SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 7 de março de 2021

NOITES DO SERTÃO


 *Rangel Alves da Costa


O sertão possui outro retrato do que geralmente se retrato. Quem não conhece o sertão, nele só reconhece a miséria, a pobreza, a desvalia sertaneja. Mas o verdadeiro retrato do sertão é muito diferente.

O sertão é histórica, geográfica e humanamente belo. O sertão é meigo, doce e cativante. O bucolismo sertanejo traduz sempre uma sensação de humanismo, de companheirismo e afeição de um povo.

Suas cores e seus sabores, suas paisagens e seus segredos, tudo se revela em inigualável pujança. Vaqueiros, rendeiras, aboiadores, mateiros, pescadores, cordelistas, cantoras de roda, uma infinidade de belezas e tradições.

Mas nada igual ao luar sertanejo e suas noites de mistérios e encantamentos, de amores e descobertas, de estrelas e vaga-lumes. As noites do sertão sempre chegam como véus iluminados perante as durezas da vida.

As noites do sertão são lindas, grandes, imensas, poéticas, nostálgicas, orantes, pedintes. São portas que se abrem ao alto para, em direção ao luar, buscar os encantamentos da noite e da vida.

Quando as noites chegam e seu manto vai encobrindo a terra com suas cores sombreadas e escurecidas, logo as chamas do candeeiro da lua se acendem para tudo recobrir com seu dourado de paz e encanto.

A muitos, que apenas tratam a noite como parte escurecida do dia e a lua como o oposto do sol, tanto faz que após o entardecer os horizontes se encham de fogo e magia, e que os encantamentos surjam em cada raio de luar e em cada estrela que vagueia brilhosa pelos espaços.

Nada entendem de noite, de lua, e muito menos de luar sertanejo. Certamente não sabem que a lua carrega em si o dom da transformação e em cada dourado que espalha há um descortinar de sentimentos sem fim.

Igualmente não sabem de quanta simbologia há num clarão de luar sertanejo. No sertão, o luar não é de lua qualquer, não é apenas um astro noturno que brilha, não se contenta em ser somente uma luz clareando na noite.

O luar do sertão é sentimento aceso em fogo e brasa, é chama que reacende saudades, reencontros e recordações. O luar sertanejo crepita por dentro como tição e fagulha, como labareda e faísca. E tanto queima que é preciso cuidado ante sua luz.

Somente a luz do luar sertanejo para afastar as medonhices da noite e os medos dos esquecimentos. Impossível não abrir janelas, não reabrir velhos álbuns, não buscar fotografias, não reencontrar imagens de faces e feições, perante a luz que brilha lá em cima.

Nas noites do meu sertão, nada mais preciso que a luz do luar. Nas noites do meu sertão, meu coração só quer luar. E no luar o retrato vivo daquilo que sinto saudade, que amo, que merece ser recordado.

Nas noites do meu sertão, quando a lua se abre em flor, então os jardins da memória começam a brotar suas pétalas. Olhar para o alto e se encantar com o amarelado da lua, avistar a luz imensa perante a escuridão, tudo isso conforta a alma e o espírito.

Nas noites do meu sertão, quando os silêncios chamam à reflexão, nada melhor que compartilhar da voz interior com a auréola iluminada que desce do alto e a tudo envolve. Uma lua tão bela e sertaneja, tão cheia de palavras e vozes, que o silêncio se transforma em poesia e encantamento.

Bem disse o poeta: “Não há, oh gente, oh não, luar como esse do sertão...”. E digo mais: Uma luz que pacifica a alma, uma cor que enobrece o ser, um brilho que envolve todo o coração.

Na noite, nos altos e nas alturas da noite, é como se as recordações chegassem com a luz do luar. Um cheiro de café torrado, um cheiro de fogão de lenha. Vagantes vaga-lumes, réstias de candeeiros, fagulhas ainda vivas das fogueiras do tempo.

E uma canção no vento. Um vento que vem das montanhas, lá detrás dos montes enluarados, trazendo a cor da lua e o brilho das estrelas e para, perante o meu silêncio noturno, ecoar uma linda canção de amor.

De amor ao sertão. De amor à sua lua, ao seu luar.

                     

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu sertão...


Fé sertaneja...



Aquelas velhas mãos (Poesia)


Aquelas velhas mãos

Das velhas mãos
que contaram as contas do rosário
e nos dedos magros e finos
tocaram Deus em seu sacrário
eu recebi a sagrada benção
de ter na vida um bom fadário
 
mãos de minha avó
tocando os céus em oração
em cada conta um pedido pelos seus
ainda recordo o seu credo e devoção
na luz da vela rente ao céu do oratório
assim eu sou nas bençãos das velhas mãos.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - eu não moro em Macondo


*Rangel Alves da Costa

 

Ao invés do realismo fantástico, o mundo onde vivo é de realismo mais que trágico. Eu não moro em Macondo. Ao invés de Cem Anos de Solidão, o mundo em que vivo é de constante desilusão, de infinita tristeza, de eterno sofrimento e permanente tristeza. Aqui as coisas não se transfiguram nem se transformam como num passe de mágica. Aqui tudo já é anteriormente conhecido e esperado em suas consequências, basta exemplificar nos políticos, nas roubalheiras, nas corrupções. Aqui não há borboletas entrando pela janela para acalantar moça bela, mas ladrões pulando muros, meliantes forçando as portas, marginais entrando pelas janelas. Aqui o sol não fala nem a lua canta, a noite não chora sua dor nem o dia sorri sua alegria. Aqui tudo é normal demais, é tudo feio, tedioso, aterrorizante. Aqui os Buendía teriam dias tristes, pesarosos, calamitosos. Suas raízes familiares se perderiam nos labirintos apavorantes das indiferenças. Aqui as flores não possuem favo de mel nem os colibris beijam estrelas de chocolate. Aqui não há lua que desça para acalantar sonhos bons. Na normalidade daqui, o anormal é o instante que não traga uma notícia que o remédio aumentou, que a gasolina aumentou, que o grão de arroz aumentou. Mas tenho que me acostumar, pois eu não vivo em Macondo. E nem sei se os Buendía conseguiriam aqui viver. Desde muito já teriam alçado os céus em cavalos e seguido para Pasárgada. E lá seriam amigos do rei.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com