SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 30 de novembro de 2012

ESSE CABRA SOU EU (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Por Deus do céu, e Nossa Senhora das Virgens não há de me deixar mentir, como não suporto mais ouvir Roberto Carlos cantando que esse cara sou eu. Esse cara sou eu, esse cara sou, esse cara sou eu... Se piso numa loja, e lá está a música; se entro num elevador, e a dita bem em cima de minha cabeça; e se abro a porta dos fundos logo ouço a vizinha cantarolando que esse cara é ela.
Juro que não suporto mais, principalmente quando sei que a canção soaria mais verdadeira, mais profunda e convincente, se falasse sobre a realidade, a lide cotidiana, a labuta de sol a sol, e não apenas tecendo considerações sobre um romantismo adocicado para dizer que faz tudo pela mulher amada. Noutras palavras, que é apaixonado pela dita.
Quem está apaixonado, arriado dos quatro pneus como dizem no meu sertão, faz mesmo o que a música diz, é verdade. Deixa a princesa na cama, leva flores à rainha, dá mingauzinho na boca, joga água de lavanda, faz cafuné e ninar. Contudo, não acho a melhor ideia o homem se submeter a isso tudo e depois ainda cantar que esse cara é ele.
Não tenho nada a ver com o sucesso da música, com os méritos do rei e muito menos com quem suporta ouvi-la o dia inteiro. Que faça bom proveito de sua paixonite aguda. Mas, com toda sinceridade de minha alma sertaneja, de minha raiz nordestina, vingada de semente dura e na terra seca, preciso urgentemente dizer como um homem deve fazer pra depois ter orgulho de dizer: esse cabra sou eu...
Sim, esse cabra. E cabra no meu sertão não significa apenas animal mamífero ruminante da família dos bovídeos, mas também, e reconhecidamente, o sujeito matuto, o indivíduo do sol, aquele que se diferencia dos outros pelo seu destemor, pela valentia sertaneja e pelo encorajamento perante o seu mundo de brabezas. Daí o cabra da peste, o cabra na tocaia, o cabra de sangue no olho. Daí esse cabra que sou...
Quem levanta antes de o galo cantar, acende o fogão de chão, rala a espiga de milho e bota o café torrado no bule, e depois cata os restos inexistentes, a perna de preá do outro dia, qualquer pedaço de toucinho, e tudo numa pressa danada para enganar o bucho e alimentar a família, é um cabra sertanejo que não desespera no sofrimento e ainda agradece às alturas pelo pouco que tem E esse cabra sou eu...
Quem olha pra mulher cansada mesmo depois de dormida, avista os filhinhos no sono solto, e de coração apertado promete a si mesmo que tudo fará para presenteá-los com uma vida melhor, mais digna e feliz, não é qualquer um não, mas só um cabra valente que não se deixa dobrar pelos desatinos. E esse cabra sou...
Quem ao abrir a porta da frente logo cedinho já recebe o bafo quente no rosto, o calorão entrando no corpo, e ao olhar ao redor os olhos cansados pouco enxergam além da paisagem nua e acinzentada, e coloca a mão na cabeça sem saber o que fazer diante da situação, não será outro senão aquele acostumado com a desvalia e a ressurreição. E esse cabra sou eu...
Quem sai pra feira com saco nas costas e pouco tostão no bolso, e no comércio matuto se encanta com tudo que encontra, e por isso mesmo se desespera porque não pode levar um pano de chita pra companheira, um sapatinho pro menino, uma bonequinha pra mais nova, absolutamente nada, mas faz do marejar dos olhos a certeza que um dia conseguirá muito mais, não é qualquer um não. Somente um cabra consciente. E esse cabra sou eu...
Quem, no modo de amar sertanejo, ama mais sua outra metade do que esse cabra aqui, e que sou eu? E para amar demais, linda e definitivamente amar, não precisa de frescura ou enganação. A palavra bonita é dita com o olhar, o presente maior está na presença, as juras eternas estão no nosso compromisso cotidiano. Amor matuto, amor de cabra que faz da mão calejada uma flor. E esse cabra sou eu...

