SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

MEDOS E ASSOMBRAÇÕES


Rangel Alves da Costa*


Os medos e assombrações de agora são muito diferentes daqueles temores e aparições de outros tempos, eis a conclusão de alguns amigos conversando na pracinha interiorana. O que agora arrepia é o medo do vivo, daquele que violentamente surge para praticar o mal, daquele que aparece a qualquer hora do dia para aterrorizar a vida do próximo. Muito diferente de tempos outros e suas almas do outro mundo e suas histórias de arrepiar.
Do nada, como se diz por lá, foi surgindo um leque de histórias e estórias do arco-da-velha, dos tempos de luz somente da lua e das noites de escurecimento de breu. Então se avolumaram as recordações dos causos passados boca a boca de geração a geração, sem esquecer os acontecidos mais recentes e nos quais muitos haviam conhecidos como testemunhas. E naquela noite foram sendo relembrados causos de aparições, de assombrações, de gente virando bicho, de alma penada, de mistérios sertanejos, de desconhecidos e inexplicáveis.
Francisco, um moço bom vindo das terras ribeirinhas de Curralinho, conhecedor sem igual de prosas antigas e relatos recentes sobre coisas do outro mundo pelas beiradas do Velho Chico, debulhou uns dois ou três causos de arrepiar. Contou a história de uma procissão que era avistada ainda na escuridão da madrugada. Relatou também a história de uma família que chegou desesperada à povoação, já altas horas da noite, depois que sua casa foi atacada por um negrinho endiabrado.
Segundo Francisco, não fazia muito tempo que pelas beiradas do rio começou a ser espalhada uma história de fazer estremecer qualquer um, e que dificilmente poderia ser negada em virtude da credibilidade da pessoa que a havia testemunhado diversas vezes. Esta pessoa, um senhor acostumado a levantar na semiescuridão da madrugada, de vez em quando avistava, do alto onde morava, uma procissão saindo do cemitério, fazendo o mesmo percurso, para depois retornar e sumir no mesmo lugar. Do cemitério, percorria aquele mesmo chão e depois desaparecia sem deixar qualquer vestígio de sua passagem.
Outra estranheza de caso relatado por Francisco diz respeito ao negrinho, miúdo e esquisito, do nada surgido para atormentar a vida de uma família moradora nos escondidos do sertão. A tal família vivia numa casa construída e abandonada pela administração, numa elevação, ao lado de uma caixa d’água distante de tudo. Ao invés de a prefeitura reivindicar a saída do imóvel, quem o fez foi um ser espantoso, escurecido, quase no porte de um menino, que apareceu “virado na peste”. Surgiu do nada, furioso e com força descomunal, começou a fazer despencar tudo o que encontrava pela frente. Aterrorizada, sem poder enfrentar aquela criatura desconhecida, a família não fez outra coisa senão correr porta afora até chegar esbaforida ao Curralinho. E nunca mais retornou à localidade. Até hoje o fato continua sem explicação.
Jorge de Iolanda, outro sertanejo que não abdica de uma boa prosa, foi buscar na memória relatos antigos de assombrações pelas ruas do lugar e arredores. Então recordou que antigamente era costumeiro se ouvir acerca do cavaleiro da noite, acontecimento que já se prolongava desde os tempos dos avôs e bisavôs. Segundo o relato, nas noites sem lua, quando as portas já estavam fechavam e a maioria da sertanejada já roncava do cansaço do dia, então se escutava um trotar pelas ruas. Ouvia-se, nitidamente, um cavalo passando a galope, indo e voltando, até sumir sem jamais alguém ter avistado nem o cavalo nem o seu cavaleiro. Era o cavaleiro da noite, que muitos afirmavam ser a alma penada de um velho vaqueiro.
Ainda da narrativa de Jorge, mas de acontecimento mais recente, é a aparição do menino sorridente. Diz o relato que algumas pessoas de Poço Redondo confirmam ter avistado, nas altas horas da noite e sempre numa esquina após o antigo Tanque Velho, um menino que sempre sorri para quem consegue avistá-lo. O fato ainda acontece nos dias atuais, e por isso mesmo muitos evitam passar por aquele lugar no meio da noite. Morador nas proximidades do local onde o menino aparece, Jorge afirma que nunca avistou a aparição, mas se algum dia acontecer só espera ter pernas para correr e entrar em casa sem sequer abrir o portão.
Foi da lavra de Tonhão a recordação de pessoas que viravam bicho. Logo veio a lume os nomes de Ranulfo e João Valentim, o primeiro em Poço Redondo e o segundo em Monte Alegre. No passado, estas eram tidas e havidas como pessoas que se transformavam no bicho que quisessem. João Valentim ganhou fama por avisar com antecedência no bicho que iria se transformar e onde iria aparecer em determinada hora da noite. Já Ranulfo disse que estaria presente num forró, mas que ninguém conseguiria avistá-lo. Dito e feito, pois apareceu um rato no meio do salão, zanzou por todo lado e nenhum forrozeiro conseguiu alcançá-lo.
E bem assim outras histórias, outros causos, de fogo-corredor pelos arredores, de fantasmas e estranhezas, de coisas do outro mundo. E já era tarde da noite sem lua.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


Zé Leobino aos 93 anos, uma baraúna sertaneja que se mantém frondosa. Afamado vaqueiro, mestre de cavalhada, homem de história e prosa, símbolo vivo de Canindé do São Francisco e região, no sertão sergipano.




O frágil amor (Poesia)


O frágil amor


O amor é frágil
uma vela acesa
um ramo de flor
um sopro de brisa
tudo tão leve
que vive
e se vai
assim

o frágil amor
quando a vela apaga
a flor vai murchando
e a brisa não sopra
deseja ser outro
ser outro amor
verdadeiro
sem fim.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - na hora do pênalti


Rangel Alves da Costa*


Não há instante de maior tormento que aquele antecedendo a cobrança de um pênalti. A trave, o goleiro, a marca na cal, a bola e o jogador. Dois minutos, ou menos. Contudo, toda a parte aflitiva se inicia mesmo quando o jogador coloca a bola no local da cobrança e recua. Ao recuar dois ou três metros e até que ouça o apito do árbitro, eis o verdadeiro martírio. Os olhos miram a bola, miram o gol, sentem o goleiro, se mostram atormentados. É neste breve espaço de tempo que o mundo revirava, que tudo acontece, que os mistérios da mente iluminam ou assombram. O que pensa o jogador esperando o árbitro apitar, o que vem à mente do jogador diante da bola e do gol, o que envolve o jogador ante tamanha responsabilidade? Mesmo com estádio cheio, nada mais que um silêncio profundo envolvendo o jogador. Não ouve nada, não ouve seu nome sendo cantado ou vaiado, não ouve absolutamente nada. Espera ouvir somente o apito. E também a mais profunda das solidões. Sozinho porque se sente como num vazio, num distanciamento de tudo. Tudo depende de si, de seus pés, de seu acerto, mas sequer assimila tão grande responsabilidade. É apenas um ser que, às vezes, é simplesmente conduzido pelos deuses da bola que, impulsionando o seu corpo e colocando seu pé no local exato da bola, provocam o chute certeiro. E só retorna ao mundo depois da reação da torcida. Seja gol ou não.


