SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 30 de novembro de 2013

OS DOCES VERSOS


Rangel Alves da Costa*


Eis que agora me surgem relembranças boas, daquelas que somente de vez em quando alçam voo do jardim florido da memória. Coisas passadas, de tempos de criancice e adolescência, mas que devem ser relembradas para o fortalecimento do espírito e o arejamento do coração.
Menino querendo ser rapaz, ou rapazote ainda envolto em criancice, eis que me apaixonava de passo a passo. Era um verdadeiro Don Juan das pretensões amorosas. Não podia ver uma garota bonitinha e logo começava a lançar minhas armas de conquistador. Mas o verso antes de qualquer palavra.
Também metido a poeta, rabiscava idílios rimados e fazia-os chegar às mãos da pretendida. Versos de poucas rimas, curtos, porém festivos ao coração. Nada de rimar amor com flor nem paixão com coração. Preferia versos brancos a rimas adocicadas demais. Temia ser visto como um apaixonado qualquer.
Logicamente que não esperava versos de volta, respostas poéticas. Os ensaios poéticos serviam apenas como chaves para abrir a porta da presença. Após o recebimento seria mais fácil a aproximação da menina. E nem precisava perguntar se havia lido e gostado ou não. As respostas chegavam nos olhos, na feição mais rubra, no leve sorriso no lábio. A ternura encontrada era sinal de conquista.
Outras vezes não acontecia como o planejado. O meu mensageiro de vez em quando chegava dizendo que os versinhos tomaram outra direção, vez que a menina resolveu entregar o bilhete ao pai. E que eu me cuidasse. Certa feita uma chegou toda sorridente e aproveitou meu sorriso de satisfação para enfiar o papel boca adentro. E só não deu um tapa na cara porque desviei a tempo.
De vez em quando recebia os bilhetinhos de volta, arremessados com pedras. Mas certa feita ocorreu algo totalmente inesperado, vez que sem enviar qualquer verso acabei recebendo um papelzinho selado com um beijo de batom vermelho, e cheirando a alfazema. A coisa mais linda do mundo. Foi o que acabei me confessando naquele inusitado momento.
Atinando pela vida, distantes de preocupações outras que não as do momento, eis que uma amiga me chega com um papel devidamente dobrado à mão. Primeiro disse que eu nem me metesse a besta achando que aquele escrito era da parte dela, pois estava apenas prestando favor a uma grande amiga que não podia faltar. E colocou a cartinha cheirosa no bolso da minha camisa volta-ao-mundo. Lembro-me como se tivesse acontecido ontem.
Surpreendido, espantado, mas principalmente curioso, catei o papel e abri cuidadosamente. E lá, com letra miúda e quase desenhada, estava escrito: Batatinha quando nasce esparrama pelo chão, Delzinho quando se deita bota a mão no coração. Muitos me chamavam e ainda chamam de Del, então era dirigido a mim mesmo, não havia do que duvidar. Contudo, o que realmente impressionou foram os versos utilizados para demonstrar aquela afinidade amorosa.
Com as maiores variações possíveis, os versinhos da batatinha se esparramando pelo chão são mais antigos que qualquer coisa que se possa imaginar. Conhecidos por todos, mas deixaram de ser usados como expressão amorosa exatamente pela simplicidade, falta de criatividade e até mesmo inocência de quem deles lança mão.
Mas eis que de repente me vi deitado botando a mão no coração, pois assim, através dos versos da batatinha, aquela menina me queria dizer muito mais. Falar de um amor muito mais sério e profundo, mais contagiante e abrasador, mas que só conseguiu esparramando a batatinha pelo chão. E que gesto meigo, modesto e encantador. E talvez por isso decidi responder com outros versos.
Mas poesia verbal. Dita perante a face, próxima à boca, quase tocando o lábio. E beijando.


Poeta e cronista
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Sentimental (Poesia)


Sentimental


Tempo ou temporal
vento ou vendaval
e eu sentimental

para o bem ou o mal
desejo em ritual
e tão sentimental

do amor serviçal
o querer tão normal
assim sentimental

um cálice de cristal
de seiva essencial
e sentimental

e tão sentimental
que o sentir corporal
me faz imortal.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 450


Rangel Alves da Costa*


“Mais um dia se vai...”.
“O tempo é o mesmo...”.
“A chuva não cai...”.
“Tanta seca e sofrimento...”.
“Tanta angústia e aflição...”.
“O bicho enfraquece...”.
“Lacrimeja e rumina a desvalia...”.
“A natureza acinzenta...”.
“O tronco recurva, a folha morre...”.
“Jaçanã vai embora...”.
“Seriema não existe mais...”.
“Dá pena avistar o bicho de pena...”.
“Tudo seco e esturricado...”.
“Lama dura na barragem...”.
“O pote de barro rachado...”.
“A moringa revirada...”.
“O cachorro magro e ossudo...”.
“A desesperança no olhar...”.
“Maria faz a promessa...”.
“João olha a esperança na barra...”.
“Joaquim enlouqueceu...”.
“Totonha deu pra chorar noite e dia...”.
“Panela guardada...”.
“Barriga vazia...”.
“Prato sem uso...”.
“Calango na brasa...”.
“Farinha de folha seca...”.
“Pão de polpa de frade...”.
“Água uma vez por semana...”.
“A fome de todo dia...”.
“Bastião subiu num pau de arara...”.
“Crimério cortou sozinho a estrada...”.
“Titonha é só tristeza na janela...”.
“O Velho Janjão ficou mudo de vez...”.
“Todo dia há uma sentinela...”.
“Sem água também não há o que chorar...”.
“Cemitério tomado de urubus...”.
“Tanto desalento e desvão...”.
“Não há domingo nem feira...”.
“Não há forró nem chamego...”.
“Não lavanda nem batom...”.
“Não há brilhantina nem roupa de chita...”.
“Não há flor no campo para colher...”.
“E trocar por beijo da moça bonita...”.
“A moça bonita ficou feia de tanta tristeza...”.
“A mercearia fechou suas portas...”.
“Ninguém conhece mais um vintém...”.
“A poeira é dona do corpo...”.
“A coruja fica piando agourenta...”.
“O menino come uma cabeça de cobra...”.
“Dizem que sopa de pedra é ruim...”.
“Nada disso é ilusão...”.
“Tudo isso existe sim...”.
“Basta conhecer o sertão...”.
“Naquele tempo de seu desvão...”.