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um olhar na paisagem (Poesia)



Um olhar na paisagem


O velho pintor me ensinou
a entender a paisagem
o velho poeta me ensinou
a viajar na paisagem
o jovem solitário me ensinou
a me encontrar na paisagem
mas num dia desses resolvi
a entender e a viajar
a me encontrar na paisagem

tudo como ensinaram
a bela visão e a perfeição
e se encontro a paisagem
e nela paisagem mulher
mesmo sem conhecer
a linda moça do lago
a doce menina do bosque
a meiga flor do jardim
a donzela que está ali
na tela do coração pintarei
com pincel extasiado
as cores do amor e desejo
dessa natureza feminina.

  
Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS - 90


Rangel Alves da Costa*


“Ontem alguém me perguntou acerca do meu conceito sobre o amor...”.
“Com qual intenção?”.
“Desilusão, coitada...”.
“E o que respondeu?”.
“Não respondi...”.
“Não quis responder ou sentiu dificuldade?”.
“Porque tal conceito está em cada um...”.
“Certamente. O que penso sobre o amor pode confrontar com o pensamento do outro...”.
“Depois fiquei pensando...”.
“Em que?”.
“Na existência de múltiplos, diversos, infinitos amores, e todos com conceitos diferentes...”.
“Todos com conceitos diferentes, mas partindo de uma premissa única...”.
“Qual seria?”.
“A força do sentimento existente em cada um...”.
“Explicando melhor...”.
“Claro. Um coração duro não sabe expressar sentimentos...”.
“No sentimento está a chave para encontrar o amor...”.
“E conceituá-lo perante o sentir...”.
“Ora, tem gente que apenas acorda, mas outros amam a manhã...”.
“Uns que mal enxergam a gotícula, quando outros se extasiam com o orvalho...”.
“Para uns, apenas uma revoada, e para outros a expressão da força da criação...”.
“Uns que se vêem diante das paisagens, outros que as sentem...”.
“Uns que apenas estão, quando outros que procuram amar...”.
“Aqueles que olham a lua, outros que avistam canto e poesia...”.
“Para tantos apenas um Deus da religião, e para outros a essencialidade da existência...”.
“Uns que consideram amorosamente o próximo, e outros que o tem simplesmente como pessoa qualquer...”.
“Tantos que renegam os seus, enquanto outros lamentam as ausências...”.
“Alguns que não sabem o que é afeto, outros que buscam oferecer afeição...”.
“Aqueles que agradecem o pão, outros que o tem apenas como fruto do próprio esforço...”.
“Tantos que amaldiçoam a vida, enquanto outros imploram por sobrevida...”.
“Uns que agradecem pelas conquistas, outros que se contentam apenas em acumular...”.
“Aqueles que têm olhos de poesia, e aqueles que avistam sombras...”.
“Os que cantam as alegrias e contentamentos, os que fingem qualquer felicidade...”.
“Os que sabem pedir, tantos que só sabem exigir...”.
“Aqueles que erguem a mão, e tantos outros que tiram com violência...”.
“Aqueles cheios de boas esperanças, diante daqueles que pressupõem infortúnios...”.
“Os que plantam um beijo, e os que já querem colher o sexo...”.
“Os que dizem palavras singelas, e aqueles que ecoam pedras...”.
“Tantos que se contentam com tão pouco, e mais ainda os que nunca se bastam...”.
“Tantos que vivem diante do possível, e diante de tantos que querem tomar o mundo...”.
“Os que ouvem o coração, diante dos que nem conhecem sua existência...”.
“Os que semeiam, diante das ervas daninhas...”.
“Os que colhem a flor para a amada, e outros que logo pensam nos espinhos...”.
“Aqueles que amam a si mesmos, diante daqueles que se odeiam e ao próximo mais ainda...”.
“Aqueles que abrem a Bíblia, diante daqueles que não conhecem um Sermão...”.
“Os que partem e deixam saudades, diante dos esquecidos...”.
“Tantos tão necessários, e muito mais procurando desnecessariamente existir...”.
“Em tudo isso está o amor?”.
“Sim, nesse confronto separa-se o joio do trigo...”.
“Daí tantos amores...”.
“E crueldades também...”.
“Assim, o amor nem sempre é um gesto visível ou expressado efusivamente...”.
“Isso mesmo, pois o amor também é silêncio...”.
“Se expressa na ação...”.
“Apenas na força do sentimento...”.
“Num olhar, às vezes...”.
“Até na distância...”.


