SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 7 de fevereiro de 2021

RETRATOS NA PAREDE DA MEMÓRIA


*Rangel Alves da Costa


           O tempo passa, a gente vai envelhecendo, de repente já estaremos distanciados demais de nossos antepassados, nossas raízes familiares e de todo o convívio que nos permitiu chegar até onde estamos agora. Mas jamais esquecer.

Ora, não se pode esquecer as lições de um livro bom que sempre pede para ser relido em nossa memória. Página a página, vidas e suas sagas.

Mesmo que às vezes doa, que aflija por dentro pelas recordações, lembranças e nostalgias, ainda assim temos que olhar pra trás e avistar o que há de nós e o que há dos nossos que ainda podem ser avistados. Não nasci agora, não vim ao mundo sozinho.

Sou filho de pessoas que foram gestadas por outras pessoas, e daí um vínculo consanguíneo e familiar que jamais poderá ser negado em nome do esquecimento, da ingratidão ou do tanto faz.

Meu pai Alcino era filho de Dona Emeliana e Seu Ermerindo. Minha mãe Maria do Perpétuo, Dona Peta, era filha de Teotônio Alves China (o China do Poço) e Dona Marieta (Mãeta).

Sou neto deles, sou neto de Seu Ermerindo e Dona Emeliana Marques, e de China do Poço e de Mãeta. E estes também tinham suas raízes, seus berços familiares.

Com isto quero afirmar que minha presença de agora é um reflexo do ontem, do passado distante, do que foi brotado pelos meus até que em mim florescesse a vida.

Por isso não posso enxergar o espelho do presente sem avistar as velhas fotografias molduradas na parede do tempo e do coração. E quanta saudade dá!

Lembro-me, dentre tantas lembranças e nostalgias, dos santos no céu amadeirado do oratório de minha avó Emeliana, de seu gosto pelo Juazeiro do Padim Ciço e de sua voz firme dizendo assim e assim. Romeira, devota, uma sertaneja de rosário de contas e de promessas.

Lembro-me do coração perfumado de meu avô Ermerindo e do seu jeito firme, como a não querer revelar seu sentimentalismo e sua bondade.

Relembro seu armazém, sua mercearia, seus couros, seus fardos de algodão, seu balcão imenso e sua geladeira a gás nos fundos da venda. Lembro sua predileção pelos repentistas nordestinos e o monte de discos que ele trazia a cada romaria.

Meu avô China era um abridor de portas para os muitos amigos que possuía. Não recebeu apenas Lampião e o Padre Artur Passos em sua moradia, mas também comboeiros, andantes, mascates, pessoas que cortavam os sertões poço-redondenses.

Sua vendinha ao lado da casa era mais para prosear com os amigos do que mesmo como meio de sobrevivência, vez que possuindo algumas fazendas e sendo reconhecido como um de posses da pequena povoação.

Minha avó Marieta, Mãeta, vivia para os santos, para as rezas, para as igrejas, para abençoar quem passasse pela sua porta e para avistar o mundo, ali sentadinha ao entardecer em sua calçada.

Em dias de missa, e lá ia ela, toda miudinha, levando livros de rezas e crucifixos, levando sua cadeira de oração e seu xale de renda escura sobre a cabeça.

Meu pai Alcino sempre foi dividido em muitos, o Alcino político, o Alcino amante de seu sertão e o Alcino familiar.

Mas eu gostava mesmo era do Alcino sertanejo, aquele apaixonado pela terra, pelo seu povo, adorador de Tonico e Tinoco, catador de causos e histórias da saga sertaneja, aprendiz de escritor dedilhando em antiga máquina de escrever.

Inesquecível aquele Alcino saindo com sua pequena radiola e discos e indo até o cruzeiro da Praça da Matriz, e aí fazer ecoar pelas noites sertanejas o cancioneiro apaixonado de seu sertão.

Minha mãe Dona Peta, a fina flor do meu coração. Sem outras palavras para descrevê-la, senão aquelas que dizem sobre sua beleza, sua doçura humana, seu indistinto amor.

Costurava, bordava, pintava tecidos, gostava de fazer doces e comidas, possuía uma voz tão bela que os anjos se encantavam quando chegava à igreja.

E eu, eu sou uma parte de tudo isso, uma prenda viva de laços familiares, ou aquele que tudo faz para jamais se afastar daquele jardim de onde floresci.

Por isso que olho no espelho e me avisto em muitos. Não sou apenas Rangel. Sou Rangel de Alcino e de Dona Peta, mas também Rangel de Seu Ermerindo e de Seu China, de Dona Emeliana e Dona Marieta.

Tenho um nome, mas sou aquele que vem do sobrenome. 

 
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu sertão...






Nas águas das lavadeiras do Velho Chico...



Entre jardins e retratos (Poesia)


Entre jardins e retratos


Com um jardim abandonado
do amor apenas restou
o perfume de flores apaixonadas
o aroma das pétalas do corpo
borboletas voejando sobre nós

como um retrato emoldurado
do amor apenas restou
os inocentes brilhos no olhar
sorrisos que não conheciam a dor
cores envelhecidas buscando luz
 
como um amor agora desamado
agora apenas um jardim sem flores
um retrato que tristemente envelhece
poemas esquecidos dentro de cadernos
silêncios que clamam por saber
 
por que?
por que?
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - a menina do beco


*Rangel Alves da Costa

  