Poeta e cronista
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sexta-feira, 29 de novembro de 2013

OS CORONÉIS JAGUNCISTAS


Rangel Alves da Costa*


Para o bem ou para o mal, verdade é que o coronelismo por muito tempo ordenou o fazer e o viver pelos sertões nordestinos. Grandes latifundiários, senhores financeiramente aquinhoados, influentes amigos do poder e do mando em outras esferas, se arvoravam de comandar a vida não só de empregados seus como de todos aqueles que vivessem ao seu redor, encurralados que eram pelas esmolas aviltantes, pelos assistencialismos ou pelo temor espalhado.
E foi num cenário assim, num quadrante de sol sangrando pelas tocaias e emboscadas, em meio a nojentas tramas de coronéis, que se passou a história adiante relatada. Dizem que muitos anos atrás, sob o manto da desvalia e o sangue dos inocentes e destemidos molhando a terra rachada, quando o latifúndio era o poder e o mandonismo era a ordem, os coronéis anteciparam o poema drummondiano: Coronel Quintiliano odiava o Coronel Tertuliano, que odiava o Coronel Hercilino, que odiava todo mundo, menos a jagunçada.
Na verdade, ninguém com mando e poder podia odiar a jagunçada. Os jagunços eram seus mensageiros, seus escudos e emblemas, suas vozes mais ignorantes, seus atos quando era impossível dar cabo de qualquer coisa com as próprias mãos. Do mesmo modo que Antonil cita que os escravos eram os pés e as mãos do Senhor de Engenho, os jagunços o eram para os coronéis nordestinos.
Coronel que respeitasse sua patente forjada ou adquirida no coito da Guarda Nacional, não podia deixar ter, no mínimo, uma trinca de celerados à sua disposição. Ou fazia assim, mantendo sob suas ordens uma leva de destemidos malfeitores, ou corria grande risco de ter o seu terno de linho branco manchado do sangue da vingança perpetrada pelos seus tantos e igualmente poderosos inimigos. Era máximo deleite de um saber que o outro tombou com mancha vermelha no linho branco.
Era fera engolindo fera, como se dizia nos segredos de quixabeira. Mas tudo covarde, tudo fumaçando valentia através da crueldade do seu servo das atrocidades, que era o jagunço. Dificilmente se encontrava um coronel que se dispusesse a resolver suas vinditas pessoalmente, pois se refestelando nos casarões a ingrata sorte de todos, do maior ao menor. Eis que todo mundo era seu potencial inimigo, principalmente o seu cabra de mando, de quem tinha medo de se mijar nas calças.
E foi neste cenário de poucos donos e tantas vítimas, que um dos mais afamados mandonistas, daqueles coronéis que mandava fechar cabaré para seu desfrute pessoal, resolveu que deveria aumentar suas terras a qualquer custo. Achava pouco meio mundo de terra, bicho e gente. E para tal inventou uma mentira e ordenou que um de seus cabras fosse espalhá-la nas proximidades dos ouvidos do coronel inimigo.
O mensageiro, cabra escolhido a dedo, sabendo que não tinha acesso ao coronel desafeto do patrão, chegou diante um de seus jagunços e disse que avisasse ao patrão que o coronel fulano de tal iria lhe tocaiar para matar. Logicamente que o coronel era outro e não aquele a quem estava a mando, e tudo pra forçar um confronto entre eles.
Se a lógica acontecesse seria tudo claro demais. Inventando a mentira, o Coronel Quintiliano queria inimizar ainda mais e colocar em confronto aberto os Coronéis Tertuliano e Hercilino. Dizendo que um iria matar o outro, logicamente que um se anteciparia e daria logo cabo da vida do inimigo. E seria menos um desafeto para o coronel mentiroso. Do outro daria um jeito para mandar tocaiar depois. Jagunço servia pra isso mesmo.
Só que o Coronel Quintiliano não estava esperando que tudo ocorresse de modo diverso do planejado. Quando o Coronel Tertuliano soube da promessa de morte feita pelo Coronel Hercilino, logo decidiu que se estava correndo risco de ser tocaiado, então teria que primeiro dar cabo à vida de um inimigo de longa jornada, pois não poderia morrer sem matar primeiro o temível concorrente e opositor Coronel Quintiliano. O mentiroso.
Esperando somente saber o resultado do confronto entre os outros dois coronéis, o Coronel Quintiliano ficou de corpo aberto, à mercê do enraivecimento dos capangas do Coronel Tertuliano. E quando saiu para galopar ao entardecer, e sem estar acompanhado de nenhum dos seus jagunços, recebeu um tirombaço vindo de trás de um tufo de mato.
Assim, tornou-se vítima da própria mentira. Mas sua morte fez flamejar ainda mais o dantesco quadro de disputas e mortes tão próprias daqueles tempos medonhos. Eis que os outros dois coronéis passaram a se armar ainda mais para aumentar sua força política e de mando sobre tudo e todos, mas principalmente pelas terras deixadas pelo coronel desaparecido.
De lado a lado os jagunços esquentaram suas armas. Dizem que daí em diante se deu uma guerra tão violenta que quase põe fim ao mundo. Mas não. Apenas do mundo dos coronéis jaguncistas, pois o tempo chamou para si o dever de ir, aos poucos, ceifando aquelas ervas daninha.