Poeta e cronista
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quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O HOMEM DOS DIAS (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Era triste ver o homem assim, mas era desse jeito mesmo que acontecia, e todo dia. Do amanhecer ao anoitecer, e muitas vezes vagando pela madrugada, lá seguia ele parando um e outro para perguntar se tinha perdido algum dia na sua vida.
Isso mesmo, a cada um que encontrasse perguntava se estava desgostoso com os seus dias, se havia algum que preferia não ter vivido, se preferia esquecer-se de ter existido em algum deles. E se a pessoa respondesse que era precisamente aquele dia, então o coração do homem chegava a palpitar.
Mas para fazer o que com os dias dos outros? Melhor perguntando, o que o homem tinha a ver com os dias não vividos dos outros e o que pretendia fazer com eles? Ninguém sabe ao certo responder, mas a verdade é que depois de ouvir o que desejava saía quase correndo, num passo apressado e mais que instigante.
E o coitado do homem, se tomasse notícia de qualquer dia perdido na vida de alguém, imediatamente saía a procurá-lo, corria a catá-lo nos escombros do passado, nos monturos da memória, ou mesmo nos lugares próximos de tantos ou poucos não acontecidos. Mas por que o desvalido do homem agia assim?
Seria louco, demente, atordoado, ou apenas um brincalhão das desventuras vividas ou dos instantes não vivenciados pelos outros? Seria alguém fugido do hospício, um psicopata pelas não realizações, ou apenas alguém que precisava demais encontrar e tomar para si os infortúnios, as infelicidades e os pesares do próximo?
Não posso afirmar com certeza o que fazia o coitado do homem agir, o que o motivava e o que pretendia fazer com os dias obscuros dos outros. Soube dessa história e por muitos dias andei solitariamente no meio da noite, ainda que chovendo ou fazendo frio, para ver se encontrava a tal pessoa, o homem dos dias.
Eis que numa madrugada de persistente sereno, de vento cortante e frio dilacerante, peguei meu guarda-chuva e resolvi dar uma volta na pracinha mais próxima. Tudo estava silencioso demais, com calçadas e pisos molhados e espelhando a luz que se derramava dos postes. Nem um pé de pessoa passando, apenas o barulho do vento e das folhagens se contorcendo.
Já estava na praça quando vi alguém ainda longe, apenas um vulto virando uma esquina, e lentamente caminhando naquela direção. Ansioso, não menos temeroso, aguardei-o se aproximar ainda mais e assim saber se era o tal homem. E se o fosse logicamente que chegaria até onde eu estava para fazer a estranhíssima e misteriosa pergunta.
Sempre lentamente, de cabeça baixa, veio caminhando até se posicionar diante de mim. Somente nesse momento levantou o rosto e – mesmo com as poucas luzes da madrugada – pude perceber o desenho de uma pessoa absolutamente frágil, melancolicamente entristecida, nada que pudesse apresentar qualquer perigo.
Mirei bem nos seus olhos e ouvi saindo de sua voz pesarosa: “Boa noite moço. Desculpe, mas posso fazer uma pergunta?”. Retribui a saudação e afirmei que sim, que podia perguntar o que quisesse.
Então ele continua, e agora com a instigante pergunta: “Moço, no passado ou mesmo nos dias mais presentes, o rapaz teve algum dia daqueles que considera como perdido, daqueles que preferia não ter vivido e que até hoje prefere esquecer?”.
Juro por Deus que tive pena do homem enquanto o ouvia falar. Não sei bem, mas as suas palavras eram tomadas de tristeza, de dor, angústia, aflição, desespero, enfim, sentimentos de dilacerar coração. Foi assim que senti. Meu Deus, disse a mim mesmo, já sei o que se esconde por trás dessa pergunta, o que verdadeira reside nessas entrelinhas desesperadas.
Tomando por uma terrível aflição - talvez ainda maior que a do homem - consegui encontrar forças para dizer que só responderia se antes me dissesse por que precisava tanto saber dos dias não vividos pelos outros. Pensei que ele não responderia, mas pelo contrário. No mesmo instante baixou a cabeça e com os olhos lacrimejando respondeu:
“É que não desde muito não tenho dias felizes, não sinto alegria nem tenho qualquer prazer nessa vida. Por isso que vivo catando os dias infelizes dos outros, aqueles que ninguém quer, para juntar tudo e ver se consigo transformá-los num instante de felicidade em minha vida”.
  