Sempre ouvia que tivesse muito cuidado com aquele beco. Era muito estreito, era muito escuro, era perigoso demais. E também sempre ouvia que seus pais somente moravam ali por não ter outro lugar pra servir como moradia. A menina morava ali, naquele beco. Ao saírem, seus pais pediam por tudo que ela não abrisse a porta nem a janela, que não atendesse se alguém chegasse batendo, e que nem pensasse em sair sozinha por aquele perigoso labirinto. Mas a menina, pela idade ou por curiosidade, aos poucos foi desobedecendo. Abria janela, abria a porta, metia a cabeça do lado de fora e ficava olhando se algo estranho acontecia. Mas certa feita olhou para um dos cantos do beco e imaginou estar vendo olhos mirando em sua direção. Noutra feita, percebeu que mãos acenavam chamando. Depois achava, porém, que era só imaginação sua. E de repente passou a avistar mais olhos, mais mãos acenando, e também vozes chamando seu nome. Tinha apenas treze anos. Aqueles olhos, aquelas mãos e aquelas vozes, no passo seguinte já estavam lhe oferecendo drogas. E aos poucos ela foi aceitando. Não durou muito e passou a ser abusada sexualmente. E ela foi deixando. Os pais chegavam da luta e não encontravam mais ela em casa. Quando muito, era avistada pelas sombras do beco. E não quis mais voltar ao lar. E foi seguindo de beco em beco, de escuridão em escuridão, até desaparecer nos caminhos.

 
Escritor
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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

DAS VIOLÊNCIAS DO CANGAÇO - UMA CRIANÇA NA MIRA DE AZULÃO


*Rangel Alves da Costa



Nascido a 06 de janeiro de 1932, atualmente aos 89 anos, Odilon é o único sobrevivente do terrível e triste episódio sertanejo conhecido como Chacina do Couro, ocorrido nos sertões de Poço Redondo a 13 de junho daquele ano.

Na chacina comandada pelo cangaceiro Gato, tendo ao lado Suspeita, Azulão, Medalha e Cajueiro, sete sertanejos foram mortos (Antônio Monteiro, o menino Galdino, Alfredo, Clemente, Doroteu, Zé Bonitinho e João de Clemente) na perversa e sangrenta investida. Mataram dois, depois mais três e mais dois, numa aterrorizante sequência de derramamento de sangue inocente.

Sim, pois todos que foram mortos eram completamente inocentes, nada tinham a ver com a ira de Lampião pelo sumiço de selas e arreios que haviam sido enterradas na região do Couro (na divisa de Poço Redondo com a baiana Serra Negra) e foram encontradas por Temístocles de Mané José, e depois levadas para a delegacia de Serra Negra e entregues ao delegado João Batista, irmão do coronel João Maria e do comandante de volante Liberato de Carvalho.

Mas foram inocentes sertanejos, moradores de fazendas pelos arredores, que sofreram, foram torturados e sete acabaram perdendo a vida pela fúria insana de Gato. Ora, que se imagine um perverso e frio cangaceiro recebendo ordens de Lampião para matar. Só que as ordens recebidas visavam outros sertanejos, e não os que foram mortos. Como não encontrou aqueles que deveriam ser executados, então a cangaceirama comandada foi fria e cruelmente matando quem encontrou pela frente.

E por pouco Odilon, com apenas seis meses de vida, não entrou para a terrível estatística. Não teve a mesma sorte o menino Galdino, que contava com apenas sete anos quando foi morto. Talvez tivesse sido os sorrisos e os gestuais tão próprios das crianças que livram da morte Odilon.

Quando os cangaceiros chegaram à casa de seu avô Antônio Monteiro, sua avó e sua mãe logo foram amarradas. Monteiro, o patriarca, seria levado como troféu. Dona Maria, avó de Odilon, foi amarrada sentada ao chão e presa junto à madeira da cama. Já sua filha Olímpia, mãe da criancinha, foi amarrada, e por apenas um braço, no cadilho da rede onde seu filho estava deitado.

Em recente conversa com Odilon, o mesmo confessou que depois ouviu dizer ter sido salvo pelo milagre que protege toda criança, pois uma arma chegou a ser apontada em sua direção. Deitada na rede, sorrindo, esperneando, gesticulando feliz como toda criança faz, Odilon nem de longe imaginava a tragédia ao redor nem o significado daquelas feras humanas olhando em sua direção.

Mas quando Azulão apontou em sua direção, antes de apertar o gatilho outro cangaceiro apressou-se a dizer que se matassem uma criança daquela nunca mais seriam nada, o pior destino estaria logo adiante. Então Azulão retrocedeu e a cangaceirama saiu da moradia levando amarrado Monteiro, o avô da criança. E para logo ser morto.

 
Escritor
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Lá no meu sertão...


Em preto e branco...



Feliz (Poesia)


Feliz


Feliz eu sou
no amor

o amor em si
não tem culpa
de minha tristeza
minha solidão
ele me quer amando
e fazer feliz o coração
 
por isso feliz eu sou
no amor
 
o amor se resguarda
para amar de verdade
mesmo sofrendo
mesmo desalentado
mas sabe que um dia
enfim será amado
 
por isso eu sou
feliz no amor.
 
 
Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - do visgo da terra


*Rangel Alves da Costa

 

Não sou nada além que um sonhador, passarinho avoador, contador de histórias do que passou. Minha sabedoria é de barro, da lama do tanque, do visgo da terra, como moringa e pote que Dona Benvinda moldou. Pele de croatá, cabelos de raspa de umburana, buscando ninho como faz Fogo-Pagô. Nas mãos o couro forjado por Brasilino, no vestir o que Zé de Bela costurou, no coração um sino de igreja que Seu Galego Ferreiro inventou, benzido e protegido no ramo que Dona Zefa passou. Avoante Quero-Quero, Tem-Tem que desencantou, passaredo passarinho que do sertão não arribou. Assim que sou, como sou. Um filho da terra crua, debaixo do sol e da lua, como Dona Peta gestou e Seu Alcino ensinou...

 
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com