SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 30 de abril de 2018

VERSOS DE AMOR PELA TERRA



*Rangel Alves da Costa


Não vou desatinar meu destino de ter nascido nordestino, pois isso orgulho maior e coisa que mais estimo. Orgulho de ser sertanejo, da flor do mandacaru no meu beijo, do vaga-lume o seu relampejo.
Orgulho do meu Poço Redondo, onde nasci e não escondo e vou sua história compondo. Não há orgulho maior de ter a lua e ter o sol, da terra nua e seu arrebol, vida minha e vida sua, floridas igual girassol.
Orgulho do meu sertão, do Padim Ciço e Lampião, de Alcino e Zé de Julião, de todo Zé e todo João. Relembro o tempo antigo do casebre como abrigo, do vaqueiro e seu perigo, da seca maior castigo.
Orgulho na vereda matuta, da mataria sem ter fruta, mas não faltando a labuta. Lua maior sem igual, a passarada em madrigal, no céu o melhor sinal. Pelos campos a boniteza, a vida maior beleza, de um povo humilde a riqueza.
Porta aberta ao madrugar, pra barra do céu logo olhar, e nos olhos a esperança e o temor de não trovejar. Sou de um sertão de humildade, de pobreza sem maldade, no homem a sinceridade, no viver a honestidade. Homens de mãos calejadas, de faces de sol enrugadas, de alpercatas e pegadas, nas sinas e nas estradas.
Nos tempos de antigamente, potes na cabeça e rodilhas, cabelos presos em presilhas, roupas de chitas em barrilhas, em tudo as maravilhas. Moringa na janela da tarde, em tudo uma saudade, doce de cocada de frade e a gostosura em alarde.
Quixaba nos escondidos da mata, araçá trazido em lata, araticum juntado em cascata, vida doce e tão pacata. Panela de barro no chão, graveto para o fogão, e por riba do tição o toicinho em queimação.
Comer em prato de estanho, coisa que é hoje estranho, mas que nas mesas humildes era luxo sem tamanho. Ouvir o sino tocar, e logo a beata a rezar, Marizete leva o santo e na voz o seu belo cantar, pela rua em procissão, pela estrada em maior devoção, a religiosidade de um povo na sua santa missão.
Cavaleiros e cavalhadas, pegas-de-boi e vaquejadas, festas de mato e caçadas, saudades pelas estradas. Nas calçadas mais antigas, os proseados de amigas, falando se santas e raparigas, dos milagres e das intrigas.
Nas tardes de bordadeiras com suas mãos tão ligeiras, traçando os bilros nas beiras, assim aquelas vidas rendeiras. Ralar o milho em quintal, ovos na gordura animal, colocar tudo na mesa e ter o de comer sem igual.
Assim a vida de um povo tão renegado no novo, mas por tudo ainda louvo e só de pensar me comovo. Pois sou de um sertão assim, de um tempo do sem-fim, e mesmo que tudo em trampolim, nada se faz tão ruim. Acredito no sertão, pois amo este meu chão, é como uma fé chamejante bem dentro do coração.
Pois este filho de Alcino, que um dia foi tão menino, traz no seu figurino a feição ensolarada de sertanejo genuíno. E ama tanto o seu chão que canta em verso em canção, a vida desse seu povo que tem na moradia o sertão.


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Lá no meu sertão...


Rangel Alves da Costa



Canção de regresso (Poesia)



Canção de regresso


Por onde andará minha flor
nunca mais vi meu amor
ando com saudade danada
todo triste pela estrada
nem o mel tem mais sabor
sem minha flor meu amor

um solitário caminhante
sem paz ao menos um instante
na distância de quem amo
e seu nome sempre chamo
preciso avistar minha flor
quero amar o meu amor

canto a canção de agora
e arrumo tudo e vou embora
dou adeus ao passarinho
vou em busca de outro ninho
vou em busca de uma flor
não vivo sem meu amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - o menino mal-assombrado do tanque velho



*Rangel Alves da Costa


Talvez uma redundância: Quem é mais velho lembra-se do Tanque Velho. Pois bem, para quem não conhece e nem lembra, o Tanque Velho ficava, na cidade sertaneja de Poço Redondo, bem defronte ao ateliê de Mestre Tonho, naquele espaço em chão aberto de canto a outro. Noutros idos, o tanque possuía muitas serventias, principalmente para a lavagem de panelas em épocas de Festa de Agosto e para os namoros do outro lado, ao fundo. Mas depois que foi aterrado passou, segundo dizem, a ter outra serventia: a de ser lugar de assombração. Relatos existem dando conta de que um menino é sempre encontrado por ali já nas altas horas da noite. Ao atravessar o espaço do tanque para seguir por uma rua adiante, logo na esquina o menino é avistado. E sempre sorrindo. Contudo, ao apressar o passo, certamente amedrontada pelo inesperado encontro, mais adiante a pessoa ouve como se o mesmo menino estivesse chorando. Olha pra trás e não avista mais nada, apenas continua ouvindo o pesaroso lamento. Muitas versões surgiram acerca desse menino, mas nenhuma para dizer realmente de quem se tratava e o possível motivo de aparecer ali. Já outros dizem que se trata apenas de lenda, que sempre passou por ali e nunca avistou nada de estranho ou de assombração. De qualquer modo, muito ainda há que se dizer sobre esse menino sorridente e choroso do Tanque Velho. Tenho um amigo que mora naquelas redondezas e já afirmou que só passa ali sozinho se já estiver “de fogo”, do contrário dorme até noutro lugar e não vai pra casa de jeito nenhum.


