SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 30 de junho de 2020

MORRER NA TERRA: CANGACEIROS DE POÇO REDONDO QUE FORAM MORTOS EM POÇO REDONDO



*Rangel Alves da Costa


O cangaço percorreu quase o Nordeste inteiro. De Pernambuco ao Ceará, foram muitos os estados que sentiram no chão e na pele, nos ódios e nos afetos, as marcas e as consequências da presença cangaceira. Homens do mundo, sem lar nem parada certa, o cangaceiro vivia à mercê da força da caminhada ou do encalço do inimigo. Num repente, e tudo já se modificava, o coito era levantado, o passo era apressado, o mosquetão começava a cuspir fogo. Daí as mortes também serem ao largo das vinditas, em qualquer terra, em qualquer chão.
Cangaceiro nascido num lugar, acaso encontrasse a morte como desfecho, esta poderia acontecer nas mais distantes lonjuras de seu berço de nascimento. Virgulino Lampião, por exemplo, veio ao mundo em Vila Bela, Pernambuco, e dele se foi no então distrito sertanejo e sergipano de Poço Redondo. Muitos se foram assim, distantes dos lares, das famílias, de tudo o que haviam deixado para trás. Mas noutras situações o destino, com suas forças e mistérios, acabou levantando na própria terra as cruzes daqueles que nela haviam nascido.
Poço Redondo, no Alto Sertão Sergipano do São Francisco, (localidade sertaneja da Gruta do Angico, do Fogo da Maranduba, das Cruzes dos Soldados, do Coito da Pia das Panelas, e muito mais), também foi destino de morte de muitos de seus filhos que um dia deixaram seus lares para seguir os passos de Lampião. Canário, Enedina, Diferente, Mergulhão, Elétrico, Moeda, Alecrim, Rosinha, todos, após as carrasquentas andanças debaixo de distantes luas e sóis, acabaram retornando para o repouso final na própria terra.
Todos estes poderiam ter dado seus últimos suspiros em terras distantes. Por situações de perigo haviam passado, pelo fogo da morte haviam cruzado, na direção da matadeira haviam estado. Mas não, saíram ilesos para, já dentro da terra natal, terem suas vidas ceifadas. E tendo a vastidão sertaneja como último leito, vez que nenhum dos mortos foi velado pelos parentes e amigos nem teve sepultura minimante digna. Entre mandacarus e xiquexiques, os gravetos em cruzes e seus epitáfios sem nada dizer.
Canário (Bernardino Rocha) foi morto em 06 de setembro de 38, após a Chacina de Angico, na Fazenda Coruripe, nos arredores da sede de Poço Redondo. O companheiro da também poço-redondense Adília, foi morto à traição, com um tiro pelas costas, desferido pelo também cangaceiro Penedinho (que era primo de sua companheira Adília). Mesmo tendo sido morto tão próximo da sede, jamais teve digno sepultamento. Sua cabeça foi posteriormente decepada e levada por Zé Rufino (comandante de volante sediado na baiana Serra Negra), e o restante do corpo enterrado acerca de cem metros do local da traição.
Rosinha, no contexto cangaceiro mais conhecida como Rosinha de Mariano, havia nascido na região poço-redondense da Maranduba, sendo filha da afamada família Soares, irmã da também cangaceira Adelaide e prima de Áurea de Mané Moreno (o da Bahia). Após a morte de seu companheiro, Rosinha pediu permissão para se afastar temporariamente do cangaço. Permissão concedida, mas não retornou no prazo dado pelo Capitão. Após seu intempestivo retorno, sua sina já estava traçada: seria morta. A incumbência foi dada aos cangaceiros Zé Sereno, Juriti, Balão e Vila Nova. Assim, ao lado do Coito da Pia das Panelas, nas beiradas do Riacho Quatarvo, na região das Areias, em Poço Redondo, a cangaceira tombou sem vida.
 Por sua vez, Mergulhão (Gumercindo Braz, irmão da cangaceira Sila e também dos cangaceiros Novo Tempo e Marinheiro, filhos de Paulo Braz São Mateus), Elétrico (filho de Pedro Miguel), Moeda (João Rosa, da região da Guia), Alecrim (José Rosa, irmão de Moeda) e Enedina (Enedina do Nascimento, esposa do também cangaceiro Cajazeira), todos estes foram mortos na Chacina do Angico de 38, nas beiradas poço-redondenses do São Francisco, na região ribeirinha do Cajueiro. E todos, tão próximos de suas moradias e de suas famílias, mas tão distantes de qualquer retorno, tombando sem vida no próprio chão onde um dia nasceram.
Os túmulos destes, contudo, jamais foram abertos em cemitérios locais. Alguns, como Canário (enterrado sem a cabeça) e Rosinha, sepultados na solidão do meio das matas fechadas, espinhentas, assim como foram suas vidas nas desvalias cangaceiras. Já outros, aqueles do Angico, enterrados ao desvão do tempo, tiveram suas cabeças cortadas e levadas como provas da derrocada de Lampião. E de um Cangaço que jamais foi vencido.


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Lá no meu sertão...


Num tempo bom, entre andanças e relembranças...




Nunca mais (Poesia)



Nunca mais


Nunca mais deitei na varanda
nem recebi um afago de cafuné

nunca mais meu amor chegou
me trazendo beijo com sabor de café

nunca mais comi doce de leite
recebido na boca com sorriso e colher

nunca mais dei buquê de flor
e chamei moça menina de minha mulher

nunca mais fui alegre e feliz
nunca mais cantei um canto sequer

nunca mais amei nem fui amado
sentir calor de um corpo já não sei o que é.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – porteiras, cancelas...



*Rangel Alves da Costa


Eu gosto de porteiras e cancelas, gosto de chegadas e idas, gosto de seguir adiante. Gosto de dizer que estou, gosto de dizer que cheguei, gosto de meu olhar estender. Gosto de bater à porta, de dizer bom dia, de sentar em tamborete e de prosear. Gosto de falar a terra, de ouvir o chão, de deixar a palavrar ruminar e cacarejar. Gosto de olhar ao lado e sentir o barro, a canção das folhagens, do sorriso dos campos e descampados, do quintal que se alonga pelas entranhas do mato. Gosto do cheiro de café, do aroma do toucinho e da tripa de porco chiando na velha frigideira. O gado mugindo, a galinha ciscando, o velho carro-de-bois no sombreado do umbuzeiro. Uma estradinha, uma vereda, um chão. Algo assim chamado sertão. De cristaleira antiga, de relíquias de fé, de santos na parede de barro, de mão de pilão. Ah como eu gosto de um mundo assim. Mas somente possível se houver estrada, se houver porteira, se houver cancela...


