SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 30 de setembro de 2014

QUANDO PASSO NA SUA PORTA


Rangel Alves da Costa*


Sua porta parece estar no destino de qualquer um. Por mais que rodeios sejam feitos, por mais que outros caminhos sejam escolhidos, mas não tem jeito. As forças conduzem e reconduzem, fazem voltar, dar volteios e passar bem defronte à sua porta.
Passa uma estrada defronte à sua casa. Mesmo que após a porta haja um jardim esturricado e mais adiante uma cancela, ao seguir pela estrada e olhar na direção é como se estivesse diante de sua porta. Diante e batendo para ver se você vem abrir a porta. Ou talvez a janela.
Todas as vezes que faço aquele percurso fico imaginando porque só encontro o silêncio ao redor. A porta e a janela sempre estão fechadas, não há cachorro ou gato dando vida ao lugar, não há um semblante escondido por trás das frestas. Ao menos assim imagino.
Mas sei que ali a sua porta e a sua janela e também sei que você está lá. Na verdade, não tenho certeza, pois jamais vi além de uma miragem surgindo dentro do quarto escurecido no único instante em que a janela foi avistada entreaberta.
Por encanto, talvez um interesse que não sei bem explicar, mas já deixei flores no umbral da janela e até joguei um bilhete pela fresta. Não sei se o bilhete foi encontrado e lido, mas as flores não foram mais avistadas assim que fiz o caminho de volta.
Nunca ouvi, mas dizem que após o entardecer, outras vezes já na noite fechada, uma bela voz entoa uma velha canção de amor. Mas de um amor triste, muito triste. Também dizem que quem passa pela estrada dos fundos da casa ouve vozes quase sussurrantes levadas pela ventania.
Já tive vontade de descer do cavalo, ultrapassar a cancela e seguir diretamente até sua porta. E bater e bater, e chamar e chamar. Dizer qualquer coisa, que estou com sede e preciso de um pouco de água, dizer que trago notícias boas, dizer que preciso encontrar quem mora ali.
Mas nunca tive coragem. Quer dizer, coragem não falta, mas realmente não sei o que fazer se alguém responder lá de dentro e vier abrir a porta. Fico imaginando o espanto de encontrar a sua feição, de avistar a sua tez, de sentir a sua presença.
Na verdade, por mais que afirmem com certeza haver vida morando ali, a sua presença talvez seja muito mais fruto de minha imaginação. Apenas imagino uma coisa que pode não ser confirmada, apenas idealizo uma situação que pode não existir. Mas de qualquer forma haverei de confirmar qualquer dia.
Pensando bem, muito estranho que tudo aconteça assim, mas a verdade é que toda vez que passo diante de sua porta e janela me vejo atraído pela sua feição desconhecida. E me vem uma feição bela, encantadora, angelical, como a mais bela em toda face da terra.
Mas como poderia ser assim, se durante todo tempo permanece fechada e sem que o sol aqueça o corpo e permita uma tez de vivacidade ao rosto? Como poderia se conservar tão angelical se não abre a porta para receber o ar da manhã, para caminhar pelos campos, para colher frutas da estação?
Tudo continua um grande mistério, mas sei que está lá, que vive lá dentro, porque ouvi muitas histórias dando conta de sua presença. Dizem que escolheu a solidão do mundo depois de uma grande desilusão, dizem que assim permanece depois que seus pais faleceram e a deixaram como promessa ao silêncio. Mas dizem tanta coisa.
Também não sei sua idade, a cor de seus olhos, o seu jeito de ser. Conheço apenas o seu jeito de viver, que é fechada numa casa velha, triste, abandonada, no silêncio e na solidão dos tempos. E também que talvez aviste o mundo adiante pelas frestas da madeira. Nada mais sei, mas como gostaria de saber.
Juro que tenho medo de passar diante de sua casa e encontrar a porta e a janela abertas. E temo ainda mais não encontrar mais ninguém lá dentro. Não sei por que acontece assim, mas talvez eu tenha aprendido a amar o desconhecido, o mistério, o inacessível.
Melhor que seja assim. Que eu continue passando diante de sua casa, de sua porta e janela fechadas, apenas imaginando que está tão bela lá dentro. Talvez seja esta a razão de um amor desconhecido e tão verdadeiro.


Poeta e cronista
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Um mar (Poesia)


Um mar


As velas singram
ao desvão dos azuis
e sem norte se vão
ao porto talvez...

o barco que volta
solitário e triste
diz que adiante
naufraga a vida

mas partirei
na vela do olhar
singrando na lágrima
ao porto talvez...

mar que escureceu
sinto a tempestade
caindo no rosto
sem lenço ou cais.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 747


Rangel Alves da Costa*


“Pedi ao silêncio...”.
“Silêncio...”.
“Pois preciso ouvir...”.
“As asas em revoada...”.
“A espuma das ondas...”.
“As folhas com sua valsa...”.
“A canção da brisa...”.
“O lamento da pedra...”.
“A tristeza do cais...”.
“E também o silêncio...”.
“Para ouvir a saudade...”.
“Para ouvir o segredo...”.
“Para ouvir o vento...”.
“Para esperar qualquer som...”.
“Ou imaginar que alguma coisa...”.
“Logo possa acontecer...”.
“Silêncio profundo...”.
“Perene, constante...”.
“Incansável silêncio...”.
“Numa mudez de tudo...”.
“Até sem a voz do silêncio...”.
“Basta ouvir o que irrompe...”.
“Na voz própria do silêncio...”.
“Pois tudo grita...”.
“Tudo parece estridente...”.
“Diante do olhar mirando...”.
“A linha do horizonte...”.
“O barco distante...”.
“A flor sem canteiro...”.
“O outono na planta...”.
“A folha esvoaçando...”.
“A cortina que dança...”.
“A nuvem que passa...”.
“Porque tudo é silencioso...”.
“Mas tudo sempre falando...”.
“Tudo sempre dizendo...”.
“Aquilo que o sentimento...”.
“Ouve para decifrar...”.
“A alegria ou a dor...”.
“A tristeza ou o contentamento...”.
“Eis que todo silêncio...”.
“Transmuda a sua mudez...”.
“Naquilo que o coração...”.
“Os olhos e a feição...”.
“Conhecem o significado...”.
“Para ainda no silêncio...”.
“Falar e ouvir...”.
“O que jamais existiria...”.
“Com outras palavras...”.
“Que não as do silêncio...”.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Um deus qualquer