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domingo, 29 de abril de 2018

ESPERANDO (E QUASE DESESPERANDO)



*Rangel Alves da Costa


Toda espera coloca um pé margeando um abismo, já disse o poeta. Já outro sintetizou que a espera é laço que não se desfaz por desejo ou vontade própria. Tudo verdade. Nada mais difícil e tormentoso que esperar.
O simples ato de esperar implica em afetação de comportamentos e em diversas consequências. E todas angustiantes, aflitivas, atormentadoras. É como se a pessoa tivesse a vida suspensa na dependência de outro acontecimento.  
O desejo e a vontade, o temor e a necessidade, são algumas das consequências da espera. E fato que se torna em desespero pela demora de acontecer. Um olhar lançado ao relógio, os passos de lado a outro, a mente fazendo suposições, a visão que se lança pela porta, pela estrada, pela janela. Assim se afeiçoa a expectativa.
E surgem as mais cruéis indagações: Será que virá, será que á agora, por que ainda não chegou? Será que vem mesmo, será que vai mesmo acontecer, por que não acontece logo para acabar com esse desespero? Já deveria ter chegado, já deveria ter acontecido, mas por que não há logo uma resposta para essa espera?
O relógio bate o seu tempo certo, mas parece que os ponteiros perderam o rumo, correm ou estão cansados demais. A porta silenciosa e no mesmo lugar, mas parece que se aproxima e que a qualquer momento será tocada. A estrada se alonga, a curva adiante sem sombra ou sinal, mas parece que um vulto ganha contorno, que enfim a pessoa virá. Mas tudo miragem, ilusão da espera.
As situações de espera são as mais diversificadas e terrificantes possíveis. E os momentos assim são os mais longos, verdadeiras eternidades. Os passos seguem sozinhos ao redor, nada se tem como normalidade. Tudo acontece, menos o esperado. O coração pulsa apressado, os olhos vagueiam atônitos, tudo indica que vai acontecer a qualquer momento. Mas nada.
A linda donzela, cheirosa a loção de alfazema, com cabelo em trança e face rosada, corre ao entardecer para a janela e, na ilusão do amor primeiro, se põe a esperar que o seu príncipe encantado passe. Quem sabe se ele não desponta na esquina com uma flor à mão e um olhar de apaixonada confissão. Mas tarde após tarde, já caindo a noite, e somente a vã espera.
O pai de primeira viagem já não suporta mais a aflição. A esposa esperando o filho tão sonhado, já em trabalho de parto, mas ele tem de ficar aguardando o anúncio na antessala ou no corredor da maternidade. E nada de a porta abrir, nada de aparecer o médico ou enfermeiro para dizer qualquer coisa. Também não consegue ouvir qualquer choro de criança. Nada. Quer gritar, mas a placa adiante avisa: Silêncio!
No leito de morte, a família reunida ao redor, o velho parente não suporta a dor daquele momento e vai encostar-se a qualquer coisa do lado de fora. Aí, tudo fazendo para não desabar de vez, mas sentindo a vazante no olhar e a agonia no peito, aguarda apenas que alguém apareça à porta para a notícia final. E espera e desespera, e de repente os gritos. É o fim e a espera acabou.
Na beirada do mar, na solidão já sombreada do cais, a mulher lança o olhar aflito às águas distantes. Procura enxergar o barquinho de seu pescador que tarda a chegar. Tem um lenço à mão e teme não mais reencontrar seu amor para a festa da vida. E o tempo passa, a noite chega de vez, mas nada parece cortando as correntezas. Será que seu amor voltará a seus braços ou foi levado pelo canto da sereia?
E vai esperando até o amanhecer. Ao redor tudo já com outra feição. O alvorecer esperando o sol, o cais esperando as ondas, a gaivota esperando que a mulher aflita entenda o seu grasnado triste. O seu pescador não voltará.


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Lá no meu sertão...


Na Estrada de Curralinho, povoação ribeirinha de Poço Redondo/SE







Vaqueiros da Santa Fé (Poesia)



Vaqueiros da Santa Fé



Terno de festa é de couro
roupa de vaqueiro é gibão
o carro bonito é o cavalo
seu orgulho é o alazão

a mocinha enfeitada
de bota e chapéu de couro
vai aplaudir seu vaqueiro
levando brinco de ouro

a vaqueirama em festa
do bicho não larga o pé
vai selando seu ligeiro
pra correr na Santa Fé

solta o aboio seu moço
a mata se abre em flor
o boi valente tá solto
no vaqueiro o destemor

no Parque da Santa Fé
o chão treme assustado
no passo da vaqueirama
na derrubada do gado

Poço Redondo festeja
a cultura e a tradição
dos vaqueiros de sua terra
na pega-de-boi devoção

celebrando um passado
de vaqueiros renomados
homens de cavalo e gibão
para as estrelas levados

mas deixaram entre os seus
a herança da vaqueirama
um amor que se renova
no esporte que mais ama

sobe ao cavalo inteiro
e volta todo lanhado
no corpo sinais da luta
mas de orgulho dobrado

parabéns ao nosso herói
que não teme o que vier
orgulho desse sertão
Vaqueiros da Santa Fé.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – por que o preconceito ao tema cangaço?