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sábado, 27 de junho de 2020

A HISTÓRIA DE MARIA DE LURDES, A MULHER DO MATO



*Rangel Alves da Costa


Somente conversando, indo atrás dos fatos, catando informações, é que a gente fica sabendo das coisas. E cada coisa de não querer acreditar, principalmente quando envolve uma situação que, ante o progresso e a estreiteza do mundo, sequer imaginaria que pudesse ter ocorrido em tempos tão recentes. A história da mulher do mato é, assim, um acontecido nas terras sergipanas e sertanejas de Poço Redondo, que mais parece ficcional, ou extraída da imaginação popular, do que mesmo realidade. Mas aconteceu.
Seu nome era Maria de Lurdes, ao menos assim ela dizia se chamar, mas talvez fosse mais coerente com sua história e realidade que sua denominação passe a ser “a mulher do mato”. Mulher do mato sim, das caatingas, dos escondidos da mataria, por detrás das ramagens e dos tufos lancinantes e espinhentos desses sertões matutos. Mas agora surge o mote maior: Por que uma mulher, de passado desconhecido, acaba escolhendo o mato como sua moradia?
Ora, há de se dizer que muita mulher mora no mato, que vive em meio às brenhas sertanejas na normalidade da vida. Mas há uma grande diferença entre esta moradora dos escondidos sertanejos e Maria de Lurdes. Aquela mulher mora em casa, possui família, tem endereço, familiares por perto, pode ser encontrada a qualquer instante. Com Maria de Lurdes, a mulher do mato, era muito diferente, eis que sem lar, sem nenhum familiar por perto, sem nada na vida que dissesse viver na normalidade.
Maria de Lurdes, a mulher do mato, vivia no meio do mato mesmo. Não possuía um ranchinho de palha ou de taipa, nada. Não possuía um chão de barro para colocar uma esteira nem uma trempe com pote em cima. Não possuía sequer um prato ou cuia, não tinha nada. Nem uma pequena junção de roupas ela tinha. Vivendo no meio do tempo, sua casa era qualquer lugar, debaixo de umbuzeiro, duma craibeira, ao lado dos xiquexiques e mandacarus. Seu teto era a lua e sua janela era o sol na face.
Mas o que teria levado esta mulher a viver assim, a de repente passar a ter essa situação de vida? Segundo relatos, Maria de Lurdes era uma alagoana que fugiu de sua terra e do convívio familiar após ter passado por um grande infortúnio na vida. Estuprada, ferida na alma, não mais suportou viver naquele cenário brutal e estarrecedor. Como opção para fugir das memórias do sofrimento, com a mente tomada por fantasmas devastadores, então ela resolveu sair pelo meio do mundo, sem destino, chegando um dia as terras de Poço Redondo.
Estaria Maria de Lurdes com perfeitas faculdades mentais? Difícil afirmar, mas certamente que com o juízo afetado e desarranjado pela violência suportada. A verdade é que a sã consciência dificilmente permite que uma pessoa deixe um lar para viver pelo mundo como eterno retirante ou que faça do meio do mato, ao relento e sem qualquer proteção, sua permanente moradia. E nela ainda era perceptível uma estranha atitude: temia se aproximar de homem desconhecido. O desconhecido era como se a representação de um perigo, de um inimigo, de alguém que pudesse violentá-la novamente.
Assim, o viver nos escondidos do mato foi a opção de Maria de Lurdes. Apareceu pelos arredores da povoação ribeirinha de Cajueiro, nas proximidades da casa de Seu Didi, na região de Angico e ribanceiras do Velho Chico, e neste mundo foi ficando. Os moradores da região, ante aquela estranha e terrível situação, logo chamaram para si a responsabilidade de ajudar. Mas Maria nunca aceitou conviver com família alguma. Aparecia perto do meio-dia e ao entardecer, recebia comida e depois retornava às entranhas da caatinga. Outras vezes, nem da casa se aproximava. Então seu alimento era levado e colocado debaixo de um umbuzeiro.
Quando adoeceu certa feita e foi conduzida por Maria José (de Cajueiro) até a cidade de Poço Redondo, ela nem esperou a cura hospitalar. Acabou fugindo. Teve que ser trazida ao seu mundo de mato, bicho e pedra. Nos poucos registros fotográficos que se tem, avista-se uma mulher magra, de pele escura, de idade avançada, sempre descalça, de cabelos esbranquiçados. Nem toda roupa doada ela aceitava. Gostava de cores fortes, vistosas. E quando vestia quase não queria mais tirar do corpo.
Maria de Lurdes, de história tão comovente quanto encantadora, acabou seus dias de forma angustiante. Um dia, já enfraquecida pela idade e com pouca visão, eis que acabou errando o caminho na subida de um morro e se perdeu. Talvez tenha caído na gruta onde foi encontrada já com o corpo ressequido e morto. Recebeu, contudo, um digno sepultamento. Seu Didi e outros ribeirinhos fizeram esforço incomum para retirar o corpo do local e trazê-lo à superfície. Foi enterrada em cemitério, e na cruz talvez coubesse o seguinte epitáfio: Aqui jaz Maria. Maria do mato, da mata, do céu!


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Rangel



Sexo com amor (Poesia)



Sexo com amor


Quando o sexo veio
eu já a conhecia

e senti prazer
por que já a sentia

e quis muito mais
pois amor merecia

fiz o contrário
do que sempre se faz

não amei sem amar
não fui só rebeldia

não fui só de usar
dizer que nem conhecia

quando o sexo veio
o corpo já queria

quando disse sim
o amor reluzia.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – santo rio



*Rangel Alves da Costa


RIO VELHO, VELHO CHICO... São Francisco, o santo, andejava pelos campos conversando com a natureza, tecendo serões de amor e fraternidade, fazendo votos de pobreza material e de riqueza espiritual. São Francisco, o rio, percorre os caminhos nordestinos e sertanejos, vai alargando seu passo entre serras e montes, deitando em cada pedaço de margem sua benção a um povo que praticamente nasceu de suas entranhas. O santo e o se comungam assim: pelos diálogos e afetos com a natureza e povo. E a mesma Oração de São Francisco, transformada segundo os desejos do coração, serviria para os dois: “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz. Onde houver ribeirinho, que eu leve o esperança. Onde houver miséria, que eu leve o pão. Onde houver desalento, que eu leve a alegria. Onde houver ameaça, que eu leve a força da luta. Onde houver devastação humana, que eu leve o renascimento da natureza. Onde houver abandono, que eu leve a presença e o abraço. Onde houver uma triste canoa, que eu leve um sopro de vida boa. Onde houver um ribeirinho, que eu esteja presente. Ó mestre, fazei que eu procure mais amar o rio e o seu, do que apenas chegar onde está o rio e o seu povo. Compreender a natureza e respeitá-la como a mim mesmo. Ser um do rio mesmo sem ser ribeirinho. Doar-me, de corpo e alma, viver a vida ribeira nas minhas entranhas. Pois, é se doando que se recebe É venerando que se mostra o respeito. E nunca deixar o rio morrer, e que vida viva tenha para o sempre eterno”.