Poeta e cronista
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Um amor antigo (Poesia)



Um amor antigo


Um amor nascido agora
e já tão antigo
somos tão jovens ainda
mas também já somos
dois velhinhos de ontem
vivemos nosso presente
visão catastrófica de tudo
e para não sermos iguais
desvalorizando o amor
é que preferimos amar
como dois velhinhos
como no passado

uma janela e um jardim
uma flor que chega na mão
beijo na testa e na face
um abraço que é carinho
um passeio de mãos dadas
uma serenata ao luar
uma doce maçã do amor
uns versinhos no papel
um coração desenhado
na agenda dos destinos
tão velhos e tão meninos
preferindo amar assim
para o amor não ter fim.

  
Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS - 89


Rangel Alves da Costa*


“Pássaros na noite...”.
“Está pensando em algum livro, em alguma poesia?”.
“Não, é que avistei pássaros voando lá fora...”.
“Tem certeza?”.
“Em revoada...”.
“Não avistei nada, até por que...”.
“Também ouvi o vento soprando forte...”.
“Mas é hora de brisa...”.
“E também a chuva forte caindo...”.
“Tem certeza?”.
“Os pássaros molhados...”.
“E a ventania também?”.
“Acha que estou brincando?”.
“Não, mas acho difícil, até por que...”.
“Se eu disser o que ainda vi, então...”.
“Mas diga...”.
“Vi a lua descer e depois sumir...”.
“O que mais...”.
“Vi a estrela cadente passar...”.
“E depois sumir?”.
“Vi o noctívago passando...”.
“Algum bêbado da noite...”.
“Creio que não. Estava de capa e guarda-chuva...”.
“Viu só isso?”.
“Não, pois vi muito mais...”.
“Preciso saber o que viu...”.
“Vi o lobo uivando no alto do monte...”.
“E...”.
“Vi o louco subindo à montanha...”.
“E...”.
“Vi a montanha sumir...”.
“E o louco?”.
“Vi o louco voar...”.
“E viu mais...”.
“Vi um barco voltando...”.
“Junto com o pescador...”.
“Não. Estava sozinho...”.
“Então viu a mulher no cais?”.
“Vi a mulher chorando...”.
“E o que aconteceu?”.
“Ela entrou nas águas...”.
“E depois...”.
“Nada mais vi...”.
“Viu tudo isso?”.
“Ainda estou vendo...”.
“Agora? Vendo o que?”.
“Vejo você...”.
“Eu?”.
“Sim, e caminhando por uma estrada...”.
“Seguindo viagem?”.
“Indo embora, de mala à mão...”.
“Sem dar adeus?”.
“Ninguém acena aos loucos...”.
“Mas estou aqui...”.
“Você não está aqui...”.
“Sim, ao seu lado...”.
“Você já está perto da curva...”.
“Mas eu não iria a qualquer lugar sem antes te dar um beijo...”.
“Ninguém beija os loucos...”.
“Mas você não está louca...”.
“Sei que não, pois também me vejo...”.
“Como?”.
“Não sei, não me vejo mais...”.
“Deve ter ido à minha procura...”.
“Será que eu te encontro?”.
“Sim. Vejo que parei para te esperar...”.
“Foi mesmo, mas segui por outro caminho...”.
“Vou voltar...”.
“Ninguém vai ao encontro de loucos...”.
“Mas enlouqueço se não te encontro...”.
“Resolvi voltar...”.
“Já está aqui?”.
“Ainda não. Estou fechando a janela para não ver mais nada!”.