Poeta e cronista
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domingo, 28 de fevereiro de 2016

UM MENINO MUITO TRISTE


Rangel Alves da Costa*


Até parece que avisto agora aquele menino. Minha mente forma retrato e moldura daquele menino. Ei-lo ali sentado, cabisbaixo, com as mãos sobre os joelhos, em meio a um meio capinzal de horizonte sombrio. Quanto mais fecho os olhos em reflexão mais o encontro na sua moldura de silenciosa aflição. Está triste, muito triste o menino.
Dificilmente se avista um menino assim, todo entregue a tristezas. O pensamento costumeiro é de um garoto sorridente, apressado, cheia de vida e de sonhos, atrás de fatos novos para sua idade. Menino triste é difícil de encontrar, principalmente quando sua fotografia mais parece de alguém prostrado em sofrimentos.
Há muitas fotografias de solitários entristecidos pelos montes, pelos campos, nos passos do entardecer. Também de pessoas mais envelhecidas pelos bancos das praças, ladeadas por pombos e entristecimentos. Ou olhares tristes pelas janelas, calçadas, escondidos e frestas de portas e janelas. Mas não é normal quando se trata de um menino.
Mas voltando a ele e seu retrato, o mesmo tem pele clara, cabelos negos, veste uma calça azulada e uma camisa em tom mais claro, só que pouco se vê ante uma coberta dobrada que se deita sobre o seu umbro e vai descendo pelas costas. O capim está retorcido pela ventania, pelos arredores um tempo nublado e tão entristecido quanto o menino. Não se sabe se longe ou perto da cidade, pois já sombrio ao redor.
Há uma paisagem melancólica neste retrato. O menino, ainda que de perfil, verdadeiramente se mostra com semblante alquebrado, abatido. Seus olhos talvez marejados se voltam para a linha onde o capinzal se estende, mas certamente nada avista além do que o seu sentimento expressa. Deveras aflitivo ver e sentir um menino assim, tão triste, muito triste. O que teria acontecido?
Há um poema de Drummond, “Consolo na praia”, que assim diz: “Vamos, não chores… A infância está perdida. A mocidade está perdida. Mas a vida não se perdeu. O primeiro amor passou. O segundo amor passou. O terceiro amor passou. Mas o coração continua. Perdeste o melhor amigo. Não tentaste qualquer viagem. Não possuis casa, navio, terra. Mas tens um cão. Algumas palavras duras, em voz mansa, te golpearam. Nunca, nunca cicatrizam. Mas, e o humour? A injustiça não se resolve à sombra do mundo errado. Murmuraste um protesto tímido. Mas virão outros. Tudo somado, devias precipitar-se – de vez – nas águas. Estás nu na areia, no vento... Dorme, meu filho.”
Traduzindo para a realidade do menino triste, então se poderia ter: Vamos, menino, não fique assim. Talvez este silêncio na tarde, talvez este recolhimento solene, talvez esta distância de tudo, seja o instante que precisa para esquecer as dores, as angústias surgidas e as desilusões persistentes. Mas ninguém sabe o que te move ao sofrimento. Somente você, menino, conhece o que flui deste sentimento. Um adeus forçado a dar, uma distância que não queria ter, uma ausência que não consegue suportar, uma sombra que não consegue iluminar. Imagina-se, mas ninguém sabe o que te move ao sofrimento. Tenha agora um lenço estendido e uma mão pedindo que levante. E depois segue menino. Levanta-te e vai que o mundo é teu.
Mas menino, menino, a idade que tem não é a idade de sofrimento. Tudo pode ter acontecido, bem sei, mas somente algo muito doloroso para, entristecido, prostrar-se entre galhos e açoites, com uma feição tão dolorosa quanto um desacreditado de tudo. Logo a noite chegará e não há lua nem estrela que desejem iluminar as dores da tua face. O que enxerga adiante, o que lhe vem ao pensamento, o que o deixa assim?
Eis os mistérios da existência, da mente humana, da alegria e da dor em cada ser. Os moinhos são movidos pela ventania, mas, e a tristeza profunda de um menino? Um amor desfeito de infância, um pé de laranja lima que foi cortado, um desejo negado pelos pais, algo tão querido que deixou de existir? Somente você sabe menino. Mas saiba que também dói nos outros uma infância sofrendo assim. E o adulto também entristece e chora perante o teu retrato.
Não sei se mais tarde, quando a noite cair e a lua for apenas tênue sobre sua imagem, o menino ali continuará na mesma posição e no mesmo estado sentimental. É que, em situações assim, o tempo passa sem que se aperceba que a realidade passada já foi transformada. E basta levantar para novamente viver. Não sei se ele permanece por ali, sobre o capinzal e envolto na escuridão, mas desejo que uma lua grande recaia sobre seu olhar. E ele possa voltar a sorrir.
Não há mais tarde de revoada nem canção de despedida. Um sino logo dobrará outra tristeza distante. Não consigo mais avistar o menino.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


Outro dia fui menino. E havia em mim um Poço Redondo de meninos nus, de banhos de riacho, de correrias e brincadeiras. Outro dia já estava rapaz. E havia em mim um Poço Redondo de festas de agosto, de bailes no mercado, de sonhos bonitos. Outro dia eu olhei para trás e somente avistei as distâncias de um inesquecível passado. E chorei. Ou não serei se chorei, pois os olhos já cansados de tempo se molham sozinhos. Ou quando sente saudade daquele Poço Redondo.