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quinta-feira, 25 de junho de 2020

HISTÓRIA DA BUCHUDINHA



*Rangel Alves da Costa


A mocinha apareceu buchuda e a cidade inteira parou para tomar conta da vida dela. Como se fosse o fato mais estranho e inusitado do mundo, com nenhuma outra coisa a cidade passou a se preocupar.
Os pratos ficavam sujos na mesa, as roupas imundas estocadas num canto, as calçadas cheias de poeira, as panelas queimando no fogão, os remédios esquecidos, os filhos chorando com fome, até os banhos e os asseios eram deixados de lado.
Nada mais na vida importava. A única coisa que importava era a mocinha que de repente apareceu buchudinha. Parecia coisa de fim de mundo. Talvez nem o aparecimento de um disco voador ou de uma porca falante fosse mais interessante.
Portas e janelas abertas, esquinas tomadas de pessoas, calçadas cheias de vizinhos e outros, por todos os lugares os olhares furtivos, as bocas em segredos, as línguas ferinas. Os ares tomavam-se de olhos, bocas, ouvidos, de tudo o mais que servisse para alimentar a boataria.
Tudo de mais desonroso passou a tomar conta de tudo: fofocas, fuxicos, boatos estapafúrdios, disse-me-disse, calúnias, aleivosias, um festim de maledicências. Uma dizia uma coisa e na outra esquina já havia se transformado numa condenação ainda maior. Tudo semeado para ser bem pior.
E também tudo tão próprio de quem não tem o que fazer e deixa de tomar conta da própria vida para se arvorar da vida dos outros. Certamente que as conversinhas e as fofocas acontecem em todo lugar, mas ali parecia nutrir suas forças e sua vitalidade como imprestável, que é o tomar conta da vida dos outros a todo custo.
Enquanto isso, a mocinha andava de canto a outro como se nada daquilo estivesse ocorrendo. Bonita, perfumada, arrumadinha - e buchudinha. Caminhava toda faceira, toda cheia de vida e de formosura, parecendo que nada daquilo estava acontecendo. E para ela tanto fazia, pois bem sabia que vivia num antro de cobras ruins, de serpentes inescrupulosas e linguaradas.
Mas para o lugar era o fim do mundo que a mocinha tivesse aparecido buchudinha. “Como pode uma moça que nem namora aparecer assim?”. Indagava um. “Quem vê a santidade não vê o pecado”. Dizia outra. “Safadeza pura, quenquice deslavada”. Mais uma dizia. “Aí não sabe nem quem é o pai”. Alguém falou. “O pai deve ser qualquer um”. A outra concluiu.
E bota fofoca nisso: “Comadre, bem garanto que nem é o primeiro bucho que pega. Toda desconfiadinha e não vale nada. Já deve ser muito passada e bem passada”. Uma chegava dizendo. E a outra completava: “É o que dá criar fia pro mundo. Pai e mãe são pior do que a própria fia. Depois vai virar rapariga, não vai dar outra...”.
Num canto de calçada, debaixo de pleno sol do meio dia, outras comadres - esquecidas de que existia casa pra cuidar, comida a fazer e tudo o mais - iam cuspindo aleivosias e falsidades. Segundo uma, só podia ser coisa do fim do mundo mesmo, pois quem já havia visto uma virgem engravidar. Contudo, pura ironia em tais palavras. Num repente e todas caíram numa gargalhada só.
E assim a cidade foi se esquecendo de que existia para entrelaçar e remendar maldades acerca da buchudinha. Mas a mocinha nem aí. Continuava passando feliz, alegre, cantando, toda cheia de contentamento. Levava a mão à barriga, sorria, no olhar com que fazendo planos para o amanhã.
A falta de reação da buchudinha aos ataques causava indescritível ferocidade aos fofoqueiros e fofoqueiras. Decidiram então arranjar um responsável pela gravidez da mocinha. De solteiro a casado, de velho a novo, tudo foi inventado. Mas não surtiu nenhum efeito. “O que vamos fazer agora?”. Esta foi a preocupação da fofoqueira maior.
Queriam de qualquer jeito que a mocinha reagisse e, com tal reação, acabasse dizendo ao mundo o que somente a ela e a quem desejasse deveria saber. Também uma forma de alimentar ainda mais a indignidade daqueles que unicamente se comprazem com o que os outros fazem ou deixaram de fazer.
Então outra disse: “Deixar pra lá, é o jeito”. “Não, de jeito nenhum. Sabe que a gente não vive sem falar mal da vida dos outros. A gente tem de continuar falando mal sim”. A maledicência falando. Então a outra ajuntou: “Se é pra falar mal, então vou logo dizer que sua filha logo vai aparecer igualzinha àquela. Não vê macho que não dê em cima”. “O que? Repita isso sua sirigaita, sua lambisgóia, sua rampeira...”.
E foi vestido rasgado, cabelo puxado, saia levantada, um rolo pelo chão. E a cidade inteira ao redor observando feliz. Logicamente que para depois ter o que falar. E a buchudinha vivendo apenas o seu mundo e de vez em quanto se perguntando: será um menininho ou uma menininha?


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Lá no meu sertão...


Curralinho. O Velho Chico é lindo...