  
Poeta e cronista
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quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A MOCINHA QUE ERA FELIZ (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Quem avista uma flor da manhã está avistando ela; quem imagina a fruta morena espelhando doçura está imaginando ela; quem se encanta com as singelezas da vida, com as belezas escondidas na natureza e com os desejos repousando nos olhos, certamente se fartará dos maravilhamentos diante dela.
Solta, sempre descalça, sempre feliz, sempre tão bela, assim era a mocinha. Digo era porque o despertar do amor tudo fez para colocar naquele semblante um laivo de dor, uma feição de tristeza, um aspecto de melancolia. Contudo, a inafastável realidade não conseguiu adormecer a doçura existente no seu coração.
Quando não passava faceira de lápis e caderno à mão, dessa vez calçada por ofício da aprendizagem, era encontrada em cada canto dos arredores de sua moradia. Saindo da casa humilde, de barro socado, gostava de passear pelas matarias, na beirada do riachinho, subir nas mangueiras e goiabeiras para se deliciar da fruta mais doce.
Dizem que até tinha modos estranhos demais para uma mocinha, ou moça feita como os olhos da rapaziada insistiam em confirmar. Quem já se viu menina daquele tamanho, já desde muito tirado o cheiro de mijo, ainda passar com boneca de pano na mão, tomando banho de chuva em época de trovoada, correndo feito uma doidinha atrás de uma bolinha de sabão?
Quem já se viu uma mocinha já moça, tão bonita e tão vistosa, sem se importar com o desleixamento da roupa de chita, gostar de viver com assanhamento nos seus cabelos longos e escorregadios, fazer de conta que a vida era uma brincadeira sem fim, que os bichos e passarinhos eram seus amigos, que as pedras tinham conversas interessantes? Ora, conversava e muito com as pedras.
Quando não estava nas brincadeiras, nas voações descontraídas, estava cantando na lavagem de roupas no ribeirão, estava conversando com as velhas senhoras nas cadeiras de balanço ao entardecer, estava preparando mingau ralinho para que Sinhá Totonha conseguisse engolir. Depois contava um causo bonito pra doente se alegrar. E a velha ria de se acabar. Mas depois chorava, e chorava de se acabar.
Todo mundo gostava dela, sentia sua falta, perguntava onde havia se metido que nunca mais apareceu para alegrar coração. Ela não dizia onde estava quando sumida por pura vergonha. Não queria que ninguém soubesse que caçava folhas secas na mataria para escrever uns versinhos. Tinha medo que soubessem desse lado inspirado e logo começassem a falar que estava apaixonada.
Mas um dia uma dessas folhas secas lhe fugiu às mãos, e bem quando estava na janela pensando coisa muito diferente do que o normal. Seu coração inocente segredava-lhe coisinhas que a deixava atordoada. Somente assim começou a pensar em menino bonito, em rapazinho que segurasse na sua mão nas paisagens sertanejas.
Era coisa de querer namorar. Sentia, mas não queria. Ou queria, mas temia. Não se achava com idade ainda. Mas então, mocinha, por que escrevia versos dizendo assim: A semente um dia vira flor, e fica contente com o beijo do passarinho, mas quer sentir mais sabor, e da boca que venha de outro ninho.
E a folhinha que lhe fugiu da mão foi sendo levada pelo vento até cair em cima do banco da praça. E chegaram mais, muito mais versos levados no vento porque ela se enraiveceu por pensar em namoro e jogou pelo ar todos os versinhos escritos nas folhas. E o sopro da tarde parecia um livro de poesia.
Mas um olhar avistou uma poesia, outros olhares avistaram folhas secas estranhamente riscadas, e tantos olhos se admiraram e se apaixonaram pelos versos simples, pequeninos, mas cheios de encantamentos amorosos. E, de folha à mão, os meninos passavam tristonhos, apaixonados, diante de sua janela. Procuravam a poetisa, a dona daqueles versos, alguém que pudessem oferecer uma flor.
E pela fresta da janela entreaberta, de coraçãozinho apertado, ela sofria por querer continuar sendo apenas menina levada e por não poder fazer daquela sensação amorosa uma brincadeira. Sabia que o despertar ao amor era coisa muito mais séria do que bolhinha de sabão.
  

Poeta e cronista
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Sopro de brisa (Poesia)



Sopro de brisa


Sim
eu vou
aroma
e perfume
sinto
a tarde
que passa
na janela
e chama
para o voo
em busca
da flor
eu vou...

leve
é voar
nuvem
estrada
sua direção
desejo
sonho
um amor
imenso
e apenas
brisa
da tarde
que passa
onde estou
e me chama
e vou...