*Rangel Alves da Costa


Talvez você não goste do tema Cangaço. Talvez você também não goste das Farroupilhas, da Cabanada, do Brasil Holandês, da Inconfidência Mineira, do Messianismo no Brasil, da Ditadura Vargas, da Política do Café com Leite, etc. Talvez você não goste mesmo é de História do Brasil. Mas por que você sempre diz, de modo específico, que não gosta do tema cangaço? Será preconceito à História ou viés ideológico pontuando aquilo que deva ou não ser considerado como de importância histórica? Saiba, contudo, que o Cangaço é um dos temas mais importantes da história brasileira, é uma das manifestações sociais mais estudadas e debatidas nos livros e nas academias. O tema cangaço, por exemplo, constitui-se no maior acervo historiográfico do Brasil. Os livros sobre Lampião e seu bando continuam sendo dos mais vendidos e mais requisitados. Então, por que esse preconceito pela história do cangaço? O Cangaço não é apenas crueldade, não é somente guerra, não é sangue, tempo de violência e de desordem, nada disso. O CANGAÇO É HISTÓRIA. APENAS ISSO!.


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sábado, 28 de abril de 2018

A CAÇADA E OS MISTÉRIOS DA MATA



*Rangel Alves da Costa


Todo caçador sabe que nunca depende somente de si mesmo para se sair bem nas suas caçadas. Sabe mais ainda que as matas sempre estão repletas de mistérios e segredos, e que estes vão muito além de qualquer imaginação.
Não adianta ser corajoso, destemido ou valente. A arma que carrega consigo pouca valia possui perante o desconhecido. Não raro que puxa o gatilho e nenhum efeito produz. Não é difícil que mire algo logo à frente e o tiro saia todo desconcertado. Por que?
Ora, as matas não pertencem aos caçadores e muito menos servem como matadouro de animais. As matas pertencem à natureza e são protegidas por seres e encantados que nunca se apresentam claramente ao forasteiro, ainda que de vez em quando a própria entidade se apresente.
Todo caçador que descuidadamente entre na mata, logo corre o risco de se arrepender nos primeiros passos. Ele não sabe, mas está sendo observado a todo instante. Os ocultos estão por todo lugar e nada do que ele faça deixa de ser sopesado pelos verdadeiros donos das florestas, matas ou caatingas.
Em cima da copa das árvores, por entre os tufos de mato, nos rasteiros das macambiras, nas locas das pedras, bem ao lado das veredas espinhentas, olhos atentos, afoitos e até raivosos, miram a todo instante. E se o caçador levanta sua arma e aponta em qualquer direção, então as forças se juntam em contra-ataque.
O caçador até que pode dar um tiro certeiro e derrubar sua presa. E assim sempre acontece quando ele já sabe o que deva ser feito antes de colocar os pés por ali. Rezas existem que abrem os caminhos e dão alguma proteção, amuletos existem que acreditam como guardiães contra todo o mal. Contudo, nada melhor que adentrar respeitando a natureza, principalmente os seres nas suas entranhas.
Os seres da natureza são de tamanha sabedoria que já conhecem aqueles caçadores que ali rastejam em busca do alimento do dia. Não entram na mata apenas para matar, para tirar a vida de seus habitantes. Muitas vezes, é a necessidade familiar que os impulsiona a pegar em armas para caçar nambu, codorna, passarinho, teiú, etc.
Contudo, mesmo sendo por máxima necessidade, sempre será bom que o caçador nunca se esqueça de levar um pedaço de fumo para a caipora. Ai dele se esquecer. Quando o encantado percebe o caçador e não avista o seu fumo em cima da pedra, ali deixado para o seu uso, então logo cuida de dar o troco. E é troco mais medonho que possa existir.
Muitos caçadores já sofreram terrivelmente por haverem esquecido o fumo do encantado. De repente e se sentem acossados, encurralados, amedrontados e sem mais saber o que fazer. Em seguida são açoitados, chibatados, até que caiam amolecidos pelo chão. O pior é que sabem que estão sendo açoitados e não podem se defender, pois sequer avistam o agressor. Apanham, apanham e apanham.
Desmaiam e ficam arriados do meio do tempo. Acordam depois de muito tempo e ainda assim sem saberem qual a direção que devem tomar. Muitos deles são encontrados perdidos na mata, lanhados, feito uns loucos esfarrapados. Parecem saídos de uma guerra, mas não, apenas por um esquecimento do fumo da caipora. Diferente ocorre quando a oferenda é farta. Perante o fumo, o encantado até mostra onde tem caça boa para ser abatida.
Os velhos caçadores conhecem bem os mistérios e os segredos da mata. Nunca se dispõe a caçar perante algumas situações. A própria mata avisa. As folhagens sopram os perigos, os ruídos da ventania sempre dizem que naquele dia não adianta. E o que insistir em enfrentar os avisos, logo adiante se terá diante daquilo que jamais quis encontrar.
Há um negrinho – e cuja história depois vou contar – que surge do nada de dentro dos pés de pau. Não passa de um metro de tamanho, todo pretinho e de cabelo mais parecendo uma porção de estrume escurecido, falando sem parar, mas numa linguagem incompreensível, que se posiciona perante o caçador para depois sumir após seu recado.
O que ele diz? Ninguém sabe, mas certamente que é melhor voltar dali mesmo. E que ali tem dono e precisa ser respeitado. Do contrário...