O que é o amor (Poesia)



O que é o amor


Olhando nos meus olhos
com aquele brilho que seus olhos têm
fez do olhar uma voz tão expressiva
que jamais imaginei um dia ouvir
apenas com olhar e não com palavras

e perguntou-me o que é o amor

olhando no profundo daqueles olhos
procurei e não encontrei palavras
apenas lancei as mãos sobre a sua face
e me aproximei num abraço apertado
para então ouvir que também me amava

e assim respondido o que é o amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – Jureminha no confessionário



*Rangel Alves da Costa


Jureminha se envolvia em cada caso de dar nó em pingo d’água e fazer vento de repente frear. Certo dia, todo apressado, entrou na sacristia de supetão, já que a porta esquecidamente estava aberta, e flagrou o padre Rozildo, de costas, em situação melindrosa. O vigário não percebeu, mas Jureminha viu uma calcinha rendada e vermelha enquanto a batina era baixada. Viu e ficou calado. O padre sequer havia imaginado que o safado havia avistado sua intimidade mais espantosa. Depois de entregar uma encomenda e sair, pela rua Jureminha ria de se acabar, prometendo que ainda naquela tarde aprontaria uma com o padre Rozildo. Dito e feito. Ao entardecer, antes da missa, lá estava ele em pé diante do confessionário. “O que te traz aqui filho, algum pecado que quer confessar?”. Foi a pergunta do padre. Jureminha disse que não, mas precisava muito fazer uma pergunta que lhe estava atazanando o juízo. E perguntou: “Padre, qual pecado comete um homem que, ao invés de roupa debaixo masculina, veste calcinha vermelha rendada?”. Dentro do confessionário, ao ouvir tal pergunta, o vigário começou a tremelicar, a suar, a ficar sem palavras. “Responda, padre...”. Insistiu Jureminha. Enfim, surgiu uma voz: “Quem foi este homem que vestia calcinha de mulher?”. Então o mundo quase acaba quando o safado do Jureminha atacou de vez: “O senhor, padre Rozildo, que tanto prega em sermão contra rapariga, viado e muito mais, tem coragem de provar o que está usando aí debaixo dessa batina?”. Ouviu-se um baque. O padre havia desmaiado. Naquele dia não houve missa. E de vez em quando Jureminha botava graúdo no bolso pra ficar de boca fechada.


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domingo, 21 de junho de 2020

ALCINO ALVES COSTA: 80 ANOS DE NASCIMENTO DO SAUDOSO SERTANEJO



*Rangel Alves da Costa


Longe se vão aqueles anos 40, quando o sertão passou a acolher em seu solo um filho amado. Filho de Dona Emeliana e Seu Ermerindo, então nascia Alcino Alves Costa, em sua amada Poço Redondo, sertão sergipano. Nesta última quarta-feira 17 de junho, sem eventos comemorativos abertos ao público em virtude da pandemia, ainda assim o povo sertanejo intimamente saudou a data no mais profundo do coração.
Oitenta anos já se passaram desse primeiro encontro do filho com sua terra. E mais de sete anos se vão que o eterno menino sertanejo retornou a casa do Pai, vez que falecido a 1º de novembro de 2012.  Viveu setenta e dois anos entre os seus, pouco perante a esperança de vida do sertanejo, mas de forma tão grandiosa e construtiva que os anos na terra vingaram uma eternidade pelos seus feitos.
Apenas setenta e dois anos vividos, mas quanta imensidão gestada nos seus passos, nos seus escritos, em suas palavras, em suas ações. Foi menino sertanejo traquina, foi rapaz sonhador, foi prefeito antes de ser político, foi político de nomeada em seu Poço Redondo. Mesmo não tendo formação acadêmica – ou quase nenhuma formação educacional -, pois o ensino primário foi o seu limite de sabedoria escolar, Alcino conseguiu ser doutor no que fez. Seu anel de formação, contudo, apenas brilhando no olhar a sua lua e o seu sol. Como era apaixonado pelo sertão!
Uma paixão tão indescritível que além de ser filho da terra e conviver com seu chão, tudo o que na vida fez sempre teve o sertão como mote de arte e criação. Na verdade, em Alcino o sertão corria nas veias, pulsava no coração, guiava o seu passo, era seu sopro de vida e sua guia de viver. Não se sentia bem e nem gostava de estar noutro lugar senão no seu chão sertanejo.
Sempre calçando havaianas, com a ponta da camisa num canto da boca, tantas vezes cabisbaixo e cantarolando baixinho uma velha canção sertaneja, lá ia Alcino pelas ruas e esquinas de sua Poço Redondo. Encontrava um banco de praça e passava a dialogar com o mundo sertanejo, com suas histórias e suas memórias. Seu silêncio meditativo, contudo, apenas ocultando diálogos com as vozes matutas, com os grunhidos dos bichos, com a catingueirama se abrindo em espanto para cangaceiro passar.
Ouvia, no seu mais profundo íntimo, aquelas vozes antigas de um povo que desbravou os sertões, que fez curral e pastagem, que fez a vingar em meio aos hostis carrascais. Ouvia Adília contando suas histórias de ex-cangaceira. Ouvia Mané Félix relatando seus passos de afamado coiteiro e seu convívio com o Capitão Lampião. Em seu silêncio, tudo isso Alcino ouvia.
E ouvia para depois tudo transformar em escritos, em livros, em canções, em prosa cheirando a flor de mandacaru. Aquelas vozes se tornavam muitas, e tudo depois ganhando a moldura do próprio sertão. Pesquisador, escritor, poeta, compositor, radialista, palestrante, apaixonado e divulgador da música caipira de raiz, Alcino deixou um insuperável acervo de conhecimentos, principalmente sobre o sertão e seus feitos históricos, sua geografia, suas tradições, suas riquezas culturais, o seu povo.
Apaixonado pelo tema cangaço, sobrinho do cangaceiro Zabelê e primo de Correnteza, foi amigo de ex-cangaceiros e ex-coiteiros, e daí ter se tornado num dos maiores expoentes das lutas e vinditas cangaceiras sertões adentro. Em letra miúda ou dedilhando em velha máquina de escrever, foi construindo um sertão inteiro! É de sua autoria um dos mais importantes livros e aclamados sobre o cangaço: Lampião Além da Versão: Mentiras e Mistérios de Angico. E também Lampião em Sergipe e O Sertão de Lampião. Mas escreveu muito mais.
O Sertão de Alcino e tão bem descrito por Alcino, é o Sertão dos canoeiros e comboeiros, dos cangaceiros e das volantes, dos coronéis e dos jagunços, dos rezadores e benzedeiras, dos vaqueiros e das boiadas, dos mateiros e caçadores, das beatas e das promessas matutas, da religiosidade e da fé, mas primordialmente de um povo que tira da secura da terra o verdor da digna sobrevivência.
E assim porque meu pai Alcino foi imenso, foi múltiplo, foi diversificado, foi largo e longo demais pelas estradas de seu mundo e mais além. Mesmo sempre fincado no seu chão amado, fez com que o mundo o reconhecesse pela sua obra. Foi esposo, foi pai, foi avô. Alcino foi irmão, foi parente, foi amigo e conhecido. Mas gestou e conviveu com um mundo maior: o mundo sertanejo. O sertão de sagas, de lutas, de sofrimentos e alegrias.
Alcino foi tudo, e mais além do que certamente almejava ser. Mas hoje é também uma imensa saudade. Oitenta anos de nascimento, setenta e dois anos de vida, sete anos de partida, um calendário que alegra e faz doer.
E uma imensa saudade!


