folha
sorri para o mundo e a vida
sorri por dentro de mim
chamei meu amor de amor
pulei de mãos dadas
segui feliz pela estrada
escrevi uma constituição
lei maior do meu país
dizendo tudo e apenas
que de agora em diante
fica proibido sofrer e chorar
e é dever ser feliz
para sempre e eternamente


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (35)

                                         
                                                       Rangel Alves da Costa*


Chegando a casa, o pequeno falecido foi estendido num banco e coberto com colcha bonita. Quando o caixão chegasse seria banhado, vestido e colocado noutro lugar, pronto pra sentinela. Já era quase entardecer.
Crisosta apanhou o dinheiro que achou necessário e pediu para o homem ir até a cidade providenciar o caixão e a roupa. Mandou também trazer velas. Era difícil encontrar flores por ali. Se os campos não estivessem tão ressequidos certamente que ela mesma iria colher um buquê de aroma campesino. Mas não.
O homem saiu apressado para providenciar tudo e ela ficou por ali chorosa, agoniada, numa aflição de não acabar mais. Não conseguia entender que destino era aquele que possuía um fim tão trágico para um inocente, um cheio de vida, um menino da natureza.
O cachorro se colocou debaixo do banco e, completamente silencioso e entristecido, não saiu mais daí de jeito nenhum. Ela até havia esquecido a comida preparada em cima do fogão, havia esquecido tudo. Não estava com um pingo de fome.
O homem chegou já noite preta e dizendo que logo mais apareceriam mais pessoas para a sentinela. Ninguém estava ainda acreditando no triste acontecimento e todo mundo agora botava a culpa nos pais. Mas não era momento de falar sobre isso. Foi o que disse, providenciando a limpeza do corpo em pouca água, a colocação da roupinha e depois os preparativos no caixão.
Ficou ali mesmo estendido na sala, por cima do banco, com velas e a Cruz do Nosso Senhor ao fundo. Aquela cena fazia Crisosta lembrar outras passagens recentes, tão dolorosas como aquela. E o silêncio da noite foi sendo cortado pelos passos na estrada, pelas pessoas que chegavam para a sentinela.
Uma lágrima só em todos, uma despedida tão dolorosa que parecia ser parente, filho de cada um. Quase ninguém falava, quase ninguém encontrava qualquer palavra naquele momento. Somente Deus para compreender os desígnios, para saber a hora de cada um, para saber os motivos de estender a mão e chamar para o seu lado aqueles que mereçam a salvação. Mas já seria tempo daquele menino? Não, não, não. Seria resposta unânime perante os desconsolados.
E com voz melancólica, num tom lamuriento e todo carregado de dor, uma senhora puxou uma incelença, que é o canto próprio para velar mortos naquela região agrestina.

“Uma incelença que nossa Senhora deu a nosso Sinhô
Essa incelença é de grande valô
Já é uma hora, os anjos vinhero te vê
E ele vai, e ele vai, e ele vai também com você.

Duas incelença que nossa Senhora deu a nosso Sinhô
Essa incelença é de grande valô
Lá de cima, lá no ceú, lá no seu paraíso
O Sinhô te abençoa no dia do Juízo

Três incelença que nossa Senhora deu a nosso Sinhô
Essa incelença é de grande valô
Esse anjinho se despede desse mundo de aflição
Foi chamado por Deus ao lhe estendê a mão
Quatro incelença que nossa Senhora deu a nosso Sinhô
Essa incelença é de grande valô
O chamado do Sinhô não nos tira a tristeza
O anjinho que vai indo no mundo era maior presteza”.

E assim cantaram a cantiga dos mortos até o número doze, a décima segunda incelença, pois este é o número dos apóstolos. Em seguida entoaram outro lamento fúnebre:

“Uma incelença
Foi quem mereceu
Palma, capela e fulô
Vai cantá mais os anjo
Lá no reino do Sinhó.

Duas incelença
Na saudade que deixou
Leve vela, rosário e fulô
Canta canta mais os anjo
Bem pertinho do Sinhô”.

O dia clareou e os cantos de despedida ainda diziam adeus ao menino caçador.
Continua...