Rangel Alves da Costa*


Muita gente transforma a percepção de Deus num deus qualquer. Os termos são os mesmos, mas os sentidos não. Quando escrito com letra inicial maiúscula, a referência que se faz é a de Deus criador, do princípio supremo,  do ser onipotente, onisciente e onipresente. É o Deus da cristandade, do catolicismo. Diferentemente ocorre se o termo utilizado se inicia por letra minúscula, então a indicação é de um ser sobrenatural, de uma divindade criada por humanos e por eles adorada.
Na Bíblia há uma clara diferenciação dos termos, como em Timóteo  8, 5-6: "No céu e na terra há alguns que se chamam deuses. Todavia para nós há um só Deus, o Pai.". Também consta do livro sagrado acerca da existência de um único Deus verdadeiro. Por consequência, outros deuses considerados como existentes são tidos como ilegítimos. Deuses espúrios, porém acreditados e seguidos por aqueles cuja crença lhes dá validade e sustentação. São, assim, deuses ocasionais e que supostamente atendem às crenças ou necessidades espirituais de grupos, geralmente invocando-os através de rituais.
Os argumentos gramaticais não são mais importantes que a convenção estabelecida pelo povo. Assim, pouco importa se “deus” com inicial maiúscula ou minúscula se o que se tem em mente é o ser supremo. No mesmo sentido, tanto faz a inicial se o que se deseja representar é uma divindade de culto pagão, uma entidade mitológica, um personagem sobrenatural adorado em culto. Neste aspecto a questão se mostra induvidosa, vez que mesmo os ateus e agnósticos sabem muito bem diferenciar a divindade suprema da religiosidade cristã e as entidades pagãs.
Assim, o Deus do catolicismo é único, de caráter monoteísta, não havendo como imaginar a existência de outros deuses supremos. Mas os deuses, divindades, entidades e figuras endeusadas pelos pagãos são muitos, e tantos quantos forem suas crenças. A mitologia grega é clara neste aspecto, ali o reduto de deuses com diversos matizes e feições e atuando perante os mais diversos aspectos da existência, como na guerra, no amor e na agricultura. As religiões, os cultos e as seitas também elegem os deuses que lhes dão sustentação. Sob a denominação de divindades, se expressam até mesmo em animais ou plantas. Os maias, incas e astecas possuíam centenas de divindades. Bem assim no hinduísmo, nas diversas mitologias e nas religiões politeístas.
Não obstante tais distinções, o que se vem observando dentre muitos é a veneração ao Deus criador dentro da mesma perspectiva que alguns povos têm de seus deuses. Ou seja, não se considera a supremacia de Deus enquanto Ser Supremo de tudo e sobre tudo, mas também como um deus ocasional, surgido ao acaso de uma necessidade ou de uma invocação para resolver um problema específico. Neste aspecto, o Deus do catolicismo vem sendo considerado no mesmo patamar que os deuses pagãos.
Exemplos servirão para demonstrar tal assertiva. Em muitas religiões, cultos e seitas, os deuses são geralmente vistos como protetores de elementos específicos. Há o deus da chuva, o deus da peste, o deus do destino dos homens, o deus da guerra, o deus da paz, enfim, uma divindade para cada situação. E no seio da cristandade observa-se também tal politeísmo na medida em que Deus é cada vez mais invocado não como um todo protetor, mas aquele lembrado apenas quando surge, por exemplo, um problema de saúde, uma instabilidade financeira, uma preocupação familiar, um aspecto afligindo especificamente uma situação de vida.
Assim, a Deus aos poucos vai se imputando a valia de um deus qualquer à medida que a lembrança do seu poder surge apenas em situações pontuais. São as situações de vida, principalmente aquelas onde estão presentes problemas e preocupações, que fazem com que Deus seja lembrado. Como dito, nada muito diferente das seitas politeístas onde se invoca o deus da chuva na época da estiagem, o deus da paz diante da ameaça de guerra, o deus da cura perante um surto de peste. A única diferença é que dentre tais povos cada deus possui uma denominação específica, enquanto o Deus da cristandade é um só.
E o Ser Supremo, parecendo de serventia apenas para determinados instantes da vida, tido como Deus do acaso, acaba transformado num deus qualquer. Assim tornado, sua intercessão é invocada apenas ocasionalmente, não é presença viva e constante no coração e na mente, não é certeza garantidora do guiar-se pelos bons caminhos da vida e força maior norteando as boas ações humanas. E surge apenas quando um fato inesperado que não possa ser suportado e resolvido pelo próprio homem exige sua presença como salvação. Aconteceu algo de errado, logo diz “ai meu Deus”; está precisando de alguma coisa urgente e diz “valha-me Senhor”; quer implorar que façam alguma coisa e diz “pelo amor de Deus”; quer se arriscar em alguma empreitada e diz “e que Deus Pai me proteja”.
Nesta perspectiva de aproximação de Deus apenas diante de circunstâncias, a sua presença na vida do ser humano é tão nula quanto a sua própria fé. Tenho a convicção de que aqueles que reverenciam verdadeiramente o seu Deus têm-no como causa maior da vida e da existência, reconhecem a sua presença graciosa em tudo, e por isso mesmo sentem sua essência no espírito a todo instante. E por isso mesmo não precisam estar por aí pronunciando o seu nome em vão perante a conveniência do próprio homem.
É no silêncio do coração que Ele grita e diz ser necessário porque o ser humano, por mais forte que se ache, não passa de um acaso. O homem sim, este é acaso. Deus é permanência e tudo!