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Lá no meu sertão...


Saudade de um tempo assim!



O pássaro (Poesia)



O pássaro


O pássaro voou
de asas tão leves
parecia amor

o pássaro cantou
canção tão sublime
um canto de amor

o pássaro pousou
feliz e contente
e cheio de amor

pássaro em nós
se quiser voar
me chame que vou.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – Jureminha apronta mais uma



*Rangel Alves da Costa


Toda semana a viúva Leocádia botava dois contos de réis na mão de Jureminha. Velha fogosa, metida a gostar de molecote, então resolveu investir no maior raparigueiro da região. Toda vez que chamava o mulherengo para entregar a encomenda, logo ia dizendo: “Tome aqui esse dinheiro pra você comprar brilhantina e alfazema, mas pode ter mais. E compre daquela alfazema. Quero sentir o cheirinho bom. Quer?”. Jureminha, esperto todo, já sabia qual a intenção da viúva. Um dia, num desses chamados para o vintém, então ele resolveu aprontar. Quando a viúva perguntou se queria mais, prontamente ele respondeu que sim. Surpreendida e tremelicante, cheia de remelexos e insinuações, disse o que ele tinha de fazer: “Meia-noite a porta dos fundos vai estar aberta. Você entre que vou lhe dar um negocinho a mais”. Jureminha deixou tudo acertado, mas disse que precisava comprar uma calça nova e por isso era bom que ela adiantasse o dinheiro. O dinheiro da calça e mais uns cinco contos por fora. A viúva nem relutou muito, pois correu debaixo do colchão e providenciou e encomenda, já graúda. Colocou nas mãos do safado, mas antes alertou: “Não se esqueça. À meia-noite basta empurrar a porta. As luzes estarão apagadas e meu quarto é logo ali”. Jureminha saiu quase correndo. Foi num bar tomar uma relepada e encontrou quem tanto esperava encontrar para o momento e a ocasião. Era Tiburcinho, um donzelão que sonhava em deitar com qualquer uma. Quando ouviu a proposta de Jureminha chega palpitou o coração. Quando Jureminha colocou dois contos na mão e disse como devia fazer, então ele palpitou mais ainda. A verdade é que à meia-noite Jureminha estava nos braços de Tetinha Língua de Mel, enquanto Tiburcinho só faltava chorar de arrependimento nos braços da viúva. Tudo escuro, mas ele se imaginava afuganhado por uma coisa do outro mundo.


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sexta-feira, 19 de junho de 2020

ARROGANTEMENTE FRÁGIL



*Rangel Alves da Costa


Tudo, mas tudo mesmo, pode ser resumido nestes três elementos: pedra, grão e pó. E a ventania levando o pó para dizer que a pedra, por maior rochedo que tivesse sido, de repente pouca valia terá no destino.
A pedra representa a força, o poder, a dureza, a firmeza. A pedra é sólida, segura, forte. Do mesmo modo é o ser humano nas suas normais capacidades de existência. Tão firme que parece inquebrantável.
O grão, ou a pedra que é quebrada ou partida em pedaços menores, representa a fragilidade, a fraqueza, a inconsistência, a desestabilidade. O grão, fruto daquilo que já foi rochedo, demonstra bem a validade daquela famosa frase: Tudo que é sólido se desmancha no ar.
Igualmente a pedra, de repente o ser humano começa a se fragilizar, a perder sua força e potência, a sentir diminuída sua solidez, para se transformar apenas em pedaços dentro de um mesmo ser. Passa a sentir mais de perto o coração, a mente, o organismo.
O pó, a poeira ou a partícula, representa o resto do resto do resto. O grão, com o passar do tempo, vai se consumindo de tal modo que logo começa a se esfacelar, a perder o resto de suas forças, a não ter forças para manter sobre si aquilo que lhe permite existir. E então será apenas pó.
O ser humano caminha pelo mesmo percurso, eis que possui esse mesmo destino da pedra ao pó. A frase bíblica deixa induvidoso: Tu és pó e ao pó há de retornar. O rochedo, a pedra intacta, nada mais é que um acúmulo de pó sedimentado. Bem assim o homem, um acúmulo de grãos que se diluirão.
O homem é pedra, é forte, é impávido, e tudo suporta nesta condição. Mas o tempo vai corroendo o rochedo, a idade vai desabando a rocha, e não demora muito para que uma junção de pedras frágeis tome o seu corpo. E a corrosão da pedra leva ao desgaste de tudo, até que o que resta do corpo se transforme em pó.
O pó, pois, é a metáfora de muito que há na vida: o resto, o nada, o adeus, a fragilidade absoluta, a partida, o voo forçado, a despedida, a morte, a submissão ao querer daquilo que nenhum valor havia sido dado noutros tempos, quando ainda era rochedo: a ventania.
A ventania, neste percurso da pedra ao grão, passa a significar a força oculta, a energia do relegado, o que se manteve em silêncio até o momento do grito. A pedra pouca importância dava à sua existência, mas ela, a ventania, continuava passando e sentindo sua aspereza.
A pedra, certamente por se achar indestrutível, nem percebia que a ventania levava minúsculos grãos toda vez que por ali passava. Ao ser quebrada, repartida, fragilizada, sentiu que a ventania se transformava em poeira depois de cada passagem. E  que o tempo se encarregaria de entregar ao seu sopro aquilo que restou de cada grão.
Urge indagar: quem é mais forte, quem tem mais poder, quem é mais consistente, será o rochedo ou a ventania? Ou de outra forma perguntar: a pedra bruta não é infinitamente mais presente e poderosa que o vento? Alguém poderia dizer que a pedra possui existência, enquanto a ventania é apenas aparentemente percebida.
Neste caso, logicamente que a pedra seria muito mais forte e poderosa que qualquer ventania ou vendaval. Ainda que a força do vento chegue destruidora e vá arrastando a pedra para longe, ainda assim esta terá a mesma força e aparência onde for deixada.
Contudo, ouso afirmar que as forças e as fragilidades são iguais. Nem a pedra supera a ventania nem a ventania se sobrepõe ao rochedo. E é muito simples explicar. A ventania some no horizonte e num caminho que não haverá mais volta, e levando consigo o último pó daquilo que um dia foi rochedo.
E ali também o pó do homem. Não aquele que jaz sob a terra, assim transformado de seu rochedo, mas como metáfora de sua extrema fragilidade, de sua força de pluma em meio a todas as forças. Principalmente as forças do tempo, da idade, dos limites da vida.
E também o frágil peso do ser diante da Criação. Pois tudo infinitamente pó. Tudo eternamente na poeira do que passou. E tudo passa, tudo se transforma, do tudo ao nada.
Eis que és pó e ao pó haverás de tornar. Mas não significa o sumiço na poeira dos tempos, no esquecimento na terra sob a terra. As realizações humanas não passam como o próprio homem.
Um imenso rochedo será avistado do pó juntado ao pó, do grão unido ao grão, pelo que o homem fez na sua passagem terrena. E tal pedra será tão inquebrantável quanto a própria memória.