Poeta e cronista
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Com aroma e perfume (Poesia)


Com aroma e perfume


Eis que a brisa
vai passando e leva
o aroma e perfume
da flor do entardecer
num jardim à janela
pétalas em você

eis que a brisa
vai soprando além
a deliciosa fragrância
e meu coração beija-flor
pulsando por um amor
voa em busca da flor.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 449


Rangel Alves da Costa*


“A vida é mar...”.
“A vida tem cais...”.
“É barco que vai...”.
“E não volta mais...”.
“A vida navega...”.
“Numa onda azul...”.
“Mas encontra a escuridão...”.
“De norte a sul...”.
“A vida é farol...”.
“No silêncio da noite...”.
“Apaga com vento...”.
“Se desfaz no açoite...”.
“A vida é ilha...”.
“Distante e perdida...”.
“Esperando alguém...”.
“Ou qualquer sobrevida...”.
“A vida é margem...”.
“É ostra na areia...”.
“Encantada cantiga...”.
“Um canto de sereia...”.
“A vida é distante...”.
“É vela sem norte...”.
“Um barco à deriva...”.
“Esperando a sorte...”.
“A vida é temor...”.
“Da nuvem de temporal...”.
“Esperando o bem...”.
“Colhendo o mal...”.
“A vida tem medo...”.
“Dos mistérios desconhecidos...”.
“Nunca aprende as lições...”.
“Dos tantos acontecidos...”.
“A vida transborda...”.
“Em espuma tão voraz...”.
“É o medo com outra feição...”.
“Que à morte satisfaz...”.
“A vida é viagem além...”.
“Um adeus de despedida...”.
“Um lenço acenando ao vento...”.
“Uma nau levando a vida...”.
“A vida espera a noite...”.
“E o barco retornar...”.
“Como o barco vem sozinho...”.
“A vida vai procurar...”.
“A vida teme a noite...”.
“O silêncio desconhecido...”.
“Um cais de flor jogada ao chão...”.
“Um coração esquecido...”.
“A vida quer aportar...”.
“Trazer flores e presentes...”.
“Mas só encontra a solidão...”.
“Em tantas vidas ausentes”.


Poeta e cronista
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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

O CORONELISMO BAIANO NO SERTÃO SERGIPANO


Rangel Alves da Costa*


Por muitos anos, a partir da estreita relação com o poder, a política e o cangaço, o coronelismo das terras sertanejas da Bahia expandiu sua influência ao vizinho estado de Sergipe, mais de perto na região sertaneja do São Francisco, principalmente nas terras de Poço Redondo e Canindé do São Francisco.
Chamava-se João Maria de Carvalho este senhor de poder e de mando, cuja força coronelista foi muito além das fronteiras de sua Serra Negra, atual Pedro Alexandre. Aquela região baiana, aliás, foi palco de senhores poderosos que marcaram suas épocas pelo mandonismo acobertado pela força política. Neste contexto se sobressaíram o próprio João Maria e o coronel João Gonçalves de Sá, de Jeremoabo (mais tarde homenageado com nome do município Coronel João Sá).
Filho de Pedro Alexandre, contando com mais treze irmãos, João Maria de Carvalho possui uma história singular na saga dos grandes sertanejos. Tenente de patente militar, porém coronel hierarquizado pelo poder econômico e político, foi homem que soube como nenhum outro confluir para si forças antagonistas e transformá-las num poder pessoal tamanho que se fez reconhecido, respeitado e temido por todo o sertão.
Sua extraordinária capacidade de dialogar com situações opostas - e de tudo tirar proveito -, o colocaria também como magistral estrategista. Basta citar o exemplo de sua opção por dar guarida a perseguidos pela polícia, injustiçados e cangaceiros, enquanto seu irmão, o famoso Tenente-coronel Liberato de Carvalho, comandante da força baiana, esteve por muito tempo pelos sertões alagoanos, sergipanos e baianos no encalço de pessoas por ele protegidas.
Situação deveras interessante, e até incompreendida, mas se os cangaceiros que Liberato de Carvalho tanto perseguia debandassem para as terras da Serra Negra e ali pedissem refúgio a João Maria, seu irmão, certamente teriam acolhida. E o coito era tal que nenhuma força policial se atreveria a abalar o mando do grande coronel. Quer dizer, enquanto Liberato queria prender, João Maria procurava proteger da prisão.
Assim agia o coronel João Maria porque sabia que protegendo o homem da terra, por este seria reconhecido e o seu prestígio se tornaria incontestável. E assim de fato ocorreu. Por isso mesmo não mostrava receio em dar coito e abrigo nas suas vastas terras mesmo àqueles chegados de outros estados, principalmente de Sergipe. Acolheu o cangaço como uma causa justa, abrigou sertanejos perseguidos porque se via como grande pai e protetor dos oprimidos.
Limitando com Poço Redondo, Carira, Nossa Senhora da Glória, Porto da Folha, Monte Alegre de Sergipe e Canindé de São Francisco, pelo lado sergipano, Serra Negra era vista quase como uma povoação do sertão de Sergipe. Daí que o coronel baiano, acolhendo os enviados por amigos políticos ou aqueles de reconhecida periculosidade, ao mesmo tempo expandia sua influência além fronteiras. Por isso fez fama em toda a região e até interferia politicamente nos pleitos eleitorais das terras sergipanas.
Não era incomum se ouvi dizer que este ou aquele candidato era apoiado pelo coronel João Maria da Serra Negra. E bastava tal fato para que o pleiteante ganhasse força e prestígio. Do mesmo modo, as lideranças políticas sertanejas tudo faziam para não contrariar o poderoso da região. E mais. O próprio governo estadual sentia de tal modo a influência do baiano que lançava todas as suas forças contra o candidato por ele apoiado.
Assim aconteceu com José Francisco de Nascimento, mais conhecido como Zé de Julião, um ex-cangaceiro (Cajazeira) que pleiteava ser o primeiro prefeito do então emancipado município de Poço Redondo, nas eleições de 1953. João Maria tornara-se amigo do influente e já falecido pai do candidato, e este já havia recebido a proteção do baiano quando a polícia foi em seu encalço após a chacina de Angico, por fazer parte do bando de Lampião. E mais tarde o apoiou nas suas pretensões políticas.
À época, no início da década de 50, o poder estadual estava nas mãos do PSD. Mesmo sendo da UDN baiana, o coronel João Maria indicou Zé de Julião como candidato do PSD sergipano. Contudo, para afastar a influência do baiano, o governo estadual apoiou um candidato do PR, que era partido da base governista. Não só apoiou como trabalhou maciçamente para que “um ex-cangaceiro” não desonrasse os destinos de Poço Redondo. A intenção maior, entretanto, era derrotar o coronel baiano. E conseguiu.
Mesmo tendo seu candidato derrotado e sentindo que Zé de Julião não se abatera e desejava ser mais uma vez candidato, eis que João Maria novamente o apoia. Mesmo que agora o governo estadual já estivesse nas mãos de Leandro Maciel da UDN, o mesmo partido de João Maria, não houve acordo entre os líderes e a força perseguidora leandrista lançou todas as armas contra o PSD de Zé de Julião.
Num pleito marcado por fraudes e favorecimentos ao candidato governista, Zé de Julião foi derrotado e em seguida perseguido pela polícia por haver roubado três urnas e rasgado as cédulas de votação. Então o protegido do coronel baiano buscou no amigo a guarida contra a morte certa. E novamente foi acolhido até retomar seu destino.