Poeta e cronista
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Começo e fim (Poesia)


Começo e fim


Um sol acima
uma terra abaixo
um caminho

uma lua acima
uma estrada abaixo
um viver

um sonho acima
uma realidade abaixo
uma luta

uma voz acima
um silêncio abaixo
um partir

nada mais acima
nada mais abaixo
um fim.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 746


Rangel Alves da Costa*


“Vou à luta...”.
“Sem foice...”.
“Sem faca...”.
“Sem pistola...”.
“Sem canhão...”.
“Sem qualquer arma...”.
“Apenas com Deus...”.
“E minha fé...”.
“Sigo na estrada...”.
“Por cima de pedras...”.
“Por cima de espinhos...”.
“Entre labirintos...”.
“Entre todas as ameaças...”.
“E todas as maldades...”.
“Mas subjugando o que surge...”.
“Para amedrontar ou ferir...”.
“Porque tenho Deus...”.
“E minha fé...”.
“Abro a janela...”.
“Sorrio pra vida...”.
“Abraço o mundo...”.
“Canto uma canção...”.
“Elevo a prece...”.
“Grito a felicidade...”.
“E a certeza de Deus...”.
“E da fé...”.
“Caminho pelas ruas...”.
“Encontro violências...”.
“Avisto as arrogâncias...”.
“Conheço as prepotências...”.
“Diviso iniquidades...”.
“Tantas inverdades...”.
“Mas nada me vence...”.
“Nada me escraviza...”.
“Porque tenho meu Deus...”.
“E minha fé...”.
“Sei onde está o perigo...”.
“Onde está o temor...”.
“O medo e o pavor...”.
“O sangue e a dor...”.
“Mas apenas sei...”.
“Nada me atinge...”.
“Pois tenho escudo...”.
“Um escudo que é tudo...”.
“O escudo de Deus...”.
“E da minha fé...”.
“E tenho um amigo...”.
“Que dialoga comigo...”.
“Conhece os meus dias...”.
“Conhece minha vida...”.
“E diz que não tema...”.
“Pois a fé em Deus...”.
“Faz Ele comigo...”.


Poeta e cronista
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domingo, 28 de setembro de 2014

TOTONHO, O COITEIRO DE LAMPIÃO


Rangel Alves da Costa*


Sem acrescentar ou tirar, apenas transcrevo:
“Eu sabia que a poliça tava pertim daqui. Simião avistou uns cabra da volante se apertano pru dento dos mato. Teve inté sorte o danado de num ter caído nas mão daqueles marvado. Se pega Simião era pa dizer o que ele num sabia. Mai o homi chegou aqui verde e tremeno feito cipó. Assim mermo foi correno avisar a Totonho. Sabia que ele era coitero do bando de Lampião. E assim seno os cangacero seria logo avisado da chegada dos macaco pelos arredor.
Totonho, o coitero, mai que acoitava sem quase ninguém saber, ficou num aperreio danado adespoi que ouviu o relato de Simião. Bem que podia arredar o pé no mermo instante e cortar a caatinga pa chegar até o coito e avisar Lampião. Mai corria o risco de colocar paia no fogo sem percisão. E num era coisa decente passar uma informação sem ter certeza da verança do causo. Entonce pensou e pensou e arresolveu que era mió pimero se asseverar da presença da volante da região. Num ia entrar nos matos pruque num era doido nem besta, mai cum certeza arguém na povoação sabia informar.
Entonce Totonho subiu no lombo de um jumentim esquipador e se danou rumo ao arruado. Morava pertim de Poço Redondo e em coisa de dez minuto já era tempo demais pa chegar. Mai o homi nem chegou ao lugar. Ia esquipando o jumentim quano lhe pareceu ouvir arguma coisa. Fez o jeguim parar de repente, desceu cuidadosamente e foi devagarzinho até detrás de um tufo de mato. Ali se escondeu e começou a oiá derredor. Seu medo maior naquele momento era seu jeguim ser avistado na estrada e acabar provando sua presença ali. Por isso que oiava ora pra estrada ora pa dento da mata. E de repente viu, do outo lado da estrada, uns vultos saindo de dento. Era a volante, a macacada, agora tinha certeza.
Num esperou tempo ruim diante do ocorrido. Deixou o jeguim do jeito que tava na estrada e se virou como pôde. Fui rompendo a mataria abaixadinho feito um preá, sem fazer quarque zoada, e quano viu que já num podia ser avistado se alevantou e começou a correr. E tanto correu que quano viu que já era tempo de parar pa descansar já nem sabia mai onde tava. Foi perciso percurá outa estrada pa puder saber adonde tava. Mais num tava longe do que tinha de fazer naquele momento, que era tomar força para chegar o mai depressa possive na gruta adonde o bando de Lampião tava acoitada.
Pensou e pensou como o mió a fazer e aprumou que ir até lá no lombo de animá ia acabar perdeno mai tempo, pois tinha lugá que só mermo as perna pa passar e seguir adiante. Oiou pru roló e dixe que daquela veiz ele se esfolava todim pela caminhada e tudo pontudo e ispinhento que ia encrontá adiante, inté chegar donde tava o Capitão. Seguiu, foi avançano pru riba de ispinho de todo jeito, pru cima de pedra, se esbagaçano todo nas ponta dos pau, se lanhando de cortar couro, passo a passo incrontano o perigo das jaraca e cascavé. Mai num podia parar, num podia nem se assentar pa descansar um tiquim. Se fizesse isso num tava cumprino seu crompomisso de coitero e colocano em risco a vida do bando e de seu amigo Lampião.
Foi seguino, seguino. Mai fartano coisa de uma légua pa chegar até adonde tava o Capitão, eis que ouviu outa zoada da molesta. Parecia gente vino naquela direção, e um monte de gente, aina que a zoada num fosse grande. Correu pa detrás dum lajedo e ficou todo quietim, escondidim. Quano pôde avistar teve a maior surpesa, poi era o bando do Capitão Virgulino. Mai o que pareceu coisa boa se tronou num aperreio danado. Não podia sair de veiz adonde tava pa que os cangaceiro num pensasse que ele era da volante. Coisa perigosa e difici de resovê, pensou Totonho. Entonce se alembrou duma coisa importante, dum siná acertado entre eles pa quano fosse chegano no coito. Entonce arremedou o canto dum passarim. Adespoi mai de dois. E bastou ouvir pa que a cangaceirada levantasse a caminhada. Foi o porpio Capitão que falou: Diga o seu nome e adespoi apareça daí.
Totonho feiz como mandado e adespoi já tava contano ao Capitão da presença da volante mai adiante. Adespoi disso só viu Lampião levantano o braço e a cangaceirada seguir em frente, agora pronta pa guerra. Totonho bem sabia o que ia acontecer mai na frente, poi tinha certeza que Lampião ia fazer uma supesa das boa na macada. Sentou numa peda pa pensar no que fazer dali em diante. E coisa de dez minuto depoi só ouviu o fogo comeno no centro. Era grito e bala zunido pa todo lado, num atropelo danado.
Totonho sabia que Lampião ia enxotar num rasto de sangue aquela macacada. E se tivesse matado tudo de uma só vez num tinha acuntecido o que acabou aconteceno. E daquela veiz, no Angico, Totonho num pôde dar nenhum aviso. A volante tava do lado de lá e a morte certa esperano do lado de cá”.