Simpatias para o amor (Poesia)


Simpatias para o amor


Você pega três folhas
de bem-me-quer
diz o nome da pessoa
e deixa dormir ao luar
e logo ao amanhecer
vai separando as folhas
uma para jogar na rua
outra para o vento levar
e outra para cem beijos

se assim não der certo
encha uma bacia com água
coloque debaixo da lua
e imagine o rosto da pessoa
deixando dormir no sereno
para servir de água de banho
misturada com arruda
folha de juá e flor de lírio
e derramada sobre o corpo

e se mesmo assim não der certo
escreva uma carta, um poema
ou vá até lá e confesse seu amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - raízes familiares


Rangel Alves da Costa*


Chega-se a conclusões estranhíssimas imaginar de onde vem a raiz familiar, principalmente se houver consideração que o passado consanguíneo não acaba no bisavô ou no tataravô. Nesse passo, certo é que o avô do avô também será consanguíneo, igualmente o tataravô do tataravô, até a raiz primeira. Mas onde estará a raiz primeira? No caso brasileiro, nos portugueses, nos indígenas, nos negros, e nas gerações destes. No caso do português, que tem sangue europeu, então logo se supõe as distantes brumas na raiz familiar. A verdade é que, neste sentido, não se pode afirmar de uma família fechada, acabada, partindo de uma geração e prosseguindo adiante, pois o laço familiar é sempre mais longo do que se imagina. E não seria errôneo dizer que sou parente de reis, de piratas, de mercadores, de conquistadores, de sanguinários, de todo tipo de gente que existiu ou possa existir. Contudo, o mesmo não corre se se deseja delimitar famílias pelos seus sobrenomes. Ainda assim tudo muito distante, no além-mar e além-fronteiras, pois o Alves é o mesmo Álvares, o Rodrigues é o mesmo Roriz, e assim por diante. E sobrenomes colonizadores, vindos das distâncias e de raízes desconhecidas.


Poeta e cronista
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sábado, 27 de fevereiro de 2016

SOU DE DEUS


Rangel Alves da Costa*


Sou de Deus. Todo, completo, inteiro, integralmente de Deus. De suas mãos nasci pelas suas mãos serei chamado. E o que me pertence é apenas o corpo agraciado pela presença terrena.
Sou de Deus. Eis que sou seu filho. Ao meu pai devo respeito, obediência e veneração, ainda que muito ainda tenha a fazer para que meus atos e minhas ações possam sempre alegrar seus olhos.
Sou de Deus. E outro dono nenhum direito jamais terá sobre mim. Não serei escravizado por ídolos nem ilusões, não serei conduzido por falsos profetas, pois é na casa de meu pai que se revela a mais segura das moradias.
Sou de Deus. Nem a espada desconhecida nem a tentação do deserto diminuem minha certeza e meu encanto de ser de Deus. Abomino deuses que chegam em alarde e me regozijo no silêncio da casa do pai.
Sou de Deus. Minha família terrena colheu no barro da fé e moldado eu fui como um filho de Deus. Argila santa nos meus olhos, na minha boca, em minhas mãos, inquebrantável até que o pai sopre meus grãos e ao pó retorne à sua moradia.
Sou de Deus. Sou do Deus dos humildes, da simplicidade, da modéstia, da prudência, do equilíbrio. Nada além do que foi pregado, do que foi mostrado como caminho humano, pois não bate à porta do pai aquele que não soube seguir seus ensinamentos.
Sou de Deus. Muito mais que um Deus retrato, figura, imagem e símbolo, sou de um Deus luz, força, piedade, acolhimento e retribuição. O Deus da onisciência, da onipresença, da onipotência, tão tudo e acima de tudo, mas que placidamente possui altar no meu coração.
Sou de Deus. E quem não for de Deus que não pergunte a mim quem é este pai, onde mora, como pode ser alcançado. Jamais será filho aquele que não se reconhece como fruto de um pai. O filho que reconhece o pai também conhece a sua moradia.
Sou de Deus. E de um Deus de preenchimento e grandeza. Por isso que não sou alcançado pelo nada, pelo vazio, pelo caos. Por isso que os labirintos fogem de mim e as escuridões perversas do mundo se escondem ante minha luz.
Sou de Deus. E também sou do homem. Mas do homem que tenha a Deus, que também seja seu filho, e desta raiz a filiação que seja amigo verdadeiro, que seja fraterno e humano. Um humano de Deus, não apenas humano.
Sou de Deus. Meu pai me chama, conversa comigo, ouço sua voz, sinto sua presença. Há um canto de passarinho, há uma aragem refrescante, há uma fonte de água boa, há uma relva para o silêncio e a poesia. Em tudo a presença de Deus.
Sou de Deus. Caminho com Deus e ao seu lado vivo em toda caminhada. Subo no monte e avisto a grandeza da criação, sigo pela estrada e encontro as graças da criação, medito e me reconheço como fruto dessa criação.
Sou de Deus. Sou daquele Deus que está na fé sertaneja, na religiosidade do povo caboclo, na vela acesa que chameja aos pés do oratório, nos joelhos que se curvam para a oração, na eucaristia e no silêncio do templo cristão.
Sou de Deus. E nada seria se não fosse de Deus. E nada teria se não fosse de Deus. Que esperanças posso ter, que obras poderia realizar, que sonhos e realidades poderia concretizar sem um pai que construa por mim e me peça para preservar?
Sou de Deus. Mesmo na angústia, na agonia, no entristecimento, na dor, sou de Deus a sua presença. Um tempo houve de padecimento no deserto, de tentação e desencorajamento, mas nada vencido. E neste espelho o encorajamento para os desafios.
Sou de Deus. E que vá além de mim o eco sincero dessa minha fé. Uma fé ultrapassando vales e montanhas e ainda ecoando que sou de Deus.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


Em remanso leve, poético e melodioso, o Velho Chico se mostra antes do anoitecer. Cenário deslumbrante do São Francisco cortando o sertão sergipano, no povoado Curralinho, município de Poço Redondo. 





Poema/mundo (Poesia)


Poema/mundo


Conheço uma poesia
mais verdadeira que a minha
está na realidade do submundo
que ainda acreditam ser mundo

conheço uma poesia
mais pujante que a sua poética
está nos sonhos mortos à desvalia
sem que a esperança lhe desse a mão

conheço uma poesia
mais dolorosa que a de todo poeta
está na miséria e na sangria aberta
daqueles que choram suas tragédias

conheço outras poesias
que nenhum poeta ousou escrever
e estão nas faces e nos olhos vivos
daqueles que o mundo já os sepultou.


Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - nossos distorcidos olhares


Rangel Alves da Costa*


Alguém já disse que enxergamos não como são as coisas, mas como queremos que as coisas sejam. Quer dizer, distorcemos as realidades por força de nossos desejos, nossos quereres, nossas pretensões. Por mais que seja um dia ensolarado, de repente insistimos em dizer de um dia nublado, chuvoso, muito diferente de sua realidade. Por mais que conheçamos um fato e sua verdade, pode surgir um interesse maior em distorcê-lo completamente, transformando uma certeza em algo discutível. Por mais que amemos, que nos confessemos amantes, que nos ajoelhemos implorando seu merecimento, ainda assim comumente negamos nossos corações, nosso interior. Triste, lamentável que assim aconteça, mas a verdade é que moldamos tudo ao nosso modo, pintamos tudo com nossas próprias paisagens, fotografamos tudo perante nossa própria lente impositiva. Por consequência, somos maus artesãos, maus pintores, maus retratistas. E tudo seria diferente com a aptidão de recursos muito simples ao ser humano: humildade, compreensão, sinceridade. Ora, uma manga é uma manga. Mangaba é outra coisa. Uma pinha é uma pinha. Um pinheiro é outra coisa. A vida é a vida. A morte é seu inverso. E o amor sempre será aquilo que brotar no coração. E que não se possa negar.