  
Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS - 88


Rangel Alves da Costa*


“O que motiva os sentimentos?”.
“Depende. Tantas vezes o momento, outras vezes o íntimo com suas propensões...”.
“De uma hora pra outra e a pessoa está...”.
“Triste, feliz, desgostosa, brincalhona, amargurada...”.
“O que motiva a alegria?”.
“Um prazer encontrado, uma realização, uma conquista...”.
“Mas existe alegria escondendo tristeza...”.
“Desesperada sensação de fuga, vontade de fugir da aflição...”.
“Não adianta fingir. Os olhos não mentem...”.
“A grande verdade. Os olhos espelham os reais sentimentos...”.
“Um olhar profundo...”.
“Amargurado, entristecido, cheio de sofrimento...”.
“Um olhar molhado...”.
“Cheio de saudades, de recordações...”.
“Um olhar distante...”.
“Cheio de agonia, de vontade que alguém retorne, de melancolia...”.
“Um olhar sem luz...”.
“Na pessoa carente, sem entusiasmo, desprezada...”.
“Um olhar afogueado...”.
“Pronto para ação, cheio de ânsia e expectativa...”.
“Um olhar trêmulo...”.
“Triste, cansado, sofrido...”.
“Um olhar parado...”.
“Vendo tudo, mas sem nada enxergar adiante...”.
“Um olhar sorridente...”.
“Receptivo, pronto para ouvir uma palavra ou sentir um belo gesto...”.
“Um olhar afetuoso...”.
“Inocente, frágil, simplesmente aberto à vida...”.
“Um olhar em olhos vermelhos...”.
“Já chorou, já sentiu, já sofreu...”.
“Um olhar fechado...”.
“Eis o mistério do olhar...”.
“Por quê?”.
“Porque representa uma multiplicidade de coisas e situações...”.
“Como o adormecimento e a morte?”.
“Sim, mas também como reflexão, saudade, dor...”.
“O que deveria nada representar, na verdade reflete até o desconhecido...”.
“Sim. Ainda que não haja luz que os outros avistem, olhos fechados são repletos de significações...”.
“O outro nada vê dentro da retina, mas os olhos fechados continuam vendo tudo...”.
“Menos em situação de morte...”.
“Até isso é questionável, pois há os que afirmem que os olhos já avistam outra dimensão...”.
“Verdade. Mais uma em meio a tantos mistérios...”.
“Mas em outras situações os olhos fechados continuam enxergando...”.
“Difícil de imaginar assim...”.
“Ora, os sonhos são imagens...”.
“A reflexão traz imagens...”.
“A saudade traz a pessoa diante do olhar...”.
“A dor surge como labirinto no olhar fechado...”.
“Nunca há apenas os olhos fechados a tudo...”.
“Veja uma simples situação: na escuridão dos olhos fechados surgem pontinhos luminosos...”.
“Assim, o cego não é despido de qualquer visão...”.
“Ainda que a cegueira seja total, o cego ainda assim enxergará...”.
“Inimaginável...”.
“Ele enxerga perante o que ouve...”.
“Mesmo sem conhecer a forma imagina o que seja e como seja...”.
“E daí o olhar passar a dar um contexto ao desconhecido...”.
“E que, possuindo existência, logicamente que surge no olhar como uma imagem...”.
“Assim, uma nuvem pode ser imaginada como qualquer coisa...”.
“Como a cama que deita...”.
“E a ideia de nuvem virá como a imagem da cama...”.
“Com forma e existência...”.
“Também com cor...”.
“A cor escolhida pelo cego...”.
“E que jamais será apenas negrume!”


Poeta e cronista
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terça-feira, 27 de novembro de 2012