Poeta e cronista
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A canção e a brisa (Poesia)


A canção e a brisa


Ouço a velha canção de amor
que chega na brisa do anoitecer
uma voz que é ternura e louvor
que me embala até o amanhecer

e a canção que chega na brisa
fala do amor como eternidade
minha saudade então se suaviza
e faço renascer a possibilidade

então canto uma nova canção
da janela espalhando ao vento
a brisa leva a voz do meu coração
até que venha além do pensamento.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 745


Rangel Alves da Costa*


“Amo-te...”.
“E amando vivo...”.
“E amando sinto...”.
“E amando tenho...”.
“Amo-te...”.
“E amando sou...”.
“E amando serei...”.
“E amando tudo...”.
“Amo-te...”.
“E amando sorrio...”.
“E amando festejo...”.
“E amando canto...”.
“Amo-te...”.
“E amando sou luz...”.
“E amando sou lua...”.
“E amando sou sol...”.
“Amo-te...”.
“E amando sou eu...”.
“E amando sou você...”.
“E amando sou nós...”.
“Amo-te...”.
“E amando oro...”.
“E amando enlaço...”.
“E amando creio...”.
“Amo-te...”.
“E amando tenho...”.
“E amando divido...”.
“E amando acrescento...”.
“Amo-te...”.
“E amando dou a mão...”.
“E amando dou o coração...”.
“E amando me entrego inteiro...”.
“Amo-te...”.
“E amando existo...”.
“E amando morro...”.
“E amando renasço...”.
“Amo-te...”.
“E amando falo...”.
“E amando ouço...”.
“E amando compreendo...”.
“Amo-te...”.
“E amando vejo...”.
“E amando vou...”.
“E amando chego...”.
“Amo-te...”.
“E amando amo...”.
“E amando te chamo...”.
“E amando sou teu...”.
“Por isso amo...”.
“Amo-te meu Deus!”.


Poeta e cronista
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sábado, 27 de setembro de 2014

OU AS PESQUISAS MENTEM OU O ELEITOR NÃO TEM MESMO VERGONHA NA CARA


Rangel Alves da Costa*


Nos últimos dias, a cada nova pesquisa eleitoral para a presidência é publicada mais me sinto enojado, envergonhado, indignado em viver pisando no mesmo chão que estes eleitores cegos, surdos, vendidos, coniventes, passivos, manipulados, desavergonhados e analfabetos políticos.
Juro que não consigo acreditar que em pleno mundo da informação ainda existam pessoas que se omitem em enxergar e compreender a realidade. E deslavadamente optam por aceitar aquilo que de pior representa para o seu próprio destino e do país. É lamentável que a modernidade tenha esquecido a maioria do povo brasileiro na idade da pedra lascada e este continue aceitando ser ludibriado por esmolas políticas e assistencialismos com o direito do contribuinte, e disso fazendo um aviltante contentamento.
Como é difícil ter de reconhecer que ainda existe um povo tão mentalmente atrasado, tão agradecido pela subserviência, pela submissão e manipulação. Um povo que cala seu sofrimento porque recebe uma esmola, uma gente que não tem coragem de dizer não porque o governo lhe tapa a boca com fubá de milho. Um povo preguiçoso, medroso, que agora acostumou a negar o próprio país pela subserviência consentida.
Um povo que nega o país sim, que prejudica o desenvolvimento e o progresso da nação sim, pois é o seu voto absurdo, a sua escolha desavergonhada, numa presidente ditadora e num petismo lamacento, que faz com que as mudanças estanquem e a politicagem corrupta tenha continuidade. Não discriminando nem preconceituando ninguém, mas é a irresponsabilidade eleitoral desse povo que poderá manter o Brasil nesse estado deplorável que está.
O que dói, indigna, causa asco e repulsa, é também saber que todos os brasileiros, indistintamente, acabam sendo reféns dessa maioria de analfabetismo político exacerbado, de cegueira eleitoral absoluta e de irresponsabilidades sem limites. Por causa dessa classe que se diz abençoada porque recebe uma esmola aviltante, chama uma arrogante de mãe e um descarado de pai, é que a situação chegou ao perigoso estado de agora. E de difícil contorno, acaso o destino de todos continue nas mãos dessa maioria de eleitores submissos e preguiçosos.
Como fazer então, o que fazer para que este povo compreenda que o petismo é pai e mãe da corrupção, da improbidade, da desonra política? O que fazer para que este povo compreenda que esta Dilma que se apresenta como salvadora da pátria não é outra senão a mesma general que cuida de manter tudo e todos debaixo de suas ferraduras? Como fazer para que este povo desperte do estado latente de hipocrisia e assuma seu próprio destino, que vá trabalhar para viver honestamente e não precisar vender sua alma ao diabo vermelho? Como fazer para que este povo entenda que o país não pode continuar regredindo, envolto em mentiras de desenvolvimento, por causa de sua escolha irresponsável?
Serei eu mesmo ou outro qualquer que se sinta na mesma indignação, que acabe saindo pelos quatro cantos retirando a venda dos olhos dessas pessoas, expurgando a surdez de seus ouvidos para que vejam, ouçam e sintam a realidade desse Brasil. Serão forçados a ver como a real situação da saúde pública, da educação, do mercado de trabalho, da moradia, da segurança, das estradas. Ou será que também possuem a cara de pau de achar que vivem às mil maravilhas, que este é o país dos sonhos e sua governante é uma deusa em pessoa?
Infelizmente, no andar da carruagem, todos terão de pagar o preço pela escolha de uns. Quando a pesquisa Datafolha desta sexta-feira 26/09 diz que a candidata petista já está com 40% das intenções de votos e que já ultrapassou Marina Silva num possível segundo turno, então cada vez mais se comprova a sentença acertadamente proferida por De Gaule: O Brasil não é um país sério! E além de não ser sério possui eleitores covardes, passivos, extremamente irresponsáveis.
Como ter orgulho de brasileiro diante dessa vergonhosa situação, dessa campanha petista criminosa e desse aplauso ao absurdo agora dado pelo povo? Faz-me imaginar que todos aqueles que saíram às ruas em junho de 2013 agora votam em Dilma, bem assim os que a vaiaram nos estádios de futebol. E também as famílias que têm os seus morrendo nos corredores dos hospitais, os pais cujos filhos não têm escola, os desempregados e subempregados que vivem vendendo bugigangas pelas ruas, todos aqueles que são cotidianamente assaltados por falta de segurança.
É verdadeiramente um país de difícil definição. Mas o povo eleitor petista é de conceito induvidoso: uma ralé que pensa que é rica com uma esmola, um escravizado que abençoa seu algoz, aquele que sorri e aplaude enquanto a ditadora joga mais uma pá de terra sobre a sua cova. E morre sorridente e feliz pela certeza que ajudou a destruir o Brasil.