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Lá no meu sertão...


Na Fazenda Maranduba, Poço Redondo/SE




Doce de mel (Poesia)


Doce de mel


Não sei
se paraíso
ou céu
o amor
um doce
de mel

morango
na boca
sapoti
no corpo
mas tudo
um doce
de mel

às vezes
o açúcar
e noutras
o fel
mas depois
um doce
de mel.

Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – Dona Judite



*Rangel Alves da Costa


DONA JUDITE - Que moça mais linda, toda charmosa e perfumada, sentadinha à porta de sua casa, ali na Rua Deoclides Lucas, debaixo do sombreado. Toda vez que a encontro tenho que abraçar, tenho que acarinhar, e pra ela escrevi uma coisa assim: Em Curralinho foi princesa e a Chico Bilato encantou, logo o rapaz ribeirinho por ela se apaixonou, e não durou muito tempo com a bela Judite casou. Chico vendia cajuína, goiabada da boa e tudo que o vento levou, e a sua Judite faceira ficava avistando a chegada do vapor. Um tempo em Curralinho em que a beleza reinou, havia comércio grande e nas igrejinhas louvor. Foram nascendo os filhos com carinho e muito amor, depois uma filharada que nem tabuada somou. Chico era político, metido a vereador, Judite dona de casa e mãe de maior primor. Um dia Chico Bilato a sua bodega fechou e para Poço Redondo com a família arribou, abrindo novo comércio e na política o fervor. Judite tinha saudade da beira de rio que deixou e ainda sente muita daquela raiz que vingou, mas estava com os seus e os novos tempos suportou, convivendo ladeada de sua família em flor. Mas num dia de tristeza, seu Chico Bilato voou, no céu foi ser passarinho, e Judite tanto chorou, mas cada filho ao lado a sua lágrima enxugou. Hoje não há tristeza, um novo tempo brotou, já são netos e bisnetos na família que aumentou, e na sua face alegre um tempo que não passou, pois continua jovial e com coração em fervor, sempre cheia de esperança na fé que Deus lhe doou, não perde missa ou procissão, lado a lado com o andor. Assim é Dona Judite, que ao meu coração encantou, desde que eu era menino e meu olho avistou a mulher encantadora que nunca um sorriso negou, com palavras sempre belas, outra mãe que Deus mostrou. Hoje já não é princesa, pois ao reinado se elevou, e uma bela rainha que Poço Redondo sempre amou.



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sexta-feira, 27 de abril de 2018

AMO



*Rangel Alves da Costa


Amo o entardecer, do dia o envelhecer, a magia do instante e sua canção de ninar para a noite adormecer. Ao longe a luz apagando, logo a lua vai descer.
E amo você...
Amo da matutice o saber, de seu pouco ou nada ler, mas que na escola do mundo não há doutor de maior merecer. Basta olhar adiante e sabe tudo descrever.
E amo você...
Amo a mão velha e seu benzer pra todo mal combater, sua sabedoria sagrada e seu profundo conhecer, sua prece e suas folhas para a vida proteger.
E amo você...
Amo desamar o embrutecer e o vaidoso envaidecer, pois amo a simplicidade e a paz em cada ser, pois tudo achado demais não passa de um nada ter.
E amo você...
Amo o café derramado que logo começa a ferver, exalando um perfume de inigualável prazer, não bastando uma xícara, pois logo outra a beber.
E amo você...
Amo quem conscientemente sabe tão bem enlouquecer, fazendo o jamais feito sem loucura transparecer, pois conhece seus limites e até onde se perder.
E amo você...
Amo o amanhecer e o novo dia a nascer, iluminando a estrada e o que além possa se ter, abrindo os caminhos aos passos para cada sonho acontecer.
E amo você...
Amo o passado trazer para o distante reviver, como se fosse retrato chamado a novamente conviver, mesmo que doa a saudade, mesmo que cause sofrer.
E amo você...
Amo relembrar o menino pela rua a correr, tomando banho de chuva sem de nada temer, pois vivendo a sua infância e sem nada a lhe aborrecer.
E amo você...
Amo o silêncio da noite e minha pena a correr, escrevendo qualquer coisa daquilo que eu possa crer, talvez um verso de amor ou linhas de padecer.
E amo você...
Amo acender a vela e a face de Deus logo ter, fazer minha oração e ter a luz no escurecer, sentir o ânimo da alma e no espírito o poder.
E amo você...
Amo quem me chega suave, sem arrogância ou engradecer, que mereça um abraço e toda palavra a dizer, que traga contentamento e torne alegre o conviver.
E amo você...
Amo ter sede de vida e amo da vida beber, fartura do que preciso para um bom viver merecer, gota a gota na lição do que desejo aprender.
E amo você...
Amo o tempo que passa e o ponteiro a bater, hora a pós hora na vida e mais vida querer ter, pois é o relógio que temos antes de depois nada ter.
E amo você...
E por que amo tudo isso e amo tanto você? De nada adiantaria ter a noite e o amanhecer se tudo o mais que eu possa ter não venha tendo você.
Ter a vida e o viver é ter o viver com você.