Poeta e cronista
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De amor por amar (Poesia)


De amor por amar


Depois que desenhei o coração
risquei seu nome junto ao meu
guardei o diário cheio de emoção
eis que o tempo jamais esqueceu

depois que passei na sua janela
e joguei um beijo na sua direção
não esqueço da tarde mais singela
relíquia guardada em meu coração

depois que você leu o bilhete jogado
e sorrio com feição de contentamento
saí de mim num voo deslumbrado
e eis da vida o grande momento

nesse voo alçado em sua direção
me vi abraçado pela mais linda flor
pensei que era loucura desse coração
mas era a glória de encontrar um amor.


Rangel Alves da Costa


PALAVRAS SILENCIOSAS – 448


Rangel Alves da Costa*


“Chore, não esconda sentimento...”.
“Entristeça, não negue seu íntimo...”.
“Silencie, não force a mudez do coração...”.
“Enraiveça, não minta a si mesma...”.
“Confesse, não guarde segredo vão...”.
“Perdoe, não importa que outro mereça...”.
“Ame, se assim for o seu desejo...”.
“A lágrima é amiga da solidão...”.
“A solidão é amiga do pensamento...”.
“O pensamento é amigo da reflexão...”.
“A reflexão é amiga da ponderação...”.
“A ponderação é amiga do conhecimento...”.
“O conhecimento é amigo do limite...”.
“O limite é amigo da caminhada...”.
“A caminhada é amiga do encontro...”.
“O encontro é amigo do inesperado...”.
“O inesperado é amigo da surpresa...”.
“A surpresa é amiga da tentação...”.
“A tentação é amiga da força...”.
“A força é amiga da inteligência...”.
“A inteligência é amiga da melhor escolha...”.
“A escolha é amiga do desejo...”.
“O desejo é amigo da vontade...”.
“A vontade é amiga do querer...”.
“O querer é amigo da necessidade...”.
“A necessidade é amiga da prudência...”.
“A prudência é amiga do cuidado...”.
“O cuidado é amigo da pessoa...”.
“A pessoa deve ser amiga de si mesma...”.
“E por ser assim...”.
“Conhecedora de si mesma...”.
“Do que deseja e quer...”.
“Cuida de ter um caminho próprio...”.
“Uma estrada que seja sua...”.
“Onde o lobo mau da inveja...”.
“E do mau aconselhamento...”.
“Não impeçam que siga adiante...”.
“Para fazer o que deseja...”.
“Sem ter de se submeter aos olhares do outro...”.
“Por que conhece o mundo é seu...”.
“A estrada é sua...”.
“E ninguém poderá dizer onde deva ir...”.
“Ou o que deva fazer...”.
“E todas as vezes que chorar...”.
“Que sorrir ou gritar...”.
“Que acalmar ou espernear...”.
“Que sofrer ou lacrimejar...”.
“Estará agindo no limite de seu mundo...”.
“E lugar este cujas chaves...”.
“Somente você saberá onde guardar...”.
“E encontrar para abrir as portas...”.
“De uma vida...”.
“Que é sua...”.
“Somente sua...”.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

JAGUNÇO NA MOITA


Rangel Alves da Costa*


Jagunço, o astuto matador dos sertões, não saía por aí para eliminar qualquer um e em qualquer lugar. Nesse aspecto se diferenciava muito do pistoleiro de mando ou do assassino de aluguel. Enquanto este podia dar cabo do desafeto do mandante assim que o encontrasse, com aquele era diferente. Havia toda uma estratégia de jagunçagem.
Enquanto o pistoleiro acabava com a vida do cabra defronte à sua porta, pelas ruas, bodegas ou em qualquer lugar que fosse possível atirar, o jagunço de verdade obedecia a um verdadeiro ritual. E o ritual da jagunçagem, ainda que resumido a poucos procedimentos, tornava-se muito mais planejado que qualquer outro que tencionasse covardemente matar.
O jagunço tinha de saber o dia certo, o lugar certo e a hora certa de apertar o gatilho. Mas nada modificava se a futura vítima não aparecesse no dia ou momento esperado. Não havia qualquer problema porque ele ali permanecia até levar a efeito seu plano de morte. Noutra hora ou noutro dia, assim que despontasse adiante estaria sob a mira de seu cano faminto por sangue.
Chegar mansamente pelos fundos da mataria, furtivo feito bicho do mato, se acocorando a todo passo ou se arrastando por cima de pedras e espinhos, tudo isso fazia parte do planejado. Do mesmo modo o posicionamento correto à espera de sua presa e o mirar em local que não desse chance de sobrevivência ao escolhido para a defuntez. Contudo, o que mais afligia o jagunço era encontrar-se consigo mesmo naquele tufo de mato escolhido.
Dizia-se homem de sorte quando chegava ao local da tocaia e em pouco tempo já dava o problema por resolvido, pois logo o cabra já estirado no chão à espera dos urubus. Mas tudo mudava quando o tempo começava a se alongar mais que o planejado. Eis que o jagunço começava a ter consciência de si mesmo, de raciocinar sobre sua ação, de dialogar algumas verdades que preferia jamais viessem à mente.
O jagunço, mesmo simbolizando a covardia, a insensatez e a frieza mais abjeta, se via num verdadeiro dilema naqueles instantes que antecediam o apertar o gatilho. Precisava não pensar em nada, não ter tempo de refletir, apenas agir. Por isso que quanto mais rapidamente desse conta do seu intento melhor, eis que sem tempo de mirar-se perante o espelho da consciência e indagar acerca daquela ação tão covarde e desumana.
Por mais que tentasse fugir dos labirintos do pensamento, procurasse evitar fazer questionamentos próprios, impossível não começar o martírio sem estar logo mirando a vítima passando adiante, pela vereda da morte. Era humano mesmo não querendo ser, se indagava mesmo querendo calar por dentro, e sofria exatamente porque também se reconhecia como um verme, uma pessoa cujo ofício na vida era exatamente matar outros seres humanos. E de forma cega, ardilosa, covarde, simplesmente porque assim seu patrão desejou.
Quanto mais o tempo passava mais surgiam as indagações, mais os questionamentos atormentavam: Estava agindo corretamente daquela maneira, esperando apenas o instante de tirar a vida de alguém que não era seu inimigo, não lhe tinha feito mal algum, não sabia verdadeiramente quem era e se tinha filhos e esposa para sustentar? Valia a pena viver sob as ordens de um patrão cujo poder era mantido e aumentado a custa da vida até de inocentes, de pessoas tornadas inimigas apenas porque não queriam se ajoelhar perante o poder e o mando?
E as questões mais contundentes: Vale a pena matar por tão pouco, uma ninharia, um quase nada? Por que esperar aqui tanto tempo apenas para ter o prazer de ver uma pessoa caindo e sangrando feito uma coisa ruim que não merece viver? Por que tirar assim, desfazer assim, uma vida que talvez venha fazendo planos de grandes realizações? Por que matar, e simplesmente matar?
Mas os pensamentos eram repentinamente cortados pelo som ouvido adiante ou a visão de um vulto se aproximando. É a pessoa esperada, só pode ser. Eis o cavalo, o chapéu na cabeça do sujeito, a sua passagem certeira por aquele lugar. Haverá mais tempo para pensar e voltar atrás no intento, ou agora já é tarde demais e apertar o gatilho será a consequência lógica desse percurso atroz?
De repente e um tiro. Apenas um. E um corpo estirado. Mas não na estrada, e sim dentro do mato, no meio da moita. A mão da consciência em redemoinho fez com que o jagunço virasse a arma para o próprio peito. E atirasse para fazer mais uma vítima. A de si próprio, como o do mais perverso dos destinos.