Poeta e cronista
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Aquele que ama (Poesia)


Aquele que ama


Sou aquele que ama
como um livro terno de poesias
aberto em um campo de relvas e flores
e lido por olhos que vivem as palavras
e sentido como pétalas que exalam
o perfume mais suave do amor

sou aquele que ama
como a página de um velho diário
aberto nas tardes e noites de recordação
para reler os segredos de um coração
que já revelava todo o amor sentido
pela existência e por amar você.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 744


Rangel Alves da Costa*


“Pai, afasta de mim tudo isso...”.
“Esse cimento e essa pedra...”.
“Esse asfalto e essa buzina...”.
“Essa velocidade e essa violência...”.
“Essa arrogância e essa brutalidade...”.
“Quero a paz do campo...”.
“Quero a paz num casebre...”.
“Quero a paz na montanha...”.
“Então Pai, afasta de mim...”.
“Afasta de mim tudo isso...”.
“Esse vizinho que não me conhece...”.
“Aquele outro que me conhece demais...”.
“Esse estranho que passa me olhando...”.
“O desconhecido que mira o jardim...”.
“As sombras que rondam minhas noites...”.
“Os perigos que não adormecem...”.
“Quero viver com simplicidade...”.
“Nas distâncias matutas...”.
“Bebendo água de pote e pescando na lagoa...”.
“Colhendo frutas nativas...”.
“Ser um rei na rede de balançar...”.
“Então Pai, afasta de mim...”.
“Afasta de mim esse cálice...”.
“O cálice dessa falsidade...”.
“Dessa mentira e dessa traição...”.
“Dessa boca voraz...”.
“Que se abre para destruir...”.
“Desse olhar maldoso...”.
“Que mira querendo ressecar...”.
“Dessa mão infame...”.
“Que sordidamente quer apunhalar...”.
“Senhor, Senhor, grande Pai...”.
“Afasta de mim o cálice da ambição...”.
“Do egoísmo e da vaidade...”.
“Da ganância e da desonestidade...”.
“Da frieza mortal e da simulação...”.
“Da traição e da inimizade...”.
“Derrama por terra esse cálice...”.
“O cálice sedento de sangue...”.
“Gotejando punhais e brutalidades...”.
“Espalhando o vermelho da morte...”.
“Tornando ébria a vida consciente...”.
“Pai, então afasta...”.
“Afasta de mim esse cálice...”.
“Gota a gota da desilusão...”.
“Qualquer pingo que cause temor...”.
“De que amanhã seja tarde demais...”.
“Para tudo...”.
“Até mesmo para viver...”.
“Por isso Pai, afasta de mim...”.
“Afasta de mim esse cálice...”.


Poeta e cronista
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sexta-feira, 26 de setembro de 2014