Poeta e cronista
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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

PERFUME DE MULHER


Rangel Alves da Costa*


Quando cito perfume de mulher que não se imagine que tenha algo a ver com frascos, fórmulas ou perfumarias. Também não diz respeito a nomes de perfumes: Toque de Amor, Charisma, Lavanda, Chanel n. 5, Opium, Jadore, Gabriela Sabatini, Biografia, Floratta...
Também não digo respeito à química industrial contida nas fragrâncias, nos aromas, nos cheiros e nos bálsamos. Mas sempre a respeito de uma coisa bem simples e grandiosa: o perfume natural da mulher.
Digo, pois, do aroma do corpo, do perfume do corpo, da fragrância do corpo, do cheiro do corpo, do bálsamo do corpo, da cosmética perfumada, deliciosa e encantadora, sempre presente num corpo de mulher.
A mulher flor, a mulher rosa, a mulher jasmim, a mulher gardênia, a mulher manacá, a mulher lavanda, a mulher alfazema, a mulher camélia, a mulher lírio, a mulher calêndula, a mulher orquídea, a mulher flor do campo... Um jardim que é mulher, um corpo que é flor, uma flor que exala.
Mas também a mulher cheirando a fruta gostosa, olorosa, apetitosa, da estação. Mulher que faz exalar um perfume bom de manga madura sendo chupada, escorrendo pela boca, pelos dedos, provocando um querer mais. Mulher cheirando a sapoti docinho, a jabuticaba caída do pé, a araticum quando se abre em polpa macia e cheirosa.
Não é em vão que a erotização do morango e da goiaba remete ao sexo feminino. Assim também com a maçã e a pera. Mas não é preciso morder para sentir o perfume de cada fruta. Menos que o paladar, importa sentir a simbologia feminina, a presença feminina, o leve aroma feminino.
Jorge Amado fez bem ao fazer de sua Gabriela perfumada de cravo e canela. Há perfumes mais gostosos de sentir, mais prazerosos ao olfato e mais atraentes do que o do cravo e da canela? Ademais, lembram perfumes morenos, trigueiros, queimados de sol, jambeados, apetitosos, assim como um corpo de mulher. No corpo de Gabriela e tantas outras que vivem exalando as mais perfumadas essências.
Gabriela e seu perfume moreno, saboroso, gostoso, apetitoso de cravo e canela. Não foi sem razão que marinheiros e mercadores tanto arriscaram a vida pelos mares e tormentas em busca de tais especiarias. Buscados nas distâncias do mundo, o cravo e a canela valiam ouro. E ainda valem enquanto perfume de mulher.
Em Cem Anos de Solidão, Gabriel Garcia Márquez fala da bela Remédios que vivia envolta em flores e borboletas. Então se imagina aquela beleza ingênua, de fragrância floral sobre o corpo, deitada sobre um leito de pétalas. E borboletas bailando ao redor, dançando a dança das flores, de vez em quando colhendo do doce néctar.
Muitas mulheres existem que basta um olhar para que perfumes sejam sentidos, ainda que nenhuma lavanda tenha se derramado sobre o seu corpo. Mulheres que parecem cheirar a chocolate bom, a café gostoso, a hortelã macerado, a amanhecer de primavera, a incenso levemente queimando alfazema, erva doce e manjericão.
Tais perfumes de mulher, por não dependerem de frascos ou de fórmulas, são mais sentidos pela visão do que pelo olfato. Sequer depende de presença ou de aproximação. Aliás, o verdadeiro perfume de mulher é muito mais exalado através do pensamento. Mesmo distante, se imagina a mulher e nela um jardim, uma especiaria, uma horta de quintal, um pomar, um aroma perfeito.
Há um cheiro bom de suor sobre um corpo abraçado, há uma fragrância indescritível na aproximação de quem se deseja, há um aroma que exala na saudade e nesta o perfume que não quer mais partir. É por isso que tanto perfume há em abraçar o outro, estar juntinho do outro, estar como flor do outro.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


Fé sertaneja. Via-sacra pelas estradas. As estações dolorosas ao lado dos pés de pau. No sertão sergipano de Poço Redondo.







Menina linda (Poesia)


Menina linda


Quebrou o pote
e chorou três dias
bebeu da água
de tanto chorar
depois sonhou
que chovia lá fora
e correu nua
para se banhar

menina linda
ainda te recordo
toda assanhada
com sua boneca
parecendo flor
naquele jardim
de um passado
saudade sem fim

perdeu a boneca
e chorou três dias
não quis da água
de tanto chorar
quis um espelho
para se espelhar
e avistar a boneca
dentro do olhar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - saudades antigas


Rangel Alves da Costa*


Quanto mais o tempo passa mais vai aumentando minha saudade das coisas antigas. Imaginava que as coisas novas, as invenções modernas e as facilidades de agora fossem apagando o passado, mas não. Em primeiro lugar, não consigo acostumar - e nem aceitar - os estrangeirismos nomeando tudo aquilo que tem nome próprio na língua mãe: breakfast, coffee break, hall, avant-première, cash, couvert e mais outros e tantos outros. Ora, hoje em dia, os bolos recebem nomes tão estrambólicos que mais parecem coisa do outro mundo. Nada contra, mas prefiro bolo de macaxeira, de leite, bolo de panela, bolo de neve, bolo da vovó. Por isso mesmo que aceito com satisfação as saudades antigas. E por isso saudades tenho dos doces de leite mexidos, da cocada de frade, do pirulito de mel, do arroz com canela, do mungunzá, da goiabada cascão com queijo de fazenda. Mariola, cajuína, tubaína, ki-suco, bolo de aniversário, bolachão, pé-de-moleque, rapadura mole, fruta de quintal. Hoje em dia é tudo diferente, tudo na química, tudo de gosto forjado. Mas houve um tempo de algodão doce, de maçã do amor, de pipoca colorida e bilhetes jogados pela janela. Um olho piscando e querendo namorar, um beijo lançado no ar em direção da linda flor à janela. Saudades tenho. E como sinto saudades.