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terça-feira, 29 de maio de 2012

NAVEGANTE SEM PORTO (Crônica)

                           
                                                    Rangel Alves da Costa*


Um dia acordou cedinho, caminhou até a beirada da água, molhou os pés, lavou o rosto, e de olhos mais abertos para o mundo se pôs a olhar para os lados e para o horizonte.
Com o coração cheio de felicidade, sorriu para as paisagens ao redor e disse a si mesmo que era hora de partir, de colocar o barco mais adiante nas águas e conhecer um mundo novo e outras realidades.
Queria conhecer outras realidades, principalmente as belezas das ilhas distantes e dos portos desconhecidos que certamente lhe dariam guarida. Tinha a máxima convicção que igualmente ao maravilhoso mundo em que vivia, outros lugares distantes estavam assentados na paz e tranquilidade.
Ora, já estava até cansado de estar ali na sua beira de mar vivendo instantes maravilhosos dia após dia, sem nada que trouxesse maiores preocupações, bem como de ter conhecimento de que as cidades viviam em grande prosperidade e bonança, com pessoas comungando as grandes realizações e as belezas da vida.
No mesmo dia fechou a porta do barraco, se despediu da pedra grande onde sentava ao entardecer, da concha na areia que mantinha sempre no mesmo lugar, da sereia que namorava de vez em quando, colocou alguns pertences dentro do barco e partiu singrando os mares, tomando rumo ignorado.
Como já afirmado, deixou seu lugar num tempo de riqueza da vida e fraternidade entre as pessoas, num tempo de compartilhamento e comunhão, em dias de pacífica convivência e grandes realizações em proveito da humanidade. E esperava encontrar essa mesma feição ao retornar, pois um dia, qualquer dia desses no calendário da vida, retornaria feliz e realizado ao seu porto, ao seu barraco, às suas maravilhosas paisagens.
Navegou durante cinquenta anos sem aportar em lugar algum, apenas passando por ilhas desertas e rochedos que eram verdadeiras cidades. Não passou fome nem frio, não sentiu saudade nem solidão, fez amizade com peixes, tubarões e gaivotas. Vivia contente e seguia em frente sem pensar em voltar porque sabia que a qualquer momento poderia fazer o barco retornar e reencontrar a felicidade deixada.
Um dia resolveu que já era tempo de voltar ao seu destino de partida. Então perguntou a uma gaivota onde estava naquele momento e ela respondeu que no Mar da Curva do Mundo. E se seguisse um pouco mais adiante correria o risco de o barco virar na curva que o planeta fazia. E lembrou que a terra era oval igual uma bola. Rapidamente ele voltou e foi tendo decepções cada vez maiores em tudo que foi encontrando.
Por diversas vezes teve de fugir apressado para o seu barco não ser destruído por ogivas disparadas por navios em confrontos de guerra. De cima, aviões jogavam bombas que deixavam as águas numa turbulência assustadora. Foi confundido com uma embarcação inimiga e perseguido até encontrar o primeiro porto.
Que lástima! Quando pensou estar salvo não pode nem ancorar por causa de uma revolução que se espalhava por todos os recantos e já alcançava aquelas margens. Tomou rapidamente outro prumo até chegar noutro porto. Assim que se aproximou do cais ouviu uma sirene tocando e acenos dizendo para se afastar. Logo outro barco chegou e o levou para fora das águas daquele país, vez que estrangeiro não era permitido aportar ali.
Se viu prestes a ser atacado por piratas, teve que navegar debaixo de ondas gigantes, não encontrou mais nenhuma ilha que lhe desse guarida. Tudo estava ocupado e por pessoas armadas, ignorantes, brutais. Procurou rochedos livres e não encontrou mais, pois cada um já estava servindo como base de artilharia para uma potência.
E assim, desolado e entristecido, conseguiu navegar até o seu porto, o local de sua partida, o lugar onde vivia e tinha deixado moradia. Tinha a certeza que enfim havia encontrado novamente a paz e a felicidade. Mas logo achou tudo estranho assim que se aproximou.
Sua casa não estava mais ali, mas sim uma grande mansão. Não pôde descer do seu barco porque seguranças armados ameaçaram atirar. E apontaram para o meio das águas, para as distâncias azuis. E para lá ele retornou, sem conseguir jamais pisar em terra firme nem aportar sua pequena embarcação.



Poeta e cronista
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Canto pra cantar feliz (Poesia)



Canto pra cantar feliz


Lá fora o amanhecer
pelos campos floridos
o orvalho ainda na relva
as flores brotando perfumes
e eu de coração temeroso
perdido em tantos ciúmes

ciúmes da festa para o meu amor
dos roseirais disputando aromas
do vento soprando os cabelos
dos passarinhos cantando ao lado
da natureza fogosa e faceira
oferecendo a ela um lindo buquê
chamando pra dançar uma valsa
convidando a ouvir sua música
recebendo de volta o lindo sorriso
na face rósea e sublime do meu amor

quem dera ser a fruta madura
que as mãos recolhem no pomar
o lábio lilás me deixando um beijo
a felicidade chegando em cortejo
e dar as mãos em perfeita união
unir os corpos num só coração
e voar bem alto à igreja do céu
encontrar a paz depois desse véu
e voltar para o mundo um dia
numa nova manhã de eterna alegria