CAJUARÁ, O GRANDE ABENÇOADO


Rangel Alves da Costa*


Cabe a você acreditar ou não, mas dizem que um turista português, após fotografar a Catedral Metropolitana de Aracaju de todos os ângulos, adentrou no templo para fazer outros registros, apreciar as imagens sacras, as pinturas, os aspectos arquitetônicos e logicamente obter algumas informações históricas. Estava fotografando numa das laterais quando foi passando uma beata já muito envelhecida, andando com ajuda de uma bengala e com um livro de rezas na outra mão.
Diante do turista maravilhado, a beata cumprimentou-o com um sorriso e depois disse: “Bonita, não é?”. E o homem do Porto prontamente respondeu: “Sim, muita bonita essa catedral, mas de arquitetura um tanto indefinida, vez que ao longe nos parece um estilo neoclássico ou mesmo gótico, mas a aproximação nos revela que as formas foram, na sua maioria, pintadas com nuances de relevo para dar impressão de verdadeiras intervenções arquitetônicas. Mas não deixa de ser belíssima...”.
“Mas isso não é nada. Na época que foi construída não dava mesmo para copiar um estilo europeu, vez que os europeus aqui chegaram muito tempo depois de ter sido erguida”, acrescentou a beata. Surpreso com a informação, o turista disse que não estava entendendo o fato de a catedral haver sido erguida antes mesmo da chegada dos europeus. Então a informante ajuntou: “Isso mesmo, pode acreditar. Quando os europeus aqui chegaram se arvorando de descobrimento, essa catedral, essa mesma que agora você admira, já havia sido construída há no mínimo cem anos. Quer dizer, esse templo foi levantado, com esse mesmo tamanho que tem hoje, por volta do ano 1400. Um pouco menos do que isso...”.
O português arregalou os olhos, espantado com o relato da velhinha. Mas esta continuou: “Essa catedral foi construída a mando do deus Acaragipe, que era a entidade superior do povo Seragipe, uma tribo indígena que habitava as margens dessa região desde os tempos imemoriais. Por ordem do grande abençoado Cajuará, que depois se tornou o primeiro pregador desse templo, a tribo inteira trabalhou noite e dia para levantar tudo isso que agora você fotografa. Portanto, quando os europeus aqui chegaram em 1500, desde mais de cem anos que o povo Seragipe já tinha sua catedral e tendo como pregador o grande abençoado Cajuará. Que, aliás, pregou naquele altar por mais de quatrocentos anos...”.
“Quatrocentos anos? Com mil perdões, mas a senhora quis dizer que alguém pregou naquele altar durante mais de quatrocentos anos? Desculpe-me, mas creio que a senhora deve estar equivocada, pois impossível que isso tenha acontecido, pois no mundo dos homens a pessoa não chega nem a cento e cinquenta anos, e a senhora agora informa que o grande abençoado Cajuará pregou por mais de quatrocentos anos. E quantos anos ele viveu?”.
“Tenho certeza que mais de quinhentos anos. E digo com certeza porque o conheci, e desde sua juventude...”. A beata não conseguiu prosseguir porque o turista, completamente espantado com mais aquela revelação absurda, tirou-lhe a palavra da boca para dizer: “Então a senhora quer dizer que conheceu o grande abençoado que viveu mais de quinhentos anos, então quantos anos deve carregar esse velho corpo?”.
E a beata informante não deixou o português sem resposta: “Quantos anos acha que devo ter? Mas isso não importa agora, pois falaremos disso depois, mas a verdade é que, e lembro como se fosse hoje, o grande Cajuará partiu dessa pra melhor, ainda com feição de jovem, após terminar a celebração do Ara-pagaio, que era a data mais importante da religiosidade Seragipe. Coitado, morreu após uma visão que teve ao sair naquela porta principal. Assim que colocou o pé do lado de fora viu diante de si uma coisa terrível: Um rio de sangue levando um povo indígena comandado por um tal de Cacique Serigy, todos massacrados pelas bestialidades de uns homens brancos que vinha atrás em vorazes embarcações. Depois disso, dessa terrível visão, o grande abençoado Cajuará foi afinando, afinando, até se transformar numa frágil chama de vela. E que situação difícil depois para o seu povo, pois...”.
“Pois o que? Já que chegou até aí diga logo, termine logo essa história sem pé nem cabeça”, foi o que conseguiu dizer o apalermado portuga. E a velha beata continuou: “Aflição do povo Seragipe porque o seu líder implorava que alguém soprasse logo aquela chama fraquinha de vela. Só que bastava um sopro e o grande abençoado morreria de vez. Por isso mesmo ninguém queria dar aquele sopro e levar para o resto da vida o remorso do acontecido. Mas, enfim, a mim coube dar um desfecho final àquela nobre vida...”. “Mas a senhora matou o homem, matou o grande abençoado?”, indagou quase aos gritos o assustado turista. “Não, pois apenas abri a janela para o vento entrar. E o vento soprou, apagou a chama, apagou a vida...”.
A beata lacrimejou ao relatar tal desfecho. O coitado do portuga, sem saber o que fazer, tencionou apenas se despedir da velhinha e correr para tomar um ar fresco na Praça Teófilo Dantas. Precisava fazer isso, pois aquela história o havia transtornado. Mas antes mesmo que se despedisse viu que alguém lhe acenava ao lado. Era outra velhinha. Imediatamente foi saber o que desejava. Então a mulher segredou-lhe: “Se Dona Ará lhe contou algo sobre a construção dessa catedral não acredite não. Ela tá caduca, meio desmiolada. Pois quem construiu essa catedral não foi quem ela diz não, mas sim Moisés enquanto peregrinava rumo a Terra Prometida”.
Ao ouvir essa última, o turista correu e se jogou perante o altar, implorando a Deus que não lhe permitisse enlouquecer tão longe de casa.


Poeta e cronista
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Na sua janela (Poesia)


Na sua janela


Procurei flores pelo campo
e depois enfeitei a sua janela

procurei araçá pelo mato
e depois coloquei em sua janela

escrevi um bilhete de amor
e depois joguei por sua janela

e fico escondido ao redor
olhando sempre pra sua janela

esperando que acaricie as flores
experimente da fruta gostosa
traga na mão as palavras singelas
e olhe adiante com sorriso na face.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 743


Rangel Alves da Costa*


“Pedras são flores...”.
“Espinhos são rosas...”.
“Dependendo do seu desejo...”.
“Do seu querer que assim seja...”.
“A paz é a guerra...”.
“O erro é destino...”.
“Dependendo do seu querer...”.
“Do seu próprio fazer...”.
“A água é lama...”.
“A lama é cristalina...”.
“Porque assim você quer...”.
“Porque assim você vê...”.
“O amor é o ódio...”.
“A amizade é desavença...”.
“Pois assim no seu instinto...”.
“Assim na sua propensão...”.
“O fogo ardente é carícia...”.
“As chamas são doces afagos...”.
“E não será diferente...”.
“Porque assim você quer...”.
“As primaveras são outonos...”.
“As folhas secas verdejam...”.
“E nada tirará a feição...”.
“Daquilo que você determina a ser...”.
“O deserto é jardim...”.
“A morte é a melhor sorte...”.
“Assim será para você...”.
“Porque tem o direito de escolher...”.
“O mar é todo asfaltado...”.
“Os barcos caminham na areia...”.
“E realmente assim será...”.
“Na sua concepção...”.
“Noites são manhãs ensolaradas...”.
“Passarinhos são gaviões...”.
“Assim foi e será...”.
“Na sua imaginação...”.
“O sexo é apenas saciedade...”.
“O prazer é a negação...”.
“Nada será diferente...”.
“Sim assim na sua mente...”.
“O tempo é apenas passado...”.
“A vida é sacrifício...”.
“Tudo é assim e será...”.
“E nada será diferente...”.
“Eis que tudo em você...”.
“Eis que o mundo em você...”.
“Eis que a vida em você...”.
“Mas porque tem a escolha...”.
“Que seja pela realidade...”.
“E não pela mera aparência...”.