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Lá no meu sertão...


Lá longe... e tão dentro de mim



Na boca da noite (Poesia)



Na boca da noite


Os sinos não tocam mais
as igrejinhas silenciam
e as horas santas
emudecem
sem amém

numa casinha e noutra
a boca da noite ecoa
chamados à devoção
à oração sagrada
ao rosário de fé

e quando a lua desce
à luz do candeeiro
ou da vela acesa
Maria conversa
com Deus

amém...

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – relíquias



*Rangel Alves da Costa


Estou aqui sentado num velho banco, perante a máquina em riba de uma mesa antiga. Gosto de estar ao redor de coisas velhas, antigas, de muitos idos. Olho ao lado e encontro uma cristaleira que é uma verdadeira relíquia. Nem imagino quantos anos ela possa ter. Adquiri e mandei trocar os vidros, colocar parafusos nas portas e envernizar, apenas isso. Nada de seu formato original foi mudado. Olho para o outro lado e avisto um velho camiseiro que igualmente foi envernizado. À minha frente um lavatório, com bacia e toalha, ao modo daqueles existentes nas casas de outros tempos. Ninguém podia sentar à mesa para uma refeição sem antes passar as mãos na água da bacia, que era trocada constantemente. Também à minha frente um pilão com sua mão, relíquias que remontam aos tempos da escravidão. Em cima do pilão também uma espingarda velha, sem mais poder de tiro de tão caduca que está. Logo pertinho também um velho baú. Dois baús, melhor dizendo, um maior e um menor. E mais adiante um oratório. E tudo de mais de cem anos, tudo de muito mais idade, mas agora pertinho de mim como se eu tanto precisasse destes retratos vivos para me situar no presente. E preciso mesmo, pois basta olhar para cada um destes objetos e viajar no tempo, e compreender o caminho andado até aqui. Um livro que se abre diante de mim. E que o leio a cada momento.


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quinta-feira, 26 de abril de 2018

AS FOLHAS MORREM NO OUTONO



*Rangel Alves da Costa


Já final de outono, paisagem desoladora, folhas ressequidas, tons lancinantes, entristecimentos. Quase todas as folhas já haviam desfalecido e levadas pela ventania, ou simplesmente caído no chão de leito ocre, marrom, acinzentado. Sem cor.
As árvores nuas choravam suas ausências. Mas a mesma dor da perda de toda estação. As folhas que ainda restavam dependuradas davam seus últimos suspiros. Frágeis demais, sem mais seiva alguma nas veias, sentiam-se estalando até no sopro da brisa.
Uma árvore onde só restava uma folha, já conhecendo que naquele mesmo dia ficaria totalmente despida, tomou coragem e falou: Minha querida folha, eis que nosso tempo é curto aqui na terra. Nas mãos do homem não durarei muito tempo. E você, tão jovem, e tendo de partir ao entardecer de hoje.
A folha estava fraca demais para expressar qualquer sentimento ou demonstrar reação. E por isso mesmo foi buscar, lá no fundo da alma, um restinho de força para perguntar por que partiria ao entardecer daquele dia. Foi quando a árvore respondeu que o vento passaria ali para levá-la bem alto, juntinho às portas do jardim do céu. Só isso.
A árvore viu a folhinha chorar pela última vez. Neste momento nem pensou duas vezes em proporcionar-lhe um pouco de força nos seus últimos instantes. E avisou-lhe que antes de partir teria seiva suficiente para conversar tudo que quisesse com o vento. Se o seu argumento fosse bom, talvez ele nem a levasse consigo naquele dia.
E, por dentro do tronco, adentrando as galhagens e chegando até o seu corpo esquálido e quebradiço, fez chegar o tanto suficiente de seiva que durasse até os últimos raios avermelhados do entardecer. Sabia que este era o momento de o vento, tal qual trem na estação, apitar e partir. Era assim, todo outono e o trem da estação chegava para as tristes partidas.
Sem saber o que a árvore havia providenciado, ao receber a seiva a folha ficou espantada com a súbita energia que se viu tomada. Sentiu até encorajamento para gritar; cantaria uma ária se houvesse ali outra folha para ouvi-la. O corpo enrijeceu-se, ganhou outra cor no semblante, os olhos brilharam e começou a enxergar melhor. E assim pôde ver quando o vento se aproximava.
Percebeu que era o vento do entardecer que vinha chegando por causa das árvores agitadas e de folhas e restos de folhas esvoaçando pelo ar. Sentiu arrepios, uma frieza por todo o corpo. Fechou os olhos e orou. Despediu-se dessa vida sem querer partir. Ao abrir os olhos viu a face do vento à sua frente.
O vento era bonito, porém parecia cansado e tristonho. Daí que seu rosto quase não se movia, não se agitava como todo vento faz. Com os olhos fixos naquela que levaria naquele momento, espalhou uma leve e perfumada aragem pela boca ao dizer: Está pronta para partir? A folha não conseguiu responder. Não queria partir de jeito nenhum. E se perguntou por dentro: Por que toda folha tem de morrer no outono?
Sentindo que ela não respondia, e entendendo muito bem os motivos daquele silêncio, o vento continuou a falar: Consigo enxergar sua dor e seus sentimentos. Mil lenços não enxugariam as lágrimas que chora por dentro. Também choro por dentro quando faço assim, quando levo pelo ar essas sombras do outono. E choraria muito mais se não soubesse que para vocês, talvez para todos os seres, a partida não significa morrer completamente.
A folha, gélida, continuava em silêncio. Mas o vento continuou: Com a partida, a chegada de outras vidas; com a morte, a ressurreição. Há um renascimento em tudo. Não demorará muito e novas folhas nascerão aqui mesmo nesta árvore. E no outono seguinte também terão de partir. Mas vou lhe contar um segredo que nunca revelei a ninguém.
Fale, fale. A folha conseguiu dizer. E ouviu: As folhas que levo simplesmente ficam espalhadas pelo ar. Depois não sei o destino que tomam. Mas com você farei diferente. Conheço um caminho onde as folhas entram novamente na fila para retornar já na próxima estação. E assim você poderá partir agora e depois voltar para o mesmo lugar. Aceita?
A folhinha jogou-se aos braços do vento, feliz e contente porque retornaria ao mesmo lugar. E o vento soprou forte, rumando sem destino. Estava desnorteado, angustiado demais, gritando e chorando por dentro. Havia mentido para a folhinha. Não haveria retorno, senão noutra folha, noutra vida.
Eis que as folhas simplesmente morrem no outono. As folhas também morrem. Também.