Poeta e cronista
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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

LUTO FECHADO


Rangel Alves da Costa*


Acerca do luto, as definições são muitas, dependendo da abordagem escolhida. Há o luto rotineiro, tradicional, aquele caracterizado pelo uso de roupa escura até certo tempo após a morte de alguém. Dependendo da sociedade, outras cores assumem a simbologia da perda e do pesar ainda presente. Há o luto festivo, onde contínuos rituais representam a entrega do falecido à outra vida e dizem de sua importância no mundo dos vivos.
No mesmo sentido, o período de consternação pela perda de alguém querido, que se diferencia entre os povos. Em termos psicanalíticos, o luto envolve a perda do elo entre uma pessoa e seu objeto, sendo a reação à perda sua característica maior. A tristeza profunda, melancolia e o distanciamento da realidade seus reflexos mais imediatos.
Na tradição cristã, o luto envolve desde a missa de corpo presente às demais liturgias em memória da pessoa falecida. Noutra esfera, há também o denominado luto oficial, geralmente de três dias, decretado pelos governos após o falecimento de figura proeminente. Diz-se ainda do luto interior ou da consternação pessoal com perdas outras que não de entes queridos. Assim, enlutece também quem de repente se vê alijado de amor, de amizade, de coisas importantes que façam parte de sua vida.
De qualquer modo, o luto é tradição expressada no sentimento de tristeza ou pesar pela morte de alguém. Enlutece aquele que após a partida de um ente querido se veste de negro por um determinado período de tempo, podendo ser um mês ou mais, chegando a ano ou mesmo mais. Pessoas existem que vão tingindo roupas após roupas, de modo que três ou quatro peças sirvam para todo o enlutamento.
Na tradição, também as variações no pesar, eis que alguns se vestem de negro dos pés à cabeça e após um ou três meses vai arrefecendo o luto com o uso de roupas de outras cores, desde que em tons sombrios ou escurecidos. Outros apenas se negam a vestir roupas coloridas por um período, tendo ainda outros que preferem o luto pelo resto da vida. E não só o luto na roupa, mas também na alma e na existência, pois passam a viver como sob um manto se fim de saudade, de pesar, de melancolia, de entristecimento.
Hoje é raro de acontecer, mas pelos lugarejos remotos ainda se encontra viúvas com luto completamente fechado. Além das vestes inteiramente negras, também levando consigo uma feição sombria, chorosa e inafastável do defunto desde muito sumido da terra. Seria apego em demasia ao ente querido, seria demonstração de amor extremado ao desaparecido, seria o exercício da morte em vida? Nunca se sabe, pois o verdadeiro luto está no silêncio doloroso da alma, do sentir, e jamais na cor da roupa que alguém possa vestir.
Mas conheço alguém, uma velha viúva, que tem na ponta da língua a resposta quando perguntada pelo luto fechado já desde mais de trinta anos: assim a minha vida desde a partida daquela vida, nessa cor da noite mais escurecida, nessa lágrima que eternamente chora por dentro. E acrescenta: não poderia viver na alegria ou no contentamento se a alma não clama por outra coisa senão por saudade, por lágrimas e desejos daquela presença.
O luto tantas vezes é tão fechado que a pessoa evita até sair à rua, a caminhar nos afazeres do dia a dia, a ter uma vida dentro da normalidade. Quando abre as portas de casa é para ir ao cemitério visitar o túmulo de seu defunto. Vai levando velas, buquê de flores, perfumes, retratos antigos e tudo o que houver que represente relação com o ausente. Com um véu negro sobre a cabeça, vestido negro comprido até os pés, certamente com os olhos encharcados de lágrimas, vai seguindo como uma figura aterradora em plena luz do dia. E também já nas horas escurecidas do dia, adentrando na noite.
E assim permanece até o dia em que também partirá. E nem sempre com nenhum luto de um parente que fica. Sequer a lembrança, a saudade, pois a morte também pode representar o fim absoluto de tudo.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


Paisagem ribeirinha no sertão nordestino. Beleza sem igual...





Sabor de beijo (Poesia)


Sabor de beijo


Gosto de araticum
gosto de araçá
mas o sabor de beijar
é do céu o seu pomar

gosto de cajuína
gosto de goiabada
mas o sabor de beijar
igual sei que não há

gosto da lua cheia
gosto da cor do luar
e do céu de sua boca
com estrelas pra beijar.


Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - a permanência da fé


Rangel Alves da Costa*


Em tempos difíceis, tempos de negação, de pessimismos e descrenças, muitos abdicam mesmo da esperança, da fé, de tudo aquilo que lhe dê suporte espiritual para justificar a existência e para os enfrentamentos da vida. Em tempos assim, quando tudo se torna ao desvão, surgem as fragilidades, os sofrimentos, as tristezas, as angústias. Parece nada dar certo, e não dá mesmo, pois falta a chama que mantem acesa a própria vida. E tal chama está na fé, no acreditar, na religiosidade, na crença de uma força superior que nunca desampara. Contudo, muitos se afastam da fé sem atentar para suas consequências. O mundo urbano - sempre tão apressado, modista e impessoal - vai tornando o sujeito como ateu de si mesmo, vai levando o indivíduo a se valer somente dos acasos. E Deus, e a fé, e a religiosidade? Ora, Deus está naquele que sabe ter fé, que continua com fé, que faz da fé sua esperança e sustentáculo de vida. Não por acaso que as pessoas interioranas, principalmente nas regiões mais remotas, são mais felizes, mais esperançosas, mais crentes na possibilidade das grandes realizações. Simplesmente porque cativam e cultivam e cultivam a religiosidade, porque fazem da fé um instinto de permanência e uma necessidade constante do espírito e da alma.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