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O amante (Poesia)


O amante

Sou amante sim
à moda bem antiga
de seresta e serenata
de poesia recitada
de flor e poema à mão
e palavras açucaradas
mel solúvel na boca
e doçura do coração

canto sob a janela
jogo bilhete e verso
risco nome no vento
lanço beijo com a mão
levo buquê escondido
escrevo amor na areia
ofereço maçã do amor
e verdadeiramente amo
a brasa mais flamejante
esse querer abrasado
de um ser tão amante.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 447


Rangel Alves da Costa*


“Que se danem os formalismos...”.
“As etiquetas e protocolos...”.
“Quem se danem as cerimônias, as insígnias...”.
“Os títulos e adjetivações...”.
“Que se danem o balbuciar respeitoso...”.
“E a distância protocolar...”.
“Que se danem as carteiras e senhas...”.
“As varreduras e os olhares...”.
“Que se danem a suntuosidade e brilho...”.
“O aparato e a intocabilidade...”.
“Que se encha de verme o anel...”.
“Que se tome de putrefação a diferença...”.
“Que morra o autoritarismo...”.
“Que evapore o outro porque é o outro...”.
“Foda-se ou se foda...”.
“Tanto faz...”.
“O homem é que é...”.
“Na sua essência...”.
“No seu caráter...”.
“Na sua conduta...”.
“No respeito ao próximo...”.
“Tratando igualmente os desiguais...”.
“E não essa cambada de anelados...”.
“Revestidos em véus de egoísmos e vaidades...”.
“Caminhantes de tapetes dourados...”.
“E tratando o próximo com indiferença...”.
“Que foda-se ou se foda...”.
“Tanto faz...”.
“Jamais compreendem do significado do ser...”.
“Da carne e do sangue em cada um...”.
“Da ossatura e da podridão em cada um...”.
“Da doença que ataca e mata indistintamente...”.
“Do sangue azul que jorra vermelho na morte...”.
“Vai-te pra lá com sua arrogância...”.
“Vai-te para os quintos com sua vaidade...”.
“Vai-te para onde bem merecer com sua petulância...”.
“Na morte a socialização do ser...”.
“Enfim a certeza da igualdade...”.
“Tudo jaz da mesma forma...”.
“Da podridão ao pó...”.
“Só que não deixa saudades...”.
“Aquele que não merece ser lembrado...”.
“Por isso olhe ao redor e adiante...”.
“O mundo dá e toma...”.
“A vida permite e quer de volta...”.
“Nada é dado para ser mal usado...”.
“A pobreza se dignifica mais que sua riqueza...”.
“A mera sobrevivência vive melhor que sua opulência...”.
“Pessoas existem que dormem em travesseiros de pedra...”.
“Mas com a paz e a certeza da tranquilidade...”.
“E o mesmo não ocorre em travesseiros de plumas...”.
“Onde as noites são infortúnios...”.
“Pelo peso da consciência...”.
“E pelo desmerecimento à vida...”.


Poeta e cronista
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terça-feira, 26 de novembro de 2013

DO RELINCHO AO RONCO (OU A MOTO BOA DE SELA)