Poeta e cronista
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quinta-feira, 25 de setembro de 2014

CANTO DA TERRA


Rangel Alves da Costa*


Canto a cantiga da terra, pois além de ser dela o barro da criação, também sobre o seu leito se estende todo caminho e destino, toda pujança da vida, o ventre da semente e do grão, a esperança espalhada na sua raiz. Sobre sua tez a flor e o espinho, a pedra como luta de sempre, a curva como alerta e cuidado, o seu calor abrasando a existência. Terra daqui e terra de lá, de meu chão sertanejo de veredas e sacrifícios, mas uma mãe cativante ao alimentar os seus filhos.
Não canto apenas a terra por onde os solados caminham para sobreviver. Não canto apenas o leito virgem, semeado ou devastado. Não canto apenas os braços abertos que acolhem moradias, currais, pastagens, plantações. Canto a terra e suas entranhas, suas veias e seus olhos que seguem seus caminhantes. E sempre hei de dizer que gosto tanto desse chão que piso que viveria com a alma nativa carregada dessas marcas por toda nuvem onde possa estar.
Árida, como é a doce e terna terra da minha aldeia, massapé, como também há por lá, ou mesmo barro batido, chão coberto de ponta de pedras e espinhos, lamaçal quando a chuva cai para alegrar a vida, tudo é leito e berço por onde se trilha a vida. Terra bruta, forte, valente, que empoeira no passo ligeiro do alazão. Terra amarela, vermelha, chão esturricado, tudo poeira na estrada, mas sempre terra, sempre chão, sempre caminhos abertos.
De manhãzinha a lavadeira desce o barranco com cesto cheio na cabeça e vai cantando enquanto olha por onde pisa; o vaqueiro acostumado com o cheiro do estrume deixa tudo secar sobre a terra e depois espalha novamente sobre o chão do quintal que é pra horta verdejar; o carro-de-bois vai cantando lentamente seu cantar gemido, enquanto o carreiro segue adiante abrindo caminho sobre os garranchos para a sobrevivência passar. Cuidado com a curva, cuidado com a moita e o bicho escondido na toca.
Sob sol e chuva o lavrador revira a terra, semeia, aduba de esperança e deixa o chão prenhe a vingar; o jardineiro acordou cedinho e ouviu da roseira que o chão está muito seco para que suas filhas nasçam sedosas, cheirosas para os enamorados; o limpador da praça de outono todos os dias se espanta com a terra completamente recoberta pelas folhas caídas das árvores. E quando mais varre o chão, mais passa o gadanho colhendo tudo, mais a terra fica ocre, amarelada, marrom, das folhas que caem e ficam se movendo, querendo voar.
De lado a lado tudo é meu, numa distância que os olhos nem podem enxergar. Há muito que sou dono de tudo, latifundiário por herança, senhor de tudo que nela cresce de onde estou até onde você nunca estará. Não tenho um só quintal ou um palmo de chão, mas tenho tudo que meus olhos desejam ter, pois o que vou plantar e colher só nasce nessas ilusões que a gente tem de ter muito, pois sobre tudo que está seco e desolado agora crescerá um trigal que de tanto pão e tanta vida que dará, um dia afastará de vez a fome do mundo.
Sei que a terra tem tantos donos que se cada grão fosse destinado aos seus senhores, ainda assim somente o pó para satisfazer a ânsia de ter. Milhões de hectares de um só senhor não significam, contudo, que este tenha um só pedaço de chão. O sentido de posse ou domínio apenas satisfaz o ego materialista, mas não o espírito que deseja sentir o fruto brotando. Nenhuma terra é de valia se nela nada frutificar. E tão rico é o seu ventre que se compraz enraizar apenas com o grão trazido pelo bico do passarinho ou pelo vento semeador. E na desolação vai brotando aquilo que ali ninguém imaginaria encontrar.
Silenciosa, quieta, solenemente fixada no seu chão, a terra não diz nem que sim nem que não, nunca demonstra o que acha dos destinos ou desatinos sobre si impostos. Mas não se esquece de cobrar o preço pelas incoerências.  E de repente seu brado raivoso. Sua voz já tanto cansada de ser transformada, desmatada, queimada, destruída, se abre num vozeirão. E que voz a bradar nas enxurradas, nos montes que desabam, nas encostas que se transformam em mar de lama e descem engolindo tudo, nos campos que de tão devastados não engolem mais a água e tudo vai escorrendo sem direção.
A terra vermelha de sol e a terra vermelha de sangue. Na beira da estrada há uma bandeira vermelha dizendo que por ali estão pessoas que precisam de terra para nela trabalhar. E justo que se exija pedaço de terra para plantar, colher e sobreviver. Mas não é justo que tornem um direito social e humano num meio abusivo e ilegal, através da semeadura da ameaça, do terror, da violência, da destruição. E desses conflitos o sangue jorrando onde deveria ser fincada uma bandeira de paz.
Foram-se os tempos dos descomunais latifúndios, das terras de eréu, das terras de ninguém. Atualmente, o fim social da propriedade não mais permite que as terras permaneçam sem uso nas mãos daqueles que apenas as possuem sem o devido aproveitamento. Mas também marcou o início do desaparecimento de muitas espécies de vegetação nativa, de animais e mananciais. Sem as grandes matas, sem o refúgio da flora pujante e acolhedora, não há como pensar em sobrevivência de tantos seres e espécies. Exemplo maior disso se verifica com o quase total desaparecimento do preá nas terras sertanejas.   
Há uma cruz na estrada por cima da terra, por causa da terra, na luta pelo chão. Há também uma vereda aberta na terra que leva a um mundo que poucos conhecem. E lá dentro, no meio da mata, o velho senhor da esperança, o catador de cada grão que pisa e se reconhece no chão, reúne suas últimas forças para perguntar se ainda restam os sete palmos de terra onde repousará no momento seguinte. Ou qualquer dia, com outro nome.