A ÚLTIMA TOCAIA


Rangel Alves da Costa*


Tocaia, emboscada, armadilha, cilada, espreita, é tudo a mesma coisa: esconderijo de onde se espera a passagem do escolhido para lhe dar cabo da vida. Por outras palavras, o local onde o jagunço, o assassino ou matador, se mantém escondido, com arma apontada e gatilho pronto para ser apertado, esperando somente o surgimento daquele que será vitimado pelo ódio, pela desforra, pela desfeita, pela vindita de sangue.
Ainda acontece, mas o ofício da tocaiagem era grandemente característico no passado coronelista, num tempo de senhores de instintos abomináveis, de crueldade desenfreada, onde qualquer ameaça ao seu poder era resolvida na bala. Mas também nas relações odiosas entre pessoas comuns, quando as rixas e as discórdias provocavam somatórios de mortes por emboscada. Noutras situações de vinditas também o recurso da espera assassina, assim nas lides cangaceiras e nas revoltas sangrentas sertões adentro.
Morte de tocaia é morte à traição, perpetrada sem que a vítima sequer imagine que o inimigo o espera numa curva de estrada, por detrás de um pé de pau, dentro de um tufo de mato, em qualquer lugar onde possa se manter escondido e a arma mirada em linha certeira. Impossível de se defender quando apenas a boca faminta da arma vai no encalço esperando o instante certo para cuspir fogo.
Como aconteceu tantas vezes, o sujeito vai caminhando armado até os dentes ou mesmo galopando em cavalo ligeiro com verdadeiro arsenal, mas não sabe que mais adiante alguém aguarda sua passagem de arma já preparada. Não consegue avistar nada porque o jagunço está encoberto pelas folhagens, pelas árvores ou outra mureta nativa. Mesmo a dois metros não consegue avistar nada. Mas a arma já mirando sua chegada e ávida para ser disparada. E num instante basta apertar o gatilho, e pronto. O sujeito cai estrebuchando no chão.
Tal o modus operandi no ofício da jagunçagem e da tocaiagem, mas que não se imagine ser tarefa fácil de matador. A tocaia exige profissionalismo, preparo, segurança, firmeza e frieza. E assim porque exige não só a pontaria certeira, mas também preparação e conhecimento de campo. O jagunço matador precisa escolher o local da ação, necessita conhecer a vegetação da região, bem como saber a hora aproximada que o futuro defunto passará diante de sua mira.
Escolhido o local, resta a parte mais difícil e demorada: a espera. O jagunço nunca chega pela estrada comum ou pela vereda aberta, mas por dentro da mataria, de modo silencioso e lento. Ao chegar, o passo seguinte é procurar um lugar onde fique escondido e ao mesmo tempo possa avistar tudo o que acontece mais adiante. E também a colocação do cano da arma de tal modo que, estando com a boca livre, ainda assim não possa ser avistada.
Contudo, a espera em si é o mais angustiante, fazendo mesmo que muitos jagunços tenham desistido antes do evento fatal. Em primeiro lugar, porque só suporta esperar sem refletir sobre as consequências de sua ação aquele matador que já é movido pela cegueira da ação, pela cruel insanidade ou pela contumaz covardia. Em segundo lugar, porque qualquer sentimento surgido na espera pode provocar desistência. Daí que o jagunço não pensa em outra coisa senão preparar comida de urubu e retornar para dar notícia ao mandante, seu patrão.
Foi porque o marcado para morrer demorou a passar e o matador começou a pensar num monte de coisas, principalmente na sua sina de viver para a morte do outro, que se deu a última tocaia, ao menos para este mando. Enquanto esperava, sempre em posição de disparo, o jagunço olhou por cima do cano e apo final era como se avistasse um espelho adiante: ali um defunto sendo velado, uma família chorando, pessoas entristecidas, crianças sem pai e vidas ao desalento.
Logo cuidou de mudar de pensamento, mas ainda no espelho logo lhe surgiu sua própria face, suas mãos sujas de sangue, sua cama de capim, seu rosto entristecido, sua mão recebendo vintém, o dente de ouro do coronel brilhando na boca maldita, uma cova rasa e sem cruz no meio do mato. Aquela era sua vida, aquele seria o seu destino. Em seguida avistou, ao longe, cavalo e cavaleiro se aproximando.
De arma apontada, na mira certa, mas não teve coragem de apertar o gatilho. Desistiu. Ali a última tocaia, sem tiro, sem sangue, sem morte. E um jagunço seguindo por uma estrada distante do casarão do coronel.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


Tanta fé e toda fé do povo sertanejo. Festa de São Sebastião, no povoado Bonsucesso, município de Poço Redondo, no sertão sergipano.





Cheiro de terra (Poesia)


Cheiro de terra


Desisti de ser assim
como vitrine de shopping
ou cheio de brilhos e etiquetas
forjando um mundo diferente
uma realidade que não é a minha

desisti de ser assim
para voltar a ser a minha raiz
com olho de uma lua bem sertaneja
com a pele queimada de sol e calor
com manhãs de cantos passarinheiros

e o meu amigo vaqueiro aboiando
o meu conterrâneo no fole e no pífano
e sentir o cheiro do bicho e do gibão
ouvir proseados de tantas saudades
e ser feliz assim sendo apenas sertão.


Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - das eternidades


Rangel Alves da Costa*


As árvores morrem, as pedras morrem, as pessoas morrem. E mais ainda, pois as flores morrem, as auroras morrem, os retratos morrem, as esperanças também morrem com a pessoa. Tudo morre, tudo seu nascer, seu viver e seu morrer. Daí que a morte em si não deveria causar tamanho sofrimento, tamanha dor, tão grande melancolia. Nada mais esperado que a morte, nada mais certo que a sua chegada, nada mais inevitável que a sua experiência única. Mas eis o mistério: as pessoas entristecem quando as flores morrem não pelo fato da morte das flores, mas pelo que elas representavam perante o olhar, o sentimento, o coração. Assim também com as pessoas, com as folhas de outono, com o pranteado do alvorecer. O sofrimento é causado pelo amor sentido, a dor é causada pela ausência, a melancolia é causada pelo sentimento de impossível presença, o luto é causado pela força da presença que se quer, piedosamente, impor. Assim, mesmo a certeza desse inevitável acontecimento, mesmo que não se possa fugir do dia do adeus, ainda assim se chora pela árvore, pela pedra, pela folha, pela pessoa. Mas não pela morte, mas pela perda, pela ausência, prela distância. E também porque tanto amou e tanto quis que se imagina impossível viver sem sua presença. Até que o tempo vá apagando os retratos e fotografias. Ou apenas envelhecer a moldura eterna.


Poeta e cronista
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terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