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (34)

                                         
                                                       Rangel Alves da Costa*


O seu amiguinho, o menino caçador, estava ali estirado sem vida. Num impulso tão próprio dos desesperados correu para cima, gritou, chamou-o, bateu no rosto, balançou o corpo, mas nenhuma resposta.
Estava morto, o seu amiguinho havia deixado essa vida. Completamente entorpecida, desalentada, sem que os estímulos respondessem a nada, se curvou diante do corpo inerte e se pôs a chorar compulsivamente.
Maldisse a vida, maldisse a sorte, maldisse o que não deveria maldizer. Nem enxergava o cachorro passando a língua pelo corpo, acariciando com seu focinho aquele que era seu dono e amigo.
O cachorro latiu e Crisosta despertou novamente para a realidade. Ainda tomada de aflição, olhou de cima a baixo para tentar encontrar o motivo daquela tragédia. Encontrou, estava ali, perto da nuca, na vértebra por onde corre o rio da vida, a marca da mordida.
Não havia sido grande nem profunda, apenas uma dentada suficiente forte para afetar a parte interna do organismo, e de forma irremediável. Mas mordida de qual animal? Pouco importava saber isso agora, pouco importava saber se ferimento causado por onça, raposa ou guaxinim.
O fato é que o menino não havia suportado o ataque. Acuado na sua rústica cabana, no seu pequeno abrigo, não teve nem tempo de se defender. Correu deixando camisa e baleadeira, talvez com a mão sobre o sangramento, deixando aquelas marcas no chão.
Caiu mais distante, ainda tentando fugir, ainda pensando que o animal continuava no seu encalço. Com a queda o desmaio, o desacordamento, o fechar os olhos para nunca mais abrir diante de sua mata, daqueles bichos que foram seus amigos, diante da natureza, perante sua terra agrestina.
Feito louca, completamente desajuizada naquele momento, Crisosta saiu em desabalada carreira. Gritava pedindo socorro, pedia pelo amor de Deus que a ajudassem, se batia nos paus, tropeçava nas pedras, rompia garranchos, até parar sem saber mais o que fazer.
E pela segunda vez na sua vida repetiu: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?!
Após pronunciar tais palavras de aflição, sentiu chegar à sua mente uma ideia que era a única saída para aquele momento. Ganhou uma força que não tinha mais e foi em direção à estrada que levava até a casa do homem que havia vendido seu gadinho.
Estando na frente da casa, ao avistar a mocinha naquela situação, toda suja, com as pernas sangrando, descabelada, com a face da mais cruel aflição, correu ao seu encontro e perguntou que bicho lhe havia atacado.
Só conseguiu falar após tomar um copo d’água e sentar. Nervosa, se tremendo, com a voz entrecortada por soluços, enfim conseguiu relatar todo o ocorrido ao homem. Neste agora era nítido o sentimento de ódio, dor, sofrimento martirizando o espírito.
Ela fez o percurso de volta completamente emudecida, sem comentar um instante sequer o que o homem dizia a respeito do que poderia ter acontecido com o menino. E disse que provavelmente havia sido vítima do mesmo animal que já tinha matado um cachorro, um bode e um bezerro pelos arredores.
Segundo disse ainda, fosse o que fosse teria que tomar providências urgentes. Ele tinha mulher e dois filhos pequenos e não podia deixá-los à mercê desse danoso dos matos. Mas também não deixou de culpar os pais do menino, principalmente porque sob nenhuma hipótese poderiam tê-lo deixado ali sozinho.
O homem jogou o corpo nas costas e disse que o levaria até sua casa, velaria, arranjaria um caixão digno e depois o enterraria ali mesmo nos matos, no lugar onde ele tanto gostava de estar. Mas tal ideia foi imediatamente rechaçada por Crisosta.
Não admitia de jeito nenhum que o menino fosse velado senão em sua casa. Compraria o caixão, colocaria nele uma roupa decente, passaria a noite conversando ao seu lado e na manhã seguinte faria o sepultamento.
Continua...