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Lá no meu sertão...


No meu sertão...



O beijo (Poesia)



O beijo


O último beijo
sim, o último beijo
que foi o beijo primeiro
o primeiro beijo

por que primeiro
e último beijo?

por que no beijo
tão levemos ficamos
que voamos
e voamos

e continuamos assim
abraçados
beijando em voo
pelos espaços.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – oi de casa!



*Rangel Alves da Costa


Oi de casa! Eu tenho que tirar os chinelos pra entrar em sua casa. Não me dá bom dia, não me serve um café. Em sua casa, e perante o seu reinado, eu falo apenas o que já vai escrito e ensaiado na voz. Mais nada posso dizer. E nem sei se você ouve o que digo. Mas depois de sua casa, quando o mundo me dá importância, então eu reencontro os amigos. Eu reencontro as veredas matutas, os areais da estrada, os beirais floridos de flores de cacto. E quando vou além da porteira, logo avisto as portas e as janelas abertas. Quem chegar será recebido com tudo o que leve consigo, com suor e cansaço, com alpercatas sujas do barro da terra, com as roupas empoeiradas. E então vai ouvir um cantar passarinho, um mugido pelo pasto, um rosnar vindo de qualquer lugar. Borboletas passeiam, folhagens barulham querendo voar, o vento vem com uma bela canção. E você se encanta com tudo isso. Ora, mas apenas uma velha casa de barro e um mundo sertanejo ao redor. Mas eis a diferença: um mundo que você se reconhece naquilo que você é.


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terça-feira, 16 de junho de 2020

CURRALINHO: ENTRISTECIDO AMOR



*Rangel Alves da Costa


São 14 km entre a sede do município de Poço Redondo, no sertão sergipano, e a povoação ribeirinha de Curralinho. A estrada, mesmo de chão batido e mais dificultosa em alguns pontos, está bastante convidativa à locomoção. Um percurso curto, fácil de ser feito e prazeroso, pois em direção às beiradas do Velho Chico, do Rio São Francisco que por ali passa e passeia para deleite de todos.
Do Velho Chico em Curralinho sou amigo e rotineiro visitante. E quando vou até lá, meu interesse, contudo, não se volta apenas para as margens do rio e suas águas, os bares e as belíssimas paisagens, mas também – principalmente - para o Curralinho histórico, povoação, comunidade, local de moradia e sobrevivência de ribeirinhos simples, honestos e irmãos sertanejos.
O Curralinho histórico é de uma grandeza sem fim. Ali, pelos caminhos do rio, foi onde tudo começou. Num tempo onde o sertão era de mata fechada, ainda sem qualquer penetração desbravadora, somente pelas águas do Velho Chico era possível chegar às margens sertanejas. Os primeiros desbravadoras chegaram pelo rio, ali desceram de embarcações, ergueram pequenos currais (daí o nome “curralinho”), e somente depois adentraram os hostis sertões.
Curralinho foi a primeira povoação surgida em Poço Redondo. E surgida com ares de progresso, pois em suas margens toda a vida econômica sertaneja começou a progredir. Era das margens curralienses que chegavam e saíam embarcações abarrotadas de quase tudo. Chegava o açúcar, o café, o tecido, a bebida, a novidade, e saíam os fardos de algodão, de peles, os sacos de carvões, as caças e muito mais. Por isso mesmo que no passado Curralinho teve comércio forte, moradias suntuosas, construções de belíssimas molduras arquitetônicas.
Até mesmo Antônio Conselheiro, o místico e mítico beato de Canudos, um dia, lá pelos idos de 1874, atravessou o rio e fincou os pés em Curralinho para deixar suas marcas. Ao lado de seus fanáticos e fiéis seguidores, logo deram forma de igreja a uma rústica construção numa parte mais elevada da povoação, dando-lhe o nome de Igreja de Nossa Senhora da Conceição, ainda tão viva e bela. Em seguida, tencionando ir aos rincões baianos, o séquito do Conselheiro foi abrindo, em direção a atual sede de Poço Redondo, a estrada que hoje leva o nome de Estrada Histórica Antônio Conselheiro.
Com o passar dos anos, porém, o surgimento de estradas cortando os sertões fez refrear a intensa movimentação pela beira do rio. Curralinho foi perdendo sua força progressista, o comércio definhando, muitos moradores preferindo fixar moradia na já desenvolvida sede municipal. E desde então, com grande parte do comércio fechando suas portas, a povoação ribeirinha se viu como que parada no tempo. O único contentamento encontrado foi permanecer apenas como comunidade de pescadores e de donos de pequenas embarcações fazendo transportes pelos arredores.
Até dói o que vou dizer, mas direi: se não fosse o rio, a permanência do Velho Chico contornando o seu mundo, passando bem defronte às suas moradias de calçadas altas, Curralinho já teria definhado de vez. O que permitiu que Curralinho continuasse tão amado, tão querido e visitado, foi somente o encantamento provocado pelas águas do rio. E que, mesmo em épocas de magreza no leito, mesmo em períodos aonde o caudal não vai além de uma finura lá embaixo, ainda assim possui o dom e a magia de chamar às suas margens para o banho, para o vivenciamento de suas belezas.
Ainda assim, ainda que o Velho Chico possua tamanho poder de atração em Curralinho, alguns fatores persistem em querer afastar os visitantes e turistas. A povoação inteira vive como que abandonada, a pobreza se alastra por todo lugar, as margens do rio são como pastos de animais ou monturos para passeio de outros bichos. A sujeira afasta o banhista, os bares insistem em ter somente o mesmo peixe de sempre (e nenhum prato diferenciado), o lodo toma conta da beirada das águas e até enfeia a visão do rio como um todo. E uma realidade bastante diferenciada, por exemplo, das águas límpidas de Cajueiro ou das águas convidativas de Bonsucesso.
Seria fácil – e até justificado - preferir ir outro destino de passeio e banho que não Curralinho. Mas tem gente que ama aquele trecho de rio como se ao seu coração pertencesse. Tem gente que se envolve de tal modo com aquele leito remansoso passando, aquelas serras e montes e ao redor, aquelas margens com sua pequenas canoas, que não consegue se afastar de sua vida, da vida do rio.
O mesmo amor que eu sinto por Curralinho e o seu rio. Dói demais sentir o abandono por todo lugar, mas faz amar demais a simples presença. O encanto, a poesia, a magia do rio. Não é só um rio, mas sim um sentimento que vai curveando a vida.