MEMÓRIA BRUTA


Rangel Alves da Costa*


“Do sol cunheço, tomem da chuva. Munto mai do sol desse sertão do qui da chuva pouca e miúda que veiz inquono se derriba pela terra. Nem gosto de me alembrá mai tomem cunheço de munto mai, principalmente dum tempo de acabação pru todo lugá. Era Lampião, era volante, era tiro, era correria, era morte e medo, era tudo de cortar coração...”.
“Cangacero fui não. Tomem num fui volante nem coitero. Se eu fosse pender prum lado pendia pro lado dos da caatinga. Não qui eu gostasse de violênça, de brutalidade, dessas coisa que fazia istremecê sertão. Pruque Lampião fazia as veiz do sertão, do sofimento do sertão, das injustiça tanta sofida pelo homi da terra. Seu moço, num é bincadeira não. Eu mermo sangrei sem tiro ou punhalada. Sangrei de sofimento, das peseguição, das injustiça espaiada pra riba e pra baixo...”.
“Pa bem dizê, filiz era o homi qui tinha seu pedacim de terra e dizê qui era seu. Ninguém tinha nada não. Adonde o pobe prantava e coía, pensava qui era seu pru causa dum cercadinho, de repente chegava os homi, a capangage dos puderoso dizeno quem era o dono. E dizia ansim: ou vende pru quanto o coroné quisé pagá ou vai tê de saí na marra, se num for mió abrí logo uma cova rasa...”.
“Quem num tinha pedacim de terra pa prantá mio, feijão e outro adjuntoro, outa coisa num tinha a fazê senom sofrê cuma escravo de poderoso. Trabaiava feito bicho pa no fim de semana num tê direito a quase nada. Ou recebia vintém ou num recebia nada, e aina ficava deveno ao coroné. Afora as arma dos bicho apontada, a jagunçada pra todo lugá, a ameaça e o medo. Tinha de aguentá calado, quentinho, ou ia pa debaixo do chão. Pru quê tanto famia sem pai, tanto cruiz nesse meio de mato, tanto sangue de pobe derramado pru todo lugá? Pru causa dos poderoso e seu jagunço com sua tocaiada de tiro certero...”.
“Seu moço, aquilo num era vida não. Hoje se tem munta violença, munta peseguição, munto medo, mai nada iguar aos tempo de sangue pelas tocaia e emboscada. Tempo de jagunço, de matador, de cabra de frieza da peste. Matava um iguar de sina e de sorte e adespoi ia mostra as orea ao coroné. Mai tarde o coroné quiria as merma orea do matadô. Mai num é só isso não...”.
“Sangra e mata do mermo jeito a pessoa vivê na humiação, judiado, só com a seuventia de ser usado. Quono num ficava sem o pedacim de terra, do mermo jeito ia vendê seu seuviço ao coroné. Pobe qui era, mai pobe aina ficava. Adespoi tinha de votá naquele qui o coroné escoiesse. Nas mai das veiz votava pelo medo de morrê, quono não adespoi de recebê um quilo de fubá, outro de arroiz cum gruguio e um naco de jabá...”.
“Inté quono o sertanejo ia aguentá uma vida dessa, só seuvindo de jumento prus outo esporá? Inté quono o homi da terra, corajoso cuma sempe foi, ia ter de suportá tanta sangria dos puderoso, dos coroné, dos político? Inté quono a gente da terra ia vivê cuma se fosse um bicho estranho no seu lugá?...”.
“E foi pur essa e outas qui apariceu gente ansim cuma o Capitão Lampião e tantos outo. Quem num se lembra dum Jesuíno Brilhante, dum Lucas da Feira, dum Antonho Sirvino, dum Curisco, e inté de Antonho Conseiero? Tudo sertanejo qui num mai aguentou tanto sofrimento no seu povo e pegou na arma pa fazê a guerra da vida e da morte...”.
“E num duvido qui se o Padim Pade Ciço arresovesse se embrenhá nos mato com cangaceiro ninguém podia cum ele. Benzia o mosquetão e mandava bala pa todo lado, e ansim quero vê se aquela volante mardita tinha o topete de enfrentá um benzido. E se fosse ele e Lampião na linha de frente até hoje o sertão era outo, munto mais respeitado...”.
“Eu mermo pensei em seuvi ao bando. Cunhecí munta gente qui arribou pru cangaço. Cumpade Mané Felix foi quem me disse qui aquilo num era vida pa quarqué um. E eu era metido a valente demai. Já tinha morrido. Tomem pruque o cumpade parece qui já prissintia qui o cangaço já tava se findando. Uma veiz ele me disse que Lampião andava tristecido demai. E logo imagina qui num era coisa boa qui vinha pela frente...”.
“Quanto ano eu tenho? Sei não. Só sei que já vivi demai e tomem já vi demai. Conto essa coisa pruquê sei qui meu caixão num vai cabê de tudo qui sei. Pur isso qui digo o qui sei. Quero morrê cuma foia seca, ansim dessa foia qui vai se perdendo pelo sertão nos tempo de seca grande. Quero morrê ansim, num dia de seca grande e qui ninguém chore pru farta de água inté nos oio...”.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


Bastou a chuva cair no sertão e plantação de palma já é avistada por todo lugar. Mais tarde, no retorno da seca grande, será na palma pinicada que o bicho terá salvação.





Ela (Poesia)


Ela


Uma florzinha escondida
pela vereda onde passo
e só lembro dela
e só lembro dela

um araçá de fruto mel
que encanta no sabor
e só lembro dela
e só lembro dela

uma fonte de doce água
onde bebo satisfeito
e só lembro dela
e só lembro dela

quando retorno da luta
levando buquê e beijo
logo procuro a janela
e só quero ela.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - anjos e homens


Rangel Alves da Costa*


Os anjos, estes seres celestiais que servem de intercâmbio entre os homens e o mundo celestial, não se cansam de estar aqui e por todo lugar. Creio não ter ofício tão penoso igual ao dos anjos. Ora, não deve ser nada fácil servir de guia ou guarda a quem não obedece ninguém, sequer a si mesmo. Assim porque o anjo guardião age na pessoa para que esta tome o melhor caminho, pratique a melhor ação, pense antes de agir, faça com a razão e não com a emoção. O anjo incentiva, encaminha, incute no indivíduo a melhor ação. O anjo segue ao lado para impedir o mau caminho, para guiar o ser na estrada, para tentar evitar que o destino seja o abismo ou precipício, porém nem sempre consegue seu intento. E não consegue porque o homem age contra a sorte, desvirtua o seu destino, segue exatamente por onde não deveria seguir. Tudo isso deve ser um transtorno sem tamanho para o mensageiro, que de repente se sente até impotente perante aquele que tem de guardar. Contudo, o problema maior é que tem de prestar contas lá em cima, dizer sobre o comportamento humano e sobre o seu progresso de guardião. E anjo não mente não pode mentir, também qualquer mentira seria vã ante o olho que tudo vê. Então há de se perguntar: mas onde foi que eu errei, onde foi que eu errei? Certamente que em nada ou lugar algum. É que o homem é um ser tão incorrigível e difícil de trato que nem o próprio Senhor consegue demovê-lo da ideia de práticas insidiosas. Daí que não há salvação. Daí que o caldeirão fervente sempre está ávido para receber mais um.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O MUNDO DELES NO MUNDO NOSSO (OU COMO A GLOBO SE APODEROU DO SERTÃO)