Rangel Alves da Costa*


Depois das embarcações que aportavam trazendo gente e animais para o hostil litoral, a história sertaneja teve no lombo dos cavalos, mulas, burros e jumentos seu meio de transporte mais usual. Partindo das margens e adentrando a mataria desconhecida, abrindo picadas ou seguindo por perigosas veredas, os animais foram levando os homens aos destinos mais distantes.
Desse modo, os animais de carga e de montaria tiveram suma importância no desbravamento, povoação e desenvolvimento do sertão nordestino. Para vencer as distâncias e as durezas das terras áridas, preparar os terrenos para o plantio, conduzir tropeiros, fazer o transporte dos frutos da lavoura, carregar latões de água de fontes distantes; enfim, para transportar o que houvesse naqueles idos, somente através do lombo dos animais.
Tais animais passaram a simbolizar o sertão não só como meio de transporte, mas pelas muitas outras serventias que sempre tiveram junto ao sertanejo. Impossível a moradia nos ermos longínquos sem ter na malhada o amigo de locomoção; mansos ou bravios cortaram a caatinga espinhenta em busca de boi brabo, conduziram vaqueiros e comboieiros nas suas lidas diárias, serviram a todo fim num tempo em que nem se pensava em pneu de automóvel.
Cavalo de pega de boi e de cavalhada, de passeio ou da juntada da criação ao entardecer, de orgulho maior do matuto que tem no seu pelo brilhoso a riqueza maior; burro bom de carga, amigo do homem que precisa levar fardos pesados a lugares remotos, principalmente pelas estradas mais pedregosas e passagens íngremes; jegue, jumento, jerico, tanta denominação para aquele animal amigo que sempre espera o seu dono à sombra do pé de pau. Ou mesmo debaixo do esturricamento.
Desse modo, desde o início da civilização sertaneja que o bicho de lombo e sela vinha sendo reconhecido como inseparável do sertanejo no seu afazer debaixo de sol e de lua. A qualquer hora do dia bastava jogar sela ou selim por cima do lombo do bicho e fazê-lo esquipar ou trotar ultrapassando cancelas, vencendo as difíceis veredas sertão adentro. Mas hoje essa situação mudou, como se verá adiante.
Luiz Gonzaga o imortalizou no cancioneiro nordestino, reconhecendo-o como verdadeiro irmão, eis que ajudou o homem na vida diária, ajudou o Brasil a se desenvolver. Arrastou lenha, madeira, pedra, cal, cimento, tijolo, telha; fez açude, estrada de rodagem, carregou água pra casa do homem; fez a feira e serviu de montaria.
Como injusta retribuição o ingrato matuto lhe deu castigo, açoite, pancada no lombo, ferroada no traseiro. Contudo, mesmo que tardiamente, parece que agora não só o jumento como os demais animais de montaria passaram a ter o trabalho reduzido e o descanso merecido. Ao menos como meios de transporte lhes foi dado uma trégua, deixados repousando pelos campos, eis que agora o sertanejo se locomove de canto a outro em cima de outros lombos, das motocicletas.
Atualmente, pelas estradas sertanejas praticamente não se encontra mais cavalos e cavaleiros, trabalhadores montados nos seus animais em direção aos arruados, viajantes seguindo lenta e trotadamente no lombo do bicho para os destinos mais distantes. Do mesmo modo, quem vai saindo ou chegando não tem mais o trabalho de cuidar da sela e outros apetrechos. As selas, os arreios, as tacas e os estribos deram lugar a apenas uma ou duas chaves.
As chaves das motos se tornaram como símbolos de um sertão que parece apressado demais para chegar. Nas cidades, povoados e fazendas, dificilmente são avistados animais de montaria. Em cada porta e telheiro, nas malhadas e debaixo dos arvoredos sombreados, não mais repousam os animais à espera de seus donos, mas as máquinas prontas para o arranque. Com marcas e modelos de todos os tipos, agora basta lançar mão das chaves e sair por aí com pressa desenfreada.
Logo cedinho e a moto já está encostada na porteira do curral. O leite vai ser entregue na garupa da motocicleta. Uma boiada é avistada numa estrada e logo atrás, lentamente, vem o vaqueiro montado no seu cavalo de ferro. As cancelas não se abrem mais para a cordialidade dos animais, mas somente para o ronco embrutecido do motor. Os bichos desprezados agora têm de dividir sombreados com as possantes.
Diferentemente de outros tempos, quando o homem exigia tudo do animal sem sequer alimentá-lo dignamente, agora se tornou escravizado pela máquina, cada vez mais faminta pelo caro combustível. E em tempos difíceis, o que faz o sertanejo é vender o cavalo velho por qualquer tostão e assim conseguir dinheiro para alimentar sua nova cria. E faz isso com indescritível satisfação.
Depois monta no lombo da máquina e sai perigosamente pelas estradas. E diz barbaridades se encontra algum jegue pelo caminho que atrapalhe sua pressa de chegar. E de vez em quando bate no animal abandonado e ali mesmo fica estendido. Mais um na estatística do progresso.


Poeta e cronista
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A valsa (Poesia)


A valsa


Eis que a valsa agora
me chama ao salão
e então vem a senhora
para me dar a mão

passos embriagados
deslizes ao desvão
firmes braços dados
em meio à solidão

então a valsa cansada
adormece a nobreza
sigo a noite enluarada
para encontrar a tristeza

e valseio na escuridão
tropeços de dor e agonia
até me lançar ao chão
na valsa de todo dia.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 446


Rangel Alves da Costa*


“Não há mistério...”.
“Quando se discute o segredo...”.
“Não há segredo...”.
“Quando o mistério está revelado...”.
“Não há revelação...”.
“Se nada de novo sob o sol...”.
“Pois tudo que existe agora...”.
“Ou que ainda surgirá...”.
“Faz parte do plano da criação...”.
“E em nada inova no que já existe...”.
“Mas creia que o homem...”.
“Ainda encontrará o impensável...”.
“O inimaginável um dia o surpreenderá...”.
“Mas não por ser novidade...”.
“Vez que apenas desconhecido...”.
“Mas apenas para mostrar...”.
“Que todo homem é limitado...”.
“Todo conhecimento é limitado...”.
“A máxima sabedoria humana sempre será limitada...”.
“O conhecimento profundo está apenas emergido...”.
“Eis que o verdadeiro saber...”.
“Ainda repousa no véu da divindade...”.
“E não precisará a descoberta...”.
“O avanço tecnológico...”.
“Ou qualquer inovação...”.
“Para se ter a certeza que o homem...”.
“Apenas consegue realizar...”.
“Conquistas pontuais...”.
“Mas não dispor de tudo aquilo...”.
“Que o ser precisa minimamente para sobreviver...”.
“Faz a máquina não descobre o remédio...”.
“Transforma o líquido em sólido...”.
“Mas não consegue a fórmula...”.
“Traz a lume a máquina que desvenda o corpo...”.
“Mas não a cura do corpo...”.
“Trata da enfermidade através da tecnologia...”.
“Mas não dispõe de um simples remédio...”.
“Possui o aparato...”.
“Mas não a cura...”.
“Pois não lhe é dado o direito...”.
“De ser criador e criatura...”.
“De ser Deus...”.
“Não lhe é dado o direito de dispor...”.
“Da vida e da morte...”.
“Não lhe é permitido...”.
“Dizer que tem a salvação do mundo...”.
“Ou da vida quando quiser...”.
“E até a máquina criada com tanto esmero...”.
“Não lhe dá a paz que deseja...”.
“Nenhum botão ou teclado...”.
“Permite encontrar a felicidade...”.
“E precisa da humildade do ser...”.
“Para juntar as mãos...”.
“E implorar proteção divina...”.
“Eis o lugar do homem...”.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A LENDA DA SOLIDÃO