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Lá no meu sertão...


As lavadeiras de Curralinho, em Poço Redondo, sertão sergipano






Amor de mãe, amor de pai (Poesia)



Amor de mãe, amor de pai


Há um tempo em nossas vidas
que saímos e entramos em casa
como se o mundo fosse nosso
e duas pessoas que avistamos
quase desconhecidos em nós
apenas um pai e uma mãe

há outro tempo em nossas vidas
quando os sofrimentos chegam
quando choramos escondidos
quando as febres atormentam
e os nossos corpos agonizam
que quatro mãos nos afagam

há um tempo em nossas vidas
quando os amigos nos traem
quando os amores nos negam
quando tudo parece dizer não
que encontramos todo amor
apenas numa mãe e num pai
                                                           
                                                          e de nada adianta a tormenta                                                           
a tempestade ou o vendaval
quando estamos abrigados
sob a proteção de um lar
e abrigados pelo coração
de uma mãe e um pai

e quando partem em adeus
e imaginávamos a eternidade
então a ausência dos pais
faz nascer uma verdade
não somos quase nada
quase nada somos
sem eles.

Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – “oi o doce, oi o doce!...”



*Rangel Alves da Costa


“Oi o doce, oi o doce!...”, é o que sempre ouço logo após o meio-dia quando estou no sertão. Todo santo dia, como se diz por aqui, Erílio surge tendo à frente um carrinho de mão cheio de cocada por cima. Cocada mole, dura, mais clara ou mais escura, à escolha e gosto do freguês. Então ele grita “oi o doce, oi o doce!...” e as portas vão se abrindo para dizer a medida do desejado. Pedaço de cocada por dois reais, copinho pequeno de cocada mole por um real, copo maior por dois reais. Mas é vendida também na quantidade desejada do freguês. Eu mesmo, como sou muito apreciador de toda guloseima que contenha coco, só falto me acabar na dúvida de quanto queira e do que queira. Três, quatro cocadas ou mais? Dois ou quatro copos de cocada branca e mole? Logicamente que não como tudo na hora, mas aos poucos cada copinho e cada pedaço vão sumindo da geladeira. E quando chega à manhã do dia seguinte já não resta mais nada. Só esperar que Erílio desponte novamente com seus doces e comece a gritar “oi o doce, oi o doce!...”.


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quarta-feira, 25 de abril de 2018