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segunda-feira, 28 de maio de 2012

JARDINEIRO NO OUTONO (Crônica)

                                        
                                            Rangel Alves da Costa*


Outono é estação de entristecimento nos jardins, nos arvoredos, nos pomares, nos vasos e xaxins de plantas. As flores somem, as folhas vão murchando, mudando de cor, perecendo até ficar à mercê do sopro do vento.
Acostumado com cores vivas e maravilhosas no jardim, com o encantamento matinal dos roseirais, das violetas, dos jasmins, dos crisântemos, dos girassóis, o jardineiro começava a padecer feito condenado quando o outono se aproximava.
A paisagem ia se tornando dolorida, cruel demais ao seu olhar. E de repente as pétalas caindo, tudo murchando, tudo mudando de cor, tudo emagrecendo, tudo se esvaindo e se esvaziando, tanta vida transformada. E ficava sem suportar aquelas cores cinzentas, ocres, amareladas, marrons, cores quase sem cor.
E mais tarde a palidez, o encurvamento, o sumiço lento, o toque do vento, a queda, o esvoaçar. E no chão, o chão de jardim onde a grama divide espaço com pequenas veredas e canteiros, um manto de pétalas e folhas mortas, restos se movendo como algo que dá o último suspiro antes do desfalecimento.
Folhas secas e mortas por cima dos bancos, dentro da fonte, nos canteiros, nos caminhos, por cima dos troncos das plantas, por todo lugar. E na visão do jardineiro tudo era uma mortificante colcha de saudade estendida de lado a lado. De canto a canto porque os restos caíam e se estendiam por todo o espaço do jardim. E nem parecia mais jardim, senão uma pintura de natureza-morta inacabada, de marrom pálido e triste.
Com vassoura e gadanho na mão, sem saber por onde começar a varrer e recolher ao menos parte daquilo tudo, começava a olhar mais para o alto e ia descendo o olhar até o chão. E desde lá de cima as árvores nuas se mostravam sem qualquer imponência, seus galhos nus pareciam braços finos, ossudos, curvados, e mais abaixo a poeira da estação em tudo ali depositado.
Perto do muro um monte maior ainda de folhagens, vez que o vendo batia e ia levando aqueles espectros que se amontoavam. Mais tarde, feito vítimas de um holocausto da natureza, seriam prensadas em sacos e queimadas em qualquer vala comum. E do fogo crepitante subia uma fumaça de cheiro tão forte que muitos pensavam se tratar de um incêndio de grandes proporções na mata.
Mas era sina do jardineiro passar por tudo isso todos os anos, renovando sempre o mesmo sofrimento. Ficava contando os dias para passar aquela medonha estação tão inimiga dos seus sentimentos e chegar logo o inverno com suas temperaturas mais amenas, suas constantes chuvas, seu poder de reflorescimento sobre o jardim.
Mas enquanto o inverno não chegava ficava recolhendo aqueles restos mortais dos amigos. E ao fazer isso chorava e sofria. Cada pá cheia de folha que ia recolhendo era como se ouvisse vozes dando o último adeus. E muitas vezes, no ato de desespero e prova de quem tanto amava as plantas, as flores, o seu jardim, colocava bem no meio de tudo um caqueiro enorme com planta e flores de plástico.
Ainda assim as borboletas passeavam ao redor, os passarinhos pousavam para cantar, um beija-flor chegava para o seu beijo. Mas não podia colocar ali o néctar inexistente no outono. Aproximava-se de sua planta artificial e chegava a pedir para que ganhasse vida, farfalhasse igual a planta viva, exalasse o aroma florido e de leveza espiritual.
Mas um dia, quando o outono chegou e o jardim aos poucos foi retomando suas feições verdejantes e alegres, de tão contagiado pelos novos tempos o jardineiro nem se lembrou de recolher a sua planta de plástico. Então ela foi ficando ali se misturando com as outras, com o mesmo aspecto e a mesma vivacidade.
E um dia o jardineiro encontrou uma flor estranha, totalmente diferente daquelas tão conhecidas por ali. Era azul, era rosa, era violeta, num misto aromático de tudo. Era o plástico ganhando vida em meio ao jardim e recebendo o nome de flor de outono.
Não haveria como ser diferente, era esse o nome da flor. Flor de outono.



Poeta e cronista
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A casa do vento (Poesia)



A casa do vento


Sempre foi uma casa
casa de jardim e pomar
de visitante e carteiro
de chegadas e partidas
de silêncios e vozes
de portas e janelas
tudo num abrir e fechar
e ela continua casa
mas apenas casa do vento

na manhã ou entardecer
passava olhando a janela
jogava a flor e o poema
ficava esperando o olhar
talvez um sorriso no lábio
preservando a esperança
da correspondência no amor
até cantei uma bela canção
de menino apaixonado
que não sabia que a letra
falava num certo adeus

um dia a janela fechou
para nunca mais se abrir
o jardim envelheceu
minha esperança morreu
escrevo um poema bonito
e jogo naquela direção
sem ter quem receba e leia
meu verso sem rima
de estrofe de tanta tristeza
falando em tormento
ao passar pela casa do vento.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (33)