Rangel Alves da Costa*


Era noite, e noite escurecida, chuvosa, mas a aldeia inteira se encheu de sol quando a indiazinha veio ao mundo. Ao primeiro choro e o firmamento se abriu para que o maior dos sóis lançasse seus raios sobre a tribo.
O Velho Cacique, repentinamente apavorado, lançou perguntas aos deuses, porém no instante seguinte já estava ajoelhado agradecendo aquela inesperada visita. E sabia o motivo do surgimento de um sol tão radiante no meio do negrume: o nascimento da indiazinha.
Seus antepassados já anunciavam a visita desse sol assim que nascesse aquela que seria a mais encantadora entre todas as mulheres, mas também a de destino mais triste. Sobre o triste fadário o cacique também conhecia. Contudo, nada podia dizer, sob pena de colocar em perigo toda a existência de seu povo.
Em meio ao choro da indiazinha, o pai e familiares correram pra fora da maloca para admirar aquele sol tão forte e misteriosamente surgido. O cacique chegou e disse que aquele sol assim mais brilhoso que todos era um presente dos deuses para a recém nascida.
“Eis o sol que nos dão. Sol que dão, solidão. E este será o nome da nossa indiazinha. Que seja bem vinda a Solidão”, disse o velho enquanto se afastava para não demonstrar a tristeza crispando sua face.   
Desse modo, homenageando o sol em imensidão, Solidão foi o nome escolhido para a mais bela índia da tribo dos Queamarás. E dizem que era tão bela e formosa que certa feita o Velho Cacique teve de interceder junto às forças da natureza para que não derramassem contra o seu povo a maldição do ciúme.
Contudo, o tempo foi passando, a indiazinha Solidão crescendo e ficando cada vez mais bela a cada novo amanhecer. Pássaros, borboletas e animais se acercavam daquela formosa flor para mirar seus encantos. O vento soprava seu cabelo e ao redor se enchia de suave perfume.
Enquanto isso o cacique se embrenhava na mataria para dialogar com as forças da natureza e tentar impedir que o inevitável pudesse acontecer. Sabia que a formosura da Solidão custaria a vida daquele seu povo se ela não fosse expulsa de aldeia e abandonada nas distâncias da floresta do esquecimento.
Já estava escrito quer seria assim. Nem o sol nem a lua, nem as estações nem as horas, aceitaria mais ter aquela índia como objeto de atração e maravilhamento de todos, desde o índio à formiga tucandeira. De forma alguma ela poderia ser vista como mais bonita do que os elementos ao redor.
E a certeza que quanto mais o tempo passasse mais sua beleza ficaria maior, fazia com que a situação do Velho Cacique ficasse insustentável. Todos os dias ele se embrenhava nas matas para pedir aos deuses que evitassem aquela tragédia para o seu povo, pois nenhuma alegria restaria à tribo se a índia Solidão desaparecesse do seu meio.
Mas os deuses nada respondiam. Quando os peixes sumiram do rio e os frutos desapareceram das árvores, então o cacique sentiu que não teria mais jeito. Um dia colocou raspas de sono na água de Solidão e esta nunca mais acordou.
Ao menos perante a tribo que chorou três dias seguidos lamentando a morte prematura de sua mais bela flor. Então o cacique, sabendo que ela tinha momento certo para acordar, cuidou de enviar o seu corpo para um lugar bem distante. Dali ele mesmo cuidou que Solidão chegasse à floresta do esquecimento.
Quando ela acordou achou tudo muito estranho. O seu povo não estava ali, os pássaros e as borboletas não chegavam para festejar sua presença, aquele indiozinho pelo qual se enamorara não aparecia para oferecer uma doce e saborosa fruta do mato. Estava sozinha, completamente sozinha. E quanto mais andava de lado a outro mais se via completamente só.
E assim foi ficando cada vez mais triste, recordando os seus, relembrando seus dias no meio daqueles que tanto amava. Bebia da água que chorava e se alimentava do fruto do pensamento. Esperava ouvir uma voz que nunca chegava. Tudo era silêncio e solidão em Solidão.
Assim diz a lenda sobre essa bela e triste mulher chamada Solidão.


Poeta e cronista
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Meu espelho (Poesia)


Meu espelho


Você levou meu espelho
e hoje só me reconheço
na saudade que reflete
o que junto com ele levou

não sei se sorrio ou choro
entristeço ou enrubesço
nada sei sem o espelho
que você me levou

não junte os cacos agora
esqueça também a moldura
serei apenas felicidade
ter sua feição como espelho.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 445


Rangel Alves da Costa*


“O vento passa levando tudo...”.
“A enxurrada escorre levando tudo...”.
“A lágrima desce molhando tudo...”.
“O grito ecoa espantando tudo...”.
“Tudo em mim se esvai...”.
“No sopro e açoite que leva tudo...”.
“Mas quando penso que posso renascer...”.
“Eis que os resquícios dos idos...”.
“Achegam ao pensamento...”.
“E daí em diante sou todo antigo...”.
“No baú dos restos familiares...”.
“Nos álbuns de sorrisos entristecidos...”.
“Nos livros velhos que gritam por mim...”.
“Nos poemas escritos sem um final...”.
“Nos rabiscos e esboços jogados num canto...”.
“No espelho sem reflexo que tenta me espelhar...”.
“E ainda a dor...”.
“O sofrimento pela saudade...”.
“A vontade de beijar novamente...”.
“O desejo de reencontrar para o perdão...”.
“A ânsia de novamente tocar a face...”.
“E todo o impossível de fazer agora...”.
“Não, não acendo a luz...”.
“A vela tremula e há de apagar...”.
“Não tenho lenço à mão...”.
“Nem barco de viajar...”.
“Beberei minha lágrima após o vinho acabar...”.
“Mas não há mais vinho...”.
“Não há mais cigarro nem uísque...”.
“Somente a noite vazia...”.
“Num copo vazio, num peito vazio...”.
“Uma rua escurecida e chuvosa...”.
“Uma lua escondida e triste...”.
“Um uivo de lobo chamando por mim...”.
“Mas não partirei ainda...”.
“Que as estepes me aguardem...”.
“Para a última loucura...”.
“O último voo com asas de Ícaro...”.
“E cair debaixo de sua janela...”.
“Beberei a lágrima...”.
“Antes que a noite me abra a porta...”.
“Preciso sair por aí...”.
“Ser novamente um noctívago errante...”.
“Um poeta da solidão...”.
“Cantando versos para o desconhecido...”.
“E depois adormecer...”.
“Num quanto qualquer que seja leito...”.
“E que me permita sonhar...”.
“Sendo o que um dia fui...”.
“Amante e amado...”.
“Beijado e abraçado...”.
“Porque um dia amei...”.
“Porque um dia fui feliz...”.
“Porque um dia vivi...”.