PRA BOI DORMIR (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Quando o cabra me contou essa história só acreditei por respeito à sua idade. Já velho, calejado do tempo, não tinha como desacreditá-lo sem mais nem menos. Mas depois desse dia fiquei matutando sobre o assunto e cheguei à conclusão: o homem estava brincando comigo, só podia ser.
Desse modo, desde o instante que encerrou sua história que o olhei desconfiado. Se ele tivesse antecipado que se tratava de um causo sertanejo, de uma lorota proseada, ou mesmo de uma verdade enviesada, de apenas uma conversa para passar o tempo, tudo bem. Mas não.
Foi assim que ouvi história pra boi dormir. Melhor dizendo, foi naquela tarde, debaixo do tamarineiro matuto, que ouvi sobre o que fazer para adormecer boi, para fazê-lo cochilar. Até hoje não consigo imaginar ninando animal nem inventando coisas para levá-lo aos braços de Morfeu. Mas enfim...
Qualquer um imaginaria diferente, pois quando alguém diz que determinada história é pra boi dormir, logo vem à mente uma deslavada mentira, uma causo sem pé nem cabeça, um proseado desacreditado e que geralmente surge da boca de quem não tem o que fazer. Assim, noutro sentido, história pra boi dormir é aquela que a pessoa apenas ouve, porém sem acreditá-la, pois invencionice de lascar.
E disse o cabra, na maior seriedade do mundo:
Pra fazer boi dormir não é tarefa difícil não. E nem precisa que o bicho esteja com sono, cansado, enfadado ou mesmo adoentado. Do mesmo modo, logo irá adormecer mesmo que não esteja com vontade de sonhar, que uma vaca tenha prometido deitar ao seu lado, que tenha tomado um porre apaixonado pela novilha sedosa.
Na verdade, são muitas maneiras de fazer o bicho dormir de um sono só, de fechar os olhos assim que se derreie no chão, de se imaginar que a inesperada passagem lhe alcançou pelo sono tão profundo que demonstra. Pode zoar trovão, riscar relâmpago, cair trovoada, zunir tempestade e vendaval que o bicho estará no mais profundo dos sonos.
Mas como isso é possível, perguntei, vez que os animais geralmente fecham apenas um olho ao adormecer, deixando o outro sempre à espreita de imprevistos ou estranhos visitantes. Qualquer barulhinho suspeito e ele já está com os dois olhos abertos, completamente acordado, pronto para agir ou fugir.
E a resposta veio num só mugido. E disse que dependia muito da astúcia do dono do bicho, de seu poder de artimanha, de saber ludibriar o animal. Mas tudo para o bem, sem magoá-lo ou feri-lo, sem maltratar sua autoestima nem se sentir com vontade de abandonar o lugar. Mas pra fazer isso é preciso muito cuidado, muito jeito. E disse como seria esse jeito.
Primeiro chegue perto do boi, mas chegue com cuidado, um tanto entristecido, pesaroso, olhando desalentado pro tempo, pro horizonte, como se estivesse quase chorando. E se pude chorar até chore mesmo, de verdade, pois é sempre bom para transmitir realismo ao sentimento do seu animal.
Depois passe a mão por cima do pelo do bicho, alisei-o devagarzinho, pra cima e pra baixo e sempre mais, e em seguida, bem baixinho, vá dizendo que dava tudo na vida pra que o seu animal querido soubesse o quanto estava sofrendo com aquela seca toda, com aquela fome e sede parecendo que não vão acabar mais.
Bicho ouve, bicho sente tudo, tem mais sentimento do que gente. É uma verdade, sabia? Por isso mesmo que a essa altura já deve estar se derretendo por dentro, entristecido demais, sofrendo o mesmo pesar de seu dono. E porque acontece assim, então meio caminho já foi andado para que o bicho logo desabe num sono só.
E daí em diante é fácil demais, basta apenas mostrar sinceridade naquilo que diz, ainda que saiba que está cometendo verdadeiro pecado. Então chegue mais perto da orelha do bicho – sempre passando a mão no seu pelo – e diga que graças a Deus aquele sofrimento todo está chegando ao fim, tanto pra ele como pro seu rebanho, principalmente para aquele pintado, que é o seu boi preferido.
Por fim é só dizer que encomendou uma carrada de palma e farelo, além de um carro-pipa de água, e tudo chegará logo ao amanhecer. E se fosse ele deitava logo para dormir e a noite passar mais rápido. De manhã, quando abrir o olho, certamente já encontrará o alimento e a água que tanto deseja.
É doloroso. É triste demais, é pura maldade do humano para com o animal, mas é assim que funciona. Só que daquela vez não funcionou. O boi, matreiro que só, deitou e fingiu que dormia a sono solto. Quando o seu dono deu as costas ele atravessou a cancela e se meteu mundo afora.
Até hoje o mentiroso procura pelo seu valioso boi. E dizem que jamais encontrará, pois este dorme tão profundamente num lugar distante que não há barulho no mundo que o acorde do seu sonho com uma pastagem verdejante.


Poeta e cronista
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A colheita das flores (Poesia)



A colheita das flores


A primavera não existe mais
os jardins adormecem desnudos
os canteiros jazem entristecidos
apenas folhagens secas esvoaçam
fazendo a tarde vazia chorar
mas queira acreditar meu amor
foi numa paisagem assim triste
que ontem fiz a recolha das flores
que colhi pétalas em ramalhete
como se a estação do instante
fosse uma perfumada primavera

nem sonho nem devaneio
estava tudo ali no jardim
meus olhos não avistaram
além das flores que desejavam
nada além do lindo buquê
que confundo com você
porque não sei se és flor
orquídea ou jasmim em mim
ou se és a própria natureza
na sua mais bela manhã
de brisa, aroma e beleza.

  
Rangel Alves da Costa