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Lá no meu sertão...


Um sorriso de um dia...



A lua (Poesia)



A lua


A lua
esconde-se

entre nuvens
molhadas

e pingos
de luz

vão caindo
como estrelas

em meus olhos
molhados.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – Filozinha e Jureminha



*Rangel Alves da Costa


Marquei com Filozinha e tinha de ir. E fui no meio da noite, num breu danado, numa escuridão de fazer faiscar vaga-lume. Tinha que ser assim, por exigência da própria Filozinha. Menina nova, cheirosa, floração sertaneja, mais bonita do que roupa nova. Pediu que eu fosse andando, de modo que nenhum barulho fizesse com que seus pais suspeitassem de minha aproximação. Acertou que a porta da cozinha estaria aberta e que eu podia entrar sem medo, pois ela já estaria me esperando escondida num canto. Marcou hora e tudo o mais. Fogoso, cheio de atrevimento, então segui. Na estrada, depois de uma curva, avistei um estranho que se aproximava, então logo pedi que tirasse uma foto minha, ali mesmo em plena escuridão. Num repente e a foto já estava tirada, mas a pessoa sumiu como se tivesse evaporado no ar. Que estranho, pensei. Segui em frente. Mais adiante avistei a casa de Filozinha. Diminui o passo para não fazer barulho e pé-ante-pé fui rodeando a casa, em direção à porta de trás. Mas ouvi uma voz que me fez estremecer. “Ei moço, vai pra onde assim?”. Era o pai dela com uma espingarda à mão. Então tive que responder: “Nada não, Seu Zé, é que eu tô procurando rolinha fogo-pagô!”. Logo em seguida o da espingarda gritou: “Rolinha venha cá!”. Então Filozinha apareceu meio desconfiada, mas dizendo: “Pai, eu já pedi que não me chama mais de Rolinha. Meu nome é Filomena”. Seu pai disse em seguida: “Tá bom Filozinha, mas sabia que esse moço aí tá atrás de uma rolinha?”. Ainda mais desconfiada, Filozinha falou: “Veio procurar rolinha, Jureminha?”. “E cuma você sabe o nome dele?”, indagou o pai assustado. E a filha respondeu: “Sei pruquê a rolinha dele sou eu, e ele veio me caçar lá no ninho do quarto. E agora o senhor dê licença pra Jureminha passar!”.


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sábado, 13 de junho de 2020

TERRA MOLHADA E GENTE FELIZ



*Rangel Alves da Costa


Choveu. Trovejou, relampejou e choveu. E mesmo não sendo muita e contínua, aos moldes da verdadeira trovoada, a chuvarada dos últimos dias desceu dos céus como milagre sobre a terra sertaneja. Como alguém fielmente relatou, um mundo novo, alegre e esperançoso, pareceu de repente surgir com as visões dos pingos caídos, dos riachos em cheias e dos tanques tomados de águas.
Não há sertanejo que também não se inunde de encantamento ao se deparar com a chuvarada. O que parecia até impossível de acontecer, de repente desaba lá de riba como milagre e glória. Sinhá Zefinha desenterrou o São José fincado na terra de cabeça pra baixo. Gonçalinho deixou o velho chapéu de couro debaixo da goteira e depois bebeu daquela água no maior contentamento da vida. A meninada desandou nua a se banhar no molhado, enquanto mãos calejadas foram levantadas aos céus em gestos de profundo agradecimento.
Visões realmente de encantar. O sertanejo que toda manhã se desencanta ao abrir a porta e nada encontrar nos horizontes que lhe dê alento, que lhe traga esperança em forma de chuva, de repente sentir o cheiro do barrufo forte subindo pelo ar e presenciar os gotejamentos das nuvens por todo lugar. Como diz o outro, não sabe nem o que fazer, pois não sabe se reza em agradecimento, se pula, se corre pelos descampados, se rola feito bicho feliz pelo chão empoçado.
Sempre o outro lado do sofrimento. O Eclesiastes que surge mostrando um tempo de alegria. Chuvarada mais que esperada, desejada e providencial. No mundo-sertão, a certeza da ação divina que nunca desampara os seus. Um remédio na hora certa para curar, ou ao menos amenizar, os males que já colocavam em risco a vida de muitos: homem, terra, bicho. Tudo já se prostrando de vez, já sem forças e sem poder de reação ante as agruras causadas pelas fornalhas ensolaradas.
O sertão estava sofrido demais, padecente demais, entristecido demais. O sertão estava nu, ossudo, esfarrapado, magricela, feio, mendigo, indigente, faminto, de cuia à mão. O sertão estava ajoelhado, submisso, ao deus-dará. O sertão estava cabisbaixo, esmorecido, numa fragilidade de causar clemência e comoção. Um povo tão forte e tão lutador, uma gente tão desejosa de trabalho e pão, mas desde muito forçado às submissões das carências.
Ora, mas que se negue que uma estiagem apenas prolongada leve o homem à desvalia, que se negue tamanha pobreza naqueles que não se ajoelharam em prantos nem afastaram de si os planos e sonhos. Que se diga que o sertanejo não esmola pelas esquinas nem vai batendo de porta em porta pedindo um tiquinho de “de comer”. Que se diga que ele jamais se prostrou faminto e desesperançado. Mas há indigência maior que a falta de chuvas, que a seca grande e pavorosa?
Contradições, talvez. Ironia do tempo, talvez. Mas é a chuva e não a seca que deve ser tida como normalidade no sertão. A gente e o bicho não se alimentam nem bebem da terra seca, não sobrevivem na fogueira da vida, não se sustentam apenas na secura e na sequidão. A seca sempre vem, todo sertanejo sabe disso e até se prepara para esperá-la, mas ele se sustenta e ama a terra pelo que ela possa oferecer, jamais pelo que lhe retira. E se ama o sertão, se vive em pacto de vida e morte com o sertão, é por que confia na sua retribuição.
O homem da terra sempre soube dos limites do seu lar sertanejo. A grandeza que quer é o da existência. A riqueza que quer é a da subsistência. Sempre foi assim. Tendo chuva, tendo chão molhado, tendo água no barreiro, tendo palma e planta rasteira para o bicho se alimentar, no restante tudo se dá um jeito. Comida pouca não é problema, feira de bocadinho não é problema, calça rasgada ou chinelo sem sola, nada disso aflige tanto o homem da terra como a feiura da estiagem.
A chuva que caiu nos últimos dias foi como uma alegria maior. Certamente que os problemas não acabaram com as águas juntadas, com o chão empoçado, com a paisagem verdejante surgida. As carências nunca deixam de existir, mas ao menos não haverá a lastimosa continuidade da indigência existencial de homem e bicho. Homem empobrecido pela desvalia do tempo e bicho depauperado pelo tempo desvalido.
A fuga dessa indigência existencial é tudo o que o sertanejo tanto espera e precisa. Nada mais doloroso que saber que nada mais resta como alimento ao bicho de cria, do que saber que vai ter de se humilhar ao político para ter um pouco d’água, de ouvir o berro, o mugido e o mugido e nada poder fazer. E agora, com a fuga temporária à submissão e ao temor, deseja apenas que as nuvens prenhes continuem rondando o seu mundo e que as chuvaradas novamente caiam sem pressa.
Um mundo molhado, embebido de água e de fé. É esta a feição de mundo tanto almejado pelo sertão e o sertanejo.