A TRISTE HISTÓRIA DE DONA FEIA



*Rangel Alves da Costa


Dona Feia se enclausurou no seu mundo de modo tão resoluto que quase ninguém sabia mais de sua existência. Talvez por não saber onde estava a mulher, se ainda viva ou se já descambada dessa vida, todos que passavam diante da janela olhavam naquela direção. O desejo maior era ver algum sinal de Dona Feia, ainda que pelas brechas da madeira.
Acaso se aproximasse mais e olhasse atentamente em direção às frestas, certamente encontraria sombras do olhar de Dona Feia se esgueirando do outro lado, vigiando o mundo, a rua e os seus caminhantes pelas juntas corroídas da madeira. Mas não avistaria a feição entristecida, o olhar carregado de dor, a solidão em pessoa.
Coitada de Dona Feia. Vivendo enclausurada, na solidão da vida, distante de tudo, sem nunca mais ter colocado os pés além da portada, simplesmente porque se imaginava a mulher mais feia do mundo. E não adiantava qualquer conhecido querer demovê-la desse pensamento, eis que se achava com razões sentimentais suficientes para se achar assim.
Ao menos o espelho dela não falava, como ocorre com o de muita gente, pois emudecera de vez pela velhice do tempo. Mas toda vez que ela chegava chorosa, quase não encontrando coragem para se olhar, ele tinha vontade de dizer que não suportava mais vê-la assim tão entristecida por uma situação que não existia. Ora, mas você não feia! Diria.
Mas a sua mudez impedia de dizer qualquer coisa e ter de suportar calado aquele injusto, profundo e doloroso sofrimento. Mas culpa dela, sabia. Culpa da própria Dona Feia. Quando jovem não saía diante do espelho, toda alegre e sorridente, cheia de festeiro no espírito e na alma, alardeando a própria beleza sem igual. E bonita mesmo a danada.
E se penteava de minuto a minuto, cantava, recitava versos, se enchia de ruge e batom, colocava um brinco e no outro instante já vinha com outro, se achando uma verdadeira princesa. Lavandas, loções, uma verdadeira primavera respingada pelo corpo inteiro. Somente o espelho sabia dos motivos daquela festa toda, daquele enfeitamento todo. Estava apaixonada. E estava mesmo.
Estava apaixonada, mas não correspondida. Também o rapazinho sequer imaginava do amor nutrido por aquela mocinha. Olhava-a de um jeito diferente, pois imaginava também ser olhado de forma diferente, com um brilho de primeiro sol naquela feição tão doce e angelical. Mas nunca se aproximou por medo de ser ignorado por ela. Não sabia, contudo, que o seu distanciamento se tornaria num verdadeiro martírio para a vida da mocinha. E foi por isso que começou a surgir a feiura na moça bonita. E também o nome Dona Feia.
Sentindo-se rejeitada, recusada pelo rapaz, começou a colocar a culpa em si mesma. Daí em diante já não procurava tanto o espelho e as vezes que dele se aproximava era com feição entristecida, chorosa, sentindo-se a mulher mais desprezível e inexpressiva do mundo. E assim porque colocou na cabeça que a recusa era motivada pela sua falta de beleza, pela sua feiura. Então se olhava como feia, se via como feia, passou a se sentir a pessoa mais feia do mundo.
E uma pessoa tão feia não pode sair por aí servindo de zombaria para os outros, logo imaginou antes de tomar a decisão que mudaria para sempre o seu destino. Eis que decidiu abdicar do mundo exterior, resolveu não mais sair pelas ruas e se fechar de vez nas quatro paredes de sua casa, principalmente na solidão sombria de seu quarto. Resoluta, passou a fazer de seu quarto todo o universo que dispunha. Poucas vezes andava pelos outros aposentos da casa, mas jamais abrir a porta e sair para abraçar o sol. Talvez o sol também não brilhasse diante de sua feiura, pensava.
Olhava a vida por trás da janela, escondida, apenas lançando o olhar para o mundo lá fora. Via pessoas passando e olhando naquela direção. Via quando seu moço bonito passava e depois disso chorava o resto do dia, transbordando na noite. Já não se olhava no espelho, já não se penteava, praticamente havia rejeitado viver. Um dia ouviu alguém batendo à janela. As batidas se repetiram diversas vezes. Mas não abriu no momento.
No instante seguinte, caminhou devagarzinho e foi até a fresta. Avistou alguém caminhando, já indo embora. Era ele. Não tinha dúvidas. Ao olhar mais abaixo, rente ao umbral, percebeu uma flor. Mas tarde demais para pensar em poesia, em amor, na vida. A morte lhe cairia como uma beleza infinita. E Dona Feia partiu com sua beleza e sua dor.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Na foto de Maristela Mafuz, a beleza da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Curralinho, povoação ribeirinha em Poço Redondo, sertão sergipano.




O sertão dentro da gente (Poesia)



O sertão dentro da gente


A gente vive e a gente sente
o sertão dentro da gente

no cordel de feira e repente
um sertão assim presente

no sol tão grande e ardente
o fogo da vida tão quente

na lua que brilha contente
noturno sertão reluzente

no povo humilde e decente
a face de uma vida carente

no destemor de um ser valente
um coração devoto e crente

de Deus um povo tão temente
na esperança o mais persistente

lançando ao chão a semente
para o pão da vida somente

a gente vê e a gente sente
a arte de existir na sua gente

a gente vive e a gente sente
o sertão assim presente

... canção de violeiro triste
sua Maria foi-se embora
estende a lágrima em varal
mas dedilhando a dor chora

a gente vive e a gente sente
o sertão dentro da gente

... debulhar feijão de corda
cantando canção de saudade
os óio marejando um rio
viver assim longe é mardade

a gente vive e a gente sente
esse sertão dentro da gente.