                                        
                                                            Rangel Alves da Costa*


A terra estava marcada de vermelho, o chão estava manchado de sangue. Eram apenas pequenas marcas já absorvidas pela areia, mas não havia dúvida da passagem por ali de algo ou alguém com ferimento.
E porque não estava apenas num local, mas seguindo adiante como numa trilha, Crisosta logo percebeu que o gotejamento começava após a saída do abrigo e seguia em direção à mata.
Caminhou um pouco mais, porém as manchas já se dissipavam. Apenas uma pequena mancha ali e acolá. Não havia sido muito grave, pensou. Do contrário o rastro vermelho ia muito adiante. Mas o que teria sido aquilo, coisa de animal machucado ou de gente ferida?
Se fosse de gente só poderia ter sido do menino, pois a camisa e a baleadeira ainda estavam lá. Se saiu correndo ou foi levado, tudo foi muito rápido para não dar tempo de recolher suas coisas.
O cachorro continuava latindo e farejando por todo lado, mas não dava nenhum sinal de ter encontrado qualquer coisa. Então ela resolveu ir um pouco mais longe seguindo a trilha desde o local onde o gotejamento acabava de vez.
O mato seco estava com caminho aberto. O que havia passado por ali deixou suas marcas no chão de terra sulcada, nos galhos quebrados, nas folhagens caídas. Mas de repente tudo voltou ao normal, sem indicadores ou pistas que a fizessem seguir por qualquer direção.
Parou, ficou olhando atentamente ao redor, começou a gritar pelo nome do menino, porém nada de ouvir resposta. Mandou que o cachorro fosse mais adiante, fosse mais longe até onde pudesse para ver se encontrava algum sinal. Conhecedor dos segredos e caminhos dali, certamente que ele saberia voltar quando quisesse.
Entristecida, com os olhos cheios de lágrimas, com o coração a tempo de explodir, sentou numa pedra, colocou a cabeça entre as mãos e soluçou aflita. Temia que aquele sangue fosse do seu amiguinho, que ele agora estivesse correndo perigo de morrer, que estivesse precisando de ajuda urgente. Mas como, onde ele estaria?
Jogou os joelhos por cima da terra, ergueu os braços para os céus, e orou em voz alta, invocando Nossa Senhora dos Remédios:
“Virgem soberana rainha do céu e da terra, estrela resplandecente, Senhora dos Remédios, sede o remédio eficaz aos males que acaso tenha sofrido aquele pequenino, curando as suas dores, suas aflições, os seus martírios. Livrai o pequenino das feridas, das mordeduras dos bichos do mato, do ataque dos inimigos que rondam as pessoas de bem, enxugai o seu pranto, aliviai a dor que esteja sofrendo, livrai de qualquer perigo em que esteja, livrai das ciladas que foram armadas. Lançai, Nossa Senhora dos Remédios, os Vossos misericordiosos olhos em torno dele. Lançai Virgem Santíssima sobre ele os Vossos olhos de piedade com aquela ternura e amor com que lançastes ao Sacrossanto cadáver de Vosso adorado Filho, Jesus Cristo, quando Vos entregaram tão cruelmente maltratado. Se Vos compadecestes desses ingratos algozes como não fareis a mim que choro implorando em nome do pequenino, que clamo contra tanta impiedade para com Deus tão bondoso. Rogai Senhora dos Remédios ao Vosso amantíssimo Filho pelo pequeno pecador, que se agiu errado foi mais pela inocência do que por vontade própria. Amém”.
Ficou ainda uns cinco minutos ajoelhada, agora de cabeça baixa, contrita. Porém não rezava mais, não fazia oração, não pensava em nada. Continuava assim porque sem saber mais o que fazer, sem pensar em levantar e dar o próximo passo.
Estava cansada, exausta, exasperada, parecendo que havia uma ferida aberta por dentro. Enfim se ergueu novamente e tentou ouvir alguma coisa, algum som vindo do cachorro. Nada, apenas o silêncio sufocante. Decidiu retornar e esperar que nada de mais grave tivesse ocorrido com ele.
Já caminhava de saída do lugar quando ouviu fortes latidos. Conseguiu forças para correr naquela direção e sabia que ia no caminho certo porque os sons se tornavam cada vez mais próximos. De repente avistou o cachorro totalmente desesperado.
Num latido choroso, rodeava sem parar um corpo que estava estendido no chão. Assim que olhou mais atentamente soltou um grito aterrorizante, verdadeiramente espantoso.
Continua...
 

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