ANTES QUE ANOITEÇA
Rangel Alves da Costa*
O dia foi todo ensolarado, as nuvens nem sequer se intrometeram na imensidão azul do pintor. Certamente será noite aberta, de lua imensa e cheia, de estrelas faiscantes, de mistérios e inspirações.
Mas antes que anoiteça há ainda muito a se fazer, pois quando o negrume chegar, o lobo der o seu primeiro uivo lá em cima de sua montanha, já é tempo de viver outra vida, fazer aquilo que a lua abençoa e o silêncio agradece.
Por isso antes que anoiteça adentre o mato e a vereda, vá de facão e cordame, com força e destemor, colher a lenha que falta para a fogueira de mais tarde e da manhã seguinte. Há de ter um café torrado, um milho torrado, uma chaleira de chá, uma labareda para iluminar os olhos de quem tanto ama.
Quando a noite chegar a chama já está acesa, os corpos já estão suados mesmo na friagem que soprará na rede estendida lá fora. Com o vento direcionando a labareda, somente a lua pra enxergar o beijo, o toque, o abraço, o entrelaçamento do desejo, tanto amor, imenso prazer.
Por isso antes que anoiteça coloque milho pras galinhas, encha os cacos de água limpa, jogue água nas plantas, varra a casa e o quintal, tire a roupa do sabão, estenda a roupa no varal, rale logo o cuscuz, separe a carne do sol pra assar, pegue a frigideira e os ovos de capoeira, não esqueça nada.
Quando a noite chegar não haverá mais prato na mesa nem nada caseiro a fazer. Abra a porta e a janela, deixe a ventania entrar, caminhe em direção à malhada e olhe ao redor, sinta o misterioso murmúrio, ouça as vozes da natureza e o farfalhar das folhagens. O tamborete estará bem ali, pois de tronco de pau fincado na terra. Olhe pra lua e sorria, diga que é feliz e comece a dedilhar a viola.
Por isso antes que anoiteça coloque gás na lamparina, procure o caderninho de folhas ainda em branco e a caneta na gaveta da mesinha, lembre com saudade de alguém e escreva uma carta bem bonita, diga que os dias são mais tristes com sua ausência e está engordando um capão pra quando voltar. Vai fazer uma panelada de caldo bem grosso, depois separar pra fazer um pirão amarelado de doçura. Quando se fartarem na mesa, estenderão duas redes no alpendre e falarão sobre as novidades e as coisa simples e boas de se conversar.
Quando a noite chegar abra o armário, procure pelos cantos até encontrar aquela garrafa de vinho, o litro de pingo da terra, o restante do licor que já não vê faz tanto tempo. Escolha o seu sabor, escolha a dose da noite, aquela que mais alente seu espírito e sacie a sede do momento. De copo ou caneca à mão, saia pra fora, vá ver a noite estrelada, troque uma prosa sozinho, diga a si mesmo que não há vida mais bela e feliz do que aquela que Deus lhe deu.
Por isso antes que anoiteça coloque água na moringa e leve o barro molhado até o umbral da janela, debulhe o feijão de corda para o almoço de amanhã, coloque mangaba no molho que é pra carne separar do caroço e virar o sumo mais gostoso do mundo. Ouça o locutor dizendo que alguém apaixonado oferece aquela singela página musical ao seu amor que está distante, e depois ouça com atenção a letra e a melodia da música antiga e apaixonante. Mas não chore não, ainda não, somente quando a noite chegar e a saudade apertar ouvindo a melodia que o vento traz.
Quando a noite chegar, e antes de sair para a noite lá fora, se ajoelhe aos pés do oratório, faça uma prece, agradeça, acenda o incenso e a vela, converse com seu Deus, seus anjos e santos, depois beije na conta do rosário e se benza. Livre estará dos pecados do pensamento, das fraquezas da mente, das vontades que surgem no meio da noite, embaixo da lua, envolto em tantos mistérios. E porque pensará em amor, vai querer amar, por isso mesmo já saia pra noite que chama apenas com a parte humana do seu corpo. Deixe o espírito diante da Bíblia, iluminado ao clarão da vela.
Sinto que a noite chegou e pelo telhado disforme já vejo um pedaço de lua. Desculpe, mas o negrume me chama, preciso viver esse momento. Venha comigo se você quiser. Jogo a esteira no meio do tempo e lhe conto uma história bonita.
Poeta e cronista
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