Poeta e cronista
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domingo, 24 de novembro de 2013

UMA VELHA


Rangel Alves da Costa*


Seus olhos profundos e sem luz, quase sumidos nas entranhas da pele escura e enrugada que lhe adorna, parecem ver apenas sombras e nublados naquilo que se põem a olhar. Mas insistentemente Sinhá Titoca mira a vida, e intimamente reflete o que avista ou recorda neste ato solitário de todas as tardes, principalmente após o entardecer.
Velha Antônia ou Sinhá Titoca, do mesmo modo dá atenção a quem lhe cumprimenta de um jeito ou outro. Já não recorda o tempo que alguém pronunciou seu nome de batismo: Antônia Rosarina das Mercês. Achava nome bonito demais para uma filha de escravos e que escravizada também viveu.
Mas a escravidão dos libertos, ou dos libertados sem ter de si afastados o peso dos grilhões e a dor das chibatas do preconceito, da discriminação, da falta de oportunidades para viver e do reconhecimento como pessoa humana. Desse modo, apenas uma escrava liberta e jogada numa nova senzala, aquela da miséria e do esquecimento. Os que chegam somem no passo seguinte.
Hoje pequenina pela idade que parece encolher, de cabelo carapinha todo branquinho, convivendo com sua fé mista de catolicismo e deuses africanos. Ao lado das fitas já esbranquiçadas do Senhor do Bonfim sobressaem-se sempre, e por todo lugar, as imagens de santos e plaquetas com dizeres religiosos. Mas nunca leu uma só palavra. Nunca aprendeu a ler nem escrever.
Foi empurrada às brenhas da cidade e aí permaneceu num casebre ao lado do seu amor de mesma cor e raiz. Mas um dia, depois de longo tempo de verdadeiro banzo distante da paz no campo, o companheiro fechou os olhos de vez e ela ficou sozinha. E o tempo passou, sua casinha ficou cada vez mais comprimida com as novas moradias, mas ela permaneceu aí sem ter para onde ir nem o que fazer.
Cocada branca, arroz doce e mungunzá, não havia nada mais saboroso do que ela fazia. Depois do meio-dia colocava suas guloseimas numa mesinha na entrada do casebre, cobria tudo com toalha rendada e de alvura de leite, e se punha a esperar a clientela chegar, bater palmas, chamar seu nome. Houve um tempo que não dava pra quem queria, mas a clientela foi se mudando, rareando, até que ficou dispendioso demais tanto trabalho para nenhum lucro.
Deixou de lado as comidas de coco e teve de aceitar como ofício aquilo que já fazia desde muito tempo, que era rezar e benzer as pessoas que chegassem necessitadas de um auxílio. Ali chegam pessoas se dizendo tomadas de mau olhado, com espinhela caída, cheias de enfermidades desconhecidas, envoltas em convulsões, e mais um rosário de doenças ou meros temores em busca das rezas milagrosas da velha senhora.
Em tom de brincadeira, mostrando uma dentadura ainda forte e de mármore branco, brinca com quem chega pedindo para que faça trabalho amoroso; ou seja, que faça rezas e encantamentos para o amado fujão voltar de vez e se apaixonar. Ou amarrar o cabra, como costumam dizer. E acrescenta que se mexesse com essas estripulias não vivia naquele deserto de solidão. E pede desculpa por não invocar entidades nem se ajoelhar perante a divindade para pedir intercessão junto às coisas do coração.
Gosta mesmo é de preparar chás, infusões, unguentos, pastas com remédios medicinais. Possui uma pequena farmácia no seu quintal onde cuidadosamente cultiva boldo, mastruz, erva-cidreira, hortelã, arruda e malva, dentre muitas outras ervas milagrosas. Também conhece rezas antigas, ensinamentos passados de outras gerações. E muitos dizem que suas mãos têm o dom de mandar a enfermidade às profundezas dos sete mares e trazer fortalecimento espiritual.
Escolhe três ramos ou folhas no quintal, silenciosamente pronuncia algumas palavras, em seguida seu braço magro faz a planta circundar a cabeça e o corpo da pessoa. Quando a planta se mostra totalmente murcha é porque todo o carrego saiu do corpo e ali se instalou. E a pessoa está livre do mau olhado ou do peso que lhe atormenta. Mas quando a planta insiste em não murchar, então ela se mostra tomada de preocupação.
E diz que a pessoa tome muito cuidado, mesmo estando com corpo fechado. É em corpo assim que as chaves falsas entram com facilidade. E manda que reze três ave-maria por três dias seguidos, que tome banho com água de cuia e não deixe o vento do entardecer subir pelas coxas. É esse vento tinhoso que desanda a vida de qualquer um.
Depois agradece a moeda colocada em sua mão. E o dia seguinte a encontrará na mesma solidão dos tempos, conversando com as plantas, ouvindo os gemidos de dor de suas raízes escravas.

Poeta e cronista
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Palavra de amor (Poesia)


Palavra de amor


Sem palavras para dizer do amor
fechei o velho dicionário
guardei os poemas shakespearianos
eis que impossível encontrar agora
novos significados para a palavra
que tantas vezes repeti baixinho
mas imagino que além do amor
exista um amor ainda maior
que todo amor já dito e repetido
e numa palavra ainda desconhecida
ou num livro ainda não folheado
mas enquanto não encontro
um significado novo para lhe dizer
entregarei uma flor da manhã
e um bilhete dizendo somente
que o meu coração silencia triste
porque minha voz emudeceu
esperando encontrar a palavra
que seja tão imensa quando o amor
imensa e verdadeiramente sentido.


Rangel Alves da Costa