Rangel Alves da Costa




Palavra Solta - quando eu era mais velho



*Rangel Alves da Costa


Sim, acredite. Houve um tempo em que eu era mais velho. E houve outro tempo que eu era mais velho ainda. Tão velho já fui que ninguém me enxergava mais na velhice, e sim como um menino de braço na plenitude da criancice. Depois dessa velhice, quando já não tinha mais idade que coubesse em mim, então comecei a regressar para ser o que sou agora: um menino-velho e um velho-menino em meio à estrada. De agora em diante, para o lado que eu for, sempre estarei indo para a criancice, para quase voltar ao ventre materno. Já não terei palavras inteligíveis, já não andarei com meus próprios pés, já não farei as escolhas que desejar, já não vestirei sozinho minha roupa nem me banharei escondendo minha nudez. Tudo os outros farão em mim e por mim. Quando muito, chorarei o choro longo que toda criança chora, resmungarei por qualquer coisa que não goste por perto de mim. Na minha boca, uma papinha, um mingau, um gole d’água, um remédio. Apenas isso. Ora, serei criança e assim serei. E assim por que a estrada que me faz retornar à meninice é a mesma que me leva à velhice. E o que é um velho carcomido de tempo senão um menino? Toda velhice plena é uma criancice em plenitude. Fomos de berço um dia. E no dia da velhice retornaremos ao mesmo berço. E pensarão que choramos por qualquer coisa. Mas não. Ou querendo papinha na boca ou tendo saudade da estrada que agora já vai sumindo nas distâncias do nublado olhar.


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terça-feira, 24 de abril de 2018

ARREPARE BEM



*Rangel Alves da Costa


Entonce ocê vem dizê que tem a sabedoria. Haverá de ter, mai coisa de ané no dedo e paletó apretado. Mai assevero que o saber é de todo mundo, os de ané e os sem ané. As veiz somente os dedo sabe munto mais.
Eu mermo num troco minha enxada pru caneta de jeito ninhum. Tomem num troco meu ranchim pru bangalô de jeito ninhum. Se tenho porta e tenho janela, se tenho quarto e cama, entonce minha casinha é um palacete.
Sou de ninhum istudo, bem sei. Das letra num sei de nada e das escrita tomem. Num sei o que ler e munto meno iscrevê. Mai tomem sei que munto dotô num tem a ciença que tenho. Pode ser fromado, dotô, mai sei munto mai cuma pobe trabaiadô.
Nasci aqui e vou morrê aqui. Meu mundo é esse aqui. Minha escola tomem. Os livro tão adiante, na natureza, as letra pru riba da terra, tudo espaiada em grão. E se sei prantá e coiê, entonce sou dotô no livro da terra.
E se arguém chega de longe eu nem pregunto pru lá fora. Haverá mundo mió que esse aqui? Meu sinhô, aduvido que arguém chegue dizeno que adiante a vida é boa, que tem tufo de mato e catingueira, que tem passarim e cantiga das foiage. Tem não, meu sinhô, tem não.
Probeza? Sim. Munta. Mai munto deferente das probreza que os da cidade pensa que nóis tem. Decerto que a probreza da gente, merma fartando dinhero e mai, é munto mai riqueza que a riqueza que munto pensa que tem. Mai probe que nóis, a verdade.
Me diga se num é riqueza ter o de comê, o de bebê, o de sustentá a vida. Pa vivê o homi num percisa de luxo não, percisa de paz, de panela no fogo, de prato na mesa, de quartinha cum água, de rede pa discansá.
Uso roupa veia e num troco pru nada. Meu roló tá no couro e no osso e aina assim é o de uso. Chapéu de paia ou de couro é quarqué um, tudo eu uso. Mai num ando sujo não. Merma vestino gibão, no calorzão danado, ninguém vai fazer a vorta pru caso de arripunação.
Drumo cum a cabeça pro riba da peda, se for perciso. Agora me diga, seu moço, quantos outo que é rico, que vive no tudo ter, adromece cum a paz pru todo lugá? Eu drumo inté pru riba da cansanção, da urtiga, debaixo do tufo de mato. E nada me tira o sono não.
Nunca matei nem nunca roubei. Nem rolinha fogo-pagô tenho matado mai. Me dói pru dento quano vejo a mardade pru mardade. Sou cronta ferrá o garrote, sou cronta a chibata no lombo. Se dói na gente, entonce pruque não haveria de doer nos bichinho? Mai tem munta gente mardosa demai.
Drumo poquim. Quem é da terra acorda no madrugá. O galo aina nem cantou e já tô abrino a porta de traiz. Aceno fogo de lenha, boto chaleira no fogo, torro perna de preá, se tiver. Adespoi jogo um moio de farinha e já me apronto pru dia. Despoi disso é só enxada, enxadecos, foice, facão. E uma vaqueirama de quano em veiz.
Quano o dinhero é pouco a gente inventa o de comê. Nem sempre nóis faiz a feira, mai sempre tem uma coisinha pa num deixá a barriga vazia. Caça num existe mai nem eu sou mai de caçr. Certa feita, inté parma nóis comeu. E num é coisa ruim não. Mai nada iguá a uma fruta do mato.
Bebo minha pinguinha aqui mermo. Sempre um restim de pinga. Num deixo fartá não. Mai pinga da boa, de raiz de pau, que tomem seuve cuma remédio. Aceno meu cigarrinho de paia e adespoi me assento debaixo do umbuzero ou pru riba de um tronco de pau. Entonce cunveuso com a natureza, os bicho, com a ventania que vem.
Saí daqui quero não. Nasci aqui e agora vou morrê. Pru riba deu a terra que tanto gosto e que é minha vida. Inquanto isso, levano a vida mai Filozinha, mai a fiarada, mai o que gosto de ter no meu mundo.
E meu mundo é esse, assim. De lua e de sol, de noite e de dia, nas lonjura de tudo. Num há mundo mió não, meu sinhô.


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