Poeta e cronista
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O silêncio (Poesia)


O silêncio

A estrada não me quer
pois não sei andar

a porta não me quer
pois não sei chegar

a noite não me quer
pois não sei sonhar

a saudade não me quer
pois não sei chorar

nem o amor me quer
pois não sei amar

mas tudo sei da vida
tudo sei de tudo
o silencio é meu falar
e me vê assim mudo
pois é cedo para revelar.



Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 742


Rangel Alves da Costa*


“Não vi a flor...”.
“Ela estava nas sombras...”.
“Em meio à escuridão...”.
“Não vi a flor...”.
“Apenas negrume...”.
“Apenas o véu enegrecido...”.
“Mas sei que era flor...”.
“E sei que ela estava ali...”.
“Não toquei...”.
“Não acariciei suas pétalas...”.
“Não senti seus espinhos...”.
“Mas era a flor...”.
“Sei que ela estava ali...”.
“Quem dera confirmar...”.
“Quem dera a luz...”.
“Quem dera o perfume...”.
“Quem dera o encanto...”.
“E a poesia...”.
“A poesia da flor...”.
“Nada disso na flor...”.
“Mas ela estava ali...”.
“Na escuridão...”.
“No negrume...”.
“Na noite escondida...”.
“Na noite retinta...”.
“Mas agora confessarei...”.
“Por que vi a flor...”.
“Ainda que não a avistasse...”.
“Por que senti a flor...”.
“Ainda que não a tocasse...”.
“Por que presenciei a flor...”.
“Ainda que impossível...”.
“Por que era tão bela flor...”.
“Ainda que sem a face...”.
“Ora, tudo tão fácil compreender...”.
“Somos instintos...”.
“Vivemos de sentidos...”.
“Afloramos a percepção...”.
“Ainda que no invisível...”.
“Ou perante o desconhecido...”.
“Eis que nossas ideias...”.
“Nossos desejos e pensamentos...”.
“Encontram os escondidos...”.
“Despertam os esquecidos...”.
“Revivem as inexistências...”.
“E realmente tanto faz...”.
“Que a flor estivesse lá...”.
“Pois ela estava em mim...”.
“E para mim...”.
“E por isso tão bela flor...”.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O ADEUS


Rangel Alves da Costa*


Os olhos semicerrados, a face já sem vida, ofegante, na pele a névoa da morte. Não havia mais qualquer força. Arfava somente em resposta ao último sopro de vida. E então, num gesto de expressão misteriosa, devagarzinho foi movendo um braço.
Moveu o braço e estendeu a mão na direção de quem estivesse ali para recebê-la. Talvez soubesse, pela voz ou pela simples presença, quem estava ali ao lado, rente a cama, quase se debruçando sobre o leito.
A mão estendida logo foi recebida e amparada pela outra mão. A mão fria que se entrelaçara logo deu sinais de alguma réstia de existência. Ao ser afagada e acariciada, correspondeu com um leve aperto. E inexplicavelmente foi apertando ainda mais a outra mão.
Era a forma de dizer que dizer que estava ali, que ainda estava presente. Mas também um gesto que expressava as palavras que não mais sairiam da boca. Um esforçado aperto que tencionava não só falar, mas talvez também abraçar, dizer que apenas o destino da vida naquele momento.
Nos olhos sem vida, as pálpebras movendo-se lentamente. Talvez quisesse abri-los, olhar pela última vez aquela paisagem ao redor. E que triste cenário. Sem a força da luz não conseguiria avistar o terrível sofrimento, a dor impiedosa, a indescritível aflição na face de cada um. E todos ali que eram tanto seus.
Um pingo de lágrima irrompeu num canto de olho. A boca estremecia forçando uma palavra, mas nada conseguia falar. Apenas a mão procurava apertar cada vez mais a outra mão. Seria a mão da filha, do filho, do esposo, de um neto? Não importa, eis que todos ali com um só nome: aflição.
E a lágrima jorrou um pouquinho mais. Houve um tempo de paz, saúde e felicidade familiar. A perfeição da vida, ainda que os desencontros e angústias também fossem cotidianos naquele lar. Mas tudo dentro da normalidade da existência, cujo prazer maior era mesmo a certeza da família.
Houve um tempo em que aquela mesma mão que agora dava o último aperto preparava o bolo, o doce, as iguarias tão apreciadas pelos seus. Mão abrindo a janela para o sol da manhã, levantando a roupa no varal, passando o espanador sobre os retratos na estante, chamando para o abraço.
Um tempo diferente, muito diferente daquele instante de terrível sofrimento. A casa sempre arrumada esperando a chegada de um e de outro, a cadeira de balanço sendo levada até o lado da janela para o tricô nos momentos de folga, o pequeno jardim sendo cuidado como criança nova.
Uma presença de fé incontida, se ajoelhando diante do oratório, fazendo preces, conversando com Deus, santos e anjos, mirando a luz da vela como se quisesse encontrar a face maior. Deus estava mesmo no seu coração, e assim sempre permaneceu, e muito mais presente assim que a saúde começou a fragilizar.
Não era fraqueza de idade, não era doença pela fragilidade do corpo. Primeiro remédio caseiro, depois o médico e os remédios de farmácia, e nada de melhorar. A vivacidade deu lugar à tristeza, a feição tão alegre se transformou num mármore melancólico. Parecia dez anos mais velha, parecia não ter mais tempo para viver.
Implorou para que não fosse entregue a um leito frio de hospital. Desejava partir entre os seus, no mesmo lar de uma vida inteira. Passava o maior tempo amargando o sofrimento em cima da cama, mas a família insistia em colocá-la numa cadeira de rodas e deixar que o sol da manhã aquecesse seu corpo. Ela gostava, mas ficava ainda mais triste.
Mas desde a manhã anterior que pediu para não mais sair do seu quarto. A família logo pressentiu o pior. E logo todos acorreram à sua presença. E naquela manhã quase nem respirava mais. E ao anoitecer só teve forças para estender o braço, segurar a mão e apertar.
Apertou ainda mais numa força desconhecida naquela situação. Depois repentinamente abriu os olhos e soltou a mão. A mão estendida foi juntada à outra e levada ao peito. Os olhos foram fechados. Mas a lágrima permanecia ali.
E ali permaneceu, eis que a morte também chora.


Poeta e cronista
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