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Lá no meu sertão...


No sertão, em melhores dias...



Narciso e eu (Poesia)



Narciso e eu


Vejo Narciso sentado à beira do lago
e vejo sua face de contentamento
pela sua beleza refletida no espelho d’água
e depois se lançar para beijar a si mesmo

e perante tão triste e angustiante cena
eu me lanço voraz nas águas do lago
para salvar os dois Narciso ali imersos
Narciso de tanta beleza e seu belo reflexo

nenhum dos dois eu consegui salvar
mas creio que os dois estejam salvos
pois ao me afastar do lago e olhar atrás
sobre o espelho d’água avistei a beleza

então retornei e um Narciso estava ali
para depois se dispersar entre as vagas
e o meu reflexo surgir belo nas águas
a me chamar ao amor por mim mesmo

mas não sou belo e nem sou Narciso
tirei do bolso uma velha fotografia e beijei
eu estava nela ainda tão jovem e bonito
e passei a mão pelas rugas assim que afastei.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – sorrisos



*Rangel Alves da Costa


Sorrisos... Tenho tão poucos sorrisos, que quando sorrio alguns permanecem guardados por dentro. Não sorrio por situações de instantes, por momentos alegres que possam surgir, eis que o meu sorriso é como uma moldura expressando realidades maiores. O sertão chuvoso me faz sorrir. O povo desapegado das esmolas políticas me faz sorrir. A feira feita e o prato guarnecido na mesa me fazem sorrir. A luta e a sobrevivência do Memorial me fazem sorrir. Escrever e ter livros publicados me faz sorrir. Ter bons amigos de andanças e proseados me fazem sorrir. Ter saúde e acordar para o novo dia me faz sorrir. Relembrar lábios e beijos, braços e abraços, dengos e cafunés, tudo isso me faz sorrir. Ter a certeza e o orgulho de ter nascido em Poço Redondo e ser visto e reconhecido como sertanejo, tudo me faz sorrir. Ter nascido filho de Dona Peta e Alcino me faz sorrir de contentamento. Muita coisa mais me faz sorrir. Contudo, gestos alegres e gracejantes, em instantes, e de apenas aqueles instantes, não são sorrisos. Na verdade, muitas vezes, para não chorar a gente acaba sorrindo. E é tanta maluquice na vida que a gente encontra, que só dá mesmo vontade de chorar, chorar, chorar... Mas acaba sorrindo. Sorriso entristecido, mas sorriso.


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quinta-feira, 11 de junho de 2020

O DESCASO COM A HISTÓRIA



*Rangel Alves da Costa


Atualmente, próximo à sede municipal de Poço Redondo, no sertão sergipano, uma casinha repousa sobre os escombros de sua história e de sua memória. Um retrato do que ainda resta do Poço de Cima, raiz primeira do atual Poço Redondo.
Tudo nasceu aí, na parte mais alta daquele desconhecido sertão, próximo às águas do riachinho e permitindo uma visão de tudo o que acontecia ao redor.
Foi também aí que se assentaram as primeiras famílias: Os Sousa, os Lucas, os Cardoso, os Feitosa, que desencavando nas entranhas permite avistar quase uma única família: a grande família do Poço de Cima.
Uma das casas que continua em pé, ainda que ninguém nela resida mais, pertencente originariamente aos Sousa, foi uma das mais imponentes da antiga povoação.
Muitas outras ficavam nas vizinhanças, algumas com melhor estrutura e até com escravos ao bel-prazer daqueles senhores de então. De profunda religiosidade, o catolicismo logo ganhou altar numa igrejinha ao lado: a Capela de Santo Antônio do Poço de Cima.
Erguida para os ofícios da fé, também servia como lugar sagrado para os sepultamentos dos membros daquelas famílias. Somente aqueles dos Sousa, Lucas, Cardoso e Feitosa, podiam ser enterrados por lá.
Com efeito, muitas sepulturas foram surgindo ao lado da capela e, no seu interior, os jazigos de alguns importantes personagens daquela saga. Ainda hoje é possível avistar as datas sobre as sepulturas.
A Capela de Santo Antônio, bem como umas quatro moradias do passado (algumas já em escombros, com o barro deitando ao chão), ainda testemunham aqueles idos do Poço de Cima.
Contudo – e infelizmente -, de memória e história que vão amarelar e sumir como um velho retrato desgastado nas paredes do tempo. Com o sol e a chuva, com o calendário do tempo, certamente que o desgaste vai colocando fim a tudo existente.
Sem qualquer tipo de preservação, sem que se jogue ao menos uma mão de barro sobre o que vai caindo, o que se terá será apenas a dor do vazio e de uma tão bela saga levada no vento.
O costume do abandono, ou de tudo abandonar pelo descaso, ainda custará muito caro à história de Poço Redondo. Chegará um dia – ainda que o Poço de Cima fique quase ao lado da cidade – que poucos saberão dizer onde tudo começou.
E nem retrato restará, vez que os jovens não querem ter o trabalho de caminhar um quilômetro e registrar ou conhecer sua própria história. Uma vez ou outra, para efeito de trabalho escolar, algum aluno é forçado a caminhar por aqueles caminhos e fazer algumas anotações.
Mas logo o esquecimento, vez que não se cultiva o interesse pela preservação. Pior ainda faz o poder público municipal, que nada, absolutamente nada, faz.  Então, que tudo fique à mercê do tempo e à força do vento!


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