Rangel Alves da Costa*


Costumeiramente a Rede Globo de Televisão recorre ao sertão nordestino para garantir um produto de boa aceitação nos seus folhetins, minisséries e reportagens. As paisagens, os cenários, os costumes e as tradições sertanejas, sempre provocam fascínio no telespectador. O mundo rural, matuto e simples, mas pujante e sedutor, em contraste com a mesmice urbana de socialites e desajustados, torna a produção televisiva muito mais acessível às camadas sociais que tanto se reconhecem naquelas imagens e tramas.
Por isso mesmo - e mais uma vez - a Globo vai buscar no Rio São Francisco e suas veias que se espalham e adentram os sertões nordestinos, com seus personagens ribeirinhos, lendas e histórias, o principal mote de sua superprodução programada para ir ao ar após a atual novela das oito (nove, ou mais...). Acaso se mantenha fiel à riqueza histórica da região, certamente que a trama irá ser de sucesso absoluto. Tenha-se, por exemplo, Cordel Encantado, que explorou apenas uma parte da saga nordestina e ainda assim teve imensa aceitação.
Intitulada Velho Chico, a novela - que passará por quatro gerações - traz como trama a saga de amor sertaneja marcada por uma intensa rivalidade familiar à beira do Rio São Francisco, a partir da fictícia Grotas do São Francisco. O que se terá, então, ao menos na sua vertente nordestina, serão famílias rivais, amores proibidos, mocinhos e jagunços galopando pelos carrascais espinhentos, donzelas suspirando, velhos coronéis comandando vidas de seus casarões, enquanto o destino vai cuidando de tudo resolver, ou embaralhar ainda mais.
O sertão sergipano sempre esteve sob as câmaras cinematográficas e televisivas. Canindé do São Francisco recebeu locações de Cordel Encantado e de diversos documentários retratando suas belezas naturais. O Cânion de Xingó e a paisagem exuberante ladeando os montes até se molhar nas águas do velho rio são motivos suficientes para as escolhas. Com menos suntuosidades paisagísticas, porém com mais riqueza histórica e mais autenticidade sertaneja, logo vem Poço Redondo, localidade que já serviu de cenário a muitas produções.
Poço Redondo foi cenário, em 1975 e 1976, respectivamente, dos cinedocumentários O Último Dia de Lampião (de Maurice Capovilla) e A Mulher no Cangaço (de Hermano Penna), ambos para o Globo Repórter, e do premiado filme Sargento Getúlio. Pelos idos de 1977, Penna retornou com grande equipe para as filmagens da película baseada na obra homônima de João Ubaldo Ribeiro. Sargento Getúlio, porém, somente seria lançado em 1985 e é tido como um marco de cinematografia nacional. Pelos idos de 2010, o mesmo cineasta retoma Poço Redondo para contar a história do ex-cangaceiro Zé Olímpio, filme baseado em fatos reais e que recebeu o título de Aos Ventos que Virão, lançado em 2014.
Ao menos em Poço Redondo, as equipes que ali chegaram - desde diretores, produtores, atores, técnicos a ajudantes - sempre mantiveram um bom e cordial relacionamento com a população, tecendo mesmo laços de amizades. Durante as filmagens de Sargento Getúlio, por exemplo, Lima Duarte brincava e conversava com todo mundo, sem distinção. Tomava sua cachacinha nos botequins e proseava como um velho sertanejo debaixo de pé de pau. Os atores de Aos ventos que virão também sempre se mostraram muito acessíveis, tendo Luis Miranda como verdadeiro brincalhão. O próprio Hermano Penna afirma que tem aquela povoação sertaneja como verdadeiro lar.
Contudo, muito diferente ocorreu durante os poucos dias em que a superprodução global chegou às margens ribeirinhas de Curralinho, nas proximidades da sede municipal. Nos dois dias de filmagens, o que se observou foi um verdadeiro apossamento de toda a povoação, como se aquele rincão não fosse sequer do seu povo, mas apenas da Globo. As ruas do pequeno povoado estavam tomadas por seguranças, vigilantes e até pela polícia estadual. Ruas fechadas, pessoas estranhas apontando aonde veículos e pessoas poderiam seguir. Da rua da frente em diante, defronte ao rio, então é que o nativo ou visitante era submetido às proibições mais severas: nada do rio e seus arredores eram mais do sertanejo. Alguém chegou a perguntar se havia alguma ordem judicial.
Para uma ideia maior do acontecido, os bares na areia estavam sob ordens da Globo. Portanto, não havia cerveja, peixe assado, tira-gosto, nada. Toda a margem até adiante do rio também estava sob o comando da Globo. Assim, ninguém podia se aproximar, deitar sob o sol ou tomar banho de rio. Aliás, todos os barcos ali presentes estavam a serviço da poderosa. Há de crer-se, então, que até as águas do rio estavam submetidas ao império global. Passavam mansamente porque a Globo assim queria.
Logicamente que não se poderia obter as melhores filmagens sem os cuidados necessários. Nenhuma crítica às providências tomadas para que a população e visitantes não atrapalhassem o desenvolvimento das cenas. Tratando-se de produção global, realmente prima-se pela qualidade. Contudo, inaceitável que todos aqueles envolvidos se comportassem como se estivessem numa terra de mando deles, onde os sertanejos eram meros e indesejados forasteiros. E, portanto, tratados com a máxima indiferença.
Era um mundo somente deles no mundo que não era mais nosso. E enquanto o grande Lima Duarte, naqueles idos, proseava com um e outro, Rodrigo Santoro mantinha segurança na porta da casa onde se abrigava. Garanto que o Velho Chico entristeceu.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


As tradições seculares no povoado ribeirinho de Bonsucesso, em Poço Redondo, no sertão sergipano. Pífanos e cavalhadas preservando a cultura de raiz.







Retrato na moldura (Poesia)


Retrato na moldura


Tenho ainda na boca
o gosto do bolo de minha avó
levo ainda no alforje da vida
o velho conselho de meu avô
e dos pais dos meus pais
desde antigas raízes até agora
trago o que sou e ainda serei

mas do meu pai já distante
e de minha mãe em memória
levo tudo o que tenho no corpo
trago o que preservo no coração
e ainda um retrato e um espelho
cuja moldura marcada de tempo
guarda a minha entristecida feição.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - um cantinho bom para silenciosamente sofrer


Rangel Alves da Costa*


Está pensando em sofrer? Mas não tristeza de perda, de adeus, de dilaceramento do coração, de sofrimento profundo ou de alma recortada pela desdita, e sim uma tristezinha simples, casual, quase rotineira em certos momentos. Acaso esteja querendo sofre um sofrimentozinho assim, assim como amorosa saudade ou mesmo daquelas tristezas que simplesmente chegam, se instalam, enchem de nostalgia e silêncio, e depois se evapora, então conheço um cantinho bom para silenciosamente sofrer assim. Não só um cantinho, mas também o momento ideal. Então anote: espere sempre o entardecer e daí em diante, quando a chuva começar a cair, com as luzes apagadas do quarto ou da sala, sem voz ou qualquer som, apenas você e sua tristeza. Sempre útil que haja um tapete ao redor ou mesmo um travesseiro, e na sua falta serventia terá a vidraça embaçada da janela. Então se deite, abrace o travesseiro, sofra seu sofrimentozinho, ou faça o mesmo perante a vidraça, bem ao lado da chuva que levemente cai. Pode desenhar na vidraça, escrever nomes, poesias. Mas sempre reservando um instante para se embolar na escuridão e, igualmente um casulo que se fecha em si mesmo, chorar um chorinho tão leve que nem sente seu derramar. E então adormeça aí mesmo. Assim mesmo, mas apenas por instantes. E então despertará para acender a luz. E reencontrar-se em outra pessoa.


Poeta